Algumas lembranças de Fabio Erber

Ricardo A. C. Saur, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

The article does not intend to be an academic analysis of Fabio Erber’s work, but simple comments on his contribution to many aspects of Industrial Policy in Brazil, often underrated. It tries to recall one of the fields he has played a role, as usual with the discretion that characterized him. Much before Information Technology & Communication became a cultural commodity, Erber could see the importance of "Informatics" (as ITC was referred then) in the task of modernizing Brazil, and helped initiatives with his wise counsel and direct intra-government support. His modesty, discretion and commitment left a deep mark on those who had the privilege of working and learning together.

“INGEGNERI!”, “ECONOMISTE!”

Era assim, com entonação irreverente e carinhosa, que nos saudávamos todas as vezes que nos encontramos nos últimos trinta anos, até mesmo em ocasiões de ambiente mais formal.

Fabio e eu tínhamos um aspecto comum muito forte, que, além de uma duradoura amizade, nos unia mesmo nas raríssimas ocasiões em que discordávamos de alguma coisa: tínhamos nos conhecido por intermédio do saudoso José Pelúcio Ferreira, um de nossos maiores e mais expressivos gurus capazes de influenciar o pensamento de toda uma geração de jovens ávidos por desenvolvimento com justiça social. Tenho certeza de que muitas das qualidades que Fabio possuía foram muito influenciadas pelas conversas lapidadoras de Pelúcio, sempre eivadas de bom humor e total desprezo pela vaidade.

Não é à toa que os chineses ensinaram que crise e oportunidade andam juntas. Fabio começou em particular a nos ajudar com sua inteligência e perspicácia em uma ocasião de crise. Após o “choque do petróleo” na década de 1970, o país teve que adotar severas medidas de controle de importações e, sem pedir nem querer, vi-me de repente em uma inusitada posição de muita responsabilidade além de provocadora de enorme antipatia.

A Comissão de Coordenação das Atividades de Processamento Eletrônico (Capre), até então voltada inteiramente para racionalizar a compra e o uso de computadores no governo, foi convocada para a missão de examinar pedidos de importação de computadores, suas peças e periféricos, autorizando ou negando sua importação. É que essas importações estavam crescendo muito e já eram o terceiro maior item na pauta de bens. Um teto anual foi fixado para as autorizações (bem abaixo da demanda projetada) e, ao examinar esses pedidos, devíamos dizer “não” a aproximadamente 70% deles. Isso naturalmente ensejou uma tremenda pressão que só poderia ser atendida criando-se algum filtro técnico para examinar a real necessidade da importação, com um mínimo de erros, e estabelecer um grau de prioridades setoriais.

Fabio Erber ajudou-nos muito no Ministério do Planejamento durante todo esse período inicial e continuou atuando silenciosa e discretamente como um bom conselheiro informal durante os próximos anos.

Esse período (anos 1970) coincide com a compra, pela Marinha do Brasil, de modernas fragatas inglesas, que inauguravam uma nova geração tecnológica ao fazer uso intensivo de computadores para navegação e ataque. Os novos mísseis, como o Exocet, eram então disparados não mais por uma ordem da ponte de comando, mas por um comandante de tiro trancado em uma sala sem janelas, apinhada de telas de radar e várias engenhocas, tudo baseado em computadores. Na expressão de um almirante da ocasião, “sem os computadores, essas fragatas tornam-se meras caravelas”.

A Marinha de pronto enxergou a necessidade de “abrir essas caixas–pretas” e estabeleceu alguns programas de desenvolvimento, enviando oficiais ao exterior e preparando uma nova geração de comandantes capazes de entender esse novo patamar tecnológico que tornava obsoletas várias doutrinas e processos. Um desses programas foi acertado com o BNDE (ainda sem o S) por meio do Fundo de Desenvolvimento Técnico-Científico (Funtec, atual BNDES Fundo Tecnológico), destinado em sua versão oficial a projetar e fabricar um computador com tecnologia brasileira – mas, na realidade, mais preocupado em desenvolver uma base de engenharia e conhecimento dessas novas máquinas, buscando aproveitar o quase nada existente em nossa indústria eletrônica. Havia também um ambiente acadêmico estimulante, encontrado nos laboratórios de pós-graduação de algumas universidades pelo retorno de uma grande leva de gente que foi buscar seus mestrados e doutorados no exterior, mas nada se encontrava como um laboratório preocupado em conectar-se com nosso desenvolvimento industrial (como é antigo esse cansativo refrão de aproximar a academia e a indústria, nunca de fato estabelecido como política de Estado no Brasil).

Com o poderoso patrocínio do presidente do BNDE, Marcos Vianna, e a inestimável ajuda do grupo de Pelúcio e Fabio, foi possível montar com a Marinha um programa sério que conseguiu ao final produzir não só um modelo de computador que computava, mas principalmente uma nova linhagem de engenheiros e técnicos que uniram uma sólida base tecnológica dada pela academia a uma série de iniciativas que hoje seriam imediatamente rotuladas de “inovadoras e empreendedoras”. 

As discussões sobre Política Industrial que se desenvolviam no âmbito da agora poderosa Secretaria de Planejamento da Presidência da República, tendo à frente o Ministro João Paulo dos Reis Velloso, além de ensejarem vários programas de sucesso, criaram um ambiente favorável a novas ideias. Aos assessores diretos do ministro somavam-se o Presidente do BNDE, o Secretário-Geral Élcio Costa Couto, e naturalmente Pelúcio e Fabio. Um dos modelos mais estudados foi o adotado na França, conhecido como “Plan Calcul”, que serviu para que a informática (termo que substituiu definitivamente “processamento de dados”) fosse vista de forma mais estratégica, em um certo longínquo prenúncio do que anos mais tarde seria o advento da sociedade da informação.

A adoção de medidas de estímulo e proteção ao que se desejava fosse a indústria nascente de informática no Brasil, que foi tratada pela mídia como “reserva de mercado para computadores”, provoca até hoje discussões – no mais das vezes despidas de informação e dados reais e cheias de afirmações bombásticas sem base (como “nos atrasamos vinte anos”).

Fabio Erber sempre nos questionava sobre esses temas, cobrando os “porquês” dos fracassos e sucessos e, apesar de sempre disposto a dar seu apoio, mantinha uma admirável capacidade de se despir do discurso oficial e questionar, às vezes duramente, o caminho que estávamos seguindo. Mas, uma vez convencido pelos dados e argumentos, não se furtava a assumir posições contra ou a favor e, nesse caso, apesar de um certo ceticismo quase profético quanto à capacidade do governo pós-Geisel de dar continuidade à iniciativa, ele a apoiou quando enxergou suas consequências estratégicas.

A intervenção militar no novo setor com a criação da Secretaria Especial de Informática (SEI) misturou boas intenções com carreirismo e muito autoritarismo, trazendo disputas internas de poder entre os “coronéis do Figueiredo”, e o surgimento dos eternos “amigos do rei” que, nessas horas, enxergam possibilidades de “morder seu pedaço”. Mas isso é outra história que ainda precisa ser recontada.

Em uma coisa a “reserva de mercado” acertou em cheio: ela conseguiu abrir uma das caixas-pretas mais importantes da indústria de computadores, o software de sistemas operacionais. Hoje, todo garoto sabe o que significa software e todos os milhões de usuários dos PCs e Macs já ouviram falar de sua respectiva “plataforma” ou sistema operacional (ou “Windows” é um termo só para veteranos?). No início da computação, a ênfase pública era toda para o hardware, e o software era visto quase como algo secundário. Mas, tão logo começamos realmente a tomar conhecimento dessas novas tecnologias, a verdadeira importância do software ficou evidente.

Ao fim dos governos militares, apesar das intervenções e desperdícios de oportunidades trazidos pelo autoritarismo, constatou-se que aqui havia sido desenvolvido código de sistema operacional da melhor qualidade (Sisne, Sox) e que o nível de prática e ensino de programação estava par a par com os centros mais desenvolvidos (Estados Unidos, Japão, França e Inglaterra) e até à frente de vários países que não tinham essa expertise.

A noção de que realmente aprendemos a desenvolver software básico firmou-se com as acusações de empresas, como Microsoft e Data General, de que o software que havia nos produtos existentes, ou a serem lançados aqui, era cópia pirateada. Isso foi refutado de forma inequívoca, entre outras, pela estatal Cobra Computadores e pela empresa privada Scopus, até mesmo comparando-se trechos de código. Essa intensa pressão norte-americana ainda foi contida durante o governo Sarney pela atuação de pessoas como Renato Archer e Luciano Coutinho, mas, logo em seu início, o governo Collor cedeu de forma oportunística e acabou com a proteção à emergente indústria de informática no Brasil, que rapidamente desnacionalizou-se e quase desapareceu.

Foi esse tópico que me proporcionou novo e agradável encontro muitos anos mais tarde, quando Fabio era diretor do BNDES na gestão Lessa. 

Ao fim dos anos 1990, com a ideia de tornar o Brasil um exportador de software, foi estabelecida uma meta de exportar um milhão de dólares na virada do milênio, e criada a Softex com seu nome original (Sociedade para Fomento da Exportação de Software). Acreditava-se muito em produtos de software, conhecidos como software de pacotes, a serem comercializados por venda de cópias (exatamente como hoje se compra um aplicativo para seu tablet ou smartphone). Esse conceito era correto do ponto de vista técnico, pois tínhamos condições de competir com alta qualidade no desenvolvimento dos códigos para atingir o pacote-produto com um custo adequado. O problema é que, não havendo ainda a internet, os canais de comercialização eram semelhantes a supermercados, dependentes de marcas e de espaço em prateleiras. E aí se revelou nossa grande falta: não tínhamos marcas nem acesso às redes distribuidoras, nem experiência de penetração comercial para vender software-produto diretamente um a um ou mesmo por revendedores. Um dos melhores exemplos foi o caso dos programas de processamento de texto: os mais velhos recordam-se bem da qualidade do CartaCerta e do Redator, softwares totalmente desenvolvidos aqui e que foram esmagados pelos importados da época, mesmo de qualidade inferior.

O resultado desse esforço foi triste: na virada de 2000, não conseguimos nem um quarto da meta estipulada, e criou-se um clima negativo e desencorajador para exportar software.

Nessa mesma época – fim dos anos 1990 –, apareceu o famigerado “bug do milênio”. Até então, as milhares de linhas de código produzidas mundo afora utilizavam apenas dois dígitos para registrar o ano nos programas desenvolvidos. Inúmeros desses programas embutiam tarefas que tomavam decisões comparando dois anos e, com a virada do milênio, isso ficaria totalmente fora de controle ao fazer o computador pensar que o ano 2000 era antes de 1999… A imprensa ajudou muito a disseminar um medo de catástrofes, criando enorme pressão para algo ser feito com prioridade.

O resultado foi um certo pânico para correr contra o relógio e reprogramar todos os programas que fossem atingidos por tal bug, passando a utilizar quatro dígitos para codificar anos. Era uma tarefa repetitiva, de pouca lógica ou complexidade, mas muito, muito extensa. Além disso, era temporária – ninguém queria contratar mais programadores para ter que dispensar logo depois, nem parar seus desenvolvimentos deslocando a mão de obra internamente disponível. Resultado: essa demanda caiu como uma luva para as empresas indianas que constituíram “fábricas de software” imediatamente se movimentarem e explodirem em crescimento e lucros, criando o que se denominou de off-shore outsourcing, e um mito de eficiência e preços baratos. A erradicação do bug do milênio enquadrava-se favoravelmente até na diferença de fuso horário entre Mumbai e Nova York e na obediência cega dos codificadores que adotavam a mesma prática cultural de seus mantras.

No Brasil, em muito menor escala, ocorreu algo semelhante. Surgiram algumas novas e agressivas desenvolvedoras de software na esteira do bug, que se distinguiam exatamente por fugir dos “pacotes” e oferecer serviços de software na modalidade de fábrica. Somando-se a acelerada penetração da informática em todos os setores da economia, criou-se uma nova concepção para o que seria o futuro da indústria brasileira de software: uma oferta de serviços correlacionados ao software, porém, mais abrangente, capaz de tornar o uso da informática pelas empresas algo que vem somado a serviços administrativos ou de relacionamento com o público.

Nos primeiros anos do novo século, algumas das empresas nacionais que souberam aproveitar a onda do bug do milênio se interessaram em conhecer mais de perto o sucesso do modelo indiano e criaram uma associação no começo focada exclusivamente em fomentar a exportação de software e serviços correlatos. A criação da Brasscom foi uma construção delicada no início, pois estavam sendo convidados para colaborar dirigentes de empresas que competiam ferozmente no mercado nacional e que, naturalmente, se viam muito mais como “inimigos” que como “colegas no mesmo barco”. Tive o privilégio de colaborar intensamente nessa construção e conseguir que as desconfianças iniciais fossem superadas, permitindo conduzir, como primeira iniciativa, um convênio com a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), atualmente Agência Brasileira de Inovação, destinado a contratar, muito analogamente ao que fizeram os indianos, uma consultoria internacional de renome que produzisse um plano de ação conjunto governo federal-empresas privadas nacionais para conquistar uma parcela do mercado exterior nos próximos anos. 

Antes mesmo de essa questão terminar, como considerava a participação do BNDES imprescindível para tornar realidade qualquer plano que viesse a ser proposto, fui procurar Fabio Erber no Banco e propor uma conversa sobre o assunto. Com sua habitual franqueza, ele achou até graça e bem-humoradamente disse que não acreditava naquilo, que não via meios de competirmos com os indianos. Mas talvez pelos créditos de amizade e respeito profissional acumulados durante muitos anos, concordou em almoçar e ouvir.

Mostrei-lhe um paper inicial que havia sido elaborado por ocasião da fundação da Brasscom, já com alguns dados do mercado internacional e a penetração indiana respectiva e falei da experiência dos dirigentes nacionais que já estavam ligados na iniciativa, haviam visitado a Índia e estavam confiantes de que poderíamos ter um lugar nesse crescente mercado internacional. Como eu estava realmente entusiasmado pelo assunto, Fabio acabou por proporcionar uma chance de mudar de ideia, pelo método tradicional do Banco quando há um assunto novo e/ou controvertido: reuniões com técnicos de diversas especialidades do quadro do BNDES, nas quais, após uma apresentação, era feita uma verdadeira sessão inquisitória.

O resultado espelhou muito sua personalidade e seu comportamento: uma vez convencido da validade da iniciativa (sem precipitar-se e mantendo suas reservas de dúvidas a serem exploradas a seguir), Fabio passou a apoiar inicialmente uma investigação mais profunda e, com os resultados positivos, a ideia propriamente dita de tornar o Brasil um exportador de software e serviços correlatos.

Por seu intermédio, a Brasscom foi logo recebida pelo presidente Carlos Lessa, que, apesar de mostrar-se muito cético quanto ao sucesso, admitiu a validade da iniciativa e, a partir daí, o Banco sempre esteve presente e ajudou no desenvolvimento desse segmento.

Fabio poderia ter tido o comportamento tecnocrata de descartar algo que era naturalmente novo, arriscado e desafiador. Mas, suas convicções de Política Industrial, que tanto ajudaram o BNDES a retomar seu caminho após os excessos da época anterior, em que Política Industrial era um palavrão no governo e alguns dirigentes só sabiam falar em privatização, somaram-se sua curiosidade de pesquisador e cientista social que acabavam por dizer “me mostre” para só depois formar sua opinião executiva.

O Brasil é hoje um importante player no mercado internacional de outsourcing de software e serviços correlatos e muito se deve ao apoio dado pelo Banco, que, como outras decisões de Políticas com P maiúsculo, teve uma importante (e como sempre discreta) contribuição do economiste Fabio Stefano Erber.

Mas esta foi apenas uma, e das mais modestas, ainda que tão importante, das magníficas contribuições deixadas pela inesquecível figura do economiste Fabio Stefano Erber.