O sistema de inovações em uma economia monetária

Fabio S. Erber, In: J.E. Cassiolado; H. Lastres. (Org.). Globalização e inovação localizada: experiências de sistemas locais no Mercosul. 1ed.Brasília: IBICT/MCT

Este artigo é parte de uma agenda de pesquisa sobre sistemas nacionais e locais (regionais e setoriais) de inovação derivada da abordagem keynesiana de uma “economia monetária”. Ele é composto por quatro seções, além da introdução. Cada seção apresenta uma breve exposição analítica e algumas sugestões de pesquisa. A primeira mostra, de forma axiomática, uma visão sintética de uma “economia monetária”, na perspectiva pós-keynesiana. A seguir, comenta a compatibilidade desta visão com a neo-schumpetriana. A segunda seção enfoca o investimento em tecnologia em uma ótica microeconômica, dentro da perspectiva monetária, o que implica em tratar esse investimento como parte de um portfólio. A terceira seção discute as instituições e as políticas estatais que afetam os investimentos em tecnologia. A última seção situa a abordagem apresentada anteriormente no âmbito dos estudos sobre sistemas de inovação. Dado o público a que se dirige, o artigo supõe a familiaridade do leitor com a literatura neo-schumpeteriana e, especificamente, com a leitura que trata de sistema de inovação.

1. Introdução

Este artigo apresenta uma agenda de pesquisas sobre sistemas nacionais e locais (regionais e setoriais) de inovação derivada da abordagem keynesiana de uma “economia monetária”. O artigo é parte de um processo de pesquisa teórica que se encontra em suas etapas iniciais. Portanto, suas conclusões teóricas têm um caráter fortemente conjectural – razão adicional para levá-las ao debate com especialistas que compartilham os mesmos interesses. Da mesma forma, as sugestões de pesquisa são nada mais que indicativas – visam a abrir caminhos e não mapear o terreno.

O artigo é composto por quatro seções, além desta. Cada seção é composta por uma breve exposição analítica e algumas sugestões de pesquisa. A primeira apresenta, de forma axiomática, uma visão sintética de uma  “economia monetária”, na perspectiva pós-keynesiana. A seguir, comenta a  compatibilidade desta visão com a perspectiva neo-schumpeteriana. A segunda seção enfoca o investimento em tecnologia por uma ótica microeconômica, dentro da perspectiva monetária, o que implica tratar esse investimento como parte de um portfólio. A terceira seção discute as instituições e políticas estatais que afetam os investimentos em tecnologia. A última seção situa a abordagem apresentada anteriormente no âmbito dos estudos sobre sistemas de inovação.

Um caveat é oportuno: dado o público a que se dirige, o artigo supõe a familiaridade do leitor com a literatura neo-schumpeteriana e, especificamente, com a literatura que trata de sistemas de inovação.

2. Os axiomas da Economia Monetária e o Programa de Pesquisas Neo-Schumpeterino

Uma economia monetária pode ser caracterizada a partir de cinco axiomas (Carvalho 1989):

  1. Axioma da Produção: a produção é realizada por firmas, com o fim de venda em mercados. A firma é um ator social de pleno direito, uma instituição que não pode ser reduzida a seus proprietários. A firma é um locus de acumulação de capital, cuja função-objetivo é a busca de riqueza, definida em termos monetários.
  2. Axioma da Decisão: O poder de decisão é diferenciado segundo a classe dos agentes. As decisões empresariais são as que regem a operação de uma economia monetária porque são os empresários que controlam o capital.
  3. Axioma da Inexistência da Pré-conciliação: A instituição de pagamentos em moeda implica que a coordenação entre produção e consumo só se dá após a ocorrência da primeira. Assim, a coordenação pode não ocorrer. A possibilidade de falta de coordenação é agravada porque a moeda não é apenas um meio de pagamentos – é um ativo que pode ser retido pelos agentes econômicos, por vários motivos (especulação, incerteza etc.).
  4. Axioma da Irreversibilidade do Tempo e da Incerteza: O tempo em uma economia monetária é irreversível. Os capitalistas agem em função de expectativas formadas em um quadro de incerteza substantiva (não-ergódica), que não pode ser eliminada pelo acréscimo de informações. A frustração de expectativas reforça o axioma anterior. O tempo e a incerteza são especialmente relevantes para as atividades de investimento. Para restringir a incerteza, a economia capitalista desenvolve instituições e normas de comportamento empresariais. A preferência pela liquidez constitui um dos principais mecanismos utilizados pelos empresários para lidar, simultaneamente, com a irreversibilidade do tempo e com a incerteza.
  5. Axioma das Propriedades da Moeda: As funções cumpridas pela moeda, especialmente de servir de unidade de conta para a realização de contratos e de reserva de valor (via preferência pela liquidez), requerem que a moeda tenha elasticidades de produção e substituição nulas ou negligenciáveis.

Usando a caracterização de “programa de pesquisa” de Lakatos (1970)1, os axiomas anteriormente resumidos podem ser interpretados como o “núcleo central” do programa de pesquisa pós-keynesiano. O núcleo central neo-schumpeteriano compartilha diversos aspectos do núcleo pós-keynesiano, mas apresenta também diferenças importantes:

  1. Os axiomas 1 e 2 de Carvalho são plenamente compartilhados pelo programa neo-schumpeteriano.
  2. O enunciado geral dos axiomas 3 e 4 aplica-se ao programa neo-schumpeteriano. Em consequência, nos dois programas, não há no capitalismo tendência ao equilíbrio de pleno emprego – os desequilíbrios são inerentes ao capitalismo. Da mesma forma, os dois programas enfatizam a importância de comportamentos empresariais e instituições para lidar com a incerteza e a irreversibilidade do tempo. No entanto, a causalidade é distinta. Enquanto no programa pós-keynesiano enfatiza-se a moeda, no programa neo-schumpeteriano a ênfase recai sobre inovações. Em consequência, o cinturão protetor do primeiro programa tende a priorizar aspectos de demanda efetiva (monetária), a um nível alto de agregação2. Em contraste, o programa neo-schumpeteriano parte da diversidade dos agentes e utiliza categorias mesoeconômicas como o setor e o paradigma tecnológico para lidar com essa diversidade, visando a analisar as transformações na estrutura produtiva e institucional.
  3. O axioma 5 pertence apenas ao programa pós-keynesiano. No paradigma neoschumpeteriano, a moeda tem funções de meio de pagamento – não se exploram suas funções de unidade de conta para a realização de contratos nem seu papel como ativo (a preferência pela liquidez). Em consequência, a moeda não tem natureza temporal – o que é surpreendente em um programa de pesquisas que privilegia o tempo.

A principal conjectura teórica deste artigo é que as semelhanças entre os dois programas de pesquisa são substantivas e que as diferenças  são reconciliáveis3.

Nada impede, do ponto de vista teórico, que o programa pós-keynesiano incorpore o tratamento sistemático da inovação. Em seu Treatise on Money (1930), escrevendo sobre as flutuações da taxa de investimento, Keynes comentava que “Professor Schumpeter’s explanations of the major movements may be unreservedly accepted” (p.96). É instigante que, 50 anos depois, Joan Robinson comentasse: “A influência das mudanças na tecnologia sobre a demanda por mão-de-obra, sobre a acumulação e sobre a demanda efetiva tem sido muito pouco discutida. Este é um sério defeito do nosso aparato teórico, pois a evolução da tecnologia é o mais importante de todos os aspectos do desenvolvimento capitalista”4.

Analisando as contribuições de Keynes e Schumpeter, Vercelli (1991) argumenta que “an attempt at synthesis is urgently needed if we want to overcome the limitations of both theories” (p. 210). Analisando o papel da moeda nos dois autores, Vercelli reconhece as substanciais diferenças no seu tratamento, mas conclui que “the two approaches are complementary in their essential meaning, though not in language and detail. In both cases the basic role of money is seen as that of giving the economic system a certain degree of strucutural instability which facilitates discontinuous structural changes. Those examined by Schumpeter are mainly physiological in the sense they make possible the survival and expansion of the capitalist system; those examined by Keynes are mainly pathological  in the sense they obstruct the performance of an individualistic economic order” (ibid.)

Examinando as relações entre ordem e mudança no sistema capitalista, Dosi e Orsenigo (1988) dão um passo adiante na proposta de complementaridade entre os dois programas de pesquisa, ao sugerir que “what underlies the ‘Keynesian machine’ linking investment, effective demand and income growth are micro (evolutionary) processes, which in turn  are shaped and constrained by the specific characteristics of technologies and institutions” (p.29). Esta sugestão abre uma riquíssima linha de pesquisa, até agora inexplorada (pelo menos ao nível de conhecimento do autor).

As propostas aqui apresentadas partem da constatação de que os núcleos centrais dos dois programas de pesquisa compartilham aspectos importantes em termos de visão da dinâmica capitalista, à semelhança dos autores citados anteriormente. No entanto, elas fazem o caminho inverso ao proposto por Dosi e Orsenigo, pois propõem a incorporação da moeda como unidade de conta e como ativo determinante dos investimentos ao programa neo-schumpeteriano. As seções seguintes apontam a conveniência e a viabilidade desse último passo, tratando, especificamente, do investimento em tecnologia. Seguindo a démarche evolucionista, parte-se do micro para o mesoeconômico e, a seguir, para o macro.

A incorporação da inovação no programa pós-keynesiano e a inclusão da moeda no programa neo-schumpeteriano não levam, necessariamente à síntese demandada por Vercelli. Pelo menos a curto prazo,  correspondem mais a um movimento de fertilização cruzada entre os dois programas de pesquisa, não implicando desaparecimento das especificidades de cada programa, que seguiriam retendo seus focos prioritários e os seus respectivos núcleos centrais. No entanto, permitiriam que os dois programas de pesquisa ampliassem o seu cinturão protetor, aumentando a gama de fenômenos que conseguem tratar, provando ser “programas progressivos”.

3. O investimento em tecnologia em uma Economia Monetária: um enfoque microeconômico

Conforme apontado anteriormente, em uma economia monetária, a moeda é um objeto de retenção. Ou seja, mesmo em uma economia muito simples, os investidores podem sempre escolher entre moeda e outro tipo de ativo – estão sempre em face de um portfólio de investimentos. Em sistemas econômicos complexos, o portfólio de investimentos é correspondentemente diversificado.

O primeiro passo em uma análise de portfólio consiste na identificação das características das várias alternativas de investimento, tais como:

  • Taxa de retorno esperado e sua variabilidade.
  • Taxa de retorno mínima (hurdle rate) para diversos tipos de investimentos.
  • Condições de apropriação de resultados.
  • Incerteza, distinguindo entre as fontes de incerteza: técnica, econômica, financeira.
  • Escala mínima de gastos.
  • Fontes e condições de financiamento – possibilidades de estratégias cooperativas.
  • Timing dos fluxos de gastos e receitas – o que implica considerar as possibilidades de realizar gastos de forma sequencial (com efeitos de aprendizado) e em níveis crescentes, visando a reduzir a incerteza e a irreversibilidade. Do lado das receitas, implica a consideração das estratégias de concorrentes efetivos e potenciais e das consequências de entrada diferida no tempo em dados mercados (p.ex., estratégias de líder vs. seguidor).
  • Liquidez e especificidade dos ativos, que estão relacionados à irreversibilidade e histerese do investimento.

A lista acima, de natureza puramente indicativa, registra várias características do investimento em tecnologia destacadas pelos autores neo-schumpeterianos (p.ex. Dosi, 1988). As mesmas características são enfatizadas pela literatura moderna de finanças (p.ex. Dixit e Pyndick, 1994). Em um nível mais alto de abstração, há forte convergência entre as duas literaturas no sentido de ver a firma como um conjunto de ativos, estruturado por rotinas, que origina um conjunto de opções de escolhas estratégicas (veja-se Teece e Pisano, 1994, para a perspectiva neo-schumpeteriana; Bowman e Hurry, 1993, para uma análise financeira).

Duas implicações podem ser derivadas da análise anterior para o estudo de sistemas de inovação:

  • Em primeiro lugar, pode-se pensar na construção de um portfólio específico de investimentos em tecnologia, baseado na diferenciação das características dos diversos tipos de investimento nessa área – p.ex., investimentos destinados a melhorias de qualidade e produtividade são distintos de investimentos em P&D em termos de incertezas, timing e imobilização, demandando estruturas de financiamento (fontes e condições) distintas. Este portfólio e, mais especificamente, as prioridades atribuídas pelas empresas às diversas alternativas podem constituir uma forma mais precisa que a habitual, de caracterizar as estratégias tecnológicas das firmas. A etapa seguinte seria identificar a prevalência regional e setorial dessas estratégias, de forma a caracterizar sistemas setoriais e regionais de inovação. O mesmo procedimento poderia ser adotado no nível nacional. A mesma sistemática pode ser seguida para lidar com problemas de diferenciação de estratégias tecnológicas de acordo com outras variáveis, como o tamanho e a origem da propriedade da firma, diferenças frequentemente apontadas pela literatura neo-schumpeteriana. Finalmente, esse tipo de procedimento parece bastante adequado para comparações internacionais, p.ex., no âmbito dos países do Mercosul.
  • Em segundo lugar, a abordagem anterior situa os investimentos em tecnologia no seu devido contexto, setorial, regional e nacional. Na perspectiva aqui proposta, os investimentos em tecnologia constituem parte de um portfólio mais amplo, sendo importante estudar suas relações – positivas e negativas – com as demais alternativas de investimento. Analogamente ao proposto acima, este tipo de estudo pode ser feito em bases setoriais, regionais e nacionais ou agregando as empresas segundo critérios de tamanho e propriedade. Prestase, igualmente, a comparações internacionais.

Por exemplo: é conveniente, em economias crescentemente monetárias do ponto de vista financeiro, saber se o aumento de rentabilidade de aplicações em títulos implica redução dos investimentos em tecnologia (diferenciando os vários tipos de investimento em tecnologia, conforme sugerido anteriormente) ou se os investimentos em tecnologia são independentes do resto do portfólio, obedecendo a rotinas do tipo “investimos em P&D x% do faturamento”. Neste último caso, seria conveniente saber se a independência aplica-se a gastos incrementais ou se vale também para expansões substanciais do investimento em tecnologia. Parece provável que o cálculo de portfólio aplique-se a estes últimos casos. Ou seja, é possível que a visão de portfolio seja mais pertinente a situações de empresas com pouca tradição em investimento em tecnologia do que a empresas em que esse investimento foi rotinizado. É possível ainda que a firma siga um padrão “piso” e “teto” para seus investimentos em tecnologia, em que existe um investimento mínimo que tem de realizar para permanecer no mercado (o “piso”) e que tenha um “teto” para esses  investimentos. Esse teto pode ter determinantes econômicos (p.ex. o tamanho da firma) e financeiros – como as alternativas de investimento. Nesse padrão, o piso seria independente das alternativas de investimento, mas o teto seria afetado por essas alternativas. Seguindo essa linha de conjecturas, pode-se hipotetizar que, em sociedades em que as empresas têm pouca tradição de investimento em tecnologia e estes investimentos estão próximos ao piso, as alternativas financeiras têm influência maior. Se estas alternativas são muito atraentes, o nível de investimento em tecnologia permanecerá baixo, constituindo um exemplo canônico de afastamento entre a racionalidade privada e a social5.

Os exemplos podem ser multiplicados. Parece importante estudar como se articulam investimentos em capacidade produtiva com vários tipos de investimento em tecnologia. No entanto, para o propósito de justificar uma abordagem do investimento em tecnologia que o considere como parte de um portfólio, os exemplos já elencados talvez sejam suficientes.

Uma propriedade dos estudos aqui propostos é a possibilidade de tratá-los quantitativamente, através de modelos, conferindo maior precisão e legitimidade (pelo menos acadêmica) aos seus resultados.

4. Os determinantes estruturais do Portfólio

O conceito de sistema de inovação apoia-se em relações estruturais – notadamente entre a estrutura produtiva e a estrutura institucional. A perspectiva proposta adiciona alguns elementos a esse quadro estrutural, a partir do questionamento dos parâmetros de determinação do portfólio.

Parte destes parâmetros já é tratada pela literatura neo-schumpeteriana, especialmente os parâmetros derivados dos distintos paradigmas tecnológicos e aqueles de natureza setorial que servem para caracterizar a necessidade de recursos para os investimentos em tecnologia (p.ex., definindo as escalas mínimas de P&D em certos setores ou o grau de incerteza associado a certos paradigmas). A perspectiva monetária aqui proposta enfoca outros determinantes, abaixo discutidos:

  • O sistema de preços, notadamente sua estabilidade e a credibilidade que os agentes depositam nesta. Este é um determinante fundamental do horizonte de tempo e da incerteza dos investimentos, enfatizado pela moderna literatura sobre investimentos (Dixit e Pyndick, 1994). Conforme apontam Fanelli e Frenkel (1996), ambientes de inflação alta e crônica, como os que prevaleceram até recentemente na Argentina e Brasil, produzem uma seleção de comportamentos microeconômicos específicos, orientados para o curto prazo e aplicações de alta liquidez. Pode-se conjecturar que a concentração de investimentos em tecnologia em atividades como melhorias de qualidade tenha o mesmo determinante. A pesquisa sobre os efeitos dos planos de estabilização nos dois países sobre o portfólio de investimentos, especialmente sobre o papel ocupado neste por investimentos em tecnologia de maior prazo de maturação, é obviamente oportuna.
  • O regime monetário, definido como o conjunto de regras institucionais e práticas das autoridades monetárias que presidem a criação de moeda e quase-moeda.
  • A completude e procedimentos (taxas, prazos, garantias, reciprocidades) dos mercados de crédito e capitais, especialmente no que diz respeito ao financiamento de investimentos e à oferta de aplicações alternativas. Uma das características do sistema de crédito e capitais em países latino-americanos é a falta de mecanismos que forneçam recursos às empresas para investimento em tecnologia. Mesmo onde existem instituições voltadas para esse fim, seus procedimentos operacionais são frequentemente inadequados a programas de prazo mais longo e dotados de maior grau de incerteza.
  • O regime de regulação dos mercados de crédito e capitais, ou seja, o conjunto de regras e práticas institucionais das autoridades governamentais, especialmente no que toca os investimentos. O regime de regulação direciona a oferta de crédito e capital para determinados tipos de aplicações, cuja estrutura pode ser mais ou menos favorável ao investimento em tecnologia.
  • O regime fiscal atinente aos investimentos (p.ex. as normas referentes à depreciação, deduções e incentivos fiscais), que pode estimular ou não os investimentos em tecnologia em confronto com outras aplicações.

Os dois primeiros parâmetros são atinentes principalmente ao exame de sistemas nacionais de inovação. No entanto, em países como o Brasil e a Argentina, em que há longa tradição de políticas setoriais e regionais e os mercados de crédito e capitais são incompletos e não têm abrangência nacional, os três últimos parâmetros devem ser considerados na  pesquisa de sistemas de inovação setorial e regional, bem como nos estudos que recortam o universo de empresas por tamanho e propriedade.

Entre os parâmetros anteriormente destacados, a literatura neo-schumpeteriana tem enfocado principalmente os atinentes ao crédito – o que é consistente com a importância atribuída por Schumpeter a esse fator na dinâmica do capitalismo6. No entanto, essas análises estão dirigidas a aspectos diferentes dos anteriormente salientados. Assim, enquanto o foco da abordagem aqui proposta é o da seleção de investimentos, análises como as de Dosi (1990) postulam que “the question of the influence of financial structures on innovation and industrial dynamics turns out to concern the influence that financial structures exert on the rates and modes at which firms learn and the rates and criteria on which particular environments select among firms and among technologies” (p.309). Da mesma forma, no capítulo do livro, já clássico, de Lundvall (1992), dedicado ao papel do financiamento nos sistemas nacionais de inovação, Christensen (1992) concentra-se no problema de como “different institutional set-ups of financial systems will support or limit the development of  relations between the lender and the borrower” (p.147).

O comentário anterior não é detrimental dos elucidativos resultados obtidos por esses autores, notadamente a discussão de que arranjos institucionais do sistema financeiros fomentam a inovação7, que são de grande utilidade no exame de sistemas de inovação,  mas visa, apenas, a sublinhar as diferenças de tratamento e a complementaridade de resultados.

Existe, porém, na literatura neo-schumpeteriana uma flagrante omissão quanto aos dois primeiros determinantes acima citados (a estabilidade e credibilidade do sistema de preços e o regime monetário)8, devido, provavelmente, à omissão da natureza temporal da moeda, já comentada. Embora atribua-se ao sistema de preços papel de destaque entre os mecanismos de seleção, sua estabilidade e confiabilidade não são questionadas, nem, portanto, os efeitos que esses atributos podem ter sobre o sistema de inovações.

Alguns desses efeitos foram anteriormente sugeridos, cuja relevância para o estudo de sistemas de inovação em países como o Brasil e Argentina parece ser alta. Aqui, pretende-se enfatizar que essa omissão não é acidental nem deriva de fatores históricos, como o fato de a maioria dos autores desta corrente não ter vivido experiências de economias de alta e crônica inflação. A conjectura aqui proposta é que esta omissão é inerente à natureza da moeda no programa de pesquisas neo-schumpeteriano. Conforme sugerido na parte inicial desse trabalho, é possível que essa lacuna possa ser sanada pela incorporação dos atributos de unidade de contratos e reserva de valor da moeda ao núcleo central do programa neo-schumpeteriano. Espera-se que os argumentos expostos nesta seção e  na precedente confiram maior credibilidade a essa proposta.

5. O Estudo de Sistemas de Inovação

A ideia de um sistema de inovações tem grande apelo intuitivo, ao refletir a percepção de que existem múltiplos determinantes, inter-relacionados, da inovação. Como se sabe, o tratamento científico dessa ideia vem lutando com vários problemas de identificação. De um lado, alargou-se o campo das inovações que se busca explicar. Começou-se com tecnologia, rapidamente agregou-se à organização da empresa e agora abarca todo tipo de “inovação institucional”. A amplitude do conceito de instituição, mesmo na literatura sociológica, e a inclusão do “aprendizado” como objeto de estudo aumentaram ainda mais a abrangência do “sistema de inovações”. Em consequência, a demarcação do sistema de inovações – seus componentes e relações – varia consideravelmente9. Finalmente, a noção de sistema requer, para ser operacional, o estabelecimento de uma hierarquia entre os componentes do sistema – doutra forma  nada explica o que se passa pois tudo é relevante.  Tampouco essa hierarquia está caracterizada. É possível que, uma “teoria geral do sistema de inovações” simplesmente não seja factível, pelo saber enciclopédico que demanda. O conhecido conto de Borges sobre o mapa do Império talvez sirva de advertência.

A solução encontrada por vários pesquisadores, canônica do ponto de vista científico, é a de circunscrever o objeto de pesquisa. Um caminho adotado é o da limitação espacial – do sistema nacional aos sistemas regionais. Outro é o das atividades econômicas – os sistemas setoriais. Um terceiro caminho faz a limitação definindo a priori os componentes do sistema, a exemplo dos trabalhos liderados por Nelson (1992). Este artigo segue um outro procedimento, tomando um foco temático – o investimento em tecnologia pela empresa e construindo o sistema de inovações por meio dos determinantes dessa decisão.

Todos esses caminhos estão coalhados de trade-offs. Ganha-se algo com o foco mais apurado, mas as outras dimensões, ignoradas pelo foco, fazem-se presentes. Estudos setoriais e regionais fazem menção, inevitavelmente, a dimensões nacionais e estudos nacionais ao plano internacional. A abordagem aqui seguida não constitui exceção – a título de exemplo, pode-se mencionar que o nível de desenvolvimento do sistema científico e tecnológico afeta  os custos e incertezas do investimento em tecnologia. Da mesma forma, nas seções anteriores argumentou-se que alguns dos determinantes do investimento em tecnologia prestam-se a um tratamento setorial ou regional e outros são melhor tratados em nível nacional. A força intuitiva da idéia de sistema de inovações não é acidental – ela deriva da existência de complexas inter-relações entre todos esses níveis.

O que pode ser visto como um problema insolúvel – o do sistema de inovações – talvez possa ser mais bem entendido como uma recomendação de humildade, paciência e pertinácia, virtudes mais científicas que teologais. Através de abordagens parciais, reconhecidas como tais, talvez se possa, ao cabo de muitos estudos empíricos e de muita pesquisa teórica, chegar a um melhor entendimento de como essas várias dimensões do sistema de inovações se articulam.