“Avaliação da Política Nacional de Informática”

Fabio S. Erber, In: Relatório “Avaliação da Política Nacional de Informática” (CNPq)

Este relatório elaborado, em novembro de 1989, para o projeto UNICAMP/CNPq “Avaliação da Política Nacional de Informática” nos ensina a história das dificuldades, problemas e comenta sobre as distorções de informações que ocorreram na implantação dessa política. Aponta como sua proposta, transformada no governo Figueiredo na lei nº 7232 de 29 de outubro de 1984, sofreu pressões políticas fortíssimas, inclusive, em 1987, o governo americano retaliou as exportações brasileiras. Na Introdução, Erber conta que, teoricamente, se pensou que a política de informática deveria abranger o “complexo eletrônico integrado”, envolvendo a indústria de equipamento de telecomunicações, cujo capital era estrangeiro, mas tendo a mesma base técnica, que poderia fornecer pessoal às universidades e centros de pesquisa. Ao mesmo tempo, se asseguraria às empresas nacionais, reserva de mercado e tratamento integrado para estas e para serviços do referido complexo. Erber explicita, ainda, que a Política Nacional de Informática (PNI), de outubro de 1984, gerou enormes conflitos internos e internacionais, devido a ambição de suas características. O autor narra que, nas negociações para viabilizá-la, o governo Sarney cedeu às pressões. Os equipamentos de telecomunicações não foram incluídos na política, de modo que não foi possível absorver internamente os conhecimentos técnicos da base tecnológica do complexo de setores escolhidos, notadamente engenharia de projeto, fundamental à inovação. Foi, consequentemente, ampliada a gama de ofertantes internacionais de tecnologia inibindo o desenvolvimento local. Além disso, a Nova Política Industrial terminou com a reserva de mercado. Imputava-se à política de informática um desejo de autarquia tecnológica, de “reinventar a roda”, o que constituiu uma crítica infundada, uma vez que ela passou a apoiar diretamente a importação de tecnologia, tanto na forma de engenharia reversa, como através de contratos formais de licenciamento e de importação de componentes. Contraditoriamente, a Nova Política Industrial (NPI), de junho de 1986, não manteve a distinção entre empresas segundo o seu capital, o que foi referendado pela Constituição de 1988. Para preservar o Plano Nacional de Informática (PNI), o Estado excluiu este setor dos regimes fiscais definidos pela NPI, exceto no que tange aos incentivos à exportação. A NPI assemelhava-se à PNI no que toca à prioridade dada aos setores intensivos em tecnologia, no que se refere aos programas de desenvolvimento tecnológico interno, combinando-os às atividades produtivas de todo um complexo industrial e a formação de recursos humanos que apoiassem atividades industriais. Numa política industrial articulada por programas setoriais, a PNI por sua horizontalidade necessitava de articulação com as políticas de outros setores, que foi muito falha por parte do governo, tendo sido mantidos regimes distintos para indústrias de bens de consumo e de equipamentos de telecomunicações. Portanto, a eletrônica não foi pensada como área estratégica. Na segunda seção, Fabio Erber analisa as principais questões dessas ligações interindustriais, e, complementarmente, na seção 3, distingue as principais articulações deste complexo com o resto do sistema produtivo de uma forma mais geral. Enfatiza que a política teria sido bem-sucedida se tivesse havido a formação de grupos empresariais capazes de explorar as economias de escopo e aprendizado, e que tivessem condições de superar as crescentes barreiras de escala, voltando-se também para o mercado internacional. Acrescenta ainda que a ação destes grupos deveria ter sido articulada a um padrão de intervenção estruturante de parte do Estado, que abrangesse não só o complexo eletrônico mais também os vínculos deste para trás na cadeia produtiva, com a formação de pessoal e a pesquisa científica e tecnológica extramuros do complexo. Da mesma forma, deveriam ser desenvolvidos encadeamentos para frente, com os usuários dos bens e serviços eletrônicos. Observa-se que, como fornecedor de bens e serviços, o complexo deveria ser dividido naqueles produtos que são de uso final, adquiridos por unidades familiares, e aqueles que são comprados como bens de produção pelo setor público ou privado. Com relação aos comprados para os bens de produção, chamou a atenção para o fato de que a eletrônica ensejou aos usuários um novo padrão de produção, caracterizado pela flexibilidade da automação, que permite diversificar as linhas de produção com economias tanto de capital, como de mão de obra, configurando um novo paradigma de produção. A proposta que Fabio Erber defendeu no texto é que o complexo eletrônico, posto que exerce papel de dinamizador do processo de acumulação de capital e de progresso técnico, deve ser internalizado no país, em decorrência do fato de que o processo de difusão de inovações é fortemente afetado pela proximidade econômica e geográfica entre fornecedores e usuários. Durante a sua argumentação defende ainda que o que caracteriza a dependência tecnológica é a baixa relação entre gastos locais e importação, não é a importação de tecnologia, posto que esta é indispensável. Na seção 4, Erber analisou a questão do manejo dos hiatos tecnológicos, e concluiu que qualquer política que fosse adotada teria como consequência hiatos absolutos. Entretanto, lembrou que as críticas à política de Informática são mais consistentes no campo do hiato relativo, quando se compara os preços de produtos similares no mercado brasileiro e americano. Finalmente, a quinta seção volta a defender a necessidade de uma política integrada para o complexo eletrônico, assim como de seletividade de produtos para administrar os hiatos tecnológicos. Sugere que política seja focada em algumas famílias de produtos por seu uso, definidas pela análise de três dimensões básicas: 1) utilização e desenvolvimento de recursos tecnológicos; 2) barreiras econômicas à produção local e; 3) conflitos político-econômicos.

 

 

  1. Introdução: PNI e NPI

A Política Nacional de Informática (PNI) brasileira tem seis características principais:

– A identificação da eletrônica como area estratégica do ponto de vista econômico, político e militar;

– Estar baseada no mercado interno, através de uma substituição de importações “antecipatória”, em que importações são impedidas pela produção local potencial;

– 4% objetivo de desenvolvimento de uma capacidade tecnológica autônoma, através de investimentos locais, sem prescindir do licenciamento de tecnologia externa, nas transcendendo os limites que a lógica deste impõe à transferência de conhecimentos, especialmente na concepção de produtos e processos a diferenciação de tratamento entre empresas nacionalmente controladas e aquelas controladas do exterior, atendendo aos objetivos de autonomia de decisões e, especialmente, de controle tecnológico, pela reserva do mercado brasileiro às empresas sob controle nacional para os produtos que estas sejam capazes de fabricar, deixando os demais produtos preferencialmente às empresas sob controle externo; a busca de um tratamento integrado das várias indústrias e serviços que compõem o “complexo eletrônico”; e ter sido objeto de uma Lei específica, amplamente debatida pela opinião pública e no Congresso, dando-lhe legalidade e legitimidade.

Até recentemente estas características conferiam à PNI uma singularidade dentro da política econômica nacional, embora algumas destas características fossem compartilhadas por outras, políticas traçadas para setores estratégicos do ponto de vista tecnológico e de soberania nacional como o aeronáutico (*).

For configurar um padrão de política industrial distinto, em que o peso dos atores nacionais é muito maior que o usual em setores estratégicos e onde a autonomia tecnológica é privilegiada, a PNI transformou-se num pólo de conflitos tanto internos como internacionais.

Nos últimos anos ocorrem dois movimentos, aparentemente contraditórios: de um lado, tangido pela oposição à PNI, o Executivo fez várias concessões a seus críticos (por exemplo, no que toca ao software) e não implementou a integração de políticas na área eletrônica, mantendo regimes para as indústrias bens de consumo e de equipamentos de telecomunicações distintos dos prefigurados pela Lei de Informática.

Da mesma forma, ao definir um novo regime de incentivos fiscais para a indústria através dos Decretos da Nova Política Industrial (NPI), o Estado não fez qualquer distinção entre empresas segundo o centro do seu capital.

Em contraposição, referendou se na Constituição a diferença entre empresas brasileiras em função do seu controle estar ou não em mãos nacionais, bem como o princípio de que o mercado interno constitui patrimônio nacional podendo seus acessos ser regulamentado para atender objetivos nacionais especialmente nos setores considerados estratégicos.

Por outro lado, o Estado para preservar a PNI excluiu a informática dos regimes Fiscais definidos pela PNI exceto no que tange os incentivos à exportação, dos quais zsa empresas que operam ao abrigo da Lei de Informática podem fazer uso.

A NPI assemelha-se ainda à PNI no que toca à prioridade dada aos setores intensivos em tecnologia, na ênfase dada a programas de desenvolvimento tecnológico interno, inclusive pela combinação deste com a importação de tecnologia e na concepção de uma política industrial articulada por programas setoriais em que se combinem as atividades produtivas de todo um complexo industrial as atividades de desenvolvimento tecnológico e de formação de recursos humanos que apoiam as atividades industriais.

A NPI assemelha-se ainda à PNI no que toca à prioridade dada aos setores intensivos em tecnologia, na ênfase dada a programas de desenvolvimento tecnológico interno, inclusive pela combinação deste com a importação de tecnologia e na concepção de uma política industrial articulada por programas setoriais, em que se combinem as atividades produtivas de todo um complexo industrial às atividades de desenvolvimento tecnológico e de formação de recursos humanos que apoiem as atividades industriais.

Estas contradições refletem tanto os conflitos que são inerentes à PNI como a própria indefinição da sociedade brasileira quanto ao seu padrão de desenvolvimento industrial. No presente momento, em que se conclui o longo processo de transição de um regime autoritário para uma democracia contemporaneamente a pior crise econômica do pós-guerra, há um consenso quanto à necessidade de reverse-se o padrão de desenvolvimento industrial do país.

Dadas as singularidades da PNI, que a fazem emblemática de um padrão distinto e o caráter estratégico da informática, que permeia toda a sociedade, essa revisão passa, necessariamente, pela discussão da PNI e de seus vínculos com outras políticas setoriais.

As seções subsequentes pretendem contribuir a esse debate enfocado principalmente questões relativas a vínculos interindustriais, tanto dentro do complexo econômico (CE) como entre o CE e demais complexos, mantendo dessa maneira, a convergência entre a PNI e a NPI.

Assim, a próxima seção detalha algumas características de CE que são importantes para entender sua dinâmica interna e conexões com os outros complexos, com a natureza da interdependência que une as indústrias que compõe o CE.

As duas seções seguintes concentram-se sobre as relações entre o CE e outros complexos. A seção 3, de uma forma mais geral, distinguindo as principais articulações do CE com o resto do CE em condições como as brasileiras.

Finalmente, a quinta seção propõe uma abordagem para a PNI que permitiria combinar a abrangência decorrente da interdependência entre os componentes do CE com a seletividade importa pela administração do hiato tecnológico.

 

  1. A Economia do CE e a PNI

As indústrias eletrônicas e serviços conexos fornecem bens e serviços destinados, lato senso, ao processamento da informação. Esta característica faz com que seus mercados sejam extremamente diversificados – do entretenimento a automação industrial. O espectro de mercados tende a se ampliar tanto pela criação de novos produtos (Por exemplo, vídeo- texto) como pela substituição de outras formas de processamento de informação (por exemplo eletromecânica) pela eletrônica. Este processo de expansão do uso da eletrônica na sociedade, assemelhado a uma mancha de óleo que se espalha de forma irregular, e reforçado pela redução do custo relativo de vários atributos que caracterizam um produto – desempenho, confiabilidade, durabilidade etc.

Apesar de suprirem mercados que tem dinâmicas muito distintas, as indústrias e serviço eletrônicos tem uma dinâmica interdependente, que é estabelecida pelas características dos produtos que fornecem e pelo uso de uma base cientifica e técnica comum, tanto na concepção com na produção desses bens. Estes vínculos de interdependência dinâmica entre as várias industriais eletrônicas tendem a ser mais fortes que os vínculos que as unem outras indústrias de distinta base técnica, e tem um efeito de sinergia, onde a resultante da interação e maior que a soma das partes.

As indústrias eletrônicas e seus serviços constituem, assim um complexo industrial – o complexo eletrônico (CE). Este complexo tem uma forma especial, o leque, onde o centro e constituído pelas atividades de concepção de produtos (pesquisa e desenvolvimento) e por insumos e componentes de uso comum, notadamente componentes semicondutores e software. Os raios do leque são constituídos pelas diversas cadeias produtivas orientadas para mercados distintos- automação, processamento de dados etc. A convergência entre alguns mercados, que antes eram separados, como a informática e telecomunicação formando a telemática, reforça a referida interdependência entre as várias cadeias.

O tipo de interdependência verificado entre as indústrias eletrônicas faz com que, na sua dinâmica, destaquem-se as economias de escopo, derivadas dos usos dos mesmos recursos para linhas de produção distintas. Por outro lado, o caráter intensivo em tecnologia, fortemente utilizador de mão de obra muito qualificada (especialmente na fase de concepção dos produtos) e o ciclo de vida relativamente curto dos bens e serviços eletrônicos, enfatizam as economias de aprendizado, tem efeitos de sinergia e constituem um importante barreira a entrada do setor.

No passado recente, as barreiras também têm aumentado de altura devido a crescente padronização de alguns produtos e a expansão da automatização dos seus processos de pesquisa e desenvolvimento e de produção, ampliando a importância das economias de escala estáticas tradicionais – o que é interpretado por alguns como um sinal de um relativo “amadurecimento” do CE.

Está combinatória de economias de escopo e escala, estáticas e dinâmicas, tem profundos efeitos sobre a estratégia das empresas que participam do CE. Tradicionalmente, essas economias foram exploradas por meio de integrações horizontais e verticais dentro do mesmo grupo, ou seja, um efeito de aglomeração eletrônica. Mais recentemente, somou-se a conglomeração a cooperação entre grupos, tano ao nível de tecnologia, por meio de licenciamentos cruzados e projetos cooperativos de P&D, como ao nível da produção, por meio de “joint-ventures” e “joint-businsessses”.

Nos países centrais, onde o CE nasce e se desenvolve mais, as características do CE também definiram um padrão de intervenção do Estado especifico, da natureza “estruturante”, onde o Estado plasmou, ao mesmo tempo, as condições de oferta e demanda do CE, atuando de forma abrangente e sustentada no tempo, sobre todas as etapas da cadeia que vai da pesquisa as vendas dos produtos e serviços, utilizando medidas redutoras de custos e, especialmente, de riscos para as empresas nacionais, numa perspectiva ofensiva, de ganhar espaço no mercado internacional. Mesmo onde o CE já se implantou, a intervenção do Estado se mane, assumindo um caráter estruturante para os produtos que constituem a fronteira tecnológica do setor e fomentando ou estruturando a cooperação entre empresas.

As análises da intervenção do Estado no CE normalmente concentram sua atenção sobre a constituição da capacidade cientifica, tecnológica e produtiva do complexo, ou seja, ao nível da oferta de bens e serviços do complexo e de seus encadeamentos com o sistema educacional e de pesquisa. No entanto, convém assinalar que esta intervenção foi simultânea a ação sobre a demanda destes bens e serviços, feito tanto diretamente apelo Estado, através de suas políticas de compras, como indiretamente por meio de medidas que reduziam os riscos e custos do uso destes bens, especialmente para que eles compradores que os empregavam como bens de produção e eram oriundos de uma base técnica não eletrônica – por exemplo, na introdução do controle numérico na indústria de máquina-ferramenta.

Esta dupla intervenção, a que, por isso, chamamos de “estruturante”, dá-se, pois, tanto dentro do CE como nas interfaces deste com outros complexos industriais ou com os consumidores finais, constituindo a política industrial (lato sensu) para o CE e uma parte fundamental (dada a importância da eletrônica para o sistema econômico e social) da política industrial geral.

Finalmente, não é ocioso insistir sobre o caráter internacionalmente do CE – tanto em termos de mercados como de produção, seja na definição de estratégias por parte das empresas como nos Estados nacionais, há uma dimensão internacional, que tem um efeito cumulativo. Assim, a intervenção de um Estado nacional favor das empresas do seu CE nacional, obriga-os demais a intervir, sob pena de prejudicar a posição competitiva de suas empresas nacionais.

Em síntese, a economia tecnológica, industrial e política do CE sugere que este será bem-sucedido se houver a formação de grupos empresariais capazes de explorar as economias de escopo e aprendizado e superar as crescentes barreiras de escala, voltando-se também para o mercado internacional. A ação destes grupos deve estar articulada a um padrão de intervenção estruturante de parte do Estado, que abrange não só o CE como os vínculos destes para trás, como a formação de pessoal e a pesquisa cientifica e tecnológica extramuros do complexo, e os encadeamentos para frente, com os usuários dos bens e serviços eletrônicos.

A luz destas conclusões, a parcialidade da PNI brasileira e patente. A segmentação da política, entre setores e, dentro dos setores, por produtos, implicou que as economias de escopo, aprendizado e escala fossem reduzidas. A relutância em assumir uma postura claramente estruturante, que teria impicado em medidas mais restritivas de ordenamento de oferta, fez com que a formação de grupos capazes de usufruir das economias de escopo e escala fosse retardada, o que foi agravado pela ausência de uma política de exportação adequada as especifidades do setor.

Ainda no âmbito do CE, note-se que o apoio das agencias financiadoras do Estado foi tardio e, frequentemente, hesitante, especialmente no que toca a capital de risco, como bem evidencia a crônica falta de capital da única empresa estatal do complexo, cuja vocação de liderança tecnológica e provedora de externalidades para as demais empresas jamais foi plenamente assumida pela política.

Em termos dos encadeamentos para trás, a constituição de tecido científico e tecnológico sobre o qual repousa o complexo, foi notoriamente precária, limitada por uma política míope de controle dos gastos públicos – o que levou as empresas nacionais a internacionalizar custos e riscos que, em outros países, constituem externalidade para seus congêneres, limitando assim sua competividade internacional.

As relações com os demais complexos industriais, como para frente como para trás, são analisadas em maior detalhe na próxima sessão, mas cabe aqui, enfatizar a parcialidade das políticas de demanda por produtos eletrônicos, tanto os adquiridos diretamente pelo Estado como os dirigidos pelo setor privado.

Na verdade, a PNI utilizou basicamente dois instrumentos: o controle de importações, tanto de produtos acabados como de partes e componentes, e a aprovação de projetos e produtos. Embora incentivos fiscais, créditos de agências governamentais e compras estatais também fossem utilizados, foram-no de forma limitada e descontinuada ao longo do tempo.

Embora poderosos, especialmente pelo conteúdo importado relativamente alto (para padrões brasileiros, conhecidos pela quase-autarquia), estes instrumentos não constituem um arcabouço estruturante para um setor e, muito menos, para o CE, onde sua insuficiência e agravada pela desconexão entre as políticas setoriais.

Esa insuficiência torna-se muito mais grave quando situada num contexto internacional não só as condições do CE brasileiro são muito mais precárias, como a intervenção dos Estados nacionais e, essas sim, de caráter nitidamente estruturante.

 

  1. Política Inter complexos

Para trás, como consumidor de produtos industriais fornecidos por outros complexos industriais, o CE demanda bens de vários complexos, notadamente do complexo eletromecânico, como fiação elétrica e componentes de mecânica fina, e do complexo petroquímico, pelo consumo de plástico e outros derivados sintéticos.

Embora suas compras possam não ser vultuosas, em termos quantitativos, o CE pode exercer um importante efeito sobre seus supridores ao definir requisitos técnicos apurados para os produtos que compra (por exemplo, em ermos de tamanho ou dissipação de energia), obrigando os fornecedores a aperfeiçoar os seus procedimentos de projeto e produção. Como esta capacitação técnica pode ser utilizada para suprimento de outras indústrias, esta articulação para trás do CE tende a gerar externalidades para outros complexos industriais.

No caso brasileiro, o suprimento de insumos não eletrônicos constitui uma das principais causas do custo relativamente alto dos produtos de CE (veja-se abaixo a discussão do hiato tecnológico) e deveria constituir uma das prioridades de uma política industrial que articula o CE aos demais complexos.

Para frente, ao olhar o CE como fornecedor de bens e serviços, convém distinguir entre os bens e serviços que são de uso final, adquiridos por unidades familiares, e aqueles que são comprados como bens de produção pelo setor público ou privado.

A composição e quantidade dos primeiros depende diretamente da política de rendas e apenas medianamente pela política industrial externa ao CE. No entanto, a evolução deste último e, conforma já assinalado, fortemente afetado pela política tecnológica e industrial definida para as indústrias que produzem esses bens de consumo (notadamente áudio e vídeo, mas, crescentemente, microcomputadores também) e, desta forma indireta, os demais complexos industriais são também afetados.

Assim, no caso brasileiro, a baixa integração tecnológica, produtiva e da política entre o setor de bens de consumo sediado na Zona Franca de Manaus e o resto do CE nacional em efeitos negativos que transbordam os já notados para o CE, incidindo sobre o resto do sistema industrial.

No passado recente e no presente, a política de renda do país tem induzido uma produção de bens de consumo eletrônicos que busca a diversificação dos modelos, reforçando a propensão a importar tecnologia e componentes. Caso houvesse uma modificação desta política de rendas, privilegiando uma distribuição mais equitativa de rendimentos, e provável que o consumo destes bens não se alterasse em termos quantitativos (ao contrário, e provável que a densidade de eletrônicos por domicílios aumentasse) mas sua composição, rumo a modelos mais simples, provavelmente seria alterada.

Por mais importante que sejam os efeitos da difusão da eletrônica sobre os padrões de consumo domiciliar (a que devem somar-se os impactos políticos e culturais), do ponto de vista estritamente econômico, o principal impacto do Ceda-se pelo uso de seus produtos e serviços como meios de produção de outros bens e serviços.

Conforme já foi apontado, a rápida difusão dos bens eletrônicos como meios de produção deve-se a uma combinação de fatores: o objeto que transformam – a informação, em todos os seus usos, a diversificação destes bens eletrônicos, adaptáveis a diversos usos, e a drástica redução das relações entre o preço destes bens e suas demais características (desempenho, durabilidade, confiabilidade etc.).

Com o e sabido, a eletrônica ensejou aos seus usuários novo padrão de produção, caraterizado pela flexibilidade da automação, que permite diversificar as linhas de produção com economias tanto de capital como de mão-de-obra, configurando um novo paradigma de produção.

Desta forma, o CE fornece os meios para que os demais setores revolucionam sua base técnica, induzindo um processo de inovação encadeado, em “cascata”, que afeta todo o sistema econômico.

Mais indiretamente, ao definir procedimentos de pesquisa e produção com margens de tolerância muito restritas, o CE estabelece paradigmas para o resto do sistema, como por exemplo, o “grau de pureza eletrônica” na produção.

Para que o CE exerça a contento esses papeis de dinamizador processo de acumulação de capital e de progresso técnico, e necessário que este complexo esteja internalizado no país, posto que o processo de difusão de inovações e fortemente afetado pela proximidade econômica e geográfica entre fornecedores e usuários. Dadas as conhecidas limitações do processo de transferência internacional de tecnologia, e necessário que o CE local tenha uma capacidade tecnológica própria, sem prescindir, obviamente, da importação de tecnologia. Convém aqui reiterar que o que caracteriza a dependência tecnológica não é a importação de tecnologia, posto que é indispensável, mas a baixa relação entre os gastos locais e a importação.

Neste sentido, a PNI tem um sentido verdadeiramente estratégico para o resto do sistema econômico ao garantis a internacionalização de um CE sob controle nacional, sendo de deprecar os pequenos investimentos feitos na montagem do sistema científico e tecnológico externo ao CE e que dá sustento a capacidade de inovação deste último.

A presença de um CE, mesmo dotado de capacidade tecnológica própria, não garante, porém que o processo em cadeia previamente descrito se dê. E necessário também quer que estejam presentes no sistema aqueles setores industriais e serviços que desenvolvem e adaptam as inovações eletrônicas (fazendo na linguagem shumpeteriana “inovações secundarias”) aos seus múltiplos usos.

Entre os setores industriais que fazem este papel de “intermediários” entre os “motores” da inovação, como o CE, e o resto do sistema econômico (Erber, 1988), destacam-se os produtores de bens de capital, lócus clássicos da incorporação e difusão do progresso técnico.

Na segunda metade da década de setenta, o Brasil, deu um salto quantitativo na capacidade de produção de bens de capital baseada na tecnológica não-eletrônica. A trajetória natural dessa indústria nos anos oitenta, que seria a introdução da eletrônica, foi freada pela crise da década, originada por fatores financeiros extra industriais.

A redução do ritmo de investimentos teve como consequência imediata a diminuição da introdução da eletrônica na indústria de bens de capital, que, por estar em seus estágios iniciais, demanda altos gastos em inversão e um grande esforço de aprendizado.

Esta contração da demanda esperada por meios de produção de base eletrônica teve um efeito perverso cumulativo, ao ocorrer quando se implantava a produção local destes bens, contribuindo, pelos aumentos dos custos fixos unitários, a aumentar os preços destes bens e, assim a desestimular mais ainda a sua demanda.

Não obstante, o número de máquinas-ferramenta com controle numérico instalado no país, em 1988, era mais de cinco vezes superior ao do início da década e o número de controladores programáveis vendidos naquele último ano era onze vezes superior ao vendido em 1984 (Laplane 1989 e Sei 1989).

Embora os números acima atestem que o processo de difusão não estancou, tendo prosseguido a ritmos superior ao do crescimento industrial do país, esta difusão ainda e pequena em termos internacionais. A título de exemplo, enquanto no Brasil, em 1987, apenas 4% das máquinas-ferramenta produzidas eram de controle numérico, nos países avançados esse percentual supera, em média, a metade da produção.

Em consequência, uma das prioridades da política industrial deve ser a incorporação da eletrônica pela indústria de bens de capital. Neste sentido, a definição do setor de máquinas-ferramenta como uma das prioridades para a elaboração de um programa setorial integrado, no âmbito da NPI e positivo, como é a constituição pelo BNDES de uma linha específica de apoio a automação industrial. Note-se, porém, que, nos países avançados, o apoio governamental a introdução da eletrônica na indústria de bens de capital abrange um conjunto de medidas mais amplo, que visa reduzir tanto os riscos como os custos dos usuários (Sa, 1989).

Por ter o estado brasileiro, tanto a Administração Central como as Empresas Estatais, assumido os principais ônus da crise financeira, a demanda publica por bens eletrônicos foi especialmente afetada. Em consequência, a PNI foi privada, no campo econômico, de um dos principais instrumentos utilizados nos países avançados para desenvolver seus CEs, inclusive com sentido anticíclico, e, no campo político, de um de seus esteios de legitimidade, que seria a utilização dos bens de serviços do CE para fins sociais, inclusive para a modernização do aparto estatal.

Embora medidas de política industrial, estrito senso, possam aumentar a articulação entre o CE e os demais complexos industriais, esta depende, em boa medida, de condições macroeconômicas que transcendem o âmbito da referida política, entre as quais se destaca a alteração do padrão de financiamento do processo de desenvolvimento industrial e de operação do Estado brasileiro. Como bem ilustra o caso do sistema financeiro, onde a introdução eletrônica foi célere e baseada em soluções tecnológicas locais, quando estas condições são propicias, o CE nacional e capaz de responder adequadamente.

Embora o preço de vários produtos do CE, notadamente de tecnologia nacional com as qualificações devidas ao seu estágio “infantil”, a oferta de bens de produção do CE brasileiro ainda parece de uma relação entre preços e demais atributos excessivamente alta, o que sugere ser conveniente, do ponto de vista da política industrial como um todo, priorizar os esforços de redução de custos nesse segmento do CE.

Dada a interdependência entre os segmentos do CE, esta orientação remete, uma vez mais, para uma política integrada dentro do CE e deste com seus supridores, notadamente os metalmecânicos, que constituem um dos principais obstáculos a redução de preços. Dadas as limitações de tamanho do mercado brasileiro e a escassez de recursos técnicos e produtivos de famílias de produtos a serem desenvolvidas localmente se impor, tema tratado em mais detalhe nas duas seções seguintes.

 

  1. A administração do Hiato Tecnológico

As firmas nacionais de informática já alçaram uma clara capacitação tecnológica em vários domínios tecnológicos. No campo da fabricação, capacitaram-se inicialmente a manufatura os produtos localmente e, agora, vem ampliando sua competência no controle e melhoria de qualidade e nos serviços de manutenção dos equipamentos. Na area de projeto de produtos desenvolveram a capacidade de engenharia reversa e de projetar produtos internamente, tanto em hardware (por exemplo, equipamentos de automação bancária) como em software (por exemplo, o sistema operacional SOX da COBRA).

Não obstante estes resultados positivos, a Política de Informática enfrenta o problema da capacidade de inovação e de acompanhar o desenvolvimento internacional na area, pontos centrais do questionamento da política, e que em obvias implicações para os demais setores motores da inovação.

A política de Informática imputa-se com frequência um curioso desejo de autarquia tecnológica, de “reinventar a roda”. Os fatos, no entanto, invalidam esta crítica. A política, tal como vem sendo posto em prática, tem-se apoiado diretamente sobre a importação de tecnologia, tanto sob a forma de engenharia reversa como através de contratos formais de licenciamento e plena importação de componentes.

Em verdade, a política ampliou a gama de ofertantes internacionais de tecnologia, como pode ser visto comparando as ofertas de licenciamentos nas duas concorrências feitas de para a produção local de microcomputadores, em 1977, no início da política, e em 1983, para superminis. Na segunda, as empresas líderes do setor dispuseram-se s ceder tecnologia a firmas nacionais, ao contrário do que ocorrera na primeira.

A experiencia da indústria brasileira de informática confirma a de outros setores no que toca as relações entre importação de tecnologia e desenvolvimento de uma capacitação tecnológica interna. Assim, a importação de tecnologia serve para desenvolver algumas capacidades, como a de engenharia de fabricação, mas tende as inibir outras, como a engenharia de projeto.

Como as capacidades tecnológicas que tendem a ser inibidas são aquelas indispensáveis pelas inovações, a importação de tecnologia tende a ser perpetuada, a menos que os importadores realizem um investimento autônomo na sua capacitação nas atividades que a importação não desenvolve.

Esse constitui um dos principais objetivos e, ao mesmo tempo, desafios da política brasileira de informática, que se repete nas outras áreas de ponta.

Embora a percentagem do faturamento das empresas brasileiras devotada a atividades tecnológicas na area de informática seja alta (cerca de 10%), o tamanho de muitas destas firmas faz com que o nível absoluto de gastos seja insuficiente para atuar na fronteira internacional, onde o patamar mínimo de gastos se elevando.

Os gastos governamentais brasileiros também não são suficientes para alcançar os dos países avançados e o estoque de recursos de que o País dispõe, especialmente recursos humanos, e claramente insuficiente para inovar numa faixa muito ampla de produtos de alta tecnologia.

Entretanto, para Pais como o Brasil, não é necessário nem factível estar colado as fronteiras internacionais em todos os produtos das áreas de ponta. Tanto nas decisões quanto a o que produzir internamente, com que parâmetros de custo/desempenho, como nas decisões quanto a concentração da capacidade de inovar, as condições do País impõem uma postura seletiva em termos de produtos.

Esta política seletiva implica numa análise mais cuidadosa da problemática do “hiato tecnológico” em condições de relativo subdesenvolvimento.

O hiato tecnológico na oferta de produtos e identificado pelas diferenças entre as relações preço/desempenho prevalecentes nos mercados internacionais e brasileiro. Quando certos produtos são ofertados internacionalmente e não no Brasil, há um hiato “absoluto”. Quando os produtos são ofertados em ambos os mercados, o hiato eventual e “relativo”.

A dinâmica do complexo eletrônico caracteriza-se, conforme já foi mencionado, pela diversidade de produtos e, ao confrontar as ofertas no mercado brasileiro e no exterior, constatam-se inúmeros exemplos de “hiato absoluto”.

Cabe, porém, questionar o significado deste hiato. O conceito de “hiato” contém, implícita, uma noção de “necessidade” universal, que se expressaria através dos parâmetros de custo e desempenho dos produtos. Estes, porém, são definidos pelas empresas com base em critérios internos de competição e acumulação aplicados as condições dos países desenvolvidos. Nem os critérios nem as condições podem ser mecanicamente extrapolados para os países como Brasil. Um conceito mais apropriado de “hiato” implica na identificação detalhada de que necessidades não são atendidas pela oferta brasileira.

Em outras palavras, a identificação de um hiato na oferta e uma decisão política, além de econômica.

Cabe considerar que, mesmo nos países desenvolvidos, nos setores de alta tecnologia observa-se, com frequência, o que se pode chamar da “síndrome da câmara refles”. Com efeito, como se sabe, são incontáveis os compradores de potentíssimas câmeras fotográficas, capazes de tirar fotos nítidas na escuridão ou de um cavalo cruzando a reta final no hipódromo, que usam apenas para fotografar as crianças no jardim, paradas sob céu azul. O mesmo descompasso entre uso (necessidade) e oferta se aplica a outros produtos, como computadores pessoais e, mesmo, em equipamentos profissionais. A crise pela qual passou recentemente a indústria de computadores nos Estados Unidos e atribuída, em boa medida, a essa capacidade ociosa dos equipamentos.

No caso brasileiro, não há evidência disponível que ateste que a Política de Informática tenha deixado necessidades de alta prioridade social ou econômica inatendidas, embora enha, certamente, privado muitos usuários de prazer e prestígio de possuir o “dernier cri” em matéria tecnológica.

O conceito de “hiato” contém ainda, implícita, a hipóteses de disponibilidade de recursos para importar os bens não ofertados localmente. A crise cambial brasileira e de tais dimensões que torna indispensáveis maiores comentários sobre o realismo desta hipótese.

O controle de importações desempenha um papel fundamental na política de informática brasileira. Em primeiro lugar, dada a falta de integração vertical do complexo eletrônico, permite pelo controle de importações das partes, componentes e equipamentos, selecionar que produtos serão produzidos no País. Ao mesmo tempo, permite manter, pelo mesmo canal, os hiatos tecnológicos (absoluto e relativo) sob relativo controle. Em terceiro lugar, tem sido um importante elemento de barganha para elevar as subsidiarias implantadas no País a tanto aumentar suas compras locais de partes e componentes, como de elevar suas exportações intragrupo. Recentemente, a lista de produtos cujos pedidos de importação necessitam ser examinados pela Secretaria Especial de Informática foi reduzida, ao mesmo tempo que os procedimentos de exame estão sendo agilizados.

Potencialmente o controle de importações poderia ainda constituir um importante elemento salvaguarda dos interesses dos consumidores, atuando como elemento de pressão para que as empresas endividam dessem esforços para reduzir as relações de preços/desempenhos de seus produtos. Esta pressão que poderia traduzir-se em medidas de proteção (tarifaria e/ou administrativa) cadentes ao longo do tempo não foi utilizada pela PNI, que se caracterizou por uma proteção sem claros limites temporais.

A restrição de divisas que pesa sobre a economia brasileira, combinada a dados como a dimensão do mercado nacional, recursos disponíveis localmente para implantar o setor etc., implica que qualquer política que fosse adotada, teria como consequência hiatos absolutos. Entretanto, e possível que a composição da oferta onde tais hiatos fossem consignados, fosse distinta caso a política fosse levada a cabo por empresas multinacionais, ou alternativamente, exclusivamente por empresas estatais. Parece, porém, difícil afirmar que as necessidades cobertas por estas estratégias alternativas teriam, a priori, maior validade econômica e social que as atendidas pela atual política.

As críticas a Política de Informática parecem pisar terreno mais firme no campo do hiato relativo. Comparando os preços de produtos similares no mercado brasileiro e americano, constatam-se diferenciais substanciais para produtos como microcomputadores, periféricos, discos e unidades de controle numérico.

No entanto, quando analisamos ao longo do tempo, estes diferenciais tendem a cair, algumas vezes de forma abrupta. No caso de microcomputadores, reduzem-se de quase 200% a zero, no prazo de dois anos. Para as unidades de controle numérico localmente projetadas, caem de 46% a zero em 4 anos. Embora para outros produtos, como periféricos e discos, as reduções sejam menos intensas. Elas todas apontam a presença de economias de escala dinâmicas, um das justificativas clássicas da indústria nascente.

Igualmente significativo e o fato de os diferenciais de preços dos produtos de informática fabricados por subsidiarias de firmas internacionais os preços de produtos eletrônicos, fabricados na Zona Franca de Manaus. Não serem distintos daqueles observados para as firmas nacionais de informática, sugerindo que o problema tem raízes em condições estruturais, como a dimensão do mercado brasileiro, antes que nas características da Política de Informática.

Dois outros fatos apontam na mesma direção. Em primeiro lugar, o custo de equipamentos onde o mercado brasileiro e de porte internacional, como na automação bancária, e comparável e frequentemente, maior que no exterior. Em segundo lugar, estudos detalhados de custos de produtos de informática nacionais indicam que o principal fator que explica as diferenças observadas entre produtos nacionais e estrangeiros e o custo dos insumos e componentes, que, fabricados no País ou importados em pequena escala, oneram o preço do produto final.

Este último fator remete, de um lado, novamente, a importância de conceber a política integradamente para o complexo, mesmo que de forma seletiva ao nível de famílias de produtos. De outro lado, aponta para a já mencionada propensão a importar das filiais de firmas multinacionais, que, embora instaladas no País há várias décadas, passaram a desenvolver fornecedores locais apenas quando a Política restringiu as importações.

E importante, ainda, notar que, neste tipo de análise, estão sendo comparados resultados de uma indústria madura, como a americana, com os de uma indústria infante, como a brasileira. Sabe-se, porém, que as indústrias, em todos os países, levam um longo tempo para amadurecer. Tomando a indústria automobilística como exemplo de uma estratégia distinta, apoiada sobre firmas multinacionais, o seu amadurecimento, expresso pela redução de diferenciais de preços, parece ter sido muito mais lento que o evidenciado pela indústria brasileira de informática.

Embora a defesa dos interesses do consumidor seja um objetivo meritório em todas as circunstâncias, não deixa de ser curioso, politicamente, que muitos do que presentemente atacam a Política de Informática tenham, no passado, justificado os diferenciais de preços constatados em indústrias estabelecidas segundo o padrão ortodoxo, precisamente com os argumentos da indústria infante.

As considerações acima são feitas com um horizonte temporal de prazo longo. Apesar de apropriado a avaliação de políticas, este horizonte frequentemente não e compartilhado por usuários dos produtos. A observação do seu comportamento sugere que tais usuários tem uma “margem de tolerância” em relação ao hiato de oferta existente num dado momento, a qual opera ao longo de um período relativamente curto. Esgotada no tempo esta margem de tolerância, os usuários passam a pressionar para que o hiato seja removido, total ou parcialmente.

O hiato será mais tolerado se houver um compromisso de parte dos produtores de reduzi-lo em prazos definidos e se a política governamental incluir medidas que garantem o cumprimento deste compromisso, tanto por meio de sanções as empresas que não as honrem (por exemplo, cobrança de incentivos fiscais) como pela rápida abertura a competição externa.

Uma das características das áreas de tecnologia de ponta e a sua alta taxa de inovação, que faz com que a gama de produtos e as características destes estejam em movimento contínuo. Os usuários destes produtos andem a estar bem-informados sobre o “estada-da-arte” internacional e o movimento deste afeta a sua posição no “intervalo de tolerância” com o hiato, aumentando as pressões para a rápida redução deste. Estas pressões são potencializadas pela presença de subsidiarias estrangeiras, ofertantes virtuais das novas safras de produtos.

Os dois conceitos acima utilizados – a margem de tolerância dos consumidores com o hiato tecnológico na oferta interna de bens de serviços e a capacidade interna de inovar – podem ser combinados numa matriz, em que as células são compostas por produtos classificados segunda a margem de tolerância e capacidade de inovar, conforme o quadro 1.

A matriz, embora esquemática, fornece indicações para uma estratégia seletiva de desenvolvimento tecnológico. Para os produtos em que a margem de tolerância e alta e a capacidade interna de inovar também e, o desenvolvimento local destes produtos parece aconselhável. Contrariamente, para aqueles produtos em que a margem de tolerância e baixa e, similarmente o e a capacidade interna de inovação, a importação de tecnologia parece a melhor solução. Finalmente, na diagonal da esquerda, em que estão combinadas altas (baixas) tolerâncias com baixas (altas) capacidades de inovar, a melhor solução parece importação de tecnologia acompanhada de um esforço de inovação interno.

 

QUADRO 1 – Administração do Hiato Tecnológico

 

Margem de Tolerância – Capacidade interna de inovar

 

Alta                                 Baixa

Alta                       Desenvolvimento Local          Importação

Des. Local

Baixa                     Importação                                Importação

Desenvolvimento Local

 

A matriz acima descrita pode ser utilizada de forma estática, para classifica os produtos num dado ponto no tempo, ou de forma dinâmica, para definir a distribuição de produtos pelas células da matriz ao longo do tempo, ou, em outras palavras, para definir as prioridades de investimento em desenvolvimento tecnológico por linhas de produtos.

A definição da margem de tolerância, conforme descrito acima, cabe essencialmente aos consumidores. No entanto, o Estado pode, com base em critérios sociais ou pautado por um horizonte de tempo distinto, impor hiatos mais longos que os desejados pelos consumidores, pagando por isso o correspondente custo político.

A decisão sobre a distribuição dos hiatos por produtos – ou seja, a relação que se estabelece entre os perfis de oferta nacional e internacional, com suas obvias implicações em termos de importações, produtividade, satisfação dos consumidores etc., e uma decisão política de maior alcance que acima discutida, dependendo de considerações, como a política de rendas, que vão além do âmbito da política industrial.

A análise anterior sugere que se pode estabelecer critérios para definir esta distribuição de hiatos com base nos encadeamentos do CE com o resto do sistema econômico – por exemplo, a margem de tolerância em bens de consumo de entretenimento pode ser maior que bens de capital.

Esses critérios serviriam também para dar a matriz antes apresentada sua definição dinâmica, de instrumento auxiliar das decisões de investimento.

A política brasileira de informática parece ter atuado de forma semelhante, selecionando as estratégias tecnológicas para produtos ou grupos destes, em função da capacidade interna de prover soluções tecnológicas e das pressões para que os produtos fossem rapidamente ofertados no mercado interno.

Embora o prazo para avaliação dos seus resultados ainda seja curto, os que podem ser observados tendem a validar a PNI. No entanto, essa parece ter sido implementada de uma forma muito pontual, produto a produto, e com limitada capacidade de antecipação de problemas. Para que seja eficaz e evidente pressões insuportáveis, procedimentos mais sistematizados de administração do hiato tecnológico terão que ser estabelecidos.

Paradoxalmente, os próprios conflitos que cercaram apolítica, parecem ter contribuído para que ambas as metas claras de redução do hiato não fossem estabelecidas para os produtos protegidos e, ainda mais, para que sanções não fossem impostas quando do não cumprimento destas metas, prejudicando, em última instancia, a legitimidade da própria política.

Num plano mais amplo, da definição da distribuição dos hiatos por produtos, a PNI defrontou-se com um contexto em que inexistiu uma política industrial e onde a política econômica privilegiou, sem sucesso, o controle da inflação. Esta indefinição contribui fortemente para que a PNI fosse mais influenciada por indicações do mercado do que por considerações do uso social da eletrônica.

 

  1. Política Industrial e Informática – Uma Abordagem por Famílias de Produtos

Nas seções anteriores enfatizou-se, de um lado, a necessidade de uma abordagem integrada para o CE e, de outro, a necessidade de seletividade em ermos de produtos ao administrar-se o hiato tecnológico.

Estes dois princípios, abrangência e seletividade, poderiam ser conciliados operando a política ao nível de famílias de produtos que utilizassem recursos técnicos e produtivos semelhantes, e, ancilar mente, fosse dirigido para mercados com características semelhantes. Desata forma, seriam exploradas as economias de escopo, aprendizado e escala que originam a sinergia do CE, resguardando-se os seus usuários de um hiato tecnológico excessivo.

Nesta perspectiva, as famílias de produtos eletrônicos seriam divididas em três grandes grupos: produtos a serem importados, produtos a serem fabricados no país com tecnologia importada, e produtos a serem fabricados no país com tecnologia local. Como na análise anterior do hiato tecnológico, esta divisão teria tanto um caráter estático, de taxionomia inicial, como um caráter dinâmico, expressando os objetivos da política industrial pela alocação de famílias de produtos a um ou outro grupo no tempo.

Imaginado uma política industrial articulada as prioridades econômicas e sociais do país, uma primeira priorização das famílias de produtos eletrônicos, bastante ampla, poderia ser obtida de seus usos. Assim, a título de exemplo, a ênfase no aperfeiçoamento dos serviços básicos presados a população de baixa renda, como saúde e educação, levar a política industrial a privilegiar produtos eletrônicos distintos daqueles que serão priorizados pelo funcionamento do mercado, mantida a atual política de rendas.

Esta primeira seleção de famílias de produtos deveria, a seguir, ser objeto de um escrutínio mais cuidadoso, embora ainda mais amplo que o nível do projeto, seguindo três dimensões básicas, abaixo detalhadas.

I. Utilização e desenvolvimento de recursos tecnológicos no país.

A utilização e o desenvolvimento de uma capacitação tecnológica são objetivos em boa medida complementares, porque a utilização desenvolve os recursos disponíveis (via “learning by doing”) e os limites que esse aprendizado encontra aponta as prioridades do desenvolvimento, como, por exemplo, na transferência internacional de tecnologia.

O objetivo da política industrial ao longo desta dimensão, e ampliar o uso de recursos científicos e tecnológicos mais complexos, criando, ao mesmo tempo, postos de trabalho mais bem renumerados e melhores condições para que a produção local estreito o hiato tecnológico em relação a fronteira internacional.

No entanto, as considerações de ordem econômica e político-institucional, expressas nas outras dimensões do processo de escolha, podem recomendar, para certas famílias prioritárias de produtos, cautela neste avanço, que pode até ser excluído para as famílias que se julgue devam ser importadas ou fabricadas localmente sob licença.

Nos termos do esquema Antes proposto para a administração do hiato tecnológico, a dimensão “capacidade de inovação local” ali utilizada encontra-se subsumida nesta ordem de considerações.

 

II.Barreiras econômicas a produção local

Conforme já foi assinalado, há uma tendencia internacional a elevação dos gastos mínimos em P&D e produção dos produtos eletrônicos. Esta elevação afeta inclusive as interfaces entre o CE e outros complexos como as máquinas-ferramenta com controle numérico, cuja escala mínima de produção tende a ser superior à das máquinas convencionais e que, por sua vez, demandam, por seu alto custo, um uso intensivo por seus compradores.

Assim, a politica industrial deveria, ao selecionar famílias de produtos eletrônicos, considerar, ao lado da escala mínima de investimentos necessários, o mercado potencial destes produtos, priorizando, em ordem decrescente, no mercado nacional, a ocupação de “espaços vazios” na oferta nacional, preenchendo hiatos absolutos de ofertas e , a seguir, a substituição de importações e, no mercado internacional, na mesma ordem, as exportações independentes e as vinculadas a subcontratação e empreendimentos conjuntos com firmas internacionais.

A política de administração do hiato tecnológico acima discutida incide diretamente sobre esta dimensão, ao definir o “timing” de entrada dos produtos no mercado e a dimensão deste ao longo do tempo, pela manutenção do hiato. Outras políticas, como a de reserva de mercados para firmas nacionais, afetam igualmente esta dimensão, ordenando a competição.

 

III. Conflitos político-econômicos

Conflitos de interesse são invitáveis em qualquer política. Para tomarmos alguns exemplos da análise anterior, a harmonização de políticas setoriais dentro do CE só pode ser feita se alguns interesses forma inferidos, dada a discrepância de objetivos que norteiam as várias políticas.

Da mesma forma, a reserva de mercado para firmas nacionais e naturalmente, conflitiva, ao excluir as firmas multinacionais de um dos mercados de mais rápido crescimento no mundo. Neste caso, porém, ao configurar um padrão distinto de distribuição de benefícios entre os vários setores sociais, aplicável outros complexos industriais, notadamente aqueles onde ainda há “áreas vazias”, não ocupadas por firmas estrangeiras, o conflito transborda os limites do CE e adquire feição internacional.

O conceito de margem de tolerância com o hiato tecnológico, antes discutido, situa os conflitos na interface entre o CE e seus usuários e, indiretamente, entre o CE e seus supridores. O processo de solução deste conflito, ou seja, a administração do hiato tecnológico, e, ao mesmo tempo, técnico-econômico e político, pois a decisão quanto a que hiatos tecnológicos serão tolerados para que produtos e por quanto tempo e permeada por juízos de valor sobre que segmentos da sociedade pagam o custo da industrialização e quais desta se beneficiam.

Ao implementar qualquer política econômica, como a reserva de mercado e a administração do hiato tecnológico, o Estado conta com recursos políticos finitos, que são utilizados na gestão dos conflitos inerentes a estas políticas. Em consequência, e recomendável que a política industrial ao selecionar as famílias prioritárias de produtos eletrônicos, tome em consideração explicita os conflitos que ocasiona, ano com a ilusão de poder evitá-los, mas com o proposito de conferir a esta política, ao mesmo tempo, maior transparência e maior eficácia.

Neste sentido, a inovação da PNI de estabelecer camarás setoriais onde os conflitos dentro da cadeia produtiva e com os consumidores fossem explicitados, reservando ao Conselho de Ministros (CDI) apenas as decisões maiores de política, parece que um procedimento mais eficaz do que o adotado na PNI, onde as decisões são tomadas por uma instancia governamental, caso a caso, e todos os conflitos são remetidos a um Conselho misto (CONIN).

As dificuldades na implementação deste processo de seleção são, a dizer pouco, grandes. A quantificação das variáveis, na maior parte dos casos, e dificultou mesmo inviável, podendo-se apenas trabalhar com escalas do tipo qualitativo (“alta”, “média”, “baixa”) ou com ordens nocionais de grandeza (por exemplo, escala de investimento, tamanho do mercado). Aos obstáculos técnicos soma-se a tradição política brasileira do casuísmo e a consequente dificuldade de transparência de critérios e decisões.

No entanto, exatamente por estas dificuldades, que recolocam em questões as relações entre Estado e sociedade civil e, dentro desta, das relações entre vários grupos, a prática de um planejamento reconhecidamente limitado, mas participativo e transparente, serve a uma função econômica, política e social que vai muito além da política industrial. Neste campo, também, a eletrônica pode vir a constituir-se num paradigma para o resto do sistema.

Política industrial no Brasil: um quadro...

  l) Introdução Não existe política sem teoria, pelo menos implícita, frequentemente feita por algum economista há muito morto, como já advertia Keynes. Um quadro teórico claro e consistente não garante a qualidade da política - posto que pode ser fantasioso - mas, pelo menos torna-a...

Morto

Quase morreu. Estivera no banho – um longo chuveiro. No banho, dizia sempre, tinha suas melhores idéias Era um lugar protegido. Na verdade, estava furiosa. Também se sentia culpada por estar furiosa. Enfim, era uma mulher liberada, madura e independente e sabia que essas coisas acontecem com todo mundo.

Com Marcelo não. Durante a dúzia de anos de casamento fora um relógio, sem nunca atrasar. Um relógio suíço, na infalibilidade e no afeto. Repercorreu a guerra cruenta que levavam e constatou que perdera a última batalha. Marcelo tinha fazendas e o filho fora estudar em Viçosa. Mas a última batalha não era a última.

Passara muito tempo olhando-se no espelho, buscando o que Fuad vira. Não estava mal para quase quarenta anos. Os quadris podiam ser mais finos – devia perder três quilos – mas tudo somado… Era também uma grande profissional.

Olhando os olhos achou o que viu em Fuad. A tristeza do olhar. Não era bonito, mas não fora feio. Envelheceu mal, o atleta envelopado em gordura. Mas ainda atraente. Um turcão. Sempre gostou de homens grandes.

Mas era o olhar. A melancolia que subia quando ele baixava a guarda. Ao ver os resultados dos pesquisadores jovens. Foi um cientista de brilho promissor. Largou a universidade pela firma e a administração apagou o brilho. Mas não o sentimento – era capaz de entender um bom trabalho e de saber que nunca mais faria algo semelhante. E não era um executivo brilhante. Hesitava e liderava mal.

Talvez por isso gostasse dele. Pela sua fraqueza. Marcelo também era um triste. Menos na cama.

Também porque gostava da admiração que via nos seus olhos. Especialmente quando achava que ela não percebia.

Enquanto enxugava os cabelos recapitulou a tarde. O Congresso foi, como esperava, um tédio. E estava chovendo, o que, por alguma razão, a enterneceu. E Fuad ali, depois de apresentar os trabalhos da firma, que apenas pajeava, com aquele olhar nu. Haviam descido para tomar um uísque no bar do hotel e ele, de repente, pegou sua mão. Sabia que era casado e, antes que ele dissesse algo irreparável, concordou.

Para, ali no motel, tudo acabar assim. Em nada. Ele suando, murmurando desculpas e ela, no fundo, furiosa.

Aí, quase morreu.

Saindo, enrolada na toalha, viu-o. Deitado na cama. Nu. Morto.

Os olhos revirados, a boca aberta.

Em nenhum momento duvidou da morte acabada. Nem tentou respiração artificial.

Ficou ali, olhando. A toalha caiu e nem se deu conta. Só via a morte, refletida em todos os espelhos.

Só depois notou a ereção, a notável ereção. Refletida por todos os lados.

A ironia deu-lhe um tapa.

Se tivesse conseguido antes, talvez não tivesse morrido. Voltou correndo para o banheiro e, entre soluços, vomitou convulsivamente a alma.

No quarto, sem olhar, foi direto para a bolsa e acendeu um cigarro. Viu-se no espelho e levou um susto. Não podia ficar assim.

Devia, em algum lugar, ter o número da casa. Surprise, minha senhora! Venha, por favor, recolher o cadáver de seu marido no Motel Caliente. Podia, então, fugir. O carro era dele, mas, mesmo com chuva, acabaria por achar um táxi.

Recolocou o fone no gancho. Sentou-se na cama. Olhando para o rosto de Fuad, evitando mais em baixo.

Não podia fazer isso com ele. A mulher era-lhe indiferente. Fuad nunca se referira a ela com uma palavra de ternura ou amizade – apenas para comentar sua insatisfação com o padrão de vida que levavam. E ele não devia ganhar mal! A firma esfolava, mas pagava bem a perda de juventude. Vira-a apenas uma vez, em uma festa da empresa. Uma perua, carregada de jóias e pintura.

Mas imaginou os comentários. Para sempre Fuad seria lembrado como o que morreu no motel. Morreu trepando. De pau duro. Mal saberiam.

Comendo quem? Aí bateu o pânico. Não podia fugir. Mesmo que passasse pela portaria. Teria antes que pagar, com o seu cheque, com o seu nome impresso. Mesmo que passasse e conseguisse um táxi. Com chuva? Na Niemeyer? A mulher faria um escândalo. Mesmo que não fizesse, acabariam por descrevê-la. E todos, no Departamento, sabiam que foi ao Congresso com Fuad.

Emprego estava muito difícil. Como aquele, então…

Por Fuad e por ela mesma.

Vestiu-se toda. Penteou o cabelo e maquiou-se.

Pegou o telefone e mandou chamar o gerente. Peremptória. Freguesa com problemas.

Foi esperar na antessala, fumando.

O gerente era de meia-idade, baixo, troncudo, careca. Muito preocupado, mas delicado.

Temos um problema, comunicou. Seca. Como se fosse no laboratório. Para se controlar. E, abrindo a porta, fez-lhe ver.

– Moça, a senhora!

Mas o seu olhar cortou outros comentários. Coçou a calva.

-É. Temos um problema.

Disse-lhe logo que ele era casado e que ela não era a mulher dele. O gerente deu um suspiro profundo e voltou a coçar.

Sentaram-se no pé da cama, olhando para Fuad, com seu ponto de exclamação plantado no meio.

Por fim, ela sugeriu:

– Não acho uma boa ideia chamar a família

O gerente concordou com entusiasmo.

Sentiu alívio e vazio, sem saber o que fazer. Que, por uma vez na vida, o outro tomasse decisões.

-Foi coração, não foi?

Concordou e o homenzinho animou-se.

-Então podia ter acontecido aqui ou em outro lugar qualquer.

Seguiu concordando.

-Então, moça, vai ter acontecido.

Estava definitivamente animado.

-Vamos vestir, colocar no carro e deixar em algum lugar perto da casa dele. O coração falhou no caminho de casa.

-..e…

Apontou para Fuad. Para o meio.

-Bom, minha senhora, isso é mais seu departamento que o meu.

Sentiu o calor subindo e, ríspida, mandou-o virar-se. Aí viram-se no espelho e, sem se poderem controlar, quebraram a rir. Mesmo assim, o gerente teve a delicadeza de ir ao banheiro.

Prendeu a respiração, como para um mergulho, mas não teve coragem. Procurou uma toalha, mas estavam no banheiro e teve vergonha do gerente. Pensou em fechar os olhos, mas ficou com medo de errar. Então, com um olho só, o mais míope, pegou-o com firmeza. Para seu alívio, amainou na hora.

Vestiram-no todo. O gerente, percebeu, era um artista. Cuidadoso com os detalhes. Como era o laço da gravata, simples ou duplo? Era melhor deixar afrouxado, porque, na hora, isso era a primeira coisa que alguém fazia. E nos bolsos? A carteira de dinheiro ia no paletó ou na calça? E o talão de cheques?

Temia a descida para a garagem. Sugeriu ao gerente que pedisse ajuda para carregá-lo, mas ele abanou a cabeça.

-Quanto menos gente souber, melhor. Isso é fogo no cerrado em tempo de seca.

Para sua surpresa, jogou-o sobre os ombros e, mesmo bufando e cambaleando um pouco, foi até a garagem. Há muito tempo não via um homem tão forte.

Enquanto ela abria a porta do carro e ajeitavam Fuad no banco do passageiro, ele explicou, com orgulho, que na juventude foi campeão de luta. Não entendeu que tipo de luta, mas não se importou.

O gerente estendeu-lhe a mão, a palma virada para cima e olhou-a firme. Como não entendesse, foi mais claro.

-A conta, moça.

-Vou ter que pagar?

-Em primeiro lugar, a senhora e o moço aí usaram o motel. Em segundo, o que faço com os meus registros? Isso não dá para ser cortesia da casa.

Mesmo sendo chamada de senhora, com toda discrição, sem ter seu nome indagado (o de Fuad ele vira na carteira), ia ter que se revelar. Pagou em cheque.

Fez menção de entrar no carro e recuou. Tampou o rosto, escondendo a ausência de lágrimas.

-Não posso. Não tenho condições de dirigir com ele ao meu lado. E depois, como vão acreditar que ele passou para o banco do passageiro? Eu não tenho força para puxá-lo para o lado do motorista!

A calva voltou a ser coçada. E o gerente decidiu ir junto. Primeiro queria ir seguindo no seu carro, mas ela fincou pé que não ia sozinha com Fuad.

A chuva continuava e foram para a Barra. Ia no banco de trás, apertada de medo. Fantasiava uma blitz da Polícia ou que algum conhecido cruzasse no sentido contrário. O gerente resmungava contra a chuva, em contraponto com os limpadores de para-brisa.

Fuad, felizmente, não morava na praia e acharam uma rua deserta e escura, perto de sua casa, onde estacionar o carro. Juntos, empurrando e puxando, passaram-no para o lado do motorista.

Ele teve que segurá-la para que não corresse.

A água corria-lhe pelos cabelos e entrava pelo corpo. Sentia os pés afundando em poças, mas não conseguia enxergar. Seguia-o. Até que viu um telefone e soube que não podia simplesmente deixá-lo lá, naquele carro escuro, embaixo da chuva.

Olhou-a como louca, quando pediu um cartão. Mas ficou esperando enquanto ela chamava a Polícia e avisava que havia um homem caído num carro. Demoraram a achar um táxi e ele a levou até em casa. No percurso, ele elogiou-lhe a coragem. As lágrimas destamparam

Tomou um banho quente e meteu-se na cama. Nem ligou a televisão, que sempre enchia a casa de som. Sentia-se febril, mas chorar no ombro do gerente tinha-lhe feito bem. Ao despedir-se, ele lhe dera um cartão. Yan de Almeida.

Na manhã seguinte estava gripadíssima, rouca e com febre. Telefonou para o escritório e comunicaram o falecimento de Fuad. O coração. Um enfarte fulminante. No carro, a caminho de casa. O enterro era às cinco, no São João Batista. Colocariam o nome dela no anúncio fúnebre do Departamento.

Passou dois dias de cama. O filho telefonou-lhe de Viçosa e desejou-lhe melhoras, mas não se ofereceu para ir ajudá-la.

No terceiro dia, voltou ao trabalho.

A morte de Fuad ainda era notícia, mas, muito mais, era a especulação de quem iria sucedê-lo na Chefia. Percebeu que era cotada. Comentou o Congresso e a participação de Fuad, sua última contribuição para a empresa.  Tentou concentrar-se no trabalho, mas a gripe ainda restava. Acabou saindo mais cedo.

No quarto dia ficou em casa, mas no quinto e sexto voltou ao trabalho. No sétimo, dia da missa, foi nomeada Chefe.

A missa foi concorrida. A família era grande e o Departamento compareceu em peso. Achou que não teria coragem de cumprimentar a viúva e os filhos. Mas não podia evitar, agora que tinha tomado o lugar do morto.

Sentiu-se tonta quando saiu da fila e pensou estar enlouquecendo quando, ao fundo da igreja, viu a silhueta troncuda do gerente, Yan.

Coçou a cabeça quando a viu aproximar-se e, tomando-a pelo braço, comentou:

-Era meu dia de folga e fiquei curioso de ver o que tinha acontecido. Vi o anúncio no jornal. Bom que deu tudo certo.

Parecia genuinamente preocupado com o estado dela. Físico e mental.

A igreja era perto de sua casa e tinha medo de voltar e ligar a televisão.

Convidou-o para tomar um café e descobriu que tinham várias coisas em comum, como uma paixão por chorinhos…

 

Genética

Suava. O ônibus só parou em frente ao Benjamim Constant e teve que voltar rápido. Desviou a custo de um cego. Já tinha saído de casa atrasado, como não conseguia sair na hora? Início de dezembro e já fazia aquele calor. Ela gostava da Urca, de passear no fim da tarde. Entrou pelo portão do Teatro....

Política industrial no Brasil: um quadro analítico e algumas propostas.

Fabio S. Erber, IN: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1987.22p (Texto para discussao, n.136)

Este texto apresenta um quadro teórico-analítico que Erber utilizava como arcabouço metodológico para elaboração de suas propostas de política industrial. Ele parte do pressuposto de que as decisões sobre a indústria não fluem adequadamente dos mecanismos de mercado, dada uma política macroeconômica correta. Relembra das discussões de décadas sobre as imperfeições de mercado, a existência de mecanismos de causação circular e o fato de o desenvolvimento industrial ter sempre contado, não só no Brasil, mas também no mundo, com o apoio decisivo de participação do Estado. Não esqueceu de enfatizar também as consequências de mudanças radicais que vêm ocorrendo na base técnica mundial, que tem levado o Brasil e o mundo a uma grande concentração de renda. Na segunda seção, desenvolve conceitos (notadamente o de “paradigma tecnológico”) que explicitam as características e a dinâmica de uma estrutura industrial, e de “complexo industrial” que articula esses conceitos à intervenção do Estado, o que vem ocorrendo atualmente nos países desenvolvidos, que procuram se reindustrializar. A última seção trata do caso brasileiro, nesse artigo de 1987, sendo bastante interessante verificar que, as histórias factual e intelectual da industrialização brasileira nos mostram que alguns problemas continuam os mesmos, agora que há necessidade de reindustrializar o País – primeiro vencer os que foram bem-sucedidos nos períodos anteriores (que tendem a impor resistência a mudanças) e, a seguir, avançar e reformular a industrialização, além da infraestrutura (transportes, energia, etc.) No processo de industrialização anterior, e o mesmo deve acontecer agora com a reindustrialização, pois é típico da indústria, ocorreu a implantação de alguns setores “puxando”, pelas interdependências setoriais, o estabelecimento de outros, à sombra das restrições de divisas e ao amparo do Estado. Cabe enfatizar, no entanto que, o processo de constituição do tecido industrial no período de industrialização anterior não foi totalmente concluído, pois faltaram implantar os setores de ponta tecnológica e o conjunto de atividades que gera uma capacidade tecnológica além da necessária a operar plantas. Em algumas áreas de ponta, como a eletrônica, trata-se ainda de construir um novo complexo industrial, no qual a interdependência entre as indústrias é estabelecida por uma base técnica comum e onde a convergência de mercados tende a reforçar esta interdependência. Este complexo tende a invadir a base técnica dos demais complexos e, assim, constituir novos vínculos intersetoriais. Em outras áreas de ponta, como na química fina e na biotecnologia trata-se ainda de transformar alguns complexos já existentes numa ótica “estruturante”. A ação do Estado deve ser utilizada para aumentar a capacitação tecnológica, que exige uma visão integrada, abarcando a capacitação científica e a formação de recursos humanos. Podem, também, ser usados incentivos aos setores já implantados, pois devem ser articulados ao complexo científico-tecnológico. Embora o eixo da restrição de divisas tenha se deslocado do plano comercial para o financeiro, é previsível que o país necessite por um longo tempo de se preocupar com este problema. As transformações em curso na base técnica mundial e seus reflexos sobre a estrutura industrial brasileira levam à necessidade de retomada do debate sobre a estratégia de industrialização e dos meios de operacionalizá-la. Neste sentido, Erber sugere uma visão de planejamento integrado, mais amplo do que os usuais “Planos Industriais” elaborados nos Fóruns do MDIC, em face do impacto que a nova política deve ter na sociedade como um todo. O planejamento autoritário e arbitrário do passado não deve se repetir já que a “História não se repete a não ser como farsa”. O processo de planejamento integral proposto, deve ser fruto de pactos/convenções/ acordos abrangendo as mais diversas áreas (social, política, financeira, industrial, tecnológico, educacional etc.), e formulada com critérios explícitos de política. O planejamento integral é um instrumento que tende a ser companheiro da democracia.

 

l) Introdução

Não existe política sem teoria, pelo menos implícita, frequentemente feita por algum economista há muito morto, como já advertia Keynes. Um quadro teórico claro e consistente não garante a qualidade da política – posto que pode ser fantasioso – mas, pelo menos torna-a mais inteligível e “transparente”.

O que segue ê uma contribuição ao debate sobre um tema que se faz urgente no Brasil – a política industrial.

Ha, é verdade, os que sustentam ser o debate sobre o tema inútil dada uma política macroeconômica correta, as decisões sobre a indústria fluirão naturalmente, guiadas pelos mecanismos de mercado. Esta visão consegue” ignorar décadas de discussão sobre as imperfeiçoes do mercado como orientador de decisões, a existência de mecanismos de causação circular e o fato do desenvolvimento industrial, no Brasil e no resto do mundo, ter contado, de forma decisiva, com a intervenção estatal. Ignora também as transformações radicais que vêm ocorrendo na ” base técnica mundial, que têm um forte componente concentrador, se deixadas ao sabor do mercado, e suas repercussões no Brasil, bem como a problemática da estrutura industrial brasileira ao concluir sua fase de implantação. Insere se, pois, no reino da fé fora dos limites estreitos deste artigo. . .

As duas próximas seções são de caráter analítico – a primeira (I) desenvolve alguns conceitos (notadamente as ideias de “paradigma tecnológico” e “complexo industrial”) úteis a compreender as características e a dinâmica de uma estrutura industrial moderna, enquanto a segunda articula estes conceitos à intervenção do Estado.

A última seção trata do caso brasileiro, apontando 0s traços principais do atual estágio de desenvolvimento da estrutura industrial do país e as implicações para a política econômica sugeridas pelo quadro analítico desenvolvida nas seções precedentes.

 

(2) Dinâmica Industrial: paradigmas tecnológicos e complexos industriais

A teorizado do mundo industrial é dificultada pela descontinuidade dos fenômenos, expressa, p. ex., pelas economias de escala estáticas e dinâmicas resultantes, -umas de propriedades técnicas de instalações e equipamentos e, outras, de efeitos de aprendizado. A estas, somam-se o caráter cumulativo da concorrência e do progresso técnico e a ocorrência simultânea de interdependências entre os vários setores que compõem a estrutura industrial, estabelecidas por relações tecnológicas e de mercado, com a heterogeneidade no ritmo de evolução destes setores, que estabelece relações de hierarquia entre eles, do ponto de vista da sociedade como um todo.

Alguns destes fenômenos estou há muito incorporados a discussão sobre política industrial e desenvolvimento, como por exemplo, a dificuldade de industrializar os países mais pobres dada pelo confronto entre o mercado destes países e a escala mínima das plantas industriais, (geradas para os mercados dos países mais ricos). Da mesma forma, data de muito tempo o reconhecimento de que os diversos setores dentro da estrutura industrial desempenham papéis distintos em termos dos seus encadeamentos interindustriais e com os demais setores e da sua capacidade de mobilização do investimento, consumo e outras categorias macroeconômicas. Em consequência, o conhecido peso dentro de uma estrutura industrial dos setores dinamicamente mais relevantes serve de parâmetro para as possibilidades de desenvolvimento econômico.

E a luz desta constatação que deve ser interpretada a importância atribuída a falta de uma indústria de bens de capital nos países em desenvolvimento como fator que, tanto definia a especificidade do seu padrão de desenvolvimento, em comparação com os países já industrializados, como explicava um processo de acumulação de capital menos dinâmico e mais dependente do exterior.

No passado mais recente avançou-se substancialmente na compreendo da importância de progresso técnico como fator dinâmico da estrutura industrial e, ainda mais, na capacidade analítica de tratar este progresso técnico como um fenômeno endógeno & dinâmica industrial, algo que este gera internamente, em resposta as pressões da concorrência, do mercado e da ação estatal.

Este avanço analítico rompe com a tradição neoclássica de tratar o progresso técnico como algo exógeno a economia, que sobre ela tomba como mana do céu, e retoma o pensamento clássico e Schumpeter ano sobre industrialização, atualizando-o, face as condições de crise cíclica e emergência de tecnologias que configuram uma nova base técnica para a indústria (notadamente a microeletrônica, biotecnologia e novos materiais).

Um dos conceitos mais ricos surgidos recentemente na literatura e o de “paradigma tecnológico”. Seu autor, Dosi (1982), propõe que, a semelhança das ciências, as tecnologias têm a forma de “paradigmas”, que constituem “modelos” ou “padrões” de solução de alguns problemas técnicos, baseados em princípios científicos selecionados, (derivados das ciências naturais) e em técnicas especificas (equipamentos, materiais etc.). Assim, os paradigmas tecnológicos incorporam uma “visão” que seleciona os problemas relevantes, os procedimentos de pesquisa e os critérios de progresso na solução dos problemas.

Novos paradigmas surgiriam de novas oportunidades abertas pelo desenvolvimento científico ou pela crescente dificuldade em avançar ao longo de um paradigma já existente, tanto por razões técnicas como econômicas e sociais. 0 surgimento de novos paradigmas estaria associado a constituição de novos setores produtivos ‘e as transformações substanciais*da estrutura produtiva – ou seja, na terminologia shumpeteriana clássica, seriam “inovações primarias”.

Depois de estabelecido, um paradigma seguiria um processo de desenvolvimento “normal” ao longo de uma ‘trajetória tecnológica” (2), definida pelo próprio paradigma. O progresso técnico constituiria na melhoria dos trade-offs entre as variáveis tecnológicas que o paradigma define como relevantes – por exemplo velocidade e densidade dos circuitos em semicondutores. Este progresso técnico se expressaria através de uma série de inovações “secundárias” de produtos e processos, de caráter cumulativo, em que efeitos de aprendizado, advindos da experiência, seriam de grande import4ncia. A evoluído destas trajetórias influenciada tanto por fatores econômicos, entre os quais se destacam as condições de mercado, como por
elementos institucionais e políticos, como a intervenção do Estado fomentando ou restringindo o desdobramento de determinadas trajetórias.

A noção de paradigma envolve, pois, a ideia de agrupamento (clustering) de inovações e da transformação de, pelo menos, uma parte da base técnica da economia pela constituição de novas indústrias, que têm em comum, no mínimo-, certas características tecnológicas -o que estabelece interdependências na sua dinâmica, que, assim, tende a assumir efeitos de sinergia.

A problemática da interdependência dinâmica entre indústrias, coloca a necessidade de conduzir a análise a um nível de agregação intermediaria entre o setor industrial e a macroeconomia. Como resposta desenvolveu-se recentemente o conceito de “complexo industrial” – um grupo de indústrias que se movem particularmente, embora com ritmos diferenciados, sob a liderança de uma indústria motriz, que organiza o complexo.

Na maior parte dos casos, os complexos industriais têm sido tratados pelo angulo das relações de compra-e-venda interindustriais (3), tanto por razões analíticas como pela facilidade que matrizes de insumo-produto oferecem para delimitar empiricamente os diversos complexos. Estes são, em regra, definidos pelo mercado p. ex. automotriz, onde a indústria importadora de veículos atua como organizadora hegemônica do complexo. No entanto, existem grupos de setores industriais, orientados para mercado distintos, cuja interdependência estabelecida por uma base técnica comum, dinamiza-
dá pelo fluxo intersetorial de inovações, cujo melhor exemplo é dado pela indústria que compõem o “complexo eletrônico”. Neste segundo tipo de complexo, a hegemonia mais difusa, tendendo, porém, recair na indústria que tenha uma alta taxa de inovações, utilizáveis pelas demais industrias que compartilham sua base técnica.

Veja-se Haguenauer e outros (1984) para um tratamento detalhado do conceito e sua aplicação ao caso brasileiro, através das relações de insumo-produto. A evidência empírica (4) quanto aos fluxos interindustriais de inovações mostra que os setores industriais podem ser agrupados em 3 grupos:

– Setores “motores” da inovação – aqueles que, além da de gerarem o grosso das inovações que usam, são supridores de inovações para o resto do sistema. No presente, estes setores “intensivos em ciência”, que atuam na “ponta “da tecnologia, desenvolvendo as novas trajetórias tecnológicas para o sistema econômico, a exemplo da eletrônica, novos materiais e da nova biotecnologia.

– Setores “receptores” de inovações – aqueles cuja demanda por inovações é atendida principalmente pela oferta de outros setores. Este grupo composto principalmente pelos produtores de bens de consumo não durável.

– Setores “intermediários” – aqueles cuja demanda por inovações e suprida em parte por esforços internos (principalmente inovações incrementais) e em parte (as inovações mais radicais) por inovações geradas nos setores “motores”, eventualmente desenvolvidas internamente. Estes setores atuam também como supridores importantes de inovares entre si e para o segundo grupo. Compõem este último grupo os setores produtores de bens de capital, intermediários e de consumo durável.

As inovações geradas no primeiro conjunto de setores tendem a ter múltiplos setores usuários, estabelecendo relações intersetoriais que, inicialmente, s&0 tecnológicas e, a seguir, de insumo-produto e investimento. Os setores motores têm, porém, em comum a base cientifica e técnica do seu paradigma e a mesma trajetória, que faz com que sua dinâmica seja interdependente, mesmo que forneçam a distintos mercados. Desta forma, um novo paradigma tecnológico expressa-se em plano produtivo por um complexo industrial articulado pela base técnica.

(4) Vejam-se Scherer (1982) para os Estados Unidos, Pavitt (1984) e Soete (1986) para o Reino Unido. Com estes conceitos pode-se avançar na compreensão das questões relativas as relações entre complexos industriais e hierarquia destes na estrutura industrial, em termos do dinamismo que lhe imprimem. Na medida em que um paradigma tecnológico, gerado no primeiro grupo de industriais, demonstra ser inequivocamente superior para resolver certos problemas técnicos, econômicos e sociais, ele tende a ser adotado pelas indústrias: dos outros grupos, provocando uma “destruição criadora”” na base técnica destas.

Em consequência, forjam-se novos vínculos intersetoriais, provocando uma transformação da estrutura industrial pela articulação entre o complexo-industrial que gera o novo paradigma e os complexos cuja base técnica está sendo modificada pelo novo paradigma. As relações em curso entre os complexos automobilístico e eletrônico são um bom exemplo deste processo.

Na nova estrutura industrial que surge deste processo, a dimensão relativa do complexo industrial vetor do novo paradigma no
aparato produtivo e a sua dinâmica de expansão – i.e., os novos espaços econômicos que cria por meio de novos produtos e processos e os espaços de antigos complexos que ocupa, substituindo-os – “dão (ou não) ao novo paradigma um caráter de inovação primaria (ou não).

O impacto do novo paradigma será maior se seus principais setores usuários formam os setores “intermediários” (conforme a taxa economia acima), devido ao peso que estes têm na estrutura industrial e, principalmente, pelo seu poder de encadeamento nos fluxos tecnológicos e de insumo-produto.

Ao mesmo tempo que o complexo industrial de materialidade produtiva ao paradigma tecnológico, esta última noção pode servir a entender e evolução do complexo e as estratégias das empresas que o formam.

Essa linha de investigação foi recentemente desenvolvida por Aratijo Jr. (1985). Este autor sugere que os complexos passam
inicialmente por uma fase formativa, em que as estratégias das firmas lideres privilegiam a exploracao da inovação primaria e desenvolvimento de inovações secundarias, transformando seu comportamento usual. Nesta fase, a distribuição do poder dentro do complexo estaria fortemente concentrada na indústria produtora de inovações, cuja estrutura tenderia a concentração e altas barreiras à entrada, ao passo que as demais industrias do complexo teriam uma estrutura facilmente contestável pela indústria motriz. Ao mesmo tempo, as relações interindustriais dentro do complexo apresentariam um grau relativamente alto de indefinição.

A análise anterior dos complexos “motores” da inovação complementa a de Aratijo Jr., explicando a tendência a diversificação e
integração nas firmas líderes do complexo ao longo de diversos mercados com base técnica comum, com o objetivo de captar as economias de escopo que esta proporciona, a exemplo do que ocorre na eletrônica.

Se não ocorrerem outras inovações primárias, o complexo tendera a maturidade, evidenciada pela consolidação das relações interindustriais e pela redução da contestabilidade dos mercados pela indústria motriz, bem como por uma redução relativa da hegemonia desta. Aratjo Jr. sugere que, neste momento, as firmas líderes desta indústria podem tanto optar por uma estratégia de diversificação de investimentos para fora do complexo, como tentar revitaliza-lo através da busca de uma nova inovação primaria. No primeiro caso o dinamismo do complexo tendera a reduzir-se e provavelmente ocorrerão transformações substanciais na sua estrutura, ao passo que, no segundo, o ciclo pode reiniciar-se pelo “rejuvenescimento” do complexo.

Se, no presente, os paradigmas são gerados principalmente pela pesquisa cientifica, a observação desta fronteira torna-se um
fator importante na estratégia das firmas, especialmente para aquelas de complexos maduros. Nesse sentido o comportamento de várias grandes firmas do complexo químico, que adquirem participações acionarias de pequenas empresas, de origem académica, para ter conhecimento do que ocorre na area de engenharia genética, parece exemplar.

3) A Intervenção do Estado

Os conceitos de paradigma tecnológico e complexo industrial têm diversas implicações para a intervenção do Estado na dinâmica industrial.

As trajetórias adotadas nos países centrais, que se encontram expressas no mercado, so0 apenas uma parte das trajetórias disponíveis, selecionadas no leque de alternativas por mecanismos de mercado e fatores institucionais, especialmente a ação do Estado, específicos daqueles países. Em consequência a noção de paradigma e trajetórias, refuta a ideia de determinismo tecnológico. No entanto, ao enfatizar a importância de processos cumulativos e de mecanismos seletivos na definição dos paradigmas e trajetórias, aponta para a existência de limites à vontade política.

O caráter científico dos novos paradigmas científicos aponta para a importância da pesquisa básica e da formação de recursos
humanos de alto nível, para a dinâmica industrial. Dada a ineficiência dos mecanismos de mercado para fomentar o investimento privado nestes campos, devido a problemas de incerteza, longo prazo de maturação e dificuldade de apropriação de resultados do investimento, estes constituem campos clássicos de atuação do Estado.

No entanto, e importante lembrar que os fluxos intersetoriais de progresso técnico dependem da constituição de um “tecido científico e tecnológico” que vai além da capacitação em pesquisa básica, abrangendo um amplo leque de competências, parte localizadas em empresas (por exemplo a capacidade de projeto de produtos e processos) e parte em outros tipos de organização, como serviços de normas e metrologia, informado etc., frequentemente providos pelo Estado.

Este conjunto de atividades e dotado das mesmas características do sistema industrial-econômica de escala, aprendizado e escopo, efeitos de sinergia etc.- que dependem da sua articulação com o sistema industrial.

Onde este sistema está precariamente constituído e pouco articulado a indústria, cabe ao Estado estruturá-lo, fomentando a sua vinculação industrial.

A análise anterior também leva a conclusão de que uma política industrial, para ser eficaz e eficiente, tem que corresponder a heterogeneidade de situações encontradas no sistema industrial.

Pode-se dividir a intervenção estatal em setores industriais em três tipos, de acordo com uma abrangência decrescente (5):

  1. I) Estruturante – quando o Estado atua diretamente na montagem de um setor ou complexo industrial, criando, simultaneamente, o mercado (p. ex. via restrições a importação ou políticas de rendas) e seus fornecedores, tanto por meio de empresas públicas como pela definição de regras para participação de empresas privadas (p. ex. reservas de mercado por nacionalidade dos proprietários ou por tamanho de empresa).
  2. II) Fomento – quando o Estado define incentivos para certas atividades e condicionalidades para o uso destes incentivos, mas deixa ao mercado a estrutura ao final do setor.

III) Normalização – quando o Estado atua ao nível de produtos e processos, definindo suas características, p. ex. segundo critérios de segurança dos consumidores ou de poluição ambiental.

Nos países onde existe uma política industrial, esta pode ser sistematizada segundo a taxionomia de intervendo acima apresentada e o papel que os setores industriais desempenham nas relações ecológicas interindustriais.

Assim, para os setores de ponta tecnológica, os “motores de inovação”, a intervenção de cunho marcadamente, ““estruturante”,
abrangendo da pesquisa e desenvolvimento a proteção dos produtores locais, no mercado interno e no exterior, por meio de uma ampla gama de instrumentos que vão dos subsídios a P&D até a formação de empresas locais, estatais ou privadas.

Para os setores que são principalmente receptores de tecnologia, a intervenção de natureza essencialmente “normativa” enquanto para os demais setores o Estado provê incentivos variados, de acordo com as condições locais.

A figura 1, a seguir, onde no eixo horizontal está representada a intervenção estatal e no vertical o papel do setor no progresso técnico industrial, sintetiza estas relações.

As nodes de paradigma e complexo, apontam, porém, para a necessidade de conceber a política industrial a luz dos vínculos inter setoriais. Isto implica numa política industrial não apenas heterogénea, diferenciada por setores, como também dotada de uma visão integrada.

Esta dimensão integrada obtida a partir da justaposição de políticas setoriais. Embora a política para complexos abarque e necessite de políticas setoriais, ela se distingue destas almas por uma dimensão maior, dada pelas relações intersetoriais dinâmicas, que se estabelecem de forma plena apenas ao nível de complexos.

Numa primeira aproximação, os complexos podem ser classificados, ‘segundo sua indústria motriz, em “motores”, “intermediários” e “receptores” de progresso técnico e, de acordo com seu estágio de desenvolvimento, em “nascentes”, “maduros estáveis” e “rejuvenescentes”. Cruzando as duas classificações numa matriz, suas células seriam as medidas de intervenção estatal, de cunho “estruturante” para os complexos “motores nascentes” e “maduros rejuvenescentes”, de “fomento” para os complexos “maduros estáveis” e “normativo ” para os complexos “receptores” conforme a figura 2. O detalhamento das medidas “estruturante”, “de fomento” e “normativas” depende, naturalmente, das condições históricas especificas, obedecendo o sentido geral desta classificação.

Tanto pela taxionomia adotada para os complexos como pelo tipo de medida sugerida para as diversas categorias de complexo, e a proposta acima privilegia a dinâmica industrial, especialmente a formação de uma capacitação cientifica e tecnológica na sociedade de uma forma dinâmica, ao enfatizar não apenas a geração como o uso do progresso técnico através dos fluxos intersetoriais.

Ao mesmo tempo, compatibiliza a heterogeneidade do mundo industrial com a necessidade de dotar a política de orientações gerais, operando a um nível de integração intermediário entre a especificidade do setor industrial e a generalidade das medidas macroeconômicas.

A realidade, a “concretude” da qual conceitos como paradigmas tecnológicos e complexos industriais são abstrações, impõe esta integração. Ela se dá tanto por mecanismos de “tatonnement” econômico e político, como, de forma mais racional e explicita, através do planejamento, para o qual os conceitos acima discutidos são instrumentais.

Diversas qualificações podem ser introduzidas neste esquema. Assim a intervenção estatal e matizada de diversas formas pela dimensão internacional de economia. De um lado, esta adiciona motivações fundamentais para a intervenção do Estado, tanto no caso de países cuja economia faz face a restrições de divisas, como no caso dos Estados que se movem por uma lógica de potência militar e/ou econômica. De outro, a internacionalização da economia pode impor sérios limites a efetiva capacidade do Estado intervir, quer pelo peso político que detém grandes firmas multinacionais, quer pela redução dos – ‘vínculos
interindustriais internos que a propensão a importar destas firmas acarreta (veja-se próxima seção). O leitor interessado certamente descobrira muitas outras -e será bem-vindo.

 

4) Aplicações ao caso brasileiro

As histórias factual e intelectual da industrialização brasileira são dominadas pela problemática da montagem de um parque industrial no país – primeiro para vencer os que sustentavam a “vocação primário-exportadora” do pais e, a seguir, para avançar na industrialização “a montante” das cadeias produtivas, implantando as indústrias fornecedoras de bens de capital e insumos, além da infraestrutura (transportes, energia, etc.).

Este processo deu-se, como & típico da indústria, de forma descontinua, mas articulada, com a implantação de alguns setores “puxando”, pelas interdependências setoriais, o estabelecimento de outros, a sombra das restrições de divisas e ao amparo do Estado.

Usando a taxionomia da seção anterior, de modo simplificado o Estado brasileiro atuou de forma “estruturante” nos setores de
infraestrutura e de bens de produção (insumos e bens de capital) e concedeu fortes incentivos aos demais, com pouca atuação “normative”.

No presente, este processo de constituição do tecido industrial encontra-se quase concluído. Faltam, principalmente, implantar
os setores de ponta tecnológica e o conjunto de atividades que gera uma capacidade tecnológica além da necessária a operar plantas. As duas lacunas no tecido industrial brasileiro sa0 complementares.

Conforme já foi mencionado, uma das principais formas pelas quais os setores de ponta dinamizam a economia é pela transformação de base técnica dos demais setores. Para que isso ocorra é necessário que, tanto nos setores de ponta como nos demais, exista uma capacidade técnica e cientifica, adequada as circunstâncias especificas, que lhes permita gerar e absorver o progresso técnico.

Conforme demonstra abundantemente a literatura sobre transferência de tecnologia, esta capacidade não se move internacionalmente, nem por meio do investimento externos, nem pelo licenciamento de tecnologia entre partes independentes.

A lógica de comportamento de licenciadores de tecnologia e de empresas internacionais faz com que se transfiram as capacidades de projeto básico de produtos e processos e, ainda menos, as de pesquisa – transferem-se, apenas, a competência de operações de planta e engenharia de detalhe, das quais não se evolui, sem investimento autônomo, para as anteriores, indispensáveis as tarefas de inovação e absorção.

Em consequência, mesmo que, por absurdo, se atribua ao capital estrangeiro a responsabilidade maior da industrialização, esta permanecera limitada ao nível da capacidade tecnológica interna e do dinamismo que desta decorre. A constatação destes fenômenos não conduz a uma política de autarquia tecnológica – a importação de tecnologia é indispensável por razão de custo, risco, tempo e escassez de recursos internos. No entanto, ela se frutifica plenamente quando associada a investimentos internos que suprem suas deficiências naturais. O Japão, renomado importador de tecnologia, dá um bom exemplo dos frutos de adotar
uma estratégia pela qual gasta internamente seis vezes o que dispende com importações.

E necessário reconhecer que a importação de tecnologia além de complementar a capacidade interna pode representar uma competição para esta, justificando a sua proteção. Em verdade, a capacidade tecnológica interna aplica-se todos os argumentos clássicos da “indústria infante”, como economias de escala estáticas e dinâmicas, que justificam a proteção contra as importações – o que implica em proteção aos produtos e processos que incorporem a tecnologia localmente desenvolvida.

Dado o comportamento diferenciado de empresas nacionais e estrangeiras no que toca a constituição da capacidade tecnológica de inovação, que decorre da própria lógica das segundas, a proteção a tecnologia nacional abarca medidas explicitas de proteção as primeiras.

No entanto, esta proteção tem que ser seletiva, tanto ao nível de produtos como de tecnologias, envolvendo uma política de “administração do hiato tecnológico”, expressa pela operação articulada dos instrumentos de política de importação (de bens de capital e tecnologia), controle de acesso ao mercado nacional, investimento etc.

Assim, onde se faz presente a necessidade de uma acao estruturante” do Estado, no momento atual, e na montagem dos setores de ponta e da capacidade tecnológica interna, que requer, como complemento indispensável, o reforço das instituições académicas de pesquisa e um grande esforço de formação de recursos humanos adequadamente qualificados.

Para os demais setores, e imperioso reconhecer que estão montados, e exceção da capacidade tecnológica antes referida. Ou seja, não e de esperar que repitam, no futuro próximo, os maciços investimentos constitutivos de indústria que caracterizaram a história recente da industrialização do país. Seu dinamismo dependera, agora, da evolução da demanda final e do progresso técnico. A este último cabe o papel fundamental, tanto pela melhoria de produtividade e aumento de competitividade internacional como pelos efeitos indutores de investimento e encadeamento intersetoriais.

As atuais circunstâncias internas e externas da indústria brasileira requerem uma grande transformação da política industrial tanto da sua concepção como de seus instrumentos.

Em algumas áreas de ponta, como na eletrônica, trata-se de constituir um novo complexo industrial, no qual a interdependência entre as indústrias é estabelecida por uma base técnica comum e onde a convergência de mercados (p.ex. telemática) tende a reforçar este interdependência. Este complexo tende a “invadir” a base técnica dos demais complexos via automação e, assim, constituir novas vínculos intersetoriais. Em outras áreas de ponta, como na química fina e na biotecnologia trata-se de transformar alguns dos complexos já existentes (p.ex. química e agroindustrial), numa ótica “estruturante”.

Da mesma forma, a capacitação tecnológica, crescentemente baseada na ciência, exige uma visão integrada, abarcando a capacitação cientifica e a formação de recursos humanos, conforme já foi mencionado.

Para os setores já implantados será necessário transformar o leque de incentivos que o Estado lhes oferece, privilegiando sua
capacidade tecnológica, articulando-os ao “complexo tecnológico e científico”. A título de exemplos pode-se citar a concessão de incentivos fiscais para P&D, que o Brasil e 0 único país de relativa industrialização a não conceder, e a realização de programas de capacitação tecnológica pelas empresas, intramuros ou contratados, como condição de obtenção de incentivos creditícios ou fiscais.

Neste contexto, a ação “normativa” do Estado, até agora relegada a plano secundário, pode ser proficuamente utilizada como estímulo a capacitação tecnológica e ao aumento de competitividade internacional, especialmente nos setores “receptores” de inovações, que desta forma, estreitando o seus laços com os demais.

As condições internacionais sob as quais se desenvolve a industrialização brasileira também recomendam uma ênfase na capacitação tecnológica. Embora o eixo da restrição de divisas tenha se deslocado do plano comercial para o financeiro, é previsível que o país necessitara por um longo tempo de manter superávits na balança comercial.

Já no presente o desempenho exportador brasileiro depende em boa medida de uma capacidade tecnológica interna, tanto ao nível do binômio escala de produção-custos para produtos primários e manufaturados intermediários, como ao nível da competência em projetar e fabricar produtos adequados a mercados específicos, como nos casos conhecidos da indústria aeronáutica, armamentos e bens de capital.

No futuro, a importância de capacidade de projeto e de fabricaca0 com qualidade estável e adequada para entrar e ampliar a presença no mercado internacional tende a aumentar – o que requer um aumento da capacitação tecnológica da indústria nacional.

Em decorrência, tanto os instrumentos de controle de importações como os de incentivo as exportações devem ser revistas a luz desses requisitos. Neste contexto, a repetição de modelos exportadores datados da década de sessenta, baseados no estímulo a exportaca0 via baixo custo de mão de obra e benefícios fiscais e cambiais, serão ineficazes e, provavelmente, contraproducentes na sua interaca0 com o resto da indústria, justificando a assertiva de que a História não se repete senão como farsa.

A complexidade das condições atuais, internas e externas, do processo de industrialização brasileira impõem uma retomada do planejamento no país.

Ha no Brasil uma longa tradição de pensar a industrialização pela ótica da interdependência, dos “pontos de estrangulamento” do Plano de Metas, A estratégia de montagem da indústria de bens de capital e intermediários do II PND.

Na prática, porém, inclusive devido ao caráter descontinuo e concentrado do processo de implantação dos blocos de industriais, o planejamento deu-se ao nível setorial, especialmente em empresas estatais, como a ELETROBRAS.

Na última década, com o predomínio de políticas de curto prazo frequentemente de cunho recessivo, e com o desmantelamento dos aparatos de planejamento, a visado estratégica tendeu a desaparecer. Restou, de forma precária, o planejamento a nível setorial. No entanto, as transformações em curso na base técnica mundial e seus reflexos sobre a estrutura industrial brasileira, bem como o fim de uma era de montagem do parque industrial, necessitam que se tome o debate sobre a estratégia de industrialização e dos meios de operacional.

A estruturação dos setores de ponta e da capacitação tecnológica e dos seus vínculos com os demais setores, — do parque industrial já existente e o aumento da competitividade internacional ‘“requerem uma visão de planejamento integrado, que vá além do Âmbito setorial.

As seções anteriores apresentam um quadro analítico de caráter preliminar que pode ser útil a discuss4o em torno dos conceitos e procedimentos que deverão informar o indispensável planejamento da industrializado, agora e no futuro próximo.

Qualquer que seja o marco analítico adotado, o novo tipo de planejamento, necessário ao progresso da industrializado brasileira, requerera, substanciais modificações nos vínculos internos do aparato estatal e de suas articulações com o setor privado, com importantes consequências sociais e políticas. Convém aqui ressaltar que, a identificação do planejamento com autoritarismo. Ao autoritarismo, e ao particularismo que o acompanha, servem mais a obscuridade e o policy-making in câmera. O planejamento, os critérios explícitos de política, tendem a ser companheiros da democracia.

No passado, o Estado foi o grande motor da industrialização brasileira. O desafio que se coloca agora e se sera capaz de seguir cumprindo este papel histórico em condições substancialmente distintas. O padrão de desenvolvimento brasileiro depende, em boa medida, da resposta que será dada a esse desafio.

O sistema de inovações em uma economia...

1. Introdução

Este artigo apresenta uma agenda de pesquisas sobre sistemas nacionais e locais (regionais e setoriais) de inovação derivada da abordagem keynesiana de uma “economia monetária”. O artigo é parte de um processo de pesquisa teórica que se encontra em suas etapas iniciais....

Genética

Fabio S. Erber, Conto de Fabio Erber

Suava. O ônibus só parou em frente ao Benjamim Constant e teve que voltar rápido. Desviou a custo de um cego. Já tinha saído de casa atrasado, como não conseguia sair na hora? Início de dezembro e já fazia aquele calor. Ela gostava da Urca, de passear no fim da tarde. Entrou pelo portão do Teatro. Não achava o papel nos bolsos. Ninguém no saguão, nem um cartaz para informar. As gotas de suor desciam até à calça.

No Teatro de Arena estavam colocando caixas de som. Parou para saborear o bom augúrio: tinham se conhecido lá, numa festa. Andava assim, dependendo de sinais.

A luz na Arena incomodava mas a sombra no corredor aladrilhado dava fôlego. Chegou no saguão da entrada principal. Um funcionário  indicou o andar de cima. Subiu, tinha que ser  devagar, tinha que parar de fumar. A capela estava aberta, cheia de flores. Ainda casavam. Achou o papel no bolso da camisa, grudado. Salão Pedro Calmon, como não lembrou?

Já tinha  começado. Atrás da mesa alta, emoldurada pelo espaldar da poltrona pomposa, ela parecia pequena. Mas ainda não queria  vê-la, precisava de calma. Deixou-se cair na última fila, mas era o único ali, o salão estava meio vazio e foi curvo, até encontrar gente. Ela não o viu – estava apontando uma tabela.

Achou um lugar na ponta, ao lado da janela aberta. Os ventiladores só jogavam o ar quente de um lado para o outro. Via o Teatro. Evitou as lembranças e fechou os olhos, esperando.

Detestava aqueles óculos remendados com esparadrapo mas não tinha jeito. Agora ela estava mostrando uma figura que até ele reconhecia: a dupla espiral do DNA. Tentou lembrar as explicações

Ela parecia a mesma. Fantasia, dez anos passam para todos.

Muita vontade de fumar, de tomar um uísque. Não adiantava ficar ali, esgueirou-se.

No banheiro pequeno e sujo ( a Universidade não mudava, nem os grafites) olhou a cara encovada. Dez anos passam para todos. Tinha cortado o rosto quando fazia a  barba braba de quatro dias, agora ardia. As sobrancelhas juntas, os olhos escuros, fundos, o nariz adunco, a boca de lábios finos, a gente não envelhece, se agrava.

Aplausos. A guimba fez um arco  luminoso, estrela cadente.

As perguntas eram por escrito. Devolveu  o papel à mocinha que circulava.  Duas frases. Saudações Universitárias! A genética é implacável ! Se ela não reconhecesse, podia sair e matar-se.

Pilha de papeluchos amarelos. Ela olhava a pergunta e depois repetia-a alto. Seu papel devia ser um dos últimos ou ela o tinha descartado. Pensou em ir embora.

Ela pigarreou e ficou olhando para o alto. Voltou a ler, limpou a garganta e disse que agradecia as saudações enviadas, procurando-o com o olhar. Ele ergueu um pouco a mão. Saiu para fumar.

Ela saiu cercada mas foi encontrá-lo no nicho da janela. As pessoas foram embora e ficaram os dois ali sozinhos.

Os dez anos tinham-lhe dado peso. Mas o oval do rosto continuava perfeito, olhos grandes boca e nariz pequenos. O cabelo estava preso num coque complicado, severo.

A roupa escura bem cortada  fez sentir a camisa suada a calça sem pregas o tênis puído. Tirou rápido os óculos.

Ela o beijou no rosto e murmurou quanto tempo. O que queria que fizesse? Dez anos.

Tateando emoções em silêncio. Ele perguntou se tinha tempo para um café, ela acenou que sim. Nunca fora de falar muito.

O café, numa das quinas da Arena, continuava ruim. Ela comentou que ali nada mudava, ele lembrou a quantidade de cerveja que tinham tomado quando se conheceram mas ela não deu seguimento.

Sentaram no Teatro. Estava escurecendo e bateu uma brisa. Seguia a carreira dela, Oxford, Stanford, Oxford de novo. Feliz pelo sucesso. Ela reconheceu o agrado com um pequeno sorriso. Súbito, explodiu, você podia ter escrito, telefonado, ido lá!

Estavam dez anos de volta. Aos últimos meses. Mas ele não queria brigar. Concordou, mas ela não precisava dele. A resposta foi surpresa. Quem disse? Um arrepio sacudiu-a e acrescentou, pelo menos no início.

Ele estava ali por uma suspeita mas ela atalhou perguntando por ele, pela sua vida. Complicado. Enrolou.  Falou dos empregos, agora era consultor, frila. Casamentos e separações. Sem filho, felizmente. Se ela visse os óculos com esparadrapo veria o seu sucesso. Se tivesse um filho seria um sentido na vida.

Ela disse que ia melhorar. Ele concordou. Começaram a testar as caixas. O som reverberava no seu estomago.

No saguão as pessoas desciam a escadaria, fim de aula. Convidou-a para jantar, um cheque sem fundos a mais, que diferença fazia? Impossível, tinha um jantar em sua homenagem.

Parados na porta, olhando o transito, ele achou que era a sua última oportunidade. Receber um sinal e, quem sabe, se orientar, tomar outro rumo, algum rumo na vida.

Perguntou se ela tinha casado. A cabeça sacudiu, sem olhar para ele.  Mas uma revista a mostrava com um menino, num jardim. Um menino e um cachorro. O rosto do menino estava meio encoberto pelo braço.

Ela encarou-o:

Paul e Tubby. Paul é o menino. Paixão da minha vida!

Ele disfarçou e perguntou a idade. Ela olhou-o longamente e depois disse em voz neutra oito anos, uma produção independente, não se arrependia, melhor coisa que tinha feito na vida. Grande para a idade. Não, não tinha um retrato ali, mãe desnaturada.

Ele não insistiu. O sinal falhou, não veio, a vida era um lixo mesmo. Estava vazio.

Ela olhou o relógio. Tinha que pegar um táxi para Ipanema, queria uma carona? Ele mentiu que morava perto. Beijou-a no rosto e saiu em direção à Urca.

No hotel, ela tirou o retrato de Paul da carteira. O rosto  fino, os olhos fundos, o nariz a boca, dez anos já a cara do pai, ele tinha razão, a genética era implacável.

Duende

A Herança Se me olhar no espelho, posso vê-lo. Descontando, claro, meus quilos a mais e cabelos a menos. Um homem naturalmente corpulento, cabelos escuros, olhos pequenos, o nariz grande e adunco. A boca larga, sempre ocupada, desde criança, com balas, cigarros, chicletes, o que...

Duende

Fabio S. Erber, Conto de Fabio Erber

A Herança

Se me olhar no espelho, posso vê-lo. Descontando, claro, meus quilos a mais e cabelos a menos. Um homem naturalmente corpulento, cabelos escuros, olhos pequenos, o nariz grande e adunco. A boca larga, sempre ocupada, desde criança, com balas, cigarros, chicletes, o que fosse.

Samuel, Sammy, e eu nascemos com um dia de diferença. Eu antes, o que talvez explique alguma coisa. Os dois, filhos únicos. Nossas mães eram gêmeas, o que talvez explique a coincidência.

Seguimos paralelos a infância e a adolescência. Só agora dá para ver que já haviam diferenças. Imperceptíveis, à época.

Separamo-nos, mesmo, quando fomos estudar nos Estados Unidos. Ou melhor, eu fui para estudar; Sammy foi mandado pelo pai. Tinha-se metido em uma encrenca, vendido algo que não tinha. Eu fui para o Leste. Boston. Harvard, Escola de  Direito. Sammy foi para o Oeste. Califórnia. Foi para Woodstock e não voltou.

De vez em quando,  mandava um postal. San Francisco, Los Angeles, Paris, Katmandu, Amsterdam.  Bancoc, Miami…Nada de muito prolixo. Wish you were here, love, nada mais. No meu aniversário, porém, era certo chegar um cartão.

Seu pai desesperava-se mas mandava-lhe dinheiro. Apesar da oposição virulenta e indignada do Tio Lemle, irmão mais velho e sócio principal do negócio. Meu pai também não aprovava, mas não era sócio. Eu me espantava por não me surpreender. Era como se uma parte minha, desconhecida, já antecipasse a bifurcação. O papel de filho e sobrinho modelo, advogado trabalhador, bom pai de família, não me desagradava.

Aos poucos, a geração mais velha foi morrendo. Nossas mães, sempre solidárias, foram com uma semana de diferença. Um ano depois, meu pai, e no  seguinte, o pai de Sammy. Um enfarte, ao voltar do banco onde foi remeter dinheiro para Sammy. No meio de uma discussão com Tio Lemle. Ninguém me disse porque discutiram, mas tenho as minhas idéias. Duvido que fosse por negócios. Tio Lemle era um gênio comercial e o pai de Sammy nunca questionou a ascendência do irmão mais velho. Não tinham outras paixões, salvo Sammy.

Sammy veio ao Brasil para o enterro. Antes, só voltara quando soube da morte da mãe, ao chegar do Nepal. Bom filho, à sua maneira, foi visitá-la no cemitério. Estava genuinamente triste com a morte do pai. A recusa de Tio Lemle, nosso único parente vivo, de vê-lo, deixou-o ainda mais acabrunhado.

Com a morte do irmão, Tio Lemle fechou o negócio, vendeu tudo e recolheu-se a um casarão em Petrópolis. Não casara nem tivera filhos.

Sammy herdou uma bela fortuna. Não me contou que negócios fazia lá fora mas encarregou-me de administrá-la. Eu sabia que sua intenção era torrá-la. Não precisava me dizer.

Fora as coisas práticas, pouco falamos. Nunca fôramos de muita conversa. Não questionamos a bifurcação, reconhecendo sua irreversibilidade. Sammy voltou para o exterior e a correspondência reduziu-se a ordens de pagamento para diversas partes do mundo. Os cartões de aniversário, porém, continuavam a chegar. Aos poucos, as ordens foram convergindo para a Califórnia, como um círculo se completando.

Este ano, a fortuna de Sammy estava acabando. Na mesma semana em que o avisei dessa iminência, minha secretária recebeu um telefonema de uma mulher que não se identificou: Tio Lemle queria me ver. Levei um susto, como se um fantasma tivesse entrado porta a dentro e pedido para fazer seu planejamento fiscal. Tio Lemle tornara-se um recluso tão eficiente, sem telefone, desencorajando abertamente qualquer visita, que eu acabara por esquecer que ainda existia.

Petrópolis virou algo detestável – a cidade média de interior. A parte comercial já estava chegando perto da casa do Tio, embora duvido que ele soubesse disso, ou se importasse. A casa, um mostrengo sem estilo, construída no início do século,  estava decrépita, as paredes externas descascadas, mostrando a alvenaria. A hera cobrira o largo portão, as grades, o muro da frente e avançava, intrépida, pelo portãozinho lateral, resistindo a quem tentasse abri-lo. Do lado de dentro, o mato  liquidou todos os competidores no antigo jardim. Ninguém, no entanto, acabara com a figueira, que, escura, dominava o pedaço. No meio do mato, pensando nas marcas que deixaria em meu terno claro, algo roçou minha perna. Esforcei-me para não gritar.

Os degraus da escada que dava acesso à varanda haviam rachado. Pedaços do corrimão de madeira e ferro batido e da grade que circundava a varanda haviam sido tragados pelo mato triunfante.

Já na porta assaltou-me o cheiro. Penetrante, perverso, de sujeira e podridão.

Com minha batida, a porta abriu-se. A penumbra fazia a sala parecer maior. O cheiro era espesso. Havia muitas respirações.

Finalmente, o enxerguei. Estava sentado numa poltrona no meio da sala. Cercado de gatos. Talvez tivesse esbarrado num deles, no mato.

A voz era aguda e anasalada. Tão fraca que parecia o fantasma da voz que eu lembrava. Mandou-me puxar uma cadeira e sentar-me. Não disse palavra de boas-vindas. Muito menos de agradecimento por ter largado tudo e subido a serra num dia útil.

Tomei coragem e abri uma janela.  Precisava de luz e ar fresco para não correr. Vários gatos reclamaram em antífona.

Tio Lemle virara um duende!

Encolhera, mas de forma desigual. A cabeça. agora, era enorme. Nela, ainda restavam alguns fiapos de cabelo branco, espalhados como tufos pela pele encardida. No meio da cabeça reinava absoluto o nariz, que se curvava sobre uma boca de lábios finos e alguns dentes amarelados. No queixo uns tufos de barba, que não chegava a ser branca. Sob a pele, viam-se os vasos, que davam ao rosto uma falsa aparência de corado. Sentado numa cadeira de rodas, coberto por uma manta de cor indefinida, o corpo parecia pequeno, mas as mãos, estriadas de azul e preto, ainda eram grandes.

A sala era uma ruína. Louça quebrada, alguns móveis também. E sujeira, por toda parte. Montes. O cheiro era insuportável. Também havia pilhas de livros, espalhadas por toda a sala.

Fechei a parte de cima. Há anos que não vou lá. Tenho um acerto com uma mulher da redondeza. Faz a comida e deixa na porta uma vez por semana.

Aos poucos, a voz ia recobrando força. Há quanto tempo não falava com um ser humano ? Vivo, pelo menos ?

Já satisfez a curiosidade ? Viu como vive o seu velho tio ? Então vamos aos negócios, que não o tirei do escritório num dia útil para ficar falando bobagens!

Era a voz do Tio Lemle como a lembrava, dando instruções ao pai de Sammy ou a meu pai, mandando-me estudar para progredir na vida. Sentei-me à sua frente.

Trouxe o gravador, como mandei ? Tome notas também, porque não confio muito nessas coisas.

Fez uma pausa.

-Na verdade é simples. Estou morrendo.

Abanou a mão com força, para impedir-me de falar.

-Sei que sente. Alguma coisa.

Olhou-me fixo nos olhos.

-Não estou senil nem maluco, sobrinho. Apenas sei que a morte está muito perto.

Relaxou e mostrou-me os poucos dentes.

-Andei muito ocupado, estudando coisas que não lhe interessam. Mas agora, tenho algo a fazer que é da sua área. Meu testamento.

Olhou-me fixo novamente. Parecia reunir forças.

-Nomeio meu sobrinho Samuel meu herdeiro universal.

A voz era firme e a carga de prazer e ódio que trazia quase tirou-me da cadeira. Prosseguiu no mesmo tom.

-Meus bens são esta casa e seu conteúdo. A escritura da casa você encontra naquela gaveta. Pode examinar – está em ordem. Todos os impostos pagos, tudo em ordem para que meu sobrinho possa gozá-la.

Pensou um pouco.

-Mas o principal é o conteúdo. Que também lego a Samuel. Nele há um tesouro, que será dele, se souber achá-lo. E conservá-lo.

Pôs-se a rir. Gargalhava, com tal prazer que eu sentia calafrios, apesar do calor abafado da sala.

Fez-me repetir tudo e tocar a gravação. Recusou-se a esclarecer o que era o tal tesouro.

Trouxera um laptop e resolvemos tudo rapidamente. O tesouro ficou incluído no conteúdo da casa, sem especificação. Como dissera, era simples. Do ponto de vista legal. Antes de assinar, teve uma idéia.

-Coloque aí uma clausula adicional. No caso de falecimento de Samuel, a casa e tudo mais passam a você.

Com um risinho satisfeito, acrescentou :

-Não há risco de você encontrar o tesouro se Samuel não conseguir.

O olhar pôs-se vago e ficamos muito tempo em silêncio. Por fim, despediu-me com um gesto da mão. Pensei que deveria beijá-lo ou fazer algum gesto de carinho, mas não foi possível.

Quando estava na porta, chamou-me de volta.

-Não deixe de tocar essa gravação para Samuel, quando chegar a ocasião.

Atravessei o jardim quase correndo. Tinha a sensação de ser observado.

Uma semana depois, a mulher que lhe preparava a comida telefonou para comunicar o falecimento de Tio Lemle. Para minha surpresa, chorava muito e dizia que ele era uma ótima pessoa. Enterrei-o em Petrópolis mesmo. Estávamos só ela e eu. Era velha, gorda e tinha um ar de boa pessoa, um pouco pateta. Mandei fechar a casa e contratei um vigia.

Sammy chegou no fim do mês. Nada pareceu espantá-lo. Ouviu a gravação com o mesmo espírito com que escutara meu relato. Tio Lemle, no fundo, era um bom sujeito e gostava dele. No fim da vida, reconhecera que fora injusto e corrigira o erro deixando seu dinheiro para quem mais precisava. E precisava muito!

O cinzeiro já transbordava mas acendeu outro cigarro. Penso que interpretou mal  minha cara, porque perguntou :

-Você não se incomoda? Com a herança? Meti-me em uns negócios complicados e estou a perigo. Meus…clientes, não são do tipo que se queixa ao bispo. Ou ao advogado.

Não comentou mais e também mais não perguntei. Marcamos para ir a Petrópolis no dia seguinte, mas um mal súbito me impediu. Sugeri adiarmos para o fim de semana, mas ele estava com pressa. À noite veio ver-me. Anunciou que parara de fumar e ofereceu-me um drops.

-Estive lá. Bad vibrations, man. Dá para vender? Tipo rápido?

Vender é sempre possível, depende do preço. Rápido, mesmo barato, é difícil.

Pensei que Sammy devia estar mesmo pressionado, para ter esquecido assim o que nossos pais e o tio Lemle teriam dito.

-Então, só me resta achar o tal tesouro. Pelas minhas contas, tenho quinze dias. Vou precisar de ferramentas, roupas e comida. Me empresta algum?

Ofereci emprestar-lhe o que precisava para pagar os tais “clientes”.

-Só in extremis. Esse é um negócio em que é melhor você não se meter. E, depois, o Tio Lemle deixou-me um tesouro!

Ofereci para ajudá-lo na busca.

-Muito grato. Mas tenho a intuição de que o Tio arrumou as coisas de modo que, seguindo a minha cabeça, vou acabar achando. No offence meant, mas sinto que você vai acabar atrapalhando. Sua cabeça ficou muito diferente.

Rindo, enfiou outro drops na boca.

No dia seguinte pegou as plantas da casa no meu escritório e subiu.

Tive uma semana especialmente complicada, mas, à noite, não conseguia não pensar em Sammy  e no Tio Lemle. Talvez Sammy tivesse razão. No domingo, não resisti e subi.

Cheguei no meio do dia. Todas as janelas e portas estavam abertas. Na varanda, encontrei Sammy, sem camisa, suarento, com o rosto vincado. Levou-me para a sala. Fizera uma retícula na planta, com quadrados de várias cores. Um bom número estava riscado.

-Olha aí! Adotei um método racional. Depois de estudar a casa, dei probabilidades a cada lugar e comecei a procurar. Comecei pelo térreo, para depois ir para o andar de cima e o porão.

Deixou-se cair numa cadeira, que rangeu.

-Nada! Nada vezes nada! Nesse ritmo, posso passar anos aqui; nessa catacumba! E tempo não tenho!

Voltamos para a varanda. Estava muito tenso. Perguntei-me se dormira ou mantivera a busca durante as noites. Encheu a boca de balas. Dava para alimentar-se de balas? Falava entredentes.

-Estive pensando. O tesouro só pode ser de coisas muito duráveis, fisicamente. Duráveis em valor também. Ações, títulos, papel, estão fora. O velho já deve ter escondido há tempo, pelo estado de saúde que você descreveu. Só pode ser ouro e pedras preciosas!

Ocorreu-me uma idéia terrível :

-E se for algum conhecimento? Ele falou de pesquisas que eu não iria entender.

Ria muito. As lágrimas corriam soltas.

-Você está fora de sintonia com o velho. Dinheiro, grana, era o que lhe interessava e que preciso!

Pegou-me pelo braço:

-Vamos almoçar, brother. Estou sentindo que estou na trilha errada.

Depois do almoço despachou-me de volta para o Rio. Quando parti, estava sentado em baixo da figueira, fumando um cigarro de maconha, totalmente indiferente à reação dos vizinhos.

Dois dias depois entrou em meu escritório. Estava ainda mais magro, a barba crescida, as roupas  mais sujas. Mas os olhos brilhavam. Ofereceu-me balas. Tentava parecer frio, mas a voz tremia.

-Depois que você foi embora, fiquei lá pensando. Tinha certeza de que estava no caminho errado. Aí, tentei pensar como Tio Lemle. Imaginar como ele me via. A sensação de erro foi Então, veio o primeiro clique. Não era para seguir uma estratégia racional,  certinha. Para isso, ele teria chamado você. Eu, eu sou o porra-louca da família!

-Esperei a noite e tomei um ácido. Oh boy! Que viagem naquela casa! No início, foi meio sinistro. Todas aquelas sombras. Tive medo de estar entrando numa very bad trip. Mas, depois, fui-me acostumando. Saí andando pela casa, vendo coisas, cores, que nunca tinha visto antes. As madeiras estalando pareciam tiros. Longe, ouvia a voz de Tio Lemle me chamando, mas não conseguia localizar. Andei pelo térreo, onde tudo era marrom. Na andar de cima, era verde e azul. Aí fui para o porão. A voz era mais forte. Como quando ia lá em casa levando um presente. Vermelho. Bordô. Muito sangue. Rosa também, pouco mas tinha. Uma coisa grudou no meu rosto. Deu tanto horror, medo, que caí no chão. Devia ser uma teia de aranha. Fiquei lá sentado, cercado de sangue, quase sem respirar. Então comecei a ouvir uns barulhos. Passinhos. Depois, vi uma sombra. Enorme! Acho que encostei numa parede, me escondi atrás de uma pilastra. Era um homenzinho. Bem pequeno. Com cabeção, perninhas curtas. Barbudo.

Pulei em cima dele. Não lembro bem o que aconteceu, mas segurei-o firme.  Ficamos assim, nos encarando, e aí eu disse que queria o tesouro do Tio Lemle. Que o Tio Lemle tinha deixado para mim. Ele disse que eu podia ser o herdeiro mas que ele tinha a posse. Parecia um advogado, o desgraçado! Aí, fiquei muito irado e apertei a garganta  dele. Começou a espernear e gemer e lembrei que, se  ele morresse, eu nunca acharia o tesouro. Coloquei-o no chão e fiz um trato. Podíamos dividir o tesouro. Metade para cada um. Aí  soube que o tesouro estava com ele. Tinha uma bolsa no cinto, que arranquei. Não tenho muita lembrança do que aconteceu depois. Acho que saí correndo…Na manhã seguinte, acordei em baixo da figueira, com isso na mão!

Mostrou-me uma bolsinha de couro, franjada nas pontas.

-Não tenho noção de como foi parar lá nem onde achei! Dentro havia isso…

Na palma da mão tinha os dois diamantes mais maravilhosos que já vi. Tenho um cliente que é obcecado por diamantes e acabei aprendendo bastante. Ficamos os dois ali, bestificados, olhando para as pedras. Fechei os olhos, para quebrar o encantamento e empurrar a inveja. O tesouro do Tio Lemle era um tesouro mesmo!

Sammy deu uma gargalhada e guardou os diamantes.

-Com isso, pago as minhas dívidas e posso retomar minha vida!

-E o homenzinho, duende, ou o que fosse? perguntei. Você não ficou de dar um para ele, racharem o tesouro?

-Um duende de ácido?! Rachar um tesouro com um duende? Oh man, quem ficou doido foi você! Vou para o hotel, descansar! Amanhã nos falamos.

Ria muito e quando saiu do escritório ainda dava para ouvir sua gargalhada. Ouvi de novo a gravação do Tio Lemle, mas não espantou a minha angústia.

Na manhã seguinte, telefonaram-me do hotel. Nervosíssimos. A camareira encontrara Sammy. Morto, deitado na cama. Não havia sinais de violência; tudo indicava uma morte natural. Queriam evitar um escândalo.

Chamei o médico da família e fomos para o hotel.

Era uma suíte. Enorme. Sammy começara a gastar por conta.

Estava deitado na cama. De pijama de seda, novo. Os olhos e a boca abertos. Um ar perplexo. Deu-me aflição olhá-lo.

Havia comprado uma mala nova e roupas também. O gerente fez abrir o cofre em minha presença. Lá estavam o passaporte, cartões de crédito e algum dinheiro. Mas não havia rastro da bolsinha nem dos diamantes. Interroguei o gerente. Não havia registros de visitas, ninguém vira nada. Mas poderiam ter subido direto, se soubessem o número. Era um hotel grande – não dava para controlar tudo. Sammy dera dois telefonemas internacionais. Para San Francisco. Os dois muito curtos.

O médico chamou-me de lado. Parecia muito espantado. Tinha um dos diamantes entre os dedos.

-Estava na garganta. Descobri por acaso.

Ficamos um tempo olhando a pedra. Eu, pensando em Sammy e suas transações. Ele, não sei.

-Ele morreu sufocado.

Pensei nas balas de Sammy. Na nossa infância. Lembrei do Tio Lemle.

-Ponha aí ataque cardíaco. Não vamos complicar as coisas.

O outro diamante não foi achado. Prefiro crer que Sammy o engoliu, mas não tive coragem de pedir uma autópsia. Que descanse em paz. Ele, o Tio Lemle e os demais.

O diamante que restou, vendi para meu cliente. Há pouco tempo, ele me assegurou que outra pedra parecida não apareceu no mercado. O que não quer dizer muito. A casa, mandei demolir, cimentar o chão e virou estacionamento. Só deixei a figueira, mesmo que o manobreiro reclame.

 

 

Desenhos

Apesar do ar-condicionado, ele estava suando muito. Podia ver as manchas se espalhando na camisa amarela. Era muito grande e fora musculoso. Agora, engordara. Ele afrouxou a gravata marrom e respirou fundo. Ela sentia um misto de desprezo e repugnância. E raiva. E, no fundo, esperando, o medo. -...

Desenhos

Fabio S. Erber, Conto de Fabio Erber

Apesar do ar-condicionado, ele estava suando muito. Podia ver as manchas se espalhando na camisa amarela. Era muito grande e fora musculoso. Agora, engordara. Ele afrouxou a gravata marrom e respirou fundo. Ela sentia um misto de desprezo e repugnância. E raiva. E, no fundo, esperando, o medo.

– Pensei que você fosse capaz de me proteger.

Pôs todas as emoções na frase, para atingi-lo. O suspiro virou um ronco. Um homem tão grande e forte e tão frágil! Os homens eram idiotas.

– Você, dessa vez, exagerou!

– Eu ?! Ramon, o idiota, toma uma overdose, e eu sou culpada?

Mas pensou que errara, mesmo, e perdera o controle. Não deveria ter dito a Ramon que trepava com Pablo. Especialmente Pablo. E especialmente quando Ramon, mais uma vez, fora impotente. Não resistira à tentação de torturá-lo um pouco, mas fora longe demais. E, agora, era irreversível. A morte era irreversível. Sentiu raiva do morto e de si.

Tecnicamente, fora um suicídio. Mas, ali, tecnicalidades não eram relevantes.

Pablo levantou-se para falar. Quase um pronunciamento oficial.

– Para o Chefe, você é a responsável pela morte do filho dele. E ele quer vingança. Vou vê-lo daqui a uma hora. Ele vai me mandar prendê-la. Você tem pouco tempo.

Pensou, “por que ele sempre o trata como “O Chefe”? É o Presidente. Pode ser um ditador, mas é o Presidente. Chefe parece coisa de máfia. Mas, talvez seja isso: são a Máfia”

Era sempre assim; quando tinha medo, dava para divagar. Pablo olhou o relógio.

Sabia que ele cumpriria a ordem do Chefe. Uma morte que não queria imaginar. Sentiu um calafrio. E tinha pouco tempo. Mas precisava confirmar uma defesa.

– O Chefe sabe …de nós dois, Pablito?

O silêncio confirmou o que pensava.

– Ele não gostaria de saber. Pode até dar-lhe idéias diferentes, sobre a morte do filho.

Ele abriu e fechou as mãos pesadas e deu um passo em sua direção.  Sentiu medo, mas manteve o sorriso.

– Há as fitas, lembra? Essas, você não pode matar. Estão fora, no exterior, como eu avisei. Meu seguro.

Era mentira – não havia fitas gravadas – mas ele não sabia. O que contava era seu medo.

Levantou-se e foi até ele. Beijou-o na face e empurrou-o delicadamente para a porta.

– Adeus, Pablito.  Me dê o tempo que puder. Por nós dois. Nosso pacto de vida.

Deteve-o na soleira e encarou-o.

– Não quero sofrer um acidente. Não quero ser seguida. Qualquer coisa, as fitas entram no ar.

Beijou-o novamente, dessa vez na boca. Queria que ele saísse com seu gosto, seu perfume. Depois de um segundo, ele respondeu. Ainda tinha poder.

– Foi bom, Pablo. Ainda vamos nos encontrar. Logo logo.

Afastou-se e ficou encarando-o até que abaixasse os olhos.

Enquanto esperava pelo ruído do motor do carro, olhava as mãos. Estavam tremendo. Aquele jogo não era o seu. A violência física enojava-a. O poder, de que tanto gostava, tinha que ser sutil. A violência também. Ramon fora divertido, no início. Pablo, excitante. Suava poder. Mas errara.

– Ele tem razão. Fui uma idiota, censurou-se alto. Deu de ombros. Talvez tivesse aprendido. E não tinha tempo.

Decidiu telefonar para o escritório. Ainda bem que acabara a arte-final que haviam encomendado. Detestava deixar coisas incompletas. Não entrou em detalhes, mas insinuou que tinha que viajar por “razoes políticas”. Era uma garantia dupla: de que não fariam perguntas e de que poderia voltar, se precisasse. Tinha certeza de que o ciúme de Pablo mandara vigiar o telefone do escritório, mas era irrelevante. Se a pegassem, não faria diferença.

Respirou fundo e tentou concentrar-se. Encarou o Chefe. O Presidente. Seu retrato estava lá. Pablo mandara emoldurar. O retrato que ganhara o concurso e abrira-lhe as portas. Na época, gostara. Do retrato e do poder. Agora, que conhecera a pessoa, percebia os defeitos dos dois. Mas, se tivesse feito como os conhecia, não teria ganho o concurso.

Por sorte, tinha pouco dinheiro no banco. Seu sentido de impermanência impedia investimentos. Não tinha sensação de futuro. Perdeu algum tempo selecionando as roupas. Poucas, que coubessem numa bagagem de mão. Fez uma pasta com seus melhores desenhos. Quando acabou, teve a sensação de que era definitivo.

No aeroporto, sentiu alguma pena de abandonar o carro. Dava-lhe a impressão de liberdade.

O primeiro voo era para o Rio de Janeiro e São Paulo. Gostava do Rio. Ida e volta. Tudo que ajudasse a Pablo a dar ao Chefe a impressão que era uma ausência temporária. O pacto de vida. Sentiu vontade de rir. Mas percebeu que estava com medo. E com raiva. Não queria sair assim, fugindo. Mas era culpa sua.

Saltou no Rio.

 

Trabalhava como frila. Odiava a exploração, mas não deixava rastros.

O medo não a abandonava. Tinha pesadelos, em que homens a agarravam e a afogavam no mar.  Evitava qualquer contato com a colônia e alternava as bancas onde comprava jornais de Assunção. Quanto ao sotaque, como tantas outras coisas de infância, permanecia indelével. Mas os brasileiros tomavam-na por argentina.

Na manhã de domingo, no jornal estava o retrato. Pablo Aguirre. Era uma foto oficial, com o peito cheio de medalhas. O helicóptero caíra pouco depois da decolagem. O enterro fora com grandes honras. Que importava se fora acidente ou sabotagem? Lembrou-se do pesadelo.

Não tinha intimidade com o mar. Era fluvial e o movimento e a força do oceano sempre a intimidaram. Mas mergulhou de cabeça e nadou para o fundo, furando as ondas. Embolou um par de vezes, perdendo o fôlego, mas seguiu, além da arrebentação. Não havia gente por perto e despiu-se. Ficou boiando, deixando-se levar pela correnteza, olhando as nuvens. Sentia as correntes de medo indo para a água, misturando-se no mar, sem afogá-la. Saiu longe de onde entrara e voltou pela praia, enfiando os artelhos na areia quente e sentindo o sol queimar-lhe as costas, como na infância.

No dia seguinte foi para Curitiba, onde os exilados se concentravam.

 

Fizera três posters, como haviam pedido. E um trabalho seu, com o recado que queria dar. Fizera os três posters expressionistas. Os dois primeiros denunciavam a opressão e a tortura – uma bota sobre o pescoço de um índio e uma mulher num pau-de-arara. O terceiro era uma bandeira rasgada. Fizera-os facilmente e estava satisfeita com a qualidade, mas a que serviam? A incomodar um pouco as pessoas. Como, se no fundo, não soubessem. Eram um grito de dor. E de fraqueza. E nada disso servia para mudar.

Seu trabalho era desenhado em história em quadrinhos. Um homem atirando com uma bazuca e um carro explodindo. Dentro do carro, no banco de trás, um homem uniformizado, sendo fragmentado. O Chefe. Retratara-o tantas vezes, que, mesmo estilizado, era reconhecível.

Arrumou-os e esperou.

Entrar nos exilados fora fácil. E arriscado. Escarnecendo da oposição, Pablo lhe falara de informantes infiltrados. Ao propor-se a fazer os posters, assinalara sua presença. Sabia que o Chefe não a esquecera. Com a morte de Pablo, caíra sua última defesa. Estava só. Como no mar.

Ficara um tempo observando as lideranças, sentindo as vibrações. Desconfiava dos mais eloquentes e desprezava os que pareciam movidos por razões vagas, como solidariedade. Finalmente, achou-o.

Chamavam-no “El Basco”. Alto, magro, consumido pelo ódio, mas frio. Tinha a testa alta e os lábios pálidos. Falava pouco, mas tinha o domínio completo de um grupelho, que o via como o Messias. Sua impaciência com o discurso teórico era mal disfarçada. Os outros tinham-lhe medo, que também tentavam dissimular.

Buscou um caminho de aproximação. Conseguiu, furando o cerco do grupelho, sentar-se a seu lado numa reunião. Ela nunca tomava a palavra em público, mas fez, em voz baixa, um par de comentários quanto ao desperdício de verbo e à necessidade de ação, que o fizeram notá-la.

Numa festa da colônia, observou-o quando uma jovem do grupo o tirou para dançar. O corpo era-lhe incomodo. Soube que, se fossem para a cama, a usaria apenas para gastar energia. Não se incomodava de ser usada, se fosse útil; mas não seria. Teria que fazer uma proposta direta, usando os seus meios.  Se fosse um informante, estava perdida.

Na reunião, todos se concentraram nos posters. Menos ele. Estava examinando o desenho atentamente, quando ela se aproximou. Os lábios finos tinham ganho alguma cor. O peixe, ensinara-lhe Pablo, precisa de tempo para gostar da isca.

– Parece uma boa ideia, comentou, sem olhar para ela.

Deu um leve puxão na isca.

– É viável. Se houver um grupo com vontade.

– Com a segurança com que anda?

O peixe estava gostando da isca, mas tinha medo. Era um peixe experiente.

– Nem sempre tem segurança.

E afastou-se, para dar-lhe tempo de gostar.

Como esperava, ele ficou depois dos outros. Com a isca cravada na goela. Fingiu não perceber. Ele pegou seu desenho, aproximou-se e ordenou.

– Fale.

– Por que vou confiar em você? Isso está cheio de informantes.

Era um jogo lento, difícil. Se o peixe a puxasse para a água, iria afogar-se.

– É verdade. E se eu fosse um, você iria morrer logo, pelo risco de que soubesse, mesmo, do que está falando.

Sentiu o estômago contrair-se. Ele sorriu.

– Mas gosto do seu cuidado.

Pensou um pouco, debatendo algo em silencio. Ela sentia a linha retesando-se, o peixe enganchado, a mão de Pablo firmando-lhe o braço.

– Vou dar-lhe uma prova. O helicóptero de Pablo Aguirre. Não foi acidente. Fomos nós, com um míssil. De um terreno baldio em Santa Maria. O helicóptero passava sempre por lá. Foi só esperar. Demos sorte, porque não sabíamos quem estaria dentro.

Não fumava, mas acendeu um cigarro do maço dele, para ganhar tempo e controlar o estômago. As mãos tremiam-lhe. Sempre suspeitara de que não fora um acidente, e havia rumores na colônia de que fora um atentado. O helicóptero era a paixão de Pablo, o símbolo de status que mais prezava. Que ironia, que a oposição, que tanto desprezava, o tivesse atingido dentro dele!

Finalmente, conseguiu controlar-se e encarando-o, disse, baixo, mas claro:

– O Chefe tem uma amante. Vai visitá-la às terças, às quatro horas. Vai disfarçado, porque tem medo da mulher. Só com um carro de segurança.

– Como é que você sabe disso?

A pergunta também viera em tom baixo, mas era decisiva. Sentiu a ameaça no ar. Mas já pensara muito na resposta. Escolhera Ramon, o filho do Chefe, como fonte da informação. Todos sabiam que era um viciado e, portanto, por definição, pouco confiável. Era outra ironia, que do fiel Pablo tivesse vindo a inconfidência amorosa. Ramon tinha pelo pai sentimentos tão turvos que dele mal falava, embora aproveitasse o seu poder. Provavelmente nem sabia da amante.

Admitiu que “tivera um caso” com Ramon e afirmou “sentir” que o Chefe fora responsável por sua morte. A morte era pública. A passionalidade da vingança estava conforme a visão que ele tinha das mulheres. Motivos ideológicos teriam pouca credibilidade. O peixe estava em terra.

Ele fez questão de levá-la em casa. Queria saber onde morava. No caminho quase não se falaram, mas, ao se despedir, ele sugeriu que não saísse da cidade por uns tempos.

Seguiu trabalhando, tampando a ansiedade com desenhos que vendiam a felicidade. Continuou frequentando as reuniões de exilados. El Basco desapareceu por uma semana e, ao voltar, não tocou no assunto. Havia noites em que não conseguia dormir, e redobrou as medidas de segurança.

 

Não foi necessário comprar os jornais da colônia – a morte do Chefe mereceu primeira página dos nacionais. Não era todos os dias que o Chefe de Estado de um país vizinho morria em um atentado, o carro explodindo. Com uma diferença de detalhe: haviam usado um míssil.

Os exilados pareciam uma colmeia que tivesse levado uma pedrada. No tumulto dos que se preparavam para voltar e disputar o poder, o registro de sua partida foi feito e logo esquecido.

 

Voltou para o Rio. El Basco estaria tão envolvido nas lutas que teria pouco tempo para lembrar-se dela. Era perigoso demais para que os outros o deixassem vivo.

Começou a tomar gosto por desenhar paisagens. O Rio era lindo.

Mistérios de Sisifo

De que é feita a pedra seu destino? Empurra matéria ou culpas intangíveis?   Sísifo pesa o passado?   A compulsão é a maldição?   Sobe o morro repete o gesto no desespêro ou otimista acha sempre desta vez dará?

Mistérios de Sisifo

, Poesia de Fabio Erber

De que

é feita a pedra

seu destino?

Empurra matéria ou

culpas intangíveis?

 

Sísifo pesa o passado?

 

A compulsão é a maldição?

 

Sobe o morro

repete o gesto

no desespêro

ou

otimista

acha sempre

desta vez dará?

Américo

Há nos Uffizi, em Florença, um retrato, feito por alguém cujo nome se perdeu, de Américo Vespucci, burocrata, navegador, cortesão, homem de negócios, piloto mayor que deu nome ao nosso continente. Mostra-o de perfil, já entrado em anos, com cabelos ralos, o nariz adunco, a face vincada,...

Américo

Fabio S. Erber, Conto de Fabio Erber.

Há nos Uffizi, em Florença, um retrato, feito por alguém cujo nome se perdeu, de Américo Vespucci, burocrata, navegador, cortesão, homem de negócios, piloto mayor que deu nome ao nosso continente. Mostra-o de perfil, já entrado em anos, com cabelos ralos, o nariz adunco, a face vincada, a boca fina e o maxilar marcante. Apesar da idade, o pescoço e os ombros são fortes. E’ um quadro típico da época e poderia ser o retrato de algum condottiere ou de um membro da família Medici, em cujo serviço Américo iniciou a carreira.

De Américo Vespucci da Costa restava, até há pouco tempo, apenas um auto-retrato, feito a crayon, pregado por tachas em uma parede de um pequeno hotel de Itacuruçá.  Por algum motivo, a filha do dono encantou-se com ele e pregou-o no hall, onde poucos hospedes transitam e ainda menos lhe dão atenção.

Embora, para sua dor, Américo Vespucci da Costa jamais tenha cruzado o Atlântico e, muito menos, visitado os Uffizi, é possível que tenha visto em algum lugar a reprodução desse retrato de Vespucci, o navegador. Talvez seja coincidência. Ou  destino. Ou, simplesmente, a lógica do retratar.

O fato é que a pose é a mesma, de perfil. No entanto, embora os elementos sejam os mesmos, o resultado é distinto. Não se tem a impressão de força – é tudo em tom menor e é necessário observá-lo atentamente (o que poucos fazem) para detectar a vida por detrás do traço.

Assim como o Vespucci navegador, o da Costa era filho de um tabelião. Os pais morreram cedo e o menino foi criado por um tio solteirão, homem de poucas palavras e afetos mas que o provia dos meios materiais. Não tinha irmãos ou primos e, quando o tio morreu subitamente, atravessando uma rua de Vitória, descobriu-se órfão.

O desamparo coincidiu com a descoberta de seu nome. Até então, aceitara o nome com naturalidade. No colégio, estava registrado como Américo V. da Costa e nunca se preocupara com o Vespucci, atribuindo-o a alguma longínqua italianidade.

Cedo mostrara facilidade para o desenho e, terminado o colegial, inscrevera-se na Escola de Belas Artes. Ao preencher os papeis tivera que colocar o nome completo e o Vespucci, pela primeira vez, chamou-lhe a atenção. Em casa, perguntou ao tio sobre a origem do nome e espantou-se mais ainda quando esse, avaro de sentimentos, mostrou grande irritação, negando qualquer italiano na família e dando como razão a loucura do pai.

Embora esmaecida, a figura do pai era de retidão cartorial e nada fazia supor alguma extravagância, muito menos desvario. Pressionado, o tio aludiu a outras vidas, menos regradas do que a foto paterna de terno-e-gravata, emoldurada em prata, sugeria.  A morte súbita do tio interrompeu o desvendar do passado.

O nome tornou-se obsessão. Buscou informações com velhos amigos do pai, mas esses eram poucos e eram discretos ou pouco sabiam. Uma longa pesquisa pelos poeirentos cartórios de Vitória e Alegre levantou uma arvore comum, com raízes em imigrantes portugueses e libaneses, sem qualquer ramo remotamente italiano.

A única pista encontrou-a numa velha pasta, guardada no sótão da casa, onde havia cópias de mapas antigos. Entre esses estava o  grande planisfério de Waldsemüller, onde o nome América foi pela primeira vez usado.  Na parte superior – o hemisfério do Mundo Antigo – havia o retrato de Ptolomeu e, abaixo, no Novo Mundo, o retrato de Américo Vespucci, mais jovem que no retrato dos Uffizzi

Tangido pela orfandade, tentou seguir os rastros do pai desconhecido. Enfurnou-se na biblioteca da Universidade mas pouco encontrou. Apenas o suficiente para firmemente tomar o partido dos defensores de seu homônimo, contra os que o acusavam de ser um usurpador de méritos alheios.

Logo descobriu que sua paixão era motivo de irrisão e aprendeu a silenciar. No entanto, passou a assinar Américo Vespucci da Costa. Sentiu-se tentado a reclamar um distante parentesco mas a vergonha o impediu. Deu, porém, para ficar horas olhando o mar, tentando imaginar a travessia do Atlântico naqueles barquinhos de madeira e as viagens ao longo da desconhecida costa americana. Mais que tudo, impressionava-o a paixão que inspirara aqueles percursos e que, acreditava, levara o pai a dar-lhe aquele nome de destino.

O mar, porém, inspirava-lhe terror. Sabia nadar,  porém nada impedia o pânico que sentia ao entrar na água. Inscreveu-se em um curso de vela, mas não conseguiu entrar no barco.

Aos poucos acreditou reconciliar-se com o nome e tentou retomar o curso normal da vida. Esperava ser artista. Apesar do bolor da Escola, foi descobrindo a gloria da cor e movimento dos volumes. No entanto, embora fosse capaz de reproduzir com fidelidade e facilidade obras alheias, quando tentava algo próprio, o resultado era sempre insosso. Tentou todos os meios, do óleo às colagens – horas diárias – o fim era sempre frustração. Professores e colegas não se davam conta de sua angústia e elogiavam-lhe a técnica e o apuro.

Convenceu-se que o mar e a pintura estavam, de alguma forma, associados. Quando superasse o medo de um a outra brotaria. Porém, para romper as cadeias precisava de uma força externa. Sozinho, não conseguiria.

Em busca de uma paixão que o libertasse, enamorou-se por uma colega. Mais velha, já com um filho, Vitória era ruiva e vulgar. Alegre, apesar da falta de dinheiro. Tímido, a princípio circum-navegou-a. Quando a despejaram do quarto que alugava, encontrou a brecha que buscava, oferecendo-lhe um, na casa que herdara do tio.

Vitória e o garoto apossaram-se da casa com a tranqüilidade dos conquistadores. O recato do jardim fronteiro foi eviscerado, agregou-se um vira-latas a seu convívio e a casa tornou-se ponto de festas que varavam a noite, para reclamo e horror dos vizinhos. Américo sofria e rondava Vitória, sem ousar protestar ou pedir. Até que uma noite, com ar enfastiado, ela o levou para a cama. Onde ele descobriu, aterrorizado, a ejaculação precoce.

Aquilo pareceu diverti-la e todas as noites voltavam à cama, sempre com o mesmo resultado. Vitória aumentava a tortura repetindo que era a falta de paixão a causa de sua insuficiência.

Para convencê-la da paixão, decidiu pintar-lhe o retrato. Pediu-lhe uma fotografia, mas ela o escarneceu. Que a pintasse como a sentia.

Passou dias escolhendo o estilo em que pintaria sua paixão. Finalmente, decidiu-se por um retrato naturalista. Mesmo sem uma fotografia, tinha-a presente na vista. Passou dias trabalhando, buscando o traço que melhor expressasse o oval do seu rosto, o tom que traduzisse fielmente a cor de seus cabelos, o brilho dos lábios.

Terminou-o numa manhã. No período final trabalhara noite e dia, sem cessar.

Encontrou-a na cozinha, tomando o seu tardio café. De trás das costas, retirou o retrato escondido, as tintas ainda frescas. Colocou-o à distância necessária e esperou, trepidante.

Vitória olhou para o retrato algum tempo, e bocejou:

– É… a cara está aí… Mas a alma não!

Enquanto jogava o resto de café no lixo, olhou uma vez mais para o retrato e perguntou:

– Essa é a paixão que você tem por mim? Essa coisa acadêmica  e insossa?

Américo saiu de casa sem dar palavra. Andou a esmo o resto do dia. Sentia tantas dores que não sabia de qual delas tratar. Tentou por ordem na dor, indagando-se se tivesse feito o retrato em outro estilo o resultado teria sido distinto. Respondeu-lhe a sensação de completa impotência.

Ao voltar para a casa, em busca de abrigo, encontrou Vitória na cama, com um colega. Sem conseguir falar, Américo foi expulso de casa, aos berros. Levava o retrato nas mãos

Começou a beber ao pôr do sol e seguiu pela noite. De madrugada, quando o ultimo bar fechou, sentindo a humilhação latejando, foi pela ponte, pensando na morte. Dela – mas não se sentia capaz. Mesmo que tivesse uma arma, sabia que não conseguiria atirar. E a humilhação seria ainda maior. Talvez, então, a própria.

A idéia ia ganhando força quando lembrou do nome. O mar, essa era a solução. Afogar-se era um bom fim para quem tinha esse nome. Podia pular da ponte e seria rápido. Só havia uma velha ali perto, parada, e não podia impedi-lo. Jogou o retrato no mar. A correnteza o levou, mas ficou olhando-o até desaparecer. Apoiou os cotovelos na mureta e ficou olhando a água, buscando coragem.

Ate que tocaram em seu braço. Era a velha. Era muito velha, tinha olhos fundos,  sem pupilas.

– Você está com a morte nos olhos, mas é muito cedo.

Para seu espanto, a voz  áspera não tinha piedade.

Ficaram olhando-se muito tempo. Ate que ela acrescentou:

– A paixão é feita de fogo e vento. Busque o fogo, não a água.

E afastou-se, sem olhar para trás. Apoiado na mureta, Américo chorou sua humilhação e sua dor.

Voltou para casa três dias depois. Encontrou-a aberta, vazia. Só haviam ficado os móveis mais pesados, difíceis de carregar. Pregado na cama um bilhete de Vitória, notificando a mudança e culpando-o. Mas só sentiu alivio.

Vendeu a casa e os móveis, tudo a bom preço. Guardou só os mapas antigos. Com os mapas, seu material de desenho e poucas roupas, iniciou a viagem. Fiel a seu nome, seguia o mar, junto à costa.

Recapitulava continuamente o diálogo com a velha. Tinha certeza que nele havia um significado para sua vida.

Buscava o fogo e o vento. As vezes encontrava um, às vezes o outro, nunca os dois juntos. Encantou-se com a chama dos poços de petróleo, mas eram muito distantes e, de alguma forma, desumanos. O vento de Búzios e Cabo Frio, que mexe nas dunas mudando-lhe as formas, fê-lo ficar por lá alguns anos.

Ganhava algum dinheiro desenhando retratos de turistas, pintando murais e insígnias em lojas e restaurantes. Suas demandas eram poucas. Morava só, em quartos alugados ou cabanas de pescadores. As pessoas o tratavam bem, mas mantinha-se distante, especialmente das mulheres. Apresentava-se como da Costa e ninguém notava a ironia. Não pintava ou desenhava para si, apenas como profissão.

Uma noite, andando na praia, viu a velha da ponte. Correu ao seu encalço, mas não a encontrou. Agitadíssimo, voltou à sua cabana. Abriu a sacola onde estavam os mapas. Todos, menos um, haviam-se esfarelado. Só restava o planisfério de Waldesmüller.

Aquele presságio o transtornou. A velha cobrara-lhe a continuidade da viagem. Acusava-o de ter ancorado em um porto protegido, de águas rasas, interrompendo a busca que o nome lhe impunha. Mas ele não se sentia capaz. Não conseguia pintar nem enfrentar o mar.

A cobrança passou a persegui-lo, até que fugiu. Na rodoviária pegou o primeiro ônibus.

No Rio não resistiu. Em todas as ruas imaginava que, dentre as pessoas que dormiam na calçada, iria levantar-se a velha da ponte e demandar-lhe fogo e vento. Ou acreditava vê-la do lado de fora da porta do quarto, esperando.

Tornou-se incapaz de desenhar, mesmo o mais banal dos retratos de turistas basbaques, que passeiam o tédio pela Avenida Atlântica.

Reuniu então os poucos restos e fugiu novamente. Ao acaso, tomou o velho trem que desce a costa e, sem escolher, saltou em Itacuruçá.

Deu as costas ao mar e foi trabalhar nas plantações de bananeiras. A terra e a chuva, misturadas com o vento, foram, aos poucos, dando-lhe equilíbrio. Era tido por louco, porém manso e trabalhador. Nunca se embriagava e morava sozinho. Era conhecido por Américo.

Embora não a abrisse, guardava a sacola com o material de desenho e o planisfério.

Aos domingos ou em dias de folga ia à igreja. Não por fé, mas para ver as pinturas. Depois de visitar todas, escolhera a católica, na praça principal, porque tinha mais quadros e as cores eram esmaecidas. Ficava horas imaginando como eram quando novas.

Também recomeçou a ver o mar. Primeiro aos poucos, depois o dia inteiro. Percebeu que já não tinha medo. Largou as bananeiras e arranjou um trabalho em um barco que transportava bananas ao longo da costa. A mistura de cheiros, da terra e do mar, deixava-o bêbado e reconfortado. Finalmente, buscou o fogo. Inicialmente em terra, em fogueiras. São João o encantava. Depois, tentou achar o fogo no mar. Explorava o litoral e as ilhotas, buscando um sinal.

Até que uma manhã, sentado na praça, viu passar uma jovem, na fímbria entre a adolescente e a mulher. Era um pouco gorda, muito branca e tinha os cabelos compridos, de um castanho avermelhado. Espantado, ouviu-se dizer “puro Ticiano”. Ela achou que era um galanteio, partido de um velho mal-cuidado, e fechou a cara, apertando o passo. Ele foi para casa e desenhou-a.

No início, havia o inefável prazer do oficio, o desencerrar um saber que temia perdido, a magia de dar nexo ao papel branco. Concluído, era aquilo mesmo: um desenho bem-feito, sólido, acadêmico, sem paixão. Não houve o milagre que, secretamente, esperara.

Mesmo assim, depois desenhou varias pessoas da cidade e algumas paisagens. Não  vendia esses desenhos – dava-os a quem os elogiasse. Talvez ainda existam alguns. É desta época  seu auto-retrato, o último que fez.

Junto com o desenho, redescobriu o planisfério e seu nome. Aos poucos, foram-no reconquistando. Passava horas esmiuçando os detalhes do mapa, reconstituindo passagens que manchas haviam apagado. Copiou inúmeras vezes o retrato de Américo Vespucci.

Em noites de tempestade, ia para o pequeno cais olhar o mar, deixando que o vento lhe corresse o corpo. Cada vez mais, buscava o fogo.

Até que, numa noite de lua-nova, encontrou-o. Havia muito vento mas ainda se viam estrelas. Ao largo, viu brotar uma labareda. Imensa e fugaz. Não se surpreendeu. Marcou o lugar pela posição das estrelas e correu para casa.

Jogou a sacola com o material de desenho e o planisfério num bote e fez-se ao mar. Era um barco tosco, de madeira, equipado com uma pequena vela.

O vento estava a seu favor e sentia-se quase voando, bêbado. Atras, o céu começou a fechar, mas não sentiu medo. Sabia onde ia. Quando estava quase lá, já dando para ouvir as ondas quebrando, caiu a chuva. Mas era tarde.

Quando o barco bateu, estava em pé na proa e foi arremessado para frente. Muito para frente.

Afundou muito e voltou devagar, sempre em frente. Até que estava numa praia, no escuro. Sem chuva.

Havia uma mulher. Alta, parecia jovem. Era ruiva mas tinha olhos escuros. Muito fundos. Perguntou-lhe se naufragara. Soube que toda sua vida dependia da resposta. Empertigou-se e encarou-a, negando. Viera por sua vontade. Ajoelhou-se na areia e, com o indicador, fez-lhe o retrato, em traços rápidos e sem hesitação. Os dois ficaram examinando-o. Era perfeito. Américo sentia-se orgulhoso. Veio uma onda e apagou-o, mas isso não o incomodou.

A mulher sorriu, virou-se e afundou na escuridão. Américo seguiu-a. Iam por uma floresta que parecia muito antiga, mas a trilha era bem cuidada. Nas margens havia estátuas de bichos, cobertas de vegetação, ou bichos que pareciam estátuas. Até que chegaram a uma gruta.

Sem dizer nada, a mulher pegou-o pela mão e entraram, com os pés afundando em musgos.

A gruta era uma passagem, cheia de ruídos esvoaçantes. Veio-lhe o terror, mas agarrou-se à mão adiante.

Quando saíram, chovia novamente. O vento trazia o barulho do mar. Com os pés na lama, chegaram ao buraco. De lá saía a chama, onde Américo Vespucci da Costa se consumiu, completando seu longo périplo.

De manhã, com o sol tímido de inverno, acharam o bote em uma praia próxima a Itacuruçá . Metade dele, sem o mastro e a vela. No fundo, porém, estava a sacola de Américo, com o material de desenho e o planisfério.

O material despertou pouco interesse: deram-no a uma criança para brincar. No entanto, o mapa era outra coisa. Ninguém tinha visto coisa igual: Américo nunca o mostrara. Um sugeriu que fosse antigo e, assim, valioso. Mas outro apontou para o verso, onde alguém, talvez o tabelião, fiel a seu oficio, carimbara em letras maiúsculas de imprensa, em tinta azul, CÓPIA. Embora esmaecido, o carimbo ainda era legível.

Cópias, contrafações, simulacros, todos sabiam ser de pouco valor. Assim, jogaram-no fora.

Quanto a Américo Vespucci da Costa, deram-no por morto, mas, por ignorarem seu nome completo, não registraram a ocorrência.

Um economista do desenvolvimento

Wagner Bittencourt de Oliveira, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

texto escrito pelo então Vice-presidente do BNDES

Fabio Erber foi um economista do desenvolvimento, precursor e protagonista das políticas de inovação no Brasil. Homem de ideias e ações que teve sua trajetória profissional marcada pelo desafio na realização de mudanças econômicas fundamentais para o país. Professor, intelectual e policy maker, sua produção científica influenciou gerações de economistas, e englobou desde o reconhecimento do papel fundamental de setores como bens de capital, até questões mais centrais do pensamento desenvolvimentista. 

No BNDES, onde ingressou como economista em 1964, ocupou duas vezes o cargo de diretor, participando de ações que marcaram momentos importantes da instituição. Em 1992-1993, foi responsável pelas áreas de crédito direto para a indústria, agricultura e serviços, em um período delicado de tentativa de recuperação do papel das políticas de longo prazo. Como diretor responsável pela Área de Planejamento, em 2003-2004, participou direta e ativamente da formulação e execução da primeira iniciativa de política industrial, com foco na estrutura produtiva do país, considerando o papel diferenciado de setores e cadeias produtivas na dinâmica do desenvolvimento econômico e das inovações tecnológicas. Em 2004, de forma a contribuir para a implementação da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), lançou o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica (Profarma) do BNDES, que contemplou subprogramas específicos de estímulo ao investimento, ao fortalecimento das empresas nacionais e a pesquisa, desenvolvimento e inovação. Nesse mesmo ano, foi recriado o Fundo Tecnológico (Funtec), destinado a apoiar a inovação com recursos do lucro do BNDES, o qual recupera importante instrumento complementar ao crédito e à participação acionária, extinto quando da criação da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), atual Agência Brasileira de Inovação.

A lembrança que fica é que suas ideias não estavam restritas apenas ao mundo acadêmico. Fabio Erber esteve diretamente envolvido na formulação e execução da política econômica de longo prazo, em especial da política de desenvolvimento tecnológico e industrial, nos momentos cruciais do país.

Prefácio

Com a publicação deste livro, o BNDES presta uma merecida homenagem a Fabio Erber, reconhecido como um homem singular com capacidade plural. Não apenas por seu valioso legado à economia política e à teoria do desenvolvimento, mas por sua ampla cultura e engajamento...

Prefácio

Luciano Coutinho, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

Com a publicação deste livro, o BNDES presta uma merecida homenagem a Fabio Erber, reconhecido como um homem singular com capacidade plural. Não apenas por seu valioso legado à economia política e à teoria do desenvolvimento, mas por sua ampla cultura e engajamento político para o progresso industrial do Brasil. 

Este grande economista do desenvolvimento e da inovação foi pioneiro em entender, elaborar e introduzir no Brasil e na América Latina algumas das percepções mais avançadas sobre tais temas. Aliou com destreza essa capacidade com criatividade, perspicácia e conhecimento dos contextos históricos e políticos. 

Como mostrado por diferentes autores neste livro, Fabio Erber foi responsável por inaugurar linhas de pesquisas, as quais abrangeram desde seu foco central em política industrial e tecnológica, até as pesquisas sobre defesa da concorrência e economia política monetária contemporânea. Com competência incomum, articulou estudos teóricos de diversas linhas do pensamento com o desenho pragmático de políticas. Destaquem-se, em particular, suas contribuições à formulação de políticas de desenvolvimento estruturantes com visão de longo prazo. 

Conheci Fabio Erber quando juntos, ele como secretário executivo adjunto, estruturamos o Ministério da Ciência e Tecnologia. Trabalhamos intensamente durante quatro anos, entre 1985 e 1988. Depois desse período, mantivemos durante muito tempo estreita interação intelectual e acadêmica, ele como pesquisador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e eu como professor da Universidade Estadual de Campinas. 

Como cidadão político e no exercício das funções de professor, pesquisador, economista profissional e gestor governamental, sempre se pautou pelo espírito público e pela dedicação ao desenvolvimento do Brasil. Fabio Erber honrou esses valores como poucos. Tal como testemunham os autores deste livro, suas contribuições têm grande amplitude e aplicabilidade. Esperamos que a publicação deste livro contribua para revigorar suas reflexões e para estimular processos criativos de aprendizado.

Sua atuação no BNDES, igualmente destacada no livro por executivos e ex-assessores, ofereceu-lhe a oportunidade de experimentar na prática os sofisticados e densos conhecimentos que acumulou. Sentimos sua falta. Principalmente quando se registram no Brasil importantes avanços econômicos, sociais, políticos e institucionais, que contribuem para mitigar desigualdades e implantar as bases para impulsionar um ciclo virtuoso de desenvolvimento, que combina um quadro macroeconômico estável com enraizamento da democracia e da inclusão social, dinamização do mercado doméstico, expansão do crédito e grande potencial de investimentos em infraestrutura e revitalização industrial. Quando o mundo inteiro busca novos modos de desenvolvimento sustentável social e ambientalmente, novos paradigmas produtivos e inovativos e atividades motoras do dinamismo e, em seus próprios termos, novas convenções do desenvolvimento. Quando o BNDES e demais bancos oficiais são convocados para atuar de modo ainda mais vigoroso com o objetivo de contra-arrestar os impactos negativos da crise internacional e de formular novas propostas para o desenvolvimento de longo prazo. E quando uma nova geopolítica mundial se configura, acompanhada da reestruturação dos organismos internacionais de financiamento, exigindo novos papéis e formas de atuação dos bancos de desenvolvimento, individualmente e em conjunto, reunindo diversos países, como é o caso de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (Brics). 

Rendemos, assim, nossa homenagem a esse grande brasileiro que dedicou a vida ao desenvolvimento. Como comprova este volume, seu importante legado ao entendimento do desenvolvimento produtivo e inovativo, especialmente no Brasil e em países latino-americanos, nos oferece alento e, acima de tudo, valiosas lições. Lições estas que em muito nos auxiliam a compreender os desafios do futuro, assim como ajudam a desenhar novas políticas voltadas para as oportunidades que se descortinam. 

Bom proveito deste mergulho no patrimônio precioso de conhecimentos que Fabio construiu e nos legou.

Inovação e desenvolvimento: a força e...

1. Introdução 

As noções de que o desenvolvimento econômico e social resulta de mudanças qualitativas e de que nessas transformações a endogeneização da capacidade de promover inovações tem um papel central incluem-se entre as principais...