Morto

Quase morreu. Estivera no banho – um longo chuveiro. No banho, dizia sempre, tinha suas melhores idéias Era um lugar protegido. Na verdade, estava furiosa. Também se sentia culpada por estar furiosa. Enfim, era uma mulher liberada, madura e independente e sabia que essas coisas acontecem com todo mundo.

Com Marcelo não. Durante a dúzia de anos de casamento fora um relógio, sem nunca atrasar. Um relógio suíço, na infalibilidade e no afeto. Repercorreu a guerra cruenta que levavam e constatou que perdera a última batalha. Marcelo tinha fazendas e o filho fora estudar em Viçosa. Mas a última batalha não era a última.

Passara muito tempo olhando-se no espelho, buscando o que Fuad vira. Não estava mal para quase quarenta anos. Os quadris podiam ser mais finos – devia perder três quilos – mas tudo somado… Era também uma grande profissional.

Olhando os olhos achou o que viu em Fuad. A tristeza do olhar. Não era bonito, mas não fora feio. Envelheceu mal, o atleta envelopado em gordura. Mas ainda atraente. Um turcão. Sempre gostou de homens grandes.

Mas era o olhar. A melancolia que subia quando ele baixava a guarda. Ao ver os resultados dos pesquisadores jovens. Foi um cientista de brilho promissor. Largou a universidade pela firma e a administração apagou o brilho. Mas não o sentimento – era capaz de entender um bom trabalho e de saber que nunca mais faria algo semelhante. E não era um executivo brilhante. Hesitava e liderava mal.

Talvez por isso gostasse dele. Pela sua fraqueza. Marcelo também era um triste. Menos na cama.

Também porque gostava da admiração que via nos seus olhos. Especialmente quando achava que ela não percebia.

Enquanto enxugava os cabelos recapitulou a tarde. O Congresso foi, como esperava, um tédio. E estava chovendo, o que, por alguma razão, a enterneceu. E Fuad ali, depois de apresentar os trabalhos da firma, que apenas pajeava, com aquele olhar nu. Haviam descido para tomar um uísque no bar do hotel e ele, de repente, pegou sua mão. Sabia que era casado e, antes que ele dissesse algo irreparável, concordou.

Para, ali no motel, tudo acabar assim. Em nada. Ele suando, murmurando desculpas e ela, no fundo, furiosa.

Aí, quase morreu.

Saindo, enrolada na toalha, viu-o. Deitado na cama. Nu. Morto.

Os olhos revirados, a boca aberta.

Em nenhum momento duvidou da morte acabada. Nem tentou respiração artificial.

Ficou ali, olhando. A toalha caiu e nem se deu conta. Só via a morte, refletida em todos os espelhos.

Só depois notou a ereção, a notável ereção. Refletida por todos os lados.

A ironia deu-lhe um tapa.

Se tivesse conseguido antes, talvez não tivesse morrido. Voltou correndo para o banheiro e, entre soluços, vomitou convulsivamente a alma.

No quarto, sem olhar, foi direto para a bolsa e acendeu um cigarro. Viu-se no espelho e levou um susto. Não podia ficar assim.

Devia, em algum lugar, ter o número da casa. Surprise, minha senhora! Venha, por favor, recolher o cadáver de seu marido no Motel Caliente. Podia, então, fugir. O carro era dele, mas, mesmo com chuva, acabaria por achar um táxi.

Recolocou o fone no gancho. Sentou-se na cama. Olhando para o rosto de Fuad, evitando mais em baixo.

Não podia fazer isso com ele. A mulher era-lhe indiferente. Fuad nunca se referira a ela com uma palavra de ternura ou amizade – apenas para comentar sua insatisfação com o padrão de vida que levavam. E ele não devia ganhar mal! A firma esfolava, mas pagava bem a perda de juventude. Vira-a apenas uma vez, em uma festa da empresa. Uma perua, carregada de jóias e pintura.

Mas imaginou os comentários. Para sempre Fuad seria lembrado como o que morreu no motel. Morreu trepando. De pau duro. Mal saberiam.

Comendo quem? Aí bateu o pânico. Não podia fugir. Mesmo que passasse pela portaria. Teria antes que pagar, com o seu cheque, com o seu nome impresso. Mesmo que passasse e conseguisse um táxi. Com chuva? Na Niemeyer? A mulher faria um escândalo. Mesmo que não fizesse, acabariam por descrevê-la. E todos, no Departamento, sabiam que foi ao Congresso com Fuad.

Emprego estava muito difícil. Como aquele, então…

Por Fuad e por ela mesma.

Vestiu-se toda. Penteou o cabelo e maquiou-se.

Pegou o telefone e mandou chamar o gerente. Peremptória. Freguesa com problemas.

Foi esperar na antessala, fumando.

O gerente era de meia-idade, baixo, troncudo, careca. Muito preocupado, mas delicado.

Temos um problema, comunicou. Seca. Como se fosse no laboratório. Para se controlar. E, abrindo a porta, fez-lhe ver.

– Moça, a senhora!

Mas o seu olhar cortou outros comentários. Coçou a calva.

-É. Temos um problema.

Disse-lhe logo que ele era casado e que ela não era a mulher dele. O gerente deu um suspiro profundo e voltou a coçar.

Sentaram-se no pé da cama, olhando para Fuad, com seu ponto de exclamação plantado no meio.

Por fim, ela sugeriu:

– Não acho uma boa ideia chamar a família

O gerente concordou com entusiasmo.

Sentiu alívio e vazio, sem saber o que fazer. Que, por uma vez na vida, o outro tomasse decisões.

-Foi coração, não foi?

Concordou e o homenzinho animou-se.

-Então podia ter acontecido aqui ou em outro lugar qualquer.

Seguiu concordando.

-Então, moça, vai ter acontecido.

Estava definitivamente animado.

-Vamos vestir, colocar no carro e deixar em algum lugar perto da casa dele. O coração falhou no caminho de casa.

-..e…

Apontou para Fuad. Para o meio.

-Bom, minha senhora, isso é mais seu departamento que o meu.

Sentiu o calor subindo e, ríspida, mandou-o virar-se. Aí viram-se no espelho e, sem se poderem controlar, quebraram a rir. Mesmo assim, o gerente teve a delicadeza de ir ao banheiro.

Prendeu a respiração, como para um mergulho, mas não teve coragem. Procurou uma toalha, mas estavam no banheiro e teve vergonha do gerente. Pensou em fechar os olhos, mas ficou com medo de errar. Então, com um olho só, o mais míope, pegou-o com firmeza. Para seu alívio, amainou na hora.

Vestiram-no todo. O gerente, percebeu, era um artista. Cuidadoso com os detalhes. Como era o laço da gravata, simples ou duplo? Era melhor deixar afrouxado, porque, na hora, isso era a primeira coisa que alguém fazia. E nos bolsos? A carteira de dinheiro ia no paletó ou na calça? E o talão de cheques?

Temia a descida para a garagem. Sugeriu ao gerente que pedisse ajuda para carregá-lo, mas ele abanou a cabeça.

-Quanto menos gente souber, melhor. Isso é fogo no cerrado em tempo de seca.

Para sua surpresa, jogou-o sobre os ombros e, mesmo bufando e cambaleando um pouco, foi até a garagem. Há muito tempo não via um homem tão forte.

Enquanto ela abria a porta do carro e ajeitavam Fuad no banco do passageiro, ele explicou, com orgulho, que na juventude foi campeão de luta. Não entendeu que tipo de luta, mas não se importou.

O gerente estendeu-lhe a mão, a palma virada para cima e olhou-a firme. Como não entendesse, foi mais claro.

-A conta, moça.

-Vou ter que pagar?

-Em primeiro lugar, a senhora e o moço aí usaram o motel. Em segundo, o que faço com os meus registros? Isso não dá para ser cortesia da casa.

Mesmo sendo chamada de senhora, com toda discrição, sem ter seu nome indagado (o de Fuad ele vira na carteira), ia ter que se revelar. Pagou em cheque.

Fez menção de entrar no carro e recuou. Tampou o rosto, escondendo a ausência de lágrimas.

-Não posso. Não tenho condições de dirigir com ele ao meu lado. E depois, como vão acreditar que ele passou para o banco do passageiro? Eu não tenho força para puxá-lo para o lado do motorista!

A calva voltou a ser coçada. E o gerente decidiu ir junto. Primeiro queria ir seguindo no seu carro, mas ela fincou pé que não ia sozinha com Fuad.

A chuva continuava e foram para a Barra. Ia no banco de trás, apertada de medo. Fantasiava uma blitz da Polícia ou que algum conhecido cruzasse no sentido contrário. O gerente resmungava contra a chuva, em contraponto com os limpadores de para-brisa.

Fuad, felizmente, não morava na praia e acharam uma rua deserta e escura, perto de sua casa, onde estacionar o carro. Juntos, empurrando e puxando, passaram-no para o lado do motorista.

Ele teve que segurá-la para que não corresse.

A água corria-lhe pelos cabelos e entrava pelo corpo. Sentia os pés afundando em poças, mas não conseguia enxergar. Seguia-o. Até que viu um telefone e soube que não podia simplesmente deixá-lo lá, naquele carro escuro, embaixo da chuva.

Olhou-a como louca, quando pediu um cartão. Mas ficou esperando enquanto ela chamava a Polícia e avisava que havia um homem caído num carro. Demoraram a achar um táxi e ele a levou até em casa. No percurso, ele elogiou-lhe a coragem. As lágrimas destamparam

Tomou um banho quente e meteu-se na cama. Nem ligou a televisão, que sempre enchia a casa de som. Sentia-se febril, mas chorar no ombro do gerente tinha-lhe feito bem. Ao despedir-se, ele lhe dera um cartão. Yan de Almeida.

Na manhã seguinte estava gripadíssima, rouca e com febre. Telefonou para o escritório e comunicaram o falecimento de Fuad. O coração. Um enfarte fulminante. No carro, a caminho de casa. O enterro era às cinco, no São João Batista. Colocariam o nome dela no anúncio fúnebre do Departamento.

Passou dois dias de cama. O filho telefonou-lhe de Viçosa e desejou-lhe melhoras, mas não se ofereceu para ir ajudá-la.

No terceiro dia, voltou ao trabalho.

A morte de Fuad ainda era notícia, mas, muito mais, era a especulação de quem iria sucedê-lo na Chefia. Percebeu que era cotada. Comentou o Congresso e a participação de Fuad, sua última contribuição para a empresa.  Tentou concentrar-se no trabalho, mas a gripe ainda restava. Acabou saindo mais cedo.

No quarto dia ficou em casa, mas no quinto e sexto voltou ao trabalho. No sétimo, dia da missa, foi nomeada Chefe.

A missa foi concorrida. A família era grande e o Departamento compareceu em peso. Achou que não teria coragem de cumprimentar a viúva e os filhos. Mas não podia evitar, agora que tinha tomado o lugar do morto.

Sentiu-se tonta quando saiu da fila e pensou estar enlouquecendo quando, ao fundo da igreja, viu a silhueta troncuda do gerente, Yan.

Coçou a cabeça quando a viu aproximar-se e, tomando-a pelo braço, comentou:

-Era meu dia de folga e fiquei curioso de ver o que tinha acontecido. Vi o anúncio no jornal. Bom que deu tudo certo.

Parecia genuinamente preocupado com o estado dela. Físico e mental.

A igreja era perto de sua casa e tinha medo de voltar e ligar a televisão.

Convidou-o para tomar um café e descobriu que tinham várias coisas em comum, como uma paixão por chorinhos…