Política industrial no Brasil: um quadro analítico e algumas propostas.

Fabio S. Erber, IN: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1987.22p (Texto para discussao, n.136)

Este texto apresenta um quadro teórico-analítico que Erber utilizava como arcabouço metodológico para elaboração de suas propostas de política industrial. Ele parte do pressuposto de que as decisões sobre a indústria não fluem adequadamente dos mecanismos de mercado, dada uma política macroeconômica correta. Relembra das discussões de décadas sobre as imperfeições de mercado, a existência de mecanismos de causação circular e o fato de o desenvolvimento industrial ter sempre contado, não só no Brasil, mas também no mundo, com o apoio decisivo de participação do Estado. Não esqueceu de enfatizar também as consequências de mudanças radicais que vêm ocorrendo na base técnica mundial, que tem levado o Brasil e o mundo a uma grande concentração de renda. Na segunda seção, desenvolve conceitos (notadamente o de “paradigma tecnológico”) que explicitam as características e a dinâmica de uma estrutura industrial, e de “complexo industrial” que articula esses conceitos à intervenção do Estado, o que vem ocorrendo atualmente nos países desenvolvidos, que procuram se reindustrializar. A última seção trata do caso brasileiro, nesse artigo de 1987, sendo bastante interessante verificar que, as histórias factual e intelectual da industrialização brasileira nos mostram que alguns problemas continuam os mesmos, agora que há necessidade de reindustrializar o País – primeiro vencer os que foram bem-sucedidos nos períodos anteriores (que tendem a impor resistência a mudanças) e, a seguir, avançar e reformular a industrialização, além da infraestrutura (transportes, energia, etc.) No processo de industrialização anterior, e o mesmo deve acontecer agora com a reindustrialização, pois é típico da indústria, ocorreu a implantação de alguns setores “puxando”, pelas interdependências setoriais, o estabelecimento de outros, à sombra das restrições de divisas e ao amparo do Estado. Cabe enfatizar, no entanto que, o processo de constituição do tecido industrial no período de industrialização anterior não foi totalmente concluído, pois faltaram implantar os setores de ponta tecnológica e o conjunto de atividades que gera uma capacidade tecnológica além da necessária a operar plantas. Em algumas áreas de ponta, como a eletrônica, trata-se ainda de construir um novo complexo industrial, no qual a interdependência entre as indústrias é estabelecida por uma base técnica comum e onde a convergência de mercados tende a reforçar esta interdependência. Este complexo tende a invadir a base técnica dos demais complexos e, assim, constituir novos vínculos intersetoriais. Em outras áreas de ponta, como na química fina e na biotecnologia trata-se ainda de transformar alguns complexos já existentes numa ótica “estruturante”. A ação do Estado deve ser utilizada para aumentar a capacitação tecnológica, que exige uma visão integrada, abarcando a capacitação científica e a formação de recursos humanos. Podem, também, ser usados incentivos aos setores já implantados, pois devem ser articulados ao complexo científico-tecnológico. Embora o eixo da restrição de divisas tenha se deslocado do plano comercial para o financeiro, é previsível que o país necessite por um longo tempo de se preocupar com este problema. As transformações em curso na base técnica mundial e seus reflexos sobre a estrutura industrial brasileira levam à necessidade de retomada do debate sobre a estratégia de industrialização e dos meios de operacionalizá-la. Neste sentido, Erber sugere uma visão de planejamento integrado, mais amplo do que os usuais “Planos Industriais” elaborados nos Fóruns do MDIC, em face do impacto que a nova política deve ter na sociedade como um todo. O planejamento autoritário e arbitrário do passado não deve se repetir já que a “História não se repete a não ser como farsa”. O processo de planejamento integral proposto, deve ser fruto de pactos/convenções/ acordos abrangendo as mais diversas áreas (social, política, financeira, industrial, tecnológico, educacional etc.), e formulada com critérios explícitos de política. O planejamento integral é um instrumento que tende a ser companheiro da democracia.

 

l) Introdução

Não existe política sem teoria, pelo menos implícita, frequentemente feita por algum economista há muito morto, como já advertia Keynes. Um quadro teórico claro e consistente não garante a qualidade da política – posto que pode ser fantasioso – mas, pelo menos torna-a mais inteligível e “transparente”.

O que segue ê uma contribuição ao debate sobre um tema que se faz urgente no Brasil – a política industrial.

Ha, é verdade, os que sustentam ser o debate sobre o tema inútil dada uma política macroeconômica correta, as decisões sobre a indústria fluirão naturalmente, guiadas pelos mecanismos de mercado. Esta visão consegue” ignorar décadas de discussão sobre as imperfeiçoes do mercado como orientador de decisões, a existência de mecanismos de causação circular e o fato do desenvolvimento industrial, no Brasil e no resto do mundo, ter contado, de forma decisiva, com a intervenção estatal. Ignora também as transformações radicais que vêm ocorrendo na ” base técnica mundial, que têm um forte componente concentrador, se deixadas ao sabor do mercado, e suas repercussões no Brasil, bem como a problemática da estrutura industrial brasileira ao concluir sua fase de implantação. Insere se, pois, no reino da fé fora dos limites estreitos deste artigo. . .

As duas próximas seções são de caráter analítico – a primeira (I) desenvolve alguns conceitos (notadamente as ideias de “paradigma tecnológico” e “complexo industrial”) úteis a compreender as características e a dinâmica de uma estrutura industrial moderna, enquanto a segunda articula estes conceitos à intervenção do Estado.

A última seção trata do caso brasileiro, apontando 0s traços principais do atual estágio de desenvolvimento da estrutura industrial do país e as implicações para a política econômica sugeridas pelo quadro analítico desenvolvida nas seções precedentes.

 

(2) Dinâmica Industrial: paradigmas tecnológicos e complexos industriais

A teorizado do mundo industrial é dificultada pela descontinuidade dos fenômenos, expressa, p. ex., pelas economias de escala estáticas e dinâmicas resultantes, -umas de propriedades técnicas de instalações e equipamentos e, outras, de efeitos de aprendizado. A estas, somam-se o caráter cumulativo da concorrência e do progresso técnico e a ocorrência simultânea de interdependências entre os vários setores que compõem a estrutura industrial, estabelecidas por relações tecnológicas e de mercado, com a heterogeneidade no ritmo de evolução destes setores, que estabelece relações de hierarquia entre eles, do ponto de vista da sociedade como um todo.

Alguns destes fenômenos estou há muito incorporados a discussão sobre política industrial e desenvolvimento, como por exemplo, a dificuldade de industrializar os países mais pobres dada pelo confronto entre o mercado destes países e a escala mínima das plantas industriais, (geradas para os mercados dos países mais ricos). Da mesma forma, data de muito tempo o reconhecimento de que os diversos setores dentro da estrutura industrial desempenham papéis distintos em termos dos seus encadeamentos interindustriais e com os demais setores e da sua capacidade de mobilização do investimento, consumo e outras categorias macroeconômicas. Em consequência, o conhecido peso dentro de uma estrutura industrial dos setores dinamicamente mais relevantes serve de parâmetro para as possibilidades de desenvolvimento econômico.

E a luz desta constatação que deve ser interpretada a importância atribuída a falta de uma indústria de bens de capital nos países em desenvolvimento como fator que, tanto definia a especificidade do seu padrão de desenvolvimento, em comparação com os países já industrializados, como explicava um processo de acumulação de capital menos dinâmico e mais dependente do exterior.

No passado mais recente avançou-se substancialmente na compreendo da importância de progresso técnico como fator dinâmico da estrutura industrial e, ainda mais, na capacidade analítica de tratar este progresso técnico como um fenômeno endógeno & dinâmica industrial, algo que este gera internamente, em resposta as pressões da concorrência, do mercado e da ação estatal.

Este avanço analítico rompe com a tradição neoclássica de tratar o progresso técnico como algo exógeno a economia, que sobre ela tomba como mana do céu, e retoma o pensamento clássico e Schumpeter ano sobre industrialização, atualizando-o, face as condições de crise cíclica e emergência de tecnologias que configuram uma nova base técnica para a indústria (notadamente a microeletrônica, biotecnologia e novos materiais).

Um dos conceitos mais ricos surgidos recentemente na literatura e o de “paradigma tecnológico”. Seu autor, Dosi (1982), propõe que, a semelhança das ciências, as tecnologias têm a forma de “paradigmas”, que constituem “modelos” ou “padrões” de solução de alguns problemas técnicos, baseados em princípios científicos selecionados, (derivados das ciências naturais) e em técnicas especificas (equipamentos, materiais etc.). Assim, os paradigmas tecnológicos incorporam uma “visão” que seleciona os problemas relevantes, os procedimentos de pesquisa e os critérios de progresso na solução dos problemas.

Novos paradigmas surgiriam de novas oportunidades abertas pelo desenvolvimento científico ou pela crescente dificuldade em avançar ao longo de um paradigma já existente, tanto por razões técnicas como econômicas e sociais. 0 surgimento de novos paradigmas estaria associado a constituição de novos setores produtivos ‘e as transformações substanciais*da estrutura produtiva – ou seja, na terminologia shumpeteriana clássica, seriam “inovações primarias”.

Depois de estabelecido, um paradigma seguiria um processo de desenvolvimento “normal” ao longo de uma ‘trajetória tecnológica” (2), definida pelo próprio paradigma. O progresso técnico constituiria na melhoria dos trade-offs entre as variáveis tecnológicas que o paradigma define como relevantes – por exemplo velocidade e densidade dos circuitos em semicondutores. Este progresso técnico se expressaria através de uma série de inovações “secundárias” de produtos e processos, de caráter cumulativo, em que efeitos de aprendizado, advindos da experiência, seriam de grande import4ncia. A evoluído destas trajetórias influenciada tanto por fatores econômicos, entre os quais se destacam as condições de mercado, como por
elementos institucionais e políticos, como a intervenção do Estado fomentando ou restringindo o desdobramento de determinadas trajetórias.

A noção de paradigma envolve, pois, a ideia de agrupamento (clustering) de inovações e da transformação de, pelo menos, uma parte da base técnica da economia pela constituição de novas indústrias, que têm em comum, no mínimo-, certas características tecnológicas -o que estabelece interdependências na sua dinâmica, que, assim, tende a assumir efeitos de sinergia.

A problemática da interdependência dinâmica entre indústrias, coloca a necessidade de conduzir a análise a um nível de agregação intermediaria entre o setor industrial e a macroeconomia. Como resposta desenvolveu-se recentemente o conceito de “complexo industrial” – um grupo de indústrias que se movem particularmente, embora com ritmos diferenciados, sob a liderança de uma indústria motriz, que organiza o complexo.

Na maior parte dos casos, os complexos industriais têm sido tratados pelo angulo das relações de compra-e-venda interindustriais (3), tanto por razões analíticas como pela facilidade que matrizes de insumo-produto oferecem para delimitar empiricamente os diversos complexos. Estes são, em regra, definidos pelo mercado p. ex. automotriz, onde a indústria importadora de veículos atua como organizadora hegemônica do complexo. No entanto, existem grupos de setores industriais, orientados para mercado distintos, cuja interdependência estabelecida por uma base técnica comum, dinamiza-
dá pelo fluxo intersetorial de inovações, cujo melhor exemplo é dado pela indústria que compõem o “complexo eletrônico”. Neste segundo tipo de complexo, a hegemonia mais difusa, tendendo, porém, recair na indústria que tenha uma alta taxa de inovações, utilizáveis pelas demais industrias que compartilham sua base técnica.

Veja-se Haguenauer e outros (1984) para um tratamento detalhado do conceito e sua aplicação ao caso brasileiro, através das relações de insumo-produto. A evidência empírica (4) quanto aos fluxos interindustriais de inovações mostra que os setores industriais podem ser agrupados em 3 grupos:

– Setores “motores” da inovação – aqueles que, além da de gerarem o grosso das inovações que usam, são supridores de inovações para o resto do sistema. No presente, estes setores “intensivos em ciência”, que atuam na “ponta “da tecnologia, desenvolvendo as novas trajetórias tecnológicas para o sistema econômico, a exemplo da eletrônica, novos materiais e da nova biotecnologia.

– Setores “receptores” de inovações – aqueles cuja demanda por inovações é atendida principalmente pela oferta de outros setores. Este grupo composto principalmente pelos produtores de bens de consumo não durável.

– Setores “intermediários” – aqueles cuja demanda por inovações e suprida em parte por esforços internos (principalmente inovações incrementais) e em parte (as inovações mais radicais) por inovações geradas nos setores “motores”, eventualmente desenvolvidas internamente. Estes setores atuam também como supridores importantes de inovares entre si e para o segundo grupo. Compõem este último grupo os setores produtores de bens de capital, intermediários e de consumo durável.

As inovações geradas no primeiro conjunto de setores tendem a ter múltiplos setores usuários, estabelecendo relações intersetoriais que, inicialmente, s&0 tecnológicas e, a seguir, de insumo-produto e investimento. Os setores motores têm, porém, em comum a base cientifica e técnica do seu paradigma e a mesma trajetória, que faz com que sua dinâmica seja interdependente, mesmo que forneçam a distintos mercados. Desta forma, um novo paradigma tecnológico expressa-se em plano produtivo por um complexo industrial articulado pela base técnica.

(4) Vejam-se Scherer (1982) para os Estados Unidos, Pavitt (1984) e Soete (1986) para o Reino Unido. Com estes conceitos pode-se avançar na compreensão das questões relativas as relações entre complexos industriais e hierarquia destes na estrutura industrial, em termos do dinamismo que lhe imprimem. Na medida em que um paradigma tecnológico, gerado no primeiro grupo de industriais, demonstra ser inequivocamente superior para resolver certos problemas técnicos, econômicos e sociais, ele tende a ser adotado pelas indústrias: dos outros grupos, provocando uma “destruição criadora”” na base técnica destas.

Em consequência, forjam-se novos vínculos intersetoriais, provocando uma transformação da estrutura industrial pela articulação entre o complexo-industrial que gera o novo paradigma e os complexos cuja base técnica está sendo modificada pelo novo paradigma. As relações em curso entre os complexos automobilístico e eletrônico são um bom exemplo deste processo.

Na nova estrutura industrial que surge deste processo, a dimensão relativa do complexo industrial vetor do novo paradigma no
aparato produtivo e a sua dinâmica de expansão – i.e., os novos espaços econômicos que cria por meio de novos produtos e processos e os espaços de antigos complexos que ocupa, substituindo-os – “dão (ou não) ao novo paradigma um caráter de inovação primaria (ou não).

O impacto do novo paradigma será maior se seus principais setores usuários formam os setores “intermediários” (conforme a taxa economia acima), devido ao peso que estes têm na estrutura industrial e, principalmente, pelo seu poder de encadeamento nos fluxos tecnológicos e de insumo-produto.

Ao mesmo tempo que o complexo industrial de materialidade produtiva ao paradigma tecnológico, esta última noção pode servir a entender e evolução do complexo e as estratégias das empresas que o formam.

Essa linha de investigação foi recentemente desenvolvida por Aratijo Jr. (1985). Este autor sugere que os complexos passam
inicialmente por uma fase formativa, em que as estratégias das firmas lideres privilegiam a exploracao da inovação primaria e desenvolvimento de inovações secundarias, transformando seu comportamento usual. Nesta fase, a distribuição do poder dentro do complexo estaria fortemente concentrada na indústria produtora de inovações, cuja estrutura tenderia a concentração e altas barreiras à entrada, ao passo que as demais industrias do complexo teriam uma estrutura facilmente contestável pela indústria motriz. Ao mesmo tempo, as relações interindustriais dentro do complexo apresentariam um grau relativamente alto de indefinição.

A análise anterior dos complexos “motores” da inovação complementa a de Aratijo Jr., explicando a tendência a diversificação e
integração nas firmas líderes do complexo ao longo de diversos mercados com base técnica comum, com o objetivo de captar as economias de escopo que esta proporciona, a exemplo do que ocorre na eletrônica.

Se não ocorrerem outras inovações primárias, o complexo tendera a maturidade, evidenciada pela consolidação das relações interindustriais e pela redução da contestabilidade dos mercados pela indústria motriz, bem como por uma redução relativa da hegemonia desta. Aratjo Jr. sugere que, neste momento, as firmas líderes desta indústria podem tanto optar por uma estratégia de diversificação de investimentos para fora do complexo, como tentar revitaliza-lo através da busca de uma nova inovação primaria. No primeiro caso o dinamismo do complexo tendera a reduzir-se e provavelmente ocorrerão transformações substanciais na sua estrutura, ao passo que, no segundo, o ciclo pode reiniciar-se pelo “rejuvenescimento” do complexo.

Se, no presente, os paradigmas são gerados principalmente pela pesquisa cientifica, a observação desta fronteira torna-se um
fator importante na estratégia das firmas, especialmente para aquelas de complexos maduros. Nesse sentido o comportamento de várias grandes firmas do complexo químico, que adquirem participações acionarias de pequenas empresas, de origem académica, para ter conhecimento do que ocorre na area de engenharia genética, parece exemplar.

3) A Intervenção do Estado

Os conceitos de paradigma tecnológico e complexo industrial têm diversas implicações para a intervenção do Estado na dinâmica industrial.

As trajetórias adotadas nos países centrais, que se encontram expressas no mercado, so0 apenas uma parte das trajetórias disponíveis, selecionadas no leque de alternativas por mecanismos de mercado e fatores institucionais, especialmente a ação do Estado, específicos daqueles países. Em consequência a noção de paradigma e trajetórias, refuta a ideia de determinismo tecnológico. No entanto, ao enfatizar a importância de processos cumulativos e de mecanismos seletivos na definição dos paradigmas e trajetórias, aponta para a existência de limites à vontade política.

O caráter científico dos novos paradigmas científicos aponta para a importância da pesquisa básica e da formação de recursos
humanos de alto nível, para a dinâmica industrial. Dada a ineficiência dos mecanismos de mercado para fomentar o investimento privado nestes campos, devido a problemas de incerteza, longo prazo de maturação e dificuldade de apropriação de resultados do investimento, estes constituem campos clássicos de atuação do Estado.

No entanto, e importante lembrar que os fluxos intersetoriais de progresso técnico dependem da constituição de um “tecido científico e tecnológico” que vai além da capacitação em pesquisa básica, abrangendo um amplo leque de competências, parte localizadas em empresas (por exemplo a capacidade de projeto de produtos e processos) e parte em outros tipos de organização, como serviços de normas e metrologia, informado etc., frequentemente providos pelo Estado.

Este conjunto de atividades e dotado das mesmas características do sistema industrial-econômica de escala, aprendizado e escopo, efeitos de sinergia etc.- que dependem da sua articulação com o sistema industrial.

Onde este sistema está precariamente constituído e pouco articulado a indústria, cabe ao Estado estruturá-lo, fomentando a sua vinculação industrial.

A análise anterior também leva a conclusão de que uma política industrial, para ser eficaz e eficiente, tem que corresponder a heterogeneidade de situações encontradas no sistema industrial.

Pode-se dividir a intervenção estatal em setores industriais em três tipos, de acordo com uma abrangência decrescente (5):

  1. I) Estruturante – quando o Estado atua diretamente na montagem de um setor ou complexo industrial, criando, simultaneamente, o mercado (p. ex. via restrições a importação ou políticas de rendas) e seus fornecedores, tanto por meio de empresas públicas como pela definição de regras para participação de empresas privadas (p. ex. reservas de mercado por nacionalidade dos proprietários ou por tamanho de empresa).
  2. II) Fomento – quando o Estado define incentivos para certas atividades e condicionalidades para o uso destes incentivos, mas deixa ao mercado a estrutura ao final do setor.

III) Normalização – quando o Estado atua ao nível de produtos e processos, definindo suas características, p. ex. segundo critérios de segurança dos consumidores ou de poluição ambiental.

Nos países onde existe uma política industrial, esta pode ser sistematizada segundo a taxionomia de intervendo acima apresentada e o papel que os setores industriais desempenham nas relações ecológicas interindustriais.

Assim, para os setores de ponta tecnológica, os “motores de inovação”, a intervenção de cunho marcadamente, ““estruturante”,
abrangendo da pesquisa e desenvolvimento a proteção dos produtores locais, no mercado interno e no exterior, por meio de uma ampla gama de instrumentos que vão dos subsídios a P&D até a formação de empresas locais, estatais ou privadas.

Para os setores que são principalmente receptores de tecnologia, a intervenção de natureza essencialmente “normativa” enquanto para os demais setores o Estado provê incentivos variados, de acordo com as condições locais.

A figura 1, a seguir, onde no eixo horizontal está representada a intervenção estatal e no vertical o papel do setor no progresso técnico industrial, sintetiza estas relações.

As nodes de paradigma e complexo, apontam, porém, para a necessidade de conceber a política industrial a luz dos vínculos inter setoriais. Isto implica numa política industrial não apenas heterogénea, diferenciada por setores, como também dotada de uma visão integrada.

Esta dimensão integrada obtida a partir da justaposição de políticas setoriais. Embora a política para complexos abarque e necessite de políticas setoriais, ela se distingue destas almas por uma dimensão maior, dada pelas relações intersetoriais dinâmicas, que se estabelecem de forma plena apenas ao nível de complexos.

Numa primeira aproximação, os complexos podem ser classificados, ‘segundo sua indústria motriz, em “motores”, “intermediários” e “receptores” de progresso técnico e, de acordo com seu estágio de desenvolvimento, em “nascentes”, “maduros estáveis” e “rejuvenescentes”. Cruzando as duas classificações numa matriz, suas células seriam as medidas de intervenção estatal, de cunho “estruturante” para os complexos “motores nascentes” e “maduros rejuvenescentes”, de “fomento” para os complexos “maduros estáveis” e “normativo ” para os complexos “receptores” conforme a figura 2. O detalhamento das medidas “estruturante”, “de fomento” e “normativas” depende, naturalmente, das condições históricas especificas, obedecendo o sentido geral desta classificação.

Tanto pela taxionomia adotada para os complexos como pelo tipo de medida sugerida para as diversas categorias de complexo, e a proposta acima privilegia a dinâmica industrial, especialmente a formação de uma capacitação cientifica e tecnológica na sociedade de uma forma dinâmica, ao enfatizar não apenas a geração como o uso do progresso técnico através dos fluxos intersetoriais.

Ao mesmo tempo, compatibiliza a heterogeneidade do mundo industrial com a necessidade de dotar a política de orientações gerais, operando a um nível de integração intermediário entre a especificidade do setor industrial e a generalidade das medidas macroeconômicas.

A realidade, a “concretude” da qual conceitos como paradigmas tecnológicos e complexos industriais são abstrações, impõe esta integração. Ela se dá tanto por mecanismos de “tatonnement” econômico e político, como, de forma mais racional e explicita, através do planejamento, para o qual os conceitos acima discutidos são instrumentais.

Diversas qualificações podem ser introduzidas neste esquema. Assim a intervenção estatal e matizada de diversas formas pela dimensão internacional de economia. De um lado, esta adiciona motivações fundamentais para a intervenção do Estado, tanto no caso de países cuja economia faz face a restrições de divisas, como no caso dos Estados que se movem por uma lógica de potência militar e/ou econômica. De outro, a internacionalização da economia pode impor sérios limites a efetiva capacidade do Estado intervir, quer pelo peso político que detém grandes firmas multinacionais, quer pela redução dos – ‘vínculos
interindustriais internos que a propensão a importar destas firmas acarreta (veja-se próxima seção). O leitor interessado certamente descobrira muitas outras -e será bem-vindo.

 

4) Aplicações ao caso brasileiro

As histórias factual e intelectual da industrialização brasileira são dominadas pela problemática da montagem de um parque industrial no país – primeiro para vencer os que sustentavam a “vocação primário-exportadora” do pais e, a seguir, para avançar na industrialização “a montante” das cadeias produtivas, implantando as indústrias fornecedoras de bens de capital e insumos, além da infraestrutura (transportes, energia, etc.).

Este processo deu-se, como & típico da indústria, de forma descontinua, mas articulada, com a implantação de alguns setores “puxando”, pelas interdependências setoriais, o estabelecimento de outros, a sombra das restrições de divisas e ao amparo do Estado.

Usando a taxionomia da seção anterior, de modo simplificado o Estado brasileiro atuou de forma “estruturante” nos setores de
infraestrutura e de bens de produção (insumos e bens de capital) e concedeu fortes incentivos aos demais, com pouca atuação “normative”.

No presente, este processo de constituição do tecido industrial encontra-se quase concluído. Faltam, principalmente, implantar
os setores de ponta tecnológica e o conjunto de atividades que gera uma capacidade tecnológica além da necessária a operar plantas. As duas lacunas no tecido industrial brasileiro sa0 complementares.

Conforme já foi mencionado, uma das principais formas pelas quais os setores de ponta dinamizam a economia é pela transformação de base técnica dos demais setores. Para que isso ocorra é necessário que, tanto nos setores de ponta como nos demais, exista uma capacidade técnica e cientifica, adequada as circunstâncias especificas, que lhes permita gerar e absorver o progresso técnico.

Conforme demonstra abundantemente a literatura sobre transferência de tecnologia, esta capacidade não se move internacionalmente, nem por meio do investimento externos, nem pelo licenciamento de tecnologia entre partes independentes.

A lógica de comportamento de licenciadores de tecnologia e de empresas internacionais faz com que se transfiram as capacidades de projeto básico de produtos e processos e, ainda menos, as de pesquisa – transferem-se, apenas, a competência de operações de planta e engenharia de detalhe, das quais não se evolui, sem investimento autônomo, para as anteriores, indispensáveis as tarefas de inovação e absorção.

Em consequência, mesmo que, por absurdo, se atribua ao capital estrangeiro a responsabilidade maior da industrialização, esta permanecera limitada ao nível da capacidade tecnológica interna e do dinamismo que desta decorre. A constatação destes fenômenos não conduz a uma política de autarquia tecnológica – a importação de tecnologia é indispensável por razão de custo, risco, tempo e escassez de recursos internos. No entanto, ela se frutifica plenamente quando associada a investimentos internos que suprem suas deficiências naturais. O Japão, renomado importador de tecnologia, dá um bom exemplo dos frutos de adotar
uma estratégia pela qual gasta internamente seis vezes o que dispende com importações.

E necessário reconhecer que a importação de tecnologia além de complementar a capacidade interna pode representar uma competição para esta, justificando a sua proteção. Em verdade, a capacidade tecnológica interna aplica-se todos os argumentos clássicos da “indústria infante”, como economias de escala estáticas e dinâmicas, que justificam a proteção contra as importações – o que implica em proteção aos produtos e processos que incorporem a tecnologia localmente desenvolvida.

Dado o comportamento diferenciado de empresas nacionais e estrangeiras no que toca a constituição da capacidade tecnológica de inovação, que decorre da própria lógica das segundas, a proteção a tecnologia nacional abarca medidas explicitas de proteção as primeiras.

No entanto, esta proteção tem que ser seletiva, tanto ao nível de produtos como de tecnologias, envolvendo uma política de “administração do hiato tecnológico”, expressa pela operação articulada dos instrumentos de política de importação (de bens de capital e tecnologia), controle de acesso ao mercado nacional, investimento etc.

Assim, onde se faz presente a necessidade de uma acao estruturante” do Estado, no momento atual, e na montagem dos setores de ponta e da capacidade tecnológica interna, que requer, como complemento indispensável, o reforço das instituições académicas de pesquisa e um grande esforço de formação de recursos humanos adequadamente qualificados.

Para os demais setores, e imperioso reconhecer que estão montados, e exceção da capacidade tecnológica antes referida. Ou seja, não e de esperar que repitam, no futuro próximo, os maciços investimentos constitutivos de indústria que caracterizaram a história recente da industrialização do país. Seu dinamismo dependera, agora, da evolução da demanda final e do progresso técnico. A este último cabe o papel fundamental, tanto pela melhoria de produtividade e aumento de competitividade internacional como pelos efeitos indutores de investimento e encadeamento intersetoriais.

As atuais circunstâncias internas e externas da indústria brasileira requerem uma grande transformação da política industrial tanto da sua concepção como de seus instrumentos.

Em algumas áreas de ponta, como na eletrônica, trata-se de constituir um novo complexo industrial, no qual a interdependência entre as indústrias é estabelecida por uma base técnica comum e onde a convergência de mercados (p.ex. telemática) tende a reforçar este interdependência. Este complexo tende a “invadir” a base técnica dos demais complexos via automação e, assim, constituir novas vínculos intersetoriais. Em outras áreas de ponta, como na química fina e na biotecnologia trata-se de transformar alguns dos complexos já existentes (p.ex. química e agroindustrial), numa ótica “estruturante”.

Da mesma forma, a capacitação tecnológica, crescentemente baseada na ciência, exige uma visão integrada, abarcando a capacitação cientifica e a formação de recursos humanos, conforme já foi mencionado.

Para os setores já implantados será necessário transformar o leque de incentivos que o Estado lhes oferece, privilegiando sua
capacidade tecnológica, articulando-os ao “complexo tecnológico e científico”. A título de exemplos pode-se citar a concessão de incentivos fiscais para P&D, que o Brasil e 0 único país de relativa industrialização a não conceder, e a realização de programas de capacitação tecnológica pelas empresas, intramuros ou contratados, como condição de obtenção de incentivos creditícios ou fiscais.

Neste contexto, a ação “normativa” do Estado, até agora relegada a plano secundário, pode ser proficuamente utilizada como estímulo a capacitação tecnológica e ao aumento de competitividade internacional, especialmente nos setores “receptores” de inovações, que desta forma, estreitando o seus laços com os demais.

As condições internacionais sob as quais se desenvolve a industrialização brasileira também recomendam uma ênfase na capacitação tecnológica. Embora o eixo da restrição de divisas tenha se deslocado do plano comercial para o financeiro, é previsível que o país necessitara por um longo tempo de manter superávits na balança comercial.

Já no presente o desempenho exportador brasileiro depende em boa medida de uma capacidade tecnológica interna, tanto ao nível do binômio escala de produção-custos para produtos primários e manufaturados intermediários, como ao nível da competência em projetar e fabricar produtos adequados a mercados específicos, como nos casos conhecidos da indústria aeronáutica, armamentos e bens de capital.

No futuro, a importância de capacidade de projeto e de fabricaca0 com qualidade estável e adequada para entrar e ampliar a presença no mercado internacional tende a aumentar – o que requer um aumento da capacitação tecnológica da indústria nacional.

Em decorrência, tanto os instrumentos de controle de importações como os de incentivo as exportações devem ser revistas a luz desses requisitos. Neste contexto, a repetição de modelos exportadores datados da década de sessenta, baseados no estímulo a exportaca0 via baixo custo de mão de obra e benefícios fiscais e cambiais, serão ineficazes e, provavelmente, contraproducentes na sua interaca0 com o resto da indústria, justificando a assertiva de que a História não se repete senão como farsa.

A complexidade das condições atuais, internas e externas, do processo de industrialização brasileira impõem uma retomada do planejamento no país.

Ha no Brasil uma longa tradição de pensar a industrialização pela ótica da interdependência, dos “pontos de estrangulamento” do Plano de Metas, A estratégia de montagem da indústria de bens de capital e intermediários do II PND.

Na prática, porém, inclusive devido ao caráter descontinuo e concentrado do processo de implantação dos blocos de industriais, o planejamento deu-se ao nível setorial, especialmente em empresas estatais, como a ELETROBRAS.

Na última década, com o predomínio de políticas de curto prazo frequentemente de cunho recessivo, e com o desmantelamento dos aparatos de planejamento, a visado estratégica tendeu a desaparecer. Restou, de forma precária, o planejamento a nível setorial. No entanto, as transformações em curso na base técnica mundial e seus reflexos sobre a estrutura industrial brasileira, bem como o fim de uma era de montagem do parque industrial, necessitam que se tome o debate sobre a estratégia de industrialização e dos meios de operacional.

A estruturação dos setores de ponta e da capacitação tecnológica e dos seus vínculos com os demais setores, — do parque industrial já existente e o aumento da competitividade internacional ‘“requerem uma visão de planejamento integrado, que vá além do Âmbito setorial.

As seções anteriores apresentam um quadro analítico de caráter preliminar que pode ser útil a discuss4o em torno dos conceitos e procedimentos que deverão informar o indispensável planejamento da industrializado, agora e no futuro próximo.

Qualquer que seja o marco analítico adotado, o novo tipo de planejamento, necessário ao progresso da industrializado brasileira, requerera, substanciais modificações nos vínculos internos do aparato estatal e de suas articulações com o setor privado, com importantes consequências sociais e políticas. Convém aqui ressaltar que, a identificação do planejamento com autoritarismo. Ao autoritarismo, e ao particularismo que o acompanha, servem mais a obscuridade e o policy-making in câmera. O planejamento, os critérios explícitos de política, tendem a ser companheiros da democracia.

No passado, o Estado foi o grande motor da industrialização brasileira. O desafio que se coloca agora e se sera capaz de seguir cumprindo este papel histórico em condições substancialmente distintas. O padrão de desenvolvimento brasileiro depende, em boa medida, da resposta que será dada a esse desafio.