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A Política Tecnológica da Segunda Metade dos Anos Oitenta

Fabio S. Erber, Eduardo Augusto Guimarães, José Tavares de Araújo Júnior, In: Encontro Nacional da Indústria

Este artigo é bastante interessante por sua abordagem histórica, mas será útil aos formuladores de novas políticas industriais, como por exemplo, a do terceiro mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2023- ), que visa a reindustrialização em novas bases tecnológicas? Acreditamos que a resposta é positiva, pois, não todos, mas muitos dos instrumentos de política disponíveis e a preocupação com a sua implementação permanecem basicamente os mesmos. As mudanças importantes são, naturalmente, de objetivo e ênfase. Cabe enfatizar, contudo, no que diz respeito ao setor manufatureiro, que a política tecnológica deve ser derivada da estratégia que se pretende imprimir à evolução da indústria, o que uma afirmação válida ainda hoje. No período estudado no texto, a análise dos obstáculos e opções enfrentadas pela política tecnológica concentrou-se em dois conjuntos de eventos: a) o crescimento industrial dos anos setenta, e a recessão dos anos oitenta e; b) o aparato institucional destinado ao suporte das atividades de ciência e tecnologia, criado ao longo dos quinze anos anteriores. Na formulação de uma nova política, a preocupação com a evolução histórica deve permanecer, pois cada país tem as suas idiossincrasias, que o diferencia dos demais. Além disso, as políticas industriais e tecnológicas devem estar em consonância com as demais, no sentido de propiciar um desenvolvimento social e econômico de longo prazo. Cabe lembrar aqui que o trabalho “A Política Tecnológica da Segunda Metade dos Anos Oitenta” de Erber, Guimarães e Araújo Jr. (1984) foi apresentado no Encontro Nacional da Indústria, em outubro de 1984. Na primeira parte, mostrou uma breve análise da experiência com políticas tecnológicas dos EUA, Japão, Alemanha Ocidental, França e Reino Unido, e na segunda seção, a do Brasil. Na segunda parte, uma agenda de médio prazo foi proposta, para a segunda metade da década dos anos oitenta, cujo objetivo era de gerar os mecanismos através dos quais a política tecnológica deveria tornar aptos diversos segmentos da economia a responder aos objetivos gerais da política econômica. Neste sentido, o trabalho focaliza: i) as implicações tecnológicas inerentes à provável evolução do setor industrial, inclusive, visando manter a sustentação das exportações, a ampliação da pauta de produção industrial e a retomada do crescimento do mercado interno; ii) as medidas factíveis e suas respectivas modalidades de implementação e; iii) a identificação de deficiências existentes no aparato institucional. No que concerne à política tecnológica, o texto afirma que essa deve ser ainda orientada a criar às condições necessárias à viabilização das trajetórias apontadas, a desenvolver capacitação tecnológica do país, como também a responder as demandas específicas da sociedade e da economia brasileira. A persecução dos objetivos apontados pressupõe reações de duas naturezas por parte do setor manufatureiro. Em alguns casos, requer-se ampla difusão no parque industrial brasileiro, de conhecimentos técnicos existentes no país e no exterior; em outros, além disso, requer-se das empresas industriais o pleno domínio da tecnologia utilizada, de modo a possibilitar a adaptação às especificidades do país e o poder de competição dos agentes produtivos nacionais. Por conseguinte, a política tecnológica deve ser, ao mesmo tempo, uma política de difusão, assim como, de geração e absorção de tecnologia, revestindo-se da necessária flexibilidade.

08. FSErber.EAAGuimarães.JTAraújoJrINTRODUÇÃO

Este trabalho discute os obstáculos e as opções a serem enfrentados pela política tecnológica brasileira na segunda metade desta década. Dois conjuntos de eventos orientam a análise e as sugestões aqui apresentadas. Por um lado, o crescimento industrial dos anos setenta, e a recessão dos anos oitenta, implicaram um processo de mudança estrutural que afetou significativamente o padrão de inserção internacional da economia, a configuração de seu parque industrial, e, consequentemente, redefiniu os termos do velho debate sobre o estilo de desenvolvimento. Por outro, o aparato institucional destinado ao suporte das atividades de ciência e tecnologia, criado no país ao longo dos últimos quinze anos, tornou-se um acervo de inequívoca importância para o encaminhamento das questões nacionais.

A primeira parte do texto reconstitui as principais características da política tecnológica de algumas economias industrializadas no passado recente, visando compará-las com a experiência brasileira. A partir dos dados relativos aos Estados Unidos, Japão, Alemanha Ocidental, França e Reino Unido, discute-se o papel que esses países desempenham na distribuição mundial de recursos de ciência e tecnologia, a concentração setorial do esforço inovativo e a intervenção do Estado nessas atividades. Em seguida, apresenta-se uma breve revisão do caso brasileiro.

A segunda parte propõe uma agenda de médio prazo, cujo tema é abordado sob três perspectivas complementares. Em primeiro lugar, são examinadas as implicações tecnológicas inerentes à provável evolução do setor industrial nos próximos anos, com ênfase nos aspectos relativos à sustentação do desempenho exportador da economia, à ampliação da pauta de produção: industrial, e à retomada do crescimento do mercado interno. Em segundo lugar, procura-se ordenar O elenco de medidas factíveis e suas respectivas modalidades de implementação. Por fim, algumas deficiências do atual aparato institucional são apontadas.

 

PARTE I – A POLÍTICA TECNOLÓGICA DOS ÚLTIMOS QUINZE ANOS

1 – A Experiência Internacional

1.1 – Concentração mundial

A distribuição internacional das atividades em ciência e tecnologia é altamente concentrada, quer se usem medidas de insumo (despesas em P&D, número de cientistas e tecnólogos)ou de resultados (patentes, artigos científicos publicados, inovações realizadas). Esta concentração ocorre não apenas entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos (estes últimos respondem por apenas 3% destes gastos) mas também no âmbito dos primeiros — Estados Unidos, Alemanha, Japão, França e Reino Unido (na ordem de importância) — são responsáveis por quase: 90% dos custos totais em P&D industrial da OECD. Assim, embora outros países centrais tenham eventualmente papel relevante em setores específicos, o padrão de P&D no mundo capitalista & dado, em larga medida, por esses cinco países, sobre os quais se concentra a análise subsequente.

Três características marcam a pesquisa e o desenvolvimento industrial moderno: sua escala, seu conteúdo científico e sua especialização profissional, essas características estão intimamente ligadas ao seu caráter empresarial e configuram um processo de trabalho coletivo, conduzido dentro de cada laboratório ou planta-piloto.

No entanto, o processo de inovação é  um trabalho coletivo também num sentido mais amplo, ao nível da sociedade, Uma parcela substancial das informações utilizadas pelas empresas em suas atividades de P&D provêm de fontes externas e firma, notadamente de laboratórios governamentais e de universidades. Estudos setoriais sobre inovações mostram também a importância da comunicação entre firmas da mesma indústria e entre fornecedores e compradores. A transmissão dessas informações em geral, interpessoal e informal. Em consequência, obtém-se um efeito da sinergia, em que o resultado total é maior que a soma das partes. Essas condições, decorrentes de um longo processo de acumulação de capital e divisão do trabalho nos países centrais, conferem às empresas ali sediadas uma notável vantagem em relação às suas congêneres nos países periféricos.

É importante, porém, notar que, nesse processo coletivo, algumas indústrias desempenham um papel estratégico, atuando como núcleo gerador de inovações e como centro difusor de progresso técnico para os demais setores. o peso relativo dessas indústrias “intensivas em tecnologia” dentro de um sistema industrial nacional afeta de forma decisiva o dinamismo tecnológico e econômico desse sistema, bem como sua inserção internacional. Embora a importação de mercadorias e tecnologia possa, em parte, suprir deficiências da oferta interna de tecnologia, a política dos principais países da OECD orientada para a constituição e desenvolvimento desses setores estratégicos tanto por razões econômicas como militares.

Assim, cerca da metade dos gastos totais de P&D nos países da OECD refere-se à energia nuclear, atividades espaciais e defesa, dividindo-se o restante em partes aproximadamente iguais entre pesquisa e desenvolvimento com finalidade econômica e P&D destinados ao bem-estar público e apoio a universidade e pesquisa básica.

Em termos de P&D industrial, nota-se significativa concentração de gastos em alguns setores, notadamente nas indústrias aeronáutica, química, electro/eletrônica e de maquinaria, que absorvem cerca de dois terços dos gastos nos principais países. Estas indústrias caracterizam-se por fornecer  a base material do complexo militar e por apresentarem maior dinamismo em termos de comércio e investimento internacionais. Assinale-se, por fim, que — embora os Estados Unidos ainda sejam os principais investidores em P&D nos setores “intensivos em P&D”, principalmente em eletro/eletrônica e aeronáutica — os países da Comunidade Econômica Europeia (principalmente França e Alemanha) e, especialmente, o Japão têm apresentado maiores taxas de crescimento dos gastos em P&D nesses setores.

 

1.2 – A Participação do Estado

Embora os Governos dos países capitalistas tenham historicamente desempenhado um papel importante no apoio ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia, observa-se a partir da II Guerra Mundial, uma expansão quantitativa e qualitativa da participação do Estado nessas atividades, que convém detalhar, Enquanto nos Estados Unidos a intervenção governamental nesta área parece ter se pautado principalmente por uma lógica a meme de potência militar, no Japão e Alemanha, obedeceu fundamentalmente a objetivos de poder econômico; a França e o Reino Unido aparecem como casos intermediários. Recentemente, observam-se nos Estados Unidos pressões para que a atuação do Governo seja dirigida a reforçar diretamente a capacidade de competição técnica e comercial das firmas americanas no mercado internacional, principalmente face a seus concorrentes japoneses no setor eletrônico.

O Governo como executor e financiador de P&D: Uma primeira aproximação ao papel desempenhado pelo Estado nos países desenvolvidos pode ser obtida pela análise de sua participação como executor direto de atividades de P&D. Conforme indica o quadro a seguir, referente aos principais países da OECD; é significativo o peso do Governo (exclusive sistema educacional) através de seus institutos de pesquisa e laboratórios, notadamente na França e no Reino Unido. Note-se  que, no setor empresarial, estão incluídas as empresas estatais, o que subestima substancialmente o papel do Estado na execução de P&D naqueles países onde tais empresas são importantes, como é o caso da França e do Reino Unido. O Governo nos países desenvolvidos desempenha um papel de financiador de gastos em PED que excede sua participação direta como executante destas atividades. A direção deste financiamento difere, no entanto. Nos EUA, França e Reino Unido, os gastos concentram-se em objetivos EUA, França e Reino Unido. Os gastos conceptivos de caráter. militar, aos quais estão intimamente ligadas às indústrias de ponta, enquanto na Alemanha e Japão os fundos governamentais são orientados prioritariamente para o “progresso do conhecimento”. Parcela ponderável destes fundos destinam- se a cobrir gastos em pesquisas que serão mais tarde utilizadas pelas indústrias de ponta. A importância do financiamento governamental para P&D varia, também, de acordo com os setores econômicos. Os Governos dos principais países da OECD financiam uma parte substancial dos gastos empresariais exatamente das indústrias intensivas em P&D, exceto a indústria química — chegando, no caso de a indústria aeronáutica cobrir a quase totalidade desses gastos. Por conseguinte, as indústrias tecnologicamente “de ponta” recebem praticamente a totalidade do financiamento governamental para P&D na indústria. É importante ainda notar que a contribuição governamental acima indicada não inclui certos gastos que, embora apareçam nas estatísticas oficiais como sendo de responsabilidade do setor empresarial, são, na verdade, cobertos pelo Governo. O caso japonês merece um reparo especial, pois estatísticas agregadas como as apresentadas nas tabelas anteriores mascaram uma intervenção governamental profunda em projetos de caráter estratégico em setores de ponta. No passado recente, destaca-se, por exemplo, a articulação do Estado com grandes grupos empresariais para alcançar sucesso internacional em produtos eletrônicos estratégicos, como a televisão a cores, componentes semicondutores e equipamentos de processamento de dados.

A seletividade da política de apoio à ciência e tecnologia dos países avançados revela-se também ao analisarem-se as empresas que utilizam os créditos governamentais para P&D: em 1975, nos EUA, 80% dos recursos governamentais para pesquisa e desenvolvimento iam para firmas com mais de 25 mil empregados; na França 90% para as 20 maiores firmas; na Alemanha 65% para empresas com mais de 10 mil empregados e no Reino Unido 97% eram absorbidos por 50 empresas. Embora não se disponha de dados comparáveis para o Japão, sabe-se que nas indústrias de ponta os projetos estratégicos são desenvolvidos em conjunto pelo, Estado e por um grupo restrito de grandes empresas. Por fim, a seletividade setorial e de objetivos reflete-se também no seio do Estado: os aparatos estatais têm uma interferência diferenciada na política tecnológica, de acordo com os objetivos desta. Assim, nos Estados Unidos, destaca-se o papel desempenhado pelo Departamento do Defesa e pela NASA; no Japão, o MITI (Ministério de Comércio Internacional e Indústria) tem o papel principal. Entre esses dois conjuntos restritos de setores – grandes empresas (e seus subcontratantes) e aparatos estatais específicos — forja-se uma solidariedade de interesses— em que o fomento tecnológico é um elo importante — que tende a se reproduzir, reforçando-se pela continuidade ao longo do tempo. A atuação dos Governos dos países industrializados , tal como é captada nas estatísticas de P&D acima citadas, representa apenas uma parcela reduzida do apoio dado pelo Estado ao processo de desenvolvimento científico e tecnológico desses países, sob a forma de diversas medidas de ordem legal e de política econômica e financeira. Embora esse apoio se estenda também às instituições de pesquisa e universidades (por exemplo, através de fundos destinados ao ensino e não à P&D), ele é especialmente importante para as empresas. Dentre as iniciativas não captadas nas estatísticas apresentadas, e ainda no âmbito do apoio financeiro, aponte-se os incentivos fiscais concedidos, pela maior parte dos Governos dos países centrais, às empresas que realizam P&D. Em suas formas mais comuns, tais estímulos consistem em deduções do imposto de renda devido pelas empresas e na depreciação acelerada dos investimentos em P&D, reduzindo assim os custos de realização dessas atividades. No entanto, a eficácia desse instrumento tem sido questionada devido, principalmente, ao fato de o investimento fixo em P&D ser relativamente pequeno e os incentivos não cobrirem os gastos de inovação subsequentes à pesquisa e desenvolvimento, Apoio governamental à apropriação e comercialização dos sucatados de P&D. Deste ponto de vista, a ação governamental contempla inicialmente assegurar o direito de monopólio da inovação, inclusive o direito de obter compensação daqueles ‘que tentam se apropriar de informações sem o devido pagamento. A preservação dos direitos de propriedade sobre o conhecimento apoia-se em sistemas legais nacionais e em acordos internacionais como a Convenção de Paris. Os países centrais não só tem sistemas legais internos e eficientes como tem consistentemente apoiado a internacionalização dos direitos de seus súditos. No tocante ao apoio à utilização dos resultados de P&D, ressalte- se, em primeiro lugar, O apoio de natureza financeira. Os gastos em P&D constituem, normalmente, uma parcela raramente superior: a 50% dos custos totais de inovação industrial. As demais despesas (instalações produtivas, marketing etc.) são frequentemente financiadas pelos Governos dos países avançados, embora não sejam incluídas nas estatísticas de P&D. Parte desses financiamentos são concedidos no contexto de políticas industriais mais amplas — ponto que voltaremos a seguir — mas outra parcela é parte integrante de uma política de inovação tecnológica, especialmente no caso das indústrias de ponta. Por exemplo, no caso de semicondutores e circuitos integrados, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos concedeu importantes financiamentos para as linhas iniciais de produção, que permitiram &s firmas beneficiárias reduzir o tempo e o custo do desenvolvimento comercial desses produtos. Tomando-se como outro exemplo o Reino Unido, na década passada, a parcela referente a P&D representa apenas um quarto do total do apoio financeiro governamental à indústria. Este apoio, embora mantendo as prioridades vistas no financiamento a PAD, passa a incluir outras indústrias intensivas em tecnologia (notadamente química), que se beneficiam pouco do financiamento direto à pesquisa e desenvolvimento.

Nota-se aqui uma característica da intervenção do Estado para o desenvolvimento tecnológico nos países centrais: uma relativa convergência entre a política de fomento  industrial, lato senso, e as medidas destinadas especificamente ao desenvolvimento tecnológico o que, no jargão da política científica e tecnológica, convencionou-se chamar a “convergência entre as políticas explícitas e implícitas de tecnologia”. (Poe tecnologia. políticas explícitas são aquelas que têm o propósito definido e identificado de influenciar as atividades e funções de ciência e tecnologia; políticas implícitas são aquelas que, embora elaboradas com outros propósitos, p.ex. regular importações, afetam aquelas funções e atividades). Análises de reações empresariais à medidas destinadas a fomentar o desenvolvimento industrial e tecnológico mostram que as medidas mais importantes são aquelas relacionadas com o desenvolvimento industrial em sentido amplo. Dentre estas medidas, aponte-se, inicialmente, aquelas que contribuem para minorar a incerteza associada ao processo de pesquisa, desenvolvimento e inovação, especialmente nas indústrias tecnologicamente “de ponta”, um exemplo é a proteção nos mercados nacionais, através da preferência em compras governamentais (os “buy national acts”) e, menos frequentemente, de medidas de controle de importações (como tarifas, cotas e, mais indiretamente, política de câmbio). O caso do Japão constitui, talvez, a melhor evidência do uso dessas medidas, aliadas a uma cuidadosa discriminação setorial de entrada de capitais estrangeiros. Também no caso das indústrias de ponta nos Estados Unidos, diversos estudos mostram o papel crucial desempenhado pelas compras militares e espaciais, no sentido de propiciar a realização das economias de aprendizado e permitir a difusão comercial dos seus produtos, De fato, mesmo quando o Estado não é um comprador direto, influi com frequência sobre a demanda privada, orientando-a para a aquisição de inovações em larga escala, normalmente como parte de políticas de modernização setorial e de competição internacional. Tal foi, por exemplo, o resultado da política de subsídios às linhas de aviação nos Estados Unidos, combinada com a regulamentação de tarifas aéreas e com a depreciação acelerada para aviões, e dos financiamentos subsidiados para compra de máquinas-ferramentas com controle numérico em vários países da OECD. No Reino Unido, implementou-se um sistema de apoio intermediário entre as compras diretas e a mera orientação da demanda acima citada: máquinas-ferramentas com controle numérico são compradas pelo Governo, emprestadas sem ônus a possíveis compradores para teste e, a seguir, vendidas a preços reduzidos. O mercado estatal espacial/militar propiciou ainda importantes efeitos secundários para as indústrias de ponta (como computadores e aeronáutica) em suas aplicações civis. Primeiro, as vendas para o mercado espacial militar permitiram às empresas financiar níveis elevados de P&D em geral e, consequentemente, manter uma liderança tecnológica em outros mercados. Segundo, a demanda espacial/militar conferiu às firmas fornecedoras o domínio de técnicas altamente sofisticadas que, no entanto, tinham frequentemente aplicações civis. Por fim, a demanda espacial/militar teve importantes efeitos-demonstração para a área civil, estimulando a demanda desse segmento da economia. A ação governamental nos países desenvolvidos têm contemplado também viabilizar a presença no mercado externo dos produtos resultantes do esforço doméstico de P&D. A esse respeito, observe-se que! se, por um lado, as indústrias intensivas em tecnologia respondem pela maior parcela das exportações de produtos industriais dos países avançados, de outro, essas exportações são frequentemente indispensáveis ao crescimento de tais indústrias, mesmo tendo em conta a dimensão dos mercados internos desses países. Na intensa competição internacional que caracteriza essas indústrias, dois fatores, são de fundamental importância: a qualidade dos produtos e as condições de financiamento das vendas. Neste contexto, as medidas de proteção nos mercados domésticos, acima discutidas, não se cumprem uma finalidade defensiva em relação a concorrentes estrangeiros, como acarretam um fortalecimento das condições de competição das firmas  locais nos mercados externos, permitindo-lhes utilizar o mercado nacional tanto para atingir escalas de produção mais vantajosas como para comprovar a qualidade dos produtos, adiantando-se aos seus competidores na introdução de inovações no mercado internacional. Possivelmente, o melhor exemplo desta estratégia & dado pela atuação japonesa em produtos eletrônicos. Os Estados dos países avançados têm também apoiado as exportações de suas indústrias mediante esquemas de financiamento especiais, frequentemente coadjuvados por medidas de “a diplomacia comercial”, especialmente no caso dos países subdesenvolvidos. Assinale-se, por fim, que os governos de países desenvolvidos, especialmente os europeus e o Japão, tem adotado políticas que visam alterar a estrutura de algumas indústrias, notadamente nos setores de ponta, de modo a, entre outros efeitos, assegurar-lhes poder de competição no mercado internacional, inclusive em termos de tecnologia. São exemplos de iniciativas neste sentido as fusões de empresa patrocinadas pelos governos da Alemanha e da Inglaterra nas indústrias aeronáutica ‘ e nuclear e pelos governos da Inglaterra e da França na indústria de computação.

 

1.3 – Conclusões

A análise da participação do Estado no processo de desenvolvimento científico e tecnológico dos países capitalistas centrais sugere algumas conclusões: embora o nível de desenvolvimento da acumulação de capital e da divisão de trabalho nessas economias favoreçam O processo de desenvolvimento científico e tecnológico, tais condições favoráveis são não apenas reforçadas pela ação do Estada, como, em parte, criadas pela interferência estatal as medidas de apoio do Estado ao processo de desenvolvimento científico e, especialmente, tecnológico, transcendem o apoio direto às atividades de P&D. No entanto, tais medidas estão, em regra, associadas a outros objetivos que não o desenvolvimento tecnológico em si, entre os quais se destacam o poder militar e o reforço das condições de competição das empresas nacionais tanto no mercado interno como internacionalmente, em termos comerciais e de investimento. O desenvolvimento tecnológico é um meio de atingir tais objetivos mais amplos, especialmente no caso das indústrias de ponta. Nas demais indústrias, o desenvolvimento tecnológico & um subproduto da política econômica geral.

As medidas de apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico estão fortemente concentradas em alguns setores industriais, as chamadas “indústrias de ponta”. Essa concentração se dá tanto em termos do apoio direto às atividades de P&D , como nas medidas de apoio indireto, Para os demais setores, inexistente, na prática, uma “política explicita de inovações”.- O apoio do Estado ao desenvolvimento tecnológico ê altamente seletivo, tanto em termos de setores como de empresas. Com isso, forma-se nas indústrias de ponta uma articulação de interesses entre empresas, instituições de pesquisa e aparatos estatais, que tende a se expandir e a assegurar a continuidade daquele apoio.

– As medidas de apoio direto do Estado ao desenvolvimento científico e tecnológico dos setores de ponta tendem a convergir com outras medidas de política econômica, que representam um apoio indireto a esse desenvolvimento, essas medidas de política tecnológica “implícita” são uma condição necessária para o sucesso da política tecnológica “explícita” e, frequentemente, são dominantes nas decisões empresariais.

2 — O Caso Brasileiro

2.1 – Evolução Histórica

As diversas análises históricas da atuação do Estado na área de ciência e tecnologia no Brasil mostram que só a partir do fim da década de 60, com o Programa Estratégico de Desenvolvimento (PED), define-se, ao nível do Governo Federal, uma política explícita de ciência e tecnologia, Embora anteriormente o Estado interviesse na área científica e tecnológica propiciando a institucionalização de certas atividades cientificas (na área de saúde, por exemplo) e mesmo constituindo instituições de política para ciência e tecnologia (como a criação do Conselho Nacional de Pesquisas em 1951), essa intervenção era fragmentada e descontínua, refletindo conjunturas específicas (febre amarela no Rio, broca em café em São Paulo). Atendidos os interesses imediatos que o suscitaram, o apoio estatal à atividade científica e/ou tecnológica, tornava-se rarefeito e minguavam as instituições e as atividades nelas realizadas. Quando, como no caso da política atômica, as  implicações de uma intervenção estatal eram maiores envolvendo modificações na estrutura de relações internas ou externas, faltou força aos grupos interessados para, mesmo iniciada a intervenção estatal na área, dar-lhe a continuidade e força necessárias. Em outras palavras, os estudos sobre a atividade científica e sobre a dependência tecnológica sugerem que, até recentemente, tanto o padrão de crescimento econômico no Brasil, como as características do seu sistema político e a forma de inserção do país no sistema internacional, não propunham ao Estado razões econômicas e políticas suficientes e necessárias a uma maior intervenção na área da ciência e tecnologia, a não ser em casos específicos de alcance limitado. No período que se inicia em 1968, o desenvolvimento científico e tecnológico passa a ser objeto específico de política. Estabelecem-se mecanismos financeiros especiais para essas atividades, passa-se a controlar a importação de tecnologia e implanta-se uma estrutura institucional para o planejamento, que produz três Planos Básicos para o Desenvolvimento da Ciência e tecnologia (PBDCT) cobrindo, respetivamente, os períodos 1973/1974, 1975/79 e 1980/85. Essas atividades do Governo Federal são espelhadas, em escala menor, ao nível de alguns Governos Estaduais, especialmente em São Paulo. Embora todos os planos de desenvolvimento desde o PED enfatizem a necessidade de criar uma maior capacidade científica e tecnológica no país, além de aumentar a incorporação e conhecimento proveniente do exterior, hã diferenças importantes entre suas prioridades. Enquanto no PED a maior capacitação científica e tecnológica tinha por objetivo o desenvolvimento de tecnologias mais ajustadas à dotação de fatores de produção no país, de modo a assegurar maior absorção de mão-de-obra e criar um mercado de massas para garantir um crescimento auto sustentado, nos demais planos a ênfase recai sobre o aumento da competitividade da indústria brasileira e o fortalecimento da empresa nacional. No período coberto pelo II PND e II PEDCT, o discurso oficial passou inclusive a privilegiar o papel a ser exercido pela ciência e tecnologia no processo de desenvolvimento brasileiro como uma força motora, o conduto, porém excelência da ideia de progresso e modernização. Esta ênfase é substancialmente abrandada no III PBDCT que elege como objetivos prioritários a aplicação da ciência e tecnologia aos problemas energéticos, de desenvolvimento agrícola e desenvolvimento social. A distância entre o discurso oficial e a prática é, como se sabe, grande mas, mesmo assim, mo passado recente, o Brasil reforçou consideravelmente a sua capacidade científica e tecnológica, expressas numa população de pesquisadores ativos de cerca de 30 mil pessoas, em cerca de mil cursos de pós-graduação, onde estudam mais de 40 mil alunos e, por exportações, tanto de tecnologia (equivalentes às importações) e de produtos manufaturados de relativa sofisticação, inclusive de instalações fabris completas. Embora persistam sérias deficiências na estrutura científica e tecnológica brasileira, agravadas com a atual crise, os sucessos alcançados podem em boa medida ser creditados à política científica, e tecnológica explícita do Estado brasileiro.

 

2.2 – Execução e Financiamento das atividades de Ciência e Tecnologia

Os dados disponíveis sugerem que O Brasil gasta entre 0, 4 e 0,6% do PIB em ciência e tecnologia, Esta percentagem é semelhante a de outros países em desenvolvimento como o México, Argentina, Coreia do Sul e India, mas substancialmente inferior à dos países desenvolvidos. Embora os gastos brasileiros em volume (medidos em dólares) não sejam insignificantes em termos internacionais, cabe registrar que tais dispêndios destinam-se inclusive a montar uma estrutura de atividades científicas e tecnológicas, ao passo que os investimentos dos países desenvolvidos incidem sobre uma estrutura já constituída e eficiente. O quadro a seguir apresenta a evolução dos gastos em ciência e tecnologia para O período 1979/82 discriminados por entidades executoras com fontes financiadoras, segundo informações recentes do CNPq. Tais dados, no entanto, representam uma aproximação muito parcial da realidade. Assim, provavelmente subestimam o montante de gastos em tecnologia realizados pelo setor privado e incluem gastos públicos que apenas em sentido, muito amplo são atribuíveis a despesas em ciência e tecnologia (por exemplo, o aumento do capital da Nuclebras responde por 5.2% dos recursos em moeda local do Orçamento da União para Ciência e Tecnologia). O crescimento em valor real destes gastos em 1982 resulta, em proporção difícil de avaliar, da ampliação do tipo de dispêndios considerados como pertencentes ã categoria de ciência e tecnologia e do alargamento da base de informantes. Apesar dessas qualificações, o quadro mostra o papel crucial que o Estado brasileiro tem desempenhado tanto na execução de atividades científicas e tecnológicas no país, como no financiamento por meio dos Governos Federal e, em menor medida, Estaduais e das Empresas Estatais. Estas últimas financiaram com recursos próprios a maior parte (72%) dos seus gastos em ciência e tecnologia no período 1979/82, uma proporção substancialmente maior que o autofinanciamento do setor privado no mesmo período (50%). A outra metade dos gastos realizados pelo setor privado & financiada com recursos do Tesouro Nacional (28%) e por agências financeiras (22%). No passado recente, vem se modificando o peso relativo dos instrumentos financeiros utilizados pelo Estado brasileiro para cobrir os gastos nacionais em ciência e tecnologia, com a queda acentuada do papel desempenhado pelo FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) administrado pela FINEP. Tendo em 1976 atingido um pico de 1,168%, sua participação no Orçamento da União em 1984 (0.24%), foi inferior ao valor observado quando da sua constituição em 1970 (0.343).Em termos reais, o FNDCT reduziu-se a cerca da metade do valor  meta correspondente a 1976. Quanto à distribuição dos dispêndios nacionais em ciência e tecnologia, os dados disponíveis (apenas para o ano de 1983) sugerem que a prioridade atribuída pelo III PBDCT — a agropecuária e energia — vem sendo obedecida: estes dois setores respondem por mais da metade do referido gasto. Se a estes somam-se os recursos destinados a do “desenvolvimento científico e tecnológico” (provavelmente pós-graduação. e pesquisa na universidade) (14%) e as atividades destinadas à’ indústria (11%) atinge-se mais de três quartos do dispêndio total no ano. No entanto, a terceira prioridade do Plano, o desenvolvimento social, parece: ter recebido apenas 3,5% dos recursos. Em termos de gastos em atividades científicas e tecnológicas pelo setor empresarial privado e estatal, estimativas do CNPq para 306 empresas em 1979 sugerem que, entre as empresas privadas, os. gastos concentram-se no setor de material de transportes (um terço do total privado), ‘seguido pelo setor químico (14%) e autopeças (10%), predominando as despesas realizadas por empresas nacionais. Entre as empresas estatais nota-se uma concentração substancial em 10 empresas que respondem por 90 dos gastos de 97 empresas pesquisadas. Tais gastos concentram-se na área agropecuária (46%), geração e distribuição de energia (18%), química (11%) e telecomunicações (10%).2.3 – Política de compras das Empresas Estatais. A exigência de uso da tecnologia do exterior para a aquisição de serviços de engenharia e bens de capital, comum nas empresas estatais brasileiras na década de setenta, tendia a gerar um círculo vicioso em que seus fornecedores, por não terem experiência prévia do prestamento, eram forçados a usar licenciamento e, por usarem licenciamento, não desenvolviam uma capacidade própria de projetamento. Por conseguinte, dentre as medidas implementadas para fazer face aos problemas de balanço de pagamentos e ao peso que as importações de bens de capital haviam assumido na mesma época, incluiu-se a criação nas empresas estatais de Núcleos de “Articulação com a Indústria -NAIS. Estes Núcleos, que respondiam a uma Comissão de Coordenação cuja Secretaria Executiva era a FINEP, tinham por objetivo aumentar o conteúdo local das compras dessas empresas . Em fins de 1978 já haviam sido criados 106 NAIS, número que tem se mantido constante desde aquela data. A atuação dos NAIS’s no sentido de substituir importações de tecnologia e incentivar o desenvolvimento tecnológico autóctone dos fornecedores das empresas estatais varia bastante de setor em setor, à destacando-se os sucessos obtidos nas áreas de telecomunicações, energia elétrica e petróleo. Significativamente estes são os setores onde as empresas estatais vem investindo mais em pesquisa e desenvolvimento próprio e em “contratação de pesquisas extramuros. A eficácia tecnológica dos NAIs tem sido limitada tanto por fatores que fogem ao controle das empresas estatais (como o padrão de financiamento de seus projetos) como pela resistência interna ao uso de tecnologia local. Embora essa resistência se justifique em parte (e seja sempre justificada) por fatores de risco, contêm também elementos políticos e de preconceito que normalmente não são explicitados mas pesam substancialmente. Este viés cultural e político &, por vezes, agravação pela distância dos NAIs em relação aos centros decisórios das empresas estatais. A FINEP, como Secretaria Executiva do CCNAI, vem tentando minorar os problemas acima mencionados, pelo estabelecimento de dois tipos de convênio, de natureza complementar: (1) Acordo de Cooperação Técnica e Financeira com as empresas estatais, através do qual a FINEP coloca recursos para a fabricação pioneira de bens de capital em empresas nacionais selecionadas pelas empresas estatais, buscando inclusive a articulação dos fornecedores de equipamentos com instituições de pesquisa; (2) Acordo de Cooperação Financeira com a FINAME, tendo por objetivo garantir recursos para as empresas nacionais de bens de capital desde a fase de investimento em tecnologia até a comercialização e garantindo também às empresas apoiadas pela FINEP as taxas de juros favorecidas do Programa Especial da FINAME. Mais recentemente, o INPI bajula um ato normativo, cujo intuito é evitar que as empresas estatais, em suas licitações, imponham a seus possíveis fornecedores a obrigação de contratar tecnologia no exterior.

 

2.3 – Política de Compras das Empresas Estatais

A exigência de uso da tecnologia do exterior para a aquisição de serviços de engenharia e bens de capital, comum nas empresas estatais brasileiras na década de setenta, tendia a gerar um círculo vicioso em que seus fornecedores, por não terem experiência prévia do projetamento, eram forçados a usar licenciamento e, por usarem licenciamento, não desenvolviam uma capacidade própria de projetamento. Por conseguinte, dentre as medidas implementadas para fazer face aos problemas de balanço de pagamentos e ao peso que as importações de bens de capital haviam assumido na mesma época, incluiu-se a criação nas empresas estatais de Núcleos de Articulação com a Indústria -NAIS. Estes Núcleos, que respondiam a uma Comissão de Coordenação cuja Secretaria Executiva era a FINEP, tinham por objetivo aumentar o conteúdo local das compras dessas empresas. Em fins de 1978 já haviam sido criados 106 NAIS, número que tem se mantido constante desde aquela data. A atuação dos NAIS’s no sentido de substituir importações de tecnologia e incentivar o desenvolvimento tecnológico autóctone dos fornecedores das empresas estatais varia bastante de setor em setor, à destacando-se os sucessos obtidos nas áreas de telecomunicações, energia elétrica e petróleo. Significativamente estes são os setores onde a empresa estatal vem investindo mais em pesquisa e desenvolvimento próprio e em contratação de pesquisas extramuros

A eficácia tecnológica dos NAIs tem sido limitada tanto por fatores que fogem ao controle das empresas estatais (como o padrão de financiamento de seus projetos) como pela resistência interna ao uso de tecnologia local. Embora essa resistência se justifique em parte (e seja sempre justificada) por fatores de risco, contêm também elementos políticos e de preconceito que normalmente não são explicitados mas pesam substancialmente. Este viês cultural e político, por vezes, agravaram pela distância dos NAIs em relação aos centros decisórios das empresas estatais. A FINEP, como Secretaria Executiva do CCNAI, vem tentando minorar os problemas acima mencionados, pelo estabelecimento de dois tipos de convênio, de natureza complementar: (1) Acordo de Cooperação Técnica e Financeira com as empresas estatais, através do qual a FINEP coloca recursos para a fabricação pioneira de bens de capital em empresas nacionais selecionadas pelas empresas estatais, buscando inclusive a articulação dos fornecedores de equipamentos com instituições de pesquisa; (2) Acordo de Cooperação Financeira com a FINAME, tendo por objetivo garantir recursos para as empresas nacionais de bens de capital desde a fase de investimento em tecnologia até a comercialização e garantindo também às empresas apoiadas pela FINEP as taxas de juros favorecidas do Programa Especial da FINAME. Mais recentemente, o INPI baixou um ato normativo, cujo intuito é evitar que as empresas estatais, em suas licitações, imponham a seus possíveis fornecedores a obrigação de contratar tecnologia no exterior.

 

2.4 – Política da transferência de tecnologia

Desde 1972, com o novo Código de Propriedade Industrial, cabe ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) a apreciação e averbação dos contratos de importação de tecnologia, de uso das patentes e marcas e de serviços técnicos. A atuação desse instituto tem refletido, em primeiro lugar, a preocupação com a situação cambial do país. Assim, o INPI dá prioridade à importação de tecnologias que sirvam à substituição das importações ou à exportação. Ao mesmo tempo, busca e reduzir os gastos decorrentes da importação de tecnologia e do uso da propriedade industrial (patentes e marcas) estrangeira, tanto pela redução dessas importações como pela melhoria das condições de negociação dos empresários nacionais. Neste contexto, o INPI limita a duração e os níveis de pagamento à conta de tecnologia e proíbe cláusulas restrictivas nos contratos (por exemplo, restrições a exportações, importações “atadas” , sigilo apôs o término do contrato). O desenvolvimento tecnológico nacional constitui outra de suas prioridades. Neste sentido, tem procurado incentivar as empresas a ampliarem suas atividades tecnológicas no país e utilizarem a capacidade nacional existente, exigindo, em e certos casos, a realização de investimentos em pesquisa e de raça e tem no desenvolvimento como contrapartida a importação de. tecnologia e º uso de tecnologia nacional quando disponível. Mantêm também do Banco de patentes, que informa às empresas sobre tecnologias não patenteadas no país e, portanto, de livre uso pelas em meio Ta presas locais. Ao mesmo tempo, o INPI vem 1 estreitando « os seu usam laços com os institutos de pesquisa tecnológica e estimulando as empresas a fazerem o mesmo, não se dispõe de uma avaliação detalhada dos resultados das medidas tomadas pelo INPI, algumas de prazo recente. No entanto, informações setoriais, como no caso da indústria de bens de capital, sugerem que alguns desses objetivos, como o de reforço da capacidade de barganha na importação de tecnologia da parte de empresários nacionais, estão sendo atingidos . Do ponto de vista financeiro, os gastos com importação de tecnologia demonstram tendência cadente (US$ 218 milhões em 1983 contra US$ 321 milhões em 19805).

 

2.5 – Incentivos Fiscais

Os incentivos fiscais foram largamente utilizados como instrumento de política econômica para fomentar ampla gama de setores, até o passado recente. No entanto, para as atividades em ciência e tecnologia, o uso desse instrumento de fomento tem sido restrito, No presente, são concedidas isenção do imposto de importação (a empresas estatais, instituições e centros de pesquisa oficiais) e redução até zero da alíquota deste imposto (para empresas privadas) para produtos utilizados em pesquisa que não tenham similar no país. Segundo informações do CNPq, órgão que coordena e administra a concessão desses incentivos, as empresas públicas e privadas são suas maiores beneficiárias, destacando-se em termos setoriais um aumento da demanda provinda das áreas de comunicações, eletrônica e informática. No ano de 1983, os incentivos atingiram o montante de 25 bilhões; equivalentes a cerca de 4% dos gastos locais em ciência e tecnologia.

 

2.6 – Contradições entre a política de ciência e tecnologia e outras políticas

Ao lado das iniciativas acima descritas o Governo brasileiro adotava uma série de políticas que contradizem a orientação da política cientifica e tecnológica. A produção científica do país, por exemplo, foi prejudicada sensivelmente pelo afastamento compulsório do país de inúmeros-cientistas-e-pesquisadores e pelas restrições impostas à atividade interna-de-outros.- Tais medidas não afetam somente os indivíduos atingidos mas provavelmente tiveram importantes “efeitos de encadeamento”, dado o caráter coletivo do trabalho científico e o papel de liderança intelectual que os atingidos, com frequência, exerciam numa comunidade que já não era grande. É na área tecnológica, contudo, onde se constata uma contradição mais flagrante entre a política tecnológica explícita e as demais políticas econômicas executadas ao longo da última década. Enquanto a política tecnológica explícita postulava a busca de uma maior autonomia tecnológica como elemento de reforço da capacidade de competição da empresa nacional, as demais políticas tinham como efeito aumentar a importância da tecnologia vinda do exterior, embutida em bens de capital ou mesmo sob forma de acordos, quer pelo estímulo a entrada de capitais estrangeiros, quer pelo estímulo aos empresários nacionais a usar tecnologia importada como elemento de expansão e competição, entre si e com seus concorrentes estrangeiros. Apenas em alguns setores, notadamente em mini computadores e material aeronáutico, nota-se uma coerência entre a política tecnológica e as demais medidas dirigidas ao setor — notadamente a reserva de mercado para empresas nacionais, o controle de importações e o financiamento para instalação de capacidade de produção, nos mesmos moldes que ocorrem nos países centrais. As contradições observadas entre as políticas implícita e explícita de ciência e tecnologia no Brasil contrastam com a convergência constatada entre ambas nos países centrais. O sentido da política implícita encontra sua explicação no padrão de desenvolvimento, cujas características de crescimento “associado e dependente” são bem conhecidas. Cabem, no entanto, alguns comentários sobre a gênese da política explícita de ciência e tecnologia. Neste sentido, é importante notar que tal política surgiu a partir das iniciativas de um segmento do aparelho estatal — notadamente aquele sediado no Ministério (mais tarde total — notadamente aqui » Secretaria) do Planejamento e agências vinculadas (BNDE e FINEP). A este segmento, articulam-se grupos de interesse cuja constituição estão associada à expansão do sistema de pós-graduação e pesquisa e que tende a pressionar o Estado no sentido de assegurar a continuidade e a ampliação do seu apoio e área cientifica e tecnológica. A esses grupos, vêm se somando as empresas já beneficiadas ou potencialmente beneficiárias dos programas de fomento, especialmente aquelas que atuam em áreas onde a tecnologia é efetivamente um elemento importante de competição e expansão, como na indústria eletrônica. A atuação desses grupos empresariais pode induzir a maior atenção de outros segmentos do aparelho de Estado a questão do desenvolvimento tecnológico do país e propiciar a necessária convergência entre as políticas explicita e implícita de ciência e tecnologia. Mesmo porque à continuidade e expansão do suporte estatal ã área de ciência e tecnologia é condição necessária para que esta se consolide, ganhando massa crítica e escalas mínimas de produção de forma que os investimentos passados venham a ser efetivamente produtivos.

 

PARTE II – Uma Agenda de Médio Prazo

I – Introdução

Conforme enfatizamos na primeira parte deste trabalho, a principal atribuição da política tecnológica é gerar os mecanismos através dos quais os diversos segmentos da economia se tornam tecnicamente aptos a responder aos objetivos gerais da política econômica. Deste ponto de vista, no que diz respeito ao setor manufatureiro, a definição da política tecnológica deve ser derivada da estratégia que se pretende imprimir à evolução do setor industrial, onde duas preocupações centrais estarão presentes nos próximos anos: a retomada do crescimento econômico e a geração de superávits no balanço comercial. São conhecidas as trajetórias que podem ser perseguidas em resposta a tais preocupações: o aumento das exportações; a reativação e expansão do mercado interno; e a extensão devoção e à expo pauta de produção do país. Dado que cada uma destas trajetórias é individualmente insuficiente para assegurar os resultados desejados, compete à política industrial a tarefa de perseguir-las simultaneamente e de forma coordenada. Neste contexto, a política tecnológica deve ser orientada no sentido de criar as condições necessárias à viabilização das trajetórias apontadas. Além disso, a vontade de que a sociedade brasileira venha assumir maior grau de controle sobre os rumos do seu próprio processo de desenvolvimento impõe também o objetivo de aumentar a capacitação tecnológica do país, visando fortalecer o poder de competição da empresa nacional e responder às demandas específicas da sociedade e da economia brasileira. A persecução dos objetivos acima apontados pressupõe “reações de duas naturezas por parte do setor manufatureiro. Em a alguns casos, requer-se a ampla difusão, no âmbito do parque industrial brasileiro, de conhecimentos técnicos existentes no país ou no exterior; em outros, mais do que simplesmente utilizar técnicas disponíveis, requer-se das empresas industriais em mm o quantas a o pleno domínio da tecnologia utilizada, de modo a ensejar sua adaptação as especificidades do país e fortalecimento do poder de “competição “aos agentes produtivos nacionais. Estes dois requerimentos manifestam-se de forma diferenciada, em relação aos diversos setores industriais. Por conseguinte, a política tecnológica deve ser, ao mesmo tempo, uma política de difusão e uma política de geração e absorção de tecnologia, revestindo-se da necessária flexibilidade para enfatizar diferenciadamente cada uma destas faces em distintos setores.

2 – As implicações tecnológicas da estratégia de desenvolvimento industrial

Analisam-se a seguir as implicações tecnológicas das distintas partes que compõem a estratégia de desenvolvimento industrial a ser implementada na segunda metade dos anos oitenta.

 

2.1 – O desempenho exportador da indústria brasileira

Como um instrumento de sustentação do desempenho exportador da economia, a política tecnológica deve atuar sobre as três principais fontes de competitividade internacional da indústria brasileiras) idade tecnológica da capacidade produtiva, das vantagens comparativas específicas no comércio com outras economias em desenvolvimento já os custos relativos de mão-de-obra. Uma consequência relevante do processo de crescimento industrial que marcou o período 1968/1980 é a de que as principais indústrias estabelecidas no país dispõem no momento de uma capacidade produtiva cuja idade tecnológica &, em média, inferior a quinze anos. Para a maioria das indústrias responsáveis pela expansão das exportações de manufaturados nos  últimos dez anos, isto significa operar nas adjacências da fronteira tecnológica internacional. Exemplos notáveis neste sentido são os de celulose, petroquímica, siderurgia e diversos outros versos o segmentos do complexo metal mecânico. Ademais, a experiência adquirida através do esforço de vendas no exterior durante anos consecutivos, conduziu a uma expressiva melhoria dos níveis de eficiência empresarial, em termos de controle de qualidade, escolha de instrumentos adequados de comercialização, maior perceção dos sinais emitidos pelos mercados importadores, formação de equipes qualificadas para atuar na área internacional ,etc. recessão da década dos oitenta parece ter alterado as condições de competitividade em duas direções opostas. De um “lado, a queda dos investimentos, aliada à escassez de divisas, devem ter retardado a adoção de eventuais inovações tecnológicas em algumas indústrias. De outro, existe certa evidência de que as empresas de grande porte tenham sido forçadas pela crise a promover amplas reformas organizacionais, visando aprimorar as rotinas de controle sobre os custos correntes de produção, maior seletividade nas aplicações financeiras, e conferir maior precisão aos objetivos de médio prazo da empresa. A julgar pelos dados de balanço dos últimos dois anos, tais iniciativas produziram resultados compensadores. O impacto final sobre as condições de competitividade advindo desses dois tipos de eventos ainda estão por ser avaliado. contudo, é inequívoco que durante o período de retomada do crescimento competirá à política tecnológica a atribuição de corrigir as disparidades intra industriais de eficiência-provocadas . las pela recessão. Ao lado das condições genéricas acima referidas, importante tratar das vantagens comparativas específicas adquiridas pelo país quanto ao suprimento de produtos manufaturados e serviços de engenharia e assistência técnica a outras economias em desenvolvimento. Tais vantagens são oriundas do fato de que, em toda experiência de industrialização, alguma parcela da oferta de tecnologia é gerada localmente. A magnitude desta parcela varia directamente. com o. tamanho do mercado interno” e o grau de integração vertical alcançado pelo sistema industrial, estabelecido no pais. No caso brasileiro, a componente endógena de progreso técnico consistiu esencialmente, durante os últimos trinta anos, em mudanças adaptativas realizadas a partir de conhecimentos básicos importados dos países industrializados. Uma experiência desta natureza tende a gerar vantagens comparativas específicas quando a fronteira tecnológica internacional de determinados ramos de produção permanece relativamente inalterada. Neste contexto, as firmas brasileiras tornam-se mais habilitadas do que suas congêneres dos países tese industrializados para disputar os mercados daquelas economias com características estruturais sejam mais similares, às nossas NO area mapear eme e do que as do mundo desenvolvido. Entretanto, a manutenção no médio prazo dos atuais níveis de competitividade das firmas brasileiras não depende apenas de sua capacidade de prosseguir o desenvolvimento das técnicas produtivas vigentes, sob uma conjuntura de inércia relativa da fronteira tecnológica internacional, mas também de estarem habilitadas a enfrentar os impactos advindos de inovações que alterem radicalmente a concepção dos atuais processos produtivos. com efeito, quando o ritmo de progresso técnico não é muito intenso, os instrumentos usuais de competição, como redução de custos, diferenciação de produtos, novas estratégias de comercialização, etc., costumam ser suficientes para assegurar O desempenho exportador. Mas o advento de inovações radicais constitui um desafio de outro estilo, posto que -não se trata de uma perturbação conjuntural no ritmo dos negócios mas de uma mudança de caráter definitivo no modus operandi da industria. Neste caso, ao contrário do que acontece com à situação anterior, a pressão que estão sendo exercida sobre as firmas não é a de aumentar o poder de competição, dentro de um contexto em que os padrões de aferição &e desempenho estão razoavelmente definidos, mas de serem capazes de descobrir quais são as novas regras do jogo criadas pelo progresso técnico. Este esforço compreende decisões cujo risco é elevado, e que passam por: avaliar as características de nova estrutura de poder econômico que estiver sendo construída no plano internacional; identificar as estratégias de expansão compatíveis com o novo formato da base técnica do ramo; abandonar linhas de produção anteriormente rentáveis, com O ônus eventual do sucateamento de instalações recém-adquiridas, etc. As observações acima também se aplicam às indústrias onde o baixo custo da mão-de-obra é um fator importante de competitividade internacional, como têxtil e calçados. Por isso, a recente onda de automação nas atividades de confecção, que vem, ocorrendo em algumas economias industrializadas, representa uma ameaça não desprezível às perspetivas de médio prazo de nossas exportações de artigos de vestuário. É verdade que o padrão de competição dessa indústria oferece às firmas que resolverem retardar a adoção de determinadas inovações diversos mecanismos de defesa temporária de posições de mercado, como economias nos custos de comercialização, diferenciação de produtos, segmentação de mercado, etc. Contudo, a eficácia desses mecanismos: É inversamente proporcional à magnitude dos diferenciais de produtividade introduzidos pela mudança tecnológica. assim, caso se acelere a difusão internacional dos métodos automáticos, a indústria brasileira será forçada a enfrentar, O difícil dilema da geração de empregos versus a geração de divisas. As próximas seções deste trabalho procuram situar esta opção num contexto mais amplo.

 

2.2 – A ampliação da pauta de produção industrial

A extensão da pauta de produção ao longo do processo de industrialização se deu, fundamentalmente, através da substituição de importações. Mais do que a redução do coeficiente de importação da economia, foram a diversificação da produção local e os investimentos que lhe deram origem que caracterizaram o processo de substituição de importações. Neste contexto, inicialmente a pauta de importações e suas modificações constituíram indicadores da direção a ser imprimida às sucessivas ondas de investimento que fizeram avançar a constituição do parque industrial do país. Não obstante, o desdobramento do processo de substituição de importações não esteve restrito às indicações propiciadas pela pauta de importação; frequentemente, antecipando-se às importações, o parque produtivo local empreendeu a produção de bens ainda não consumidos de forma significativa no país, seja daqueles cuja demanda emergia como resultado do próprio avanço do processo de industrialização, seja daqueles cuja produção recém aparecia nas economias industrializadas. Deste ponto de vista, é possível distinguir, dentre os investimentos que propiciaram a extensão da pauta de produção do país, aqueles que promoveram a substituição de importações efetivas e aqueles que estiveram associados a importações virtuais, ou apenas emergentes. Ao contrário do observado no passado, quando a substituição de importações efetivas constituiu a principal fonte de dinamismo do processo de expansão industrial, é de se esperar que as respostas a importações virtuais representem, na segunda metade dos anos oitenta, uma contribuição mais significativa ao crescimento. De fato, embora seja previsível um aumento expressivo do volume das importações tradicionais no contexto de uma retomada do processo de crescimento, o avanço já alcançado na constituição do parque industrial e as características da pauta de produtos manufaturados ainda importados limitam as possibilidades de ampliação da pauta de produção do país através da produção local de bens tradicionalmente importados. “Por outro, lado, a resposta ao aparecimento de novos produtos nas economias mais desenvolvidas através da produção local desses bens permite transferir ao setor manufatureiro do país pelo menos parte do dinamismo gerado por aquelas. inovações. Evidentemente, a importância destas substituições antecipadas de importações como fator de crescimento dependerá do ritmo de inovação e progresso técnico daquelas economias. As possibilidades abertas, em particular, pelas inovações no campo da microeletrônica fazem prever, no entanto, um fluxo significativo de novos produtos, capaz de conferir elevado dinamismo a determinados segmentos do setor manufatureiro. Dado que esta extensão da pauta de produção se apelar na reprodução no país. de um percurso externo de inovações, as subsidiárias de empresas estrangeiras aparecem, mais uma Vez, com as. promotoras naturais dessas substituições antecipadas de importações. Estas empresas podem ser induzidas a assumir escola” de papel através da mobilização de instrumentos tradicionais de política industrial, tais como proteção tarifária e incentivos ao investimento. ademais, independentemente de tais instrumentos, a própria competição entre estes produtores estrangeiros e a tentativa de assegurar vantagens sobre seus rivais podem ser suficientes, em alguns casos, para induzi-los a empreender coprodução local. Uma atuação governamental mais efetiva e direta será elos requerida, no entanto, ao se » pretender a participação de produtores nacionais neste processo de extensão da pauta de produção. Face o elevado, conteúdo te tecnológico da maioria dos novos produtos, esta atuação-deverá-privilegiar a capacitação técniproduicio, tsca de empresas nacionais. O grau de capacitação requerida poderão diferir; em alguns casos, a simples transferência de tecnologia. do exterior será suficiente; em outros, os produtores locais deverão assimilar efetivamente o know-how envolvido de modo a se habilitarem a acompanhar, com maior autonomia, os possíveis desdobramentos de tais inovações. Esta maior capacitação tecnológica deverão ser perseguida, em particular, em relação a àquelas; inovações potencialmente mais férteis em inovações secundárias e capazes de impacto mais profundo no nível de eficiência do sistema produtivo. A eficácia de uma ação governamental neste sentido dependerão, no entanto, de se associar a mobilização de instrumentos específicos de política tecnológica a um conjunto de medidas de política industrial capaz de garantir a sobrevivência dos produtores nacionais durante o período de tempo requerido para sua efetiva capacitação. Assinale-se que, dentre os novos produtos passíveis de serem incorporados à pauta de produção do país, deverão incluir-se igualmente bens de consumo e de produção. Em relação a estes últimos, em particular, a ação governamental deverá revestir-se da necessária cautela para que o esforço para viabilizar a extensão da pauta de produção do país e para assegurar a existência de produtores nacionais não tenha como resultado dificultar excessivamente a utilização destes novos produtos no parque produtivo do país, com eventuais prejuízos para seu nível de eficiência. Aponte-se, por fim, que as medidas de estímulo à extensão da pauta de produção do país não devem estar restritas as possibilidades associadas à substituição de importações efetivas e virtuais. Na verdade, a política tecnológica deve ter presente igualmente a necessidade de inovações que venham a responder a demandas específicas da sociedade e da economia brasileira — seja no tocante ã satisfação de necessidades básicas da população, seja com vistas ao aproveitamento de matérias-primas peculiares ao país. Em relação ao atendimento de tais demandas, as possibilidades de recorrer & tecnologia proveniente do exterior são certamente limitadas.

2.3 – A expansão do consumo interno

No que diz respeito ao setor industrial, a reativação e expansão do mercado interno poderão manifestar-se através da recuperação dos níveis de consumo de camadas de rendas médias e altas da população ou através da ampliação do mercado de consumo de massa. Embora as duas alternativas não sejam completamente excludentes, as condições necessárias a avanços significativos em uma destas direções, notadamente aquelas referentes à estrutura de distribuição de renda, se constituem, em certa medida, em obstáculos a progressos no caminho alternativa. Ao contrário da experiência do final dos anos sessenta, não parece possível perseguir agora prioritariamente a primeira alternativa acima apontada. Não obstante, a reativação do consumo das camadas de rendas médias e altas pode ainda constituir um fator de crescimento na segunda metade desta década, cujo impacto, ainda que de propagação limitada no âmbito do setor industrial, seria suficiente para conferir dinamismo a alguns de seus segmentos. Como no passado, essas reativações tenderão a resultar da absorção de padrões de consumo gás economias desenvolvidas, apoiando-se no fluxo de novos produtos originados, naquelas economias. Neste contexto, estaria associada à extensão de pauta de produção local, através da antecipação de produtores estabelecidos no país à importação daqueles bens. Deste ponto de vista, os comentários anteriores referentes à substituição de importações virtuais descrevem adequadamente as implicações e exigências, relativas à política tecnológica, da reativação do consumo dos grupos de maior renda. No tocante à ampliação do mercado de massa, seus requerimentos tecnológicos são contraditórios. De um lado, a necessidade de avançar sucessivamente na direção de estratos de renda mais baixa impõe transformações técnicas que ensejem aumentos de produtividade e reduções de custo e viabilizem preços menores. Em particular, face à elevação dos salários reais que, ê de se esperar, deverá ocorrer nos próximos anos, estas mudanças técnicas voltadas para O aumento da produtividade aparecem como necessárias para evitar que estes ganhos salariais acentuam as pressões inflacionárias. Por outro lado, tais transformações estão associadas, em geral, a menores requisitos de mão-de-obra; as consequências desta tendência são sobretudo significativas no caso dos segmentos produtores de bens de consumo popular, uma vez que estes segmentos respondem por parcela expressiva do emprego industrial. Neste contexto, os requerimentos para a ampliação do mercado a nível de indústrias específicas tendem a apresentar um efeito perverso do ponto de vista da expansão da demanda por bens de consumo da economia como um todo. Não cabe certamente sacrificar o processo de mudança tecnológica e os ganhos de produtividade daí derivados às preocupações quanto à absorção da mão-de-obra. Embora, a curto prazo, o efeito redutor do emprego daquelas mudanças possa ser, pelo menos parcialmente, compensado pela contribuição positiva resultante da expansão do mercado e do aumento de produção, há que reconhecer que; a longo prazo, o problema do emprego no Brasil não poderá ser resolvido com base na indústria de transformação. Não obstante, não cabe também ignorar os efeitos daquele processo do ponto de vista da questão do emprego. Assim, a política tecnológica deve ser articulada, no âmbito da política industrial, a uma política de emprego de modo a eventualmente identificar setores nos quais a manutenção do nível de emprego deva ser enfatizado; a evitar o sacrifício desnecessário de postos de trabalho; e a promover o treinamento e a reabsorção da mão-de-obra dispensada em virtude do processo de mudança tecnológica.

 

3 – Características e principais medidas da política tecnológica

Os comentários anteriores relativos às experiências internacional e brasileira de atuação governamental na área de ciência e tecnologia e às implicações tecnológicas da estratégia de desenvolvimento industrial sugerem as principais características de que se deve revestir a política tecnológica na segunda metade dos anos oitenta. Em primeiro lugar, caberá dar prosseguimento aos esforços feitos nos últimos quinze anos de modo a consolidar e reforçar a infraestrutura científica (notadamente pesquisa e ensino de pós-graduação) e tecnológica (sistemas de treinamento, informação, normalização, metrologia, controle de qualidade e as instituições de pesquisa tecnológica). Estas infraestruturas, de natureza diferenciada embora inter-relacionadas , requerem políticas igualmente diferenciadas. Por outro lado, a consecução dos objetivos de desenvolvimento industrial antes discutidos requerem políticas seletivas destinadas a fomentar a geração de progresso técnico interno e absorção efetiva dos conhecimentos gerados no exterior. Para que isso se dê, necessário que as medidas de política tecnológica propriamente dita (política explicita) estejam articuladas de forma consistente e coerente com as demais medidas política econômica , notadamente a politica industrial. Por fim, a importância do progresso técnico para O futuro da sociedade brasileira e o caráter coletivo do processo de geração e aplicação dos conhecimentos técnicos impõem um amplo escopo à política tecnológica. No entanto, as condições que regem a produção e apropriação de conhecimentos científicos “e técnicos são tais que os estímulos de mercado, isoladamente |, não são suficientes para gerar o resultado socialmente desejável. Cabe, portanto, ao Estado um papel fundamental no projeto acima mencionado, no Brasil como em outros países. No nosso país, a necessidade dessa participação é acentuada pelo subdesenvolvimento histórico da estrutura de produção de ciência e tecnologia e pelo entranhamento da dependência tecnológica no corpo produtivo nacional. Não obstante, se não houver um decidido engajamento do setor empresarial, notadamente O nacional, a intervenção do Estado tenderá a fracassar.

3.1 – Políticas de Redução de Custos das Atividades Tecnológicas

1) Via Instrumentos Creditícios

Esta tem sido a forma mais tradicional de apoio ao desenvolvimento tecnológico industrial. Conforme já foi mencionado, em diversas agências governamentais de financiamento existem linhas de-crédito com esse propósito abrangendo toda a gama de atividades tecnológicas. Essas linhas, no entanto, o precisam ser revitalizadas com recursos e seus procedimentos o operacionais expedita dos., Ao mesmo’ tempo, deveriam ser implementados mecanismos eficazes de coordenação entre agências, visando especialmente programas setoriais, de acordo com a seletividade já mencionada. Cabe notar, porém, que os custos das atividades de pesquisa e desenvolvimento respondem apenas por uma parcela dos custos prévios à introdução de uma inovação (cerca da metade, nos países desenvolvidos). Os demais custos são em regra financiados, no caso brasileiro, por outras instituições ou linhas de crédito que não as de fomento tecnológico. Tal financiamento & geralmente concedido com base em critérios que não privilegiam o desenvolvimento tecnológico total, mas antes frequentemente o desestimulam por conservadorismo excessivo. Assim, esta área constitui um exemplo típico da necessidade de integrarem-se políticas explícitas e implícitas de tecnología. Ao mesmo tempo, esta integração sugere a necessidade de manter os laços entre entidades de crédito e instituições de pesquisa e aí informação tecnológica que asses: soram as decisões de financiamento.

2) Via Incentivos Fiscais Embora largamente utilizados nos países desenvolvidos, os incentivos fiscais à pesquisa e desenvolvimento são reduzidos no Brasil, limitando-se, como vimos anteriormente, a isenção dos impostos de importação e do IPI para produtos sem similar nacional, destinados a atividades de pesquisa e desenvolvimento. Face à crise fiscal brasileira, a concessão de novos incentivos deveria ser precedida de estudos cuidadosos que levem em conta a experiência de outros países. Sua eventual implementação deveria ser provida de salvaguardas que garantam a efetiva aplicação dos recursos das empresas em atividades de P&D.

3) Via Associações de Pesquisa A associação entre empresas para dividir os custos de atividades tecnológicas de interesse comum & frequentemente erram me reta tem a meme observada na Europa e no Japão e começa a se difundir nos. Estados Unidos. É um mecanismo de especial utilidade para pequenas e médias empresas, permitindo-lhes um progresso técnico que, à isoladamente, não alcançariam. Embora iniciativas desse tipo não necessitem da participação do Estado, podendo ser promovidas por entidades patronais de forma independente, o Estado deve fomentá-las de maneira seletiva, utilizando instrumentos financeiros e fiscais e o poder catalítico das compras das empresas estatais, as quais reúnem várias empresas privadas com problemas técnicos frequentemente similares.

 

3.2 – Políticas de Redução de Riscos

1) Via Capital de Risco

O maior obstáculo à inovação tecnológica provém da incerteza quanto a seus resultados, o que implica altos riscos técnicos, econômicos e financeiros. Inexistente, no mercado de capital brasileiro, instituições privadas dispostas a investir capital de risco em empresas inovadoras, notadamente pequenas e médias empresas. Iniciativas neste sentido .por parte de tais instituições, como aquelas que apoiaram o desenvolvimento do setor eletrônico nos Estados Unidos, teriam evidentemente impactos importantes. Ao mesmo tempo, O Estado brasileiro pode participar deste processo através de suas instituições de crédito, buscando inclusive a participação das entidades privadas. Os mecanismos legais para esta atuação já existem (por exemplo na FINEP e no Sistema BNDES) cabendo ativá-los em condições operacionais eficazes e, preferencialmente, no âmbito de programas setoriais seletivos.

2) Via Proteção no Mercado Interno

A produção de tecnologia nacional tem as características de uma “indústria nascente”, marcada por economias de aprendizado ao longo do tempo e produtividade crescente, justificando-se assim sua proteção contra a competição externa, dentro de certos limites dados pela necessidade de aproveitamento do progresso técnico gerado no exterior e pelos custos adicionais eventualmente impostos aos usuários do conhecimento técnico endogenamente gerado. Assim, dentro destes limites, cabe desnível no mercado interno ou quando sua maturação esteja próxima, sob pena de inibir o desenvolvimento tecnológico nacional. Mesmo quando a importação de tecnologia seja necessária, cabe tomar medidas que assegurem que essa tecnologia seja efetivamente absorvida, posto saber-se que o funcionamento espontâneo do mercado faz com que apenas parte dos conhecimentos sejam internalizados, ficando outras partes (p.ex. o “desenho básico” de produtos) sob posse e controle do, detentor original da tecnologia. Este esforço de absorção, obviamente, também deverá ser seletivo, dado que nem todas as tecnologias importadas terão condições de serem absorvidas nem será conveniente que sejam gastos recursos escassos (humanos, materiais e financeiros) para esse fim. Conforme já foi mencionado, o ÍNPI vem atuando dentro da perspectiva acima esboçada, devendo manter-se e reforçar esta política, tanto pelo aperfeiçoamento dos recursos do Instituto como pela consolidação dos seus vínculos com entidades de pesquisa, empresas industriais e de consultoria. Onde a ação do INPI parece necessitar de modificações maiores é no uso do instrumento clássico de proteção à atividade tecnológica, as patentes, cujo processamento poderia ser substancialmente a rara armar? Aperfeiçoado. Dada a sua importância em setores tecnologicamente estratégicos, as compras das empresas estatais constituem um instrumento básico nessa política. A experiência brasileira e de outros países demonstra, no entanto, que não é suficiente proteger as atividades tecnológicas nacionais. Se a proteção meti. em ma temente, mas não mesmo a não se estende aos produtos. e processos em que estas atividades resultam, a, proteção ã tecnologia acima mencionada tende a frustrar-se. Aqui, mais uma vez, encontra-se a necessidade de que ” : integrar a política tecnológica com a política industrial, utilizando instrumentos como a proteção tarifária, preferências nas aquisições estatais, etc. Este tipo de proteção abrangente, a ser administrada de forma seletiva, afigura-se especialmente importante para aqueles produtos e processos para os quais se almeja uma “substituição de importações preventiva”, um dos pilares da estratégia industrial brasileira antes discutida.

3) Via Proteção ao Mercado Externo

As receitas cambiais provindas da venda direta de tecnologia brasileira e de produtos e serviços que incorporam tecnologia gerada internamente tem aumentado de importância. No Brasil, até agora, o sistema de patentes tem sido utilizado principalmente por firmas de origem externa para reservar o mercado brasileiro aos seus produtos e/ou tecnologia. No entanto, na medida em que as firmas brasileiras patenteiam suas inovações no país e utilizem os direitos de prioridade internacional dados pelo sistema internacional de propriedade industrial, este poderão ser utilizado a seu favor no exterior. Para tanto, seria útil o apoio do INPI e do Ministério de Relações Exteriores, bem como dos mecanismos de financiamento às exportações, inclusive financiando os gastos de patenteamento. A essa proteção legal dever-se-iam acrescentar instrumentos que certifiquem a qualidade técnica dos produtos nacionais, a exemplo do que foi feito pela indústria aeronáutica junto a entidade certificadora americana, sem prejuízo de que se montem no Brasil entidades certificadoras de rigor semelhante que, no futuro, sejam reconhecidas como tal no exterior. No entanto, analogamente ao que ocorre no mercado interno, a capacidade tecnológica brasileira não gerará exportações significativas se não forem adotadas medidas de proteção aos produtos em que se incorpora. Entre curtos, mesmos financeiros adequados é essencial para a venda no exterior de sistemas de produtos e processos, como no caso de serviços de consultoria e bens de capital.

 

3.3 – Políticas de Atualização Técnica e. Difusão Tecnológica

As medidas acima discutidas orientam-se prioritariamente para o esforço de inovação tecnológica endógena. Os objetivos do desenvolvimento industrial brasileiro requerem, no entanto, que, ao mesmo tempo, o parque industrial se engaje num esforço contínuo de atualização tecnológica, conforme indicado nas seções anteriores deste trabalho. Surgem nesse contexto. Alguns trade-offs entre importação de tecnologia e geração interna nas atividades tecnológicas em que não são complementares (p.ex. projeto básico de produtos e processos), Os quais terão que ser resolvidos caso a caso, em função do custo e do tempo de maturação das alternativas locais e importadas. Existem, porém, medidas que servem a estimular a atualização tecnológica, quer se utilizem tecnologias nacionais ou importadas. Entre estas destacam-se:

1) Reforço da infraestrutura tecnológica

Entende-se aqui por infraestrutura tecnológica os serviços de informação, controle de qualidade, normalização e treinamento de pessoal especializado. Estes serviços são notoriamente deficientes no Brasil, sendo necessário, como já foi mencionado, reforçá-los substancialmente.

2) Medidas para utilização de equipamentos e processos mais modernos. Como a tecnologia industrial se incorpora em processos e equipamentos, o Estado pode fomentar a sua substituição por “safras” mais modernas mediante o uso de mecanismos fiscais, p.ex. admitindo a depreciação acelerada de ativos fixos em setores selecionados. Adicionalmente, tanto por instrumentos fiscais como creditícios, o Estado pode incentivar o leasing de máquinas mais modernas em setores escolhidos. Finalmente, cabe uma vez mais notar o papel que as empresas estatais podem desempenhar nesse processo, difundindo junto aos seus fornecedores o progresso técnico a que tem acesso tanto no país como no exterior.

 

4 – O aparato institucional da política científica e tecnológica

Conforme foi visto em seção anterior, na última década estruturou-se no Brasil um sistema institucional de formulação e implementação de política científica e tecnológica bastante complexo. A localização desse aparato dentro da máquina do Estado brasileiro parece adequada, especialmente a vinculação do seu órgão central, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) à secretaria de Planejamento da Presidência da República. Esta solução parece mais apropriada às características das atividades cientificas e tecnológicas, que permeiam vários Ministérios, do que a solução, frequentemente aventada, de um Ministério específico de Ciência e Tecnologia que, situado no mesmo plano dos demais Ministérios, faria face a problemas insuperáveis de coordenação e implementação de políticas. No entanto, do ângulo da política institucional de ciência e tecnologia, persistem alguns problemas importantes no sistema nacional, vistos a seguir.

4.1 – Informações

Apesar dos esforços feitos pelo CNPq, as informações disponíveis sobre as atividades científicas e tecnológicas seus executores, financiadores e sua aplicação ainda são muito precárias. A primeira parte deste trabalho sugeriu’ que o crescimento destas atividades no país no passado recente estão provavelmente substancialmente sobrestimado. Em contrapartida, há um grande desconhecimento do que É feito no setor industrial privado, O que limita seriamente a + formulação da política tecnológico. Um dos requisitos importantes ã execução da política tecnológica & a disponibilidade de informações acuradas sobre as diversas modalidades de mudança tecnológica vigentes no interior do sistema, industrial, bem como os respetivos papéis que desempenham no processo de crescimento de firmas e setores. Isto requer a compilação periódica de estatísticas sobre a geração, incorporação e difusão de inovações na «economia, permitindo assim a caracterização da natureza e do ritmo do progresso técnico em curso. Tal como ocorre com os demais indicadores econômicos, o levantamento de tais estatísticas só e factível quando amparado por critérios metodológicos nítidos e consistentes. Além dos levantamentos estatísticos tradicionais sobre a execução e gastos em pesquisa e desenvolvimento, tais como são feitos nos países da OECD e que deveriam ser adequados a as condições nacionais, explicitando-se as diferenças para efeitos &e comparação, uma metodologia que atende às finalidades acima é a da construção de matrizes de fluxos intersectorial de tecnologia, que descrevam as fontes geradoras e áreas. de aplicação das técnicas produtivas em uso na economia. «A partir deste tipo de matriz, e possível estabelecer uma classificação de indústrias segundo o poder de comando que estas exercem sobre a variável tecnológica, Existem indústrias cujo progresso técnico é predominantemente exógeno, no sentido de que são consumidoras de inovações produzidas em outros ramos de economia. O exemplo clássico & da têxtil: desde a revolução industrial o desenvolvimento tecnológico dessa indústria tem se baseado fundamentalmente na incorporação de inovações concebidas por fabricantes de equipamentos ou firmas da indústria química. Ao lado de facilitar o acesso às fontes de tecnologia aos competidores potenciais, isso retira das firmas dessa indústria a capacidade de influir no curso e no ritmo do progresso. Em contraposição, existem indústrias cujo progresso técnico e predominantemente endógeno. Nestas indústrias produtoras de inovações, o poder de comando de algumas empresas sobre a direção e a cadência do progresso técnico consiste no mecanismo primordial de competição.

Outras aplicações imediatas desta metodologia são a de indicar o grau de dependência das diferentes indústrias em relação a tecnologias importadas, o horizonte potencial de difusão de determinadas inovações, e os impactos macroeconômicos advindos de diferentes’ composições dos gastos em pesquisa e desenvolvimento. A Colaboração do setor privado industrial para o levantamento de informações como as acima sugeridas evidentemente, crucial. Esta cooperação trará, no entanto, retornos nível de cada empresa, – não sô através de um maior conhecimento do contexto macroeconômico que circunscreve suas atividades tecnológicas. Como pelos efeitos de uma política científica e tecnológica melhor concebida e executada

 

4.2 — Articulação entre a política científica e tecnológica e as demais políticas

 

N decorrer deste trabalho enfatizou se que a eficácia da política científica e tecnológica industrial depende de sua articulação com as demais medidas de política econômica. Apesar dos esforços feitos para o maior entrosamento do Conselho Científico e Tecnológico do CNPq com outros conselhos de política industrial (ex. Conselho de Desenvolvimento Industrial) e das “Ações Programadas” do CNPq, de âmbito setorial, às deficiências nesta área são enormes e tem frequentemente frustrado os propósitos da política tecnológica especialmente no que toca à indústria.

Cabe ressaltar que, mesmo completando-se a estruturação formal do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia (SNDCT) mediante a (SNDCT) mediante a criação de órgãos setoriais no âmbito de cada Ministério, o problema radica mais fundo — na ausência de uma política industrial com objetivos setoriais e tecnológicos definidos. Somente com essa política, e a convergência das ações dos vários instrumentos da política econômica para alcançar os seus objetivos, será possível lograr a necessária articulação entre as políticas tecnológicas industriais explícitas e implícitas

 

4.3 – Representação dos Interesses Industriais

O Conselho Científico e Tecnológico do CNPq é composto de 31 membros, dos quais 16 são ex-officio (representantes de instituições governamentais e da Academia Brasileira) e 15 são membros individuais. A representação dos interesses industriais é, como se vê, não institucional e limitada

Esse fator limita seguramente a – fi a formulação de uma política científica e tecnológica adequada às necessidades e condições da indústria nacional. Dado o papel que esta deverá desempenhar no Processo de desenvolvimento tecnológico e científico parece legítimo, e útil para todos, que a representação industrial privada na formulação da política tecnológica nacional seja ampliada e institucionalizada.

 

 

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  1. Introdução: PNI e NPI
A Política Nacional de Informática (PNI) brasileira tem seis características principais: - A identificação da eletrônica como area estratégica do ponto de vista econômico, político e militar; - Estar baseada no mercado...

Um economista do desenvolvimento

Wagner Bittencourt de Oliveira, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

texto escrito pelo então Vice-presidente do BNDES

Fabio Erber foi um economista do desenvolvimento, precursor e protagonista das políticas de inovação no Brasil. Homem de ideias e ações que teve sua trajetória profissional marcada pelo desafio na realização de mudanças econômicas fundamentais para o país. Professor, intelectual e policy maker, sua produção científica influenciou gerações de economistas, e englobou desde o reconhecimento do papel fundamental de setores como bens de capital, até questões mais centrais do pensamento desenvolvimentista. 

No BNDES, onde ingressou como economista em 1964, ocupou duas vezes o cargo de diretor, participando de ações que marcaram momentos importantes da instituição. Em 1992-1993, foi responsável pelas áreas de crédito direto para a indústria, agricultura e serviços, em um período delicado de tentativa de recuperação do papel das políticas de longo prazo. Como diretor responsável pela Área de Planejamento, em 2003-2004, participou direta e ativamente da formulação e execução da primeira iniciativa de política industrial, com foco na estrutura produtiva do país, considerando o papel diferenciado de setores e cadeias produtivas na dinâmica do desenvolvimento econômico e das inovações tecnológicas. Em 2004, de forma a contribuir para a implementação da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), lançou o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica (Profarma) do BNDES, que contemplou subprogramas específicos de estímulo ao investimento, ao fortalecimento das empresas nacionais e a pesquisa, desenvolvimento e inovação. Nesse mesmo ano, foi recriado o Fundo Tecnológico (Funtec), destinado a apoiar a inovação com recursos do lucro do BNDES, o qual recupera importante instrumento complementar ao crédito e à participação acionária, extinto quando da criação da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), atual Agência Brasileira de Inovação.

A lembrança que fica é que suas ideias não estavam restritas apenas ao mundo acadêmico. Fabio Erber esteve diretamente envolvido na formulação e execução da política econômica de longo prazo, em especial da política de desenvolvimento tecnológico e industrial, nos momentos cruciais do país.

Prefácio

Com a publicação deste livro, o BNDES presta uma merecida homenagem a Fabio Erber, reconhecido como um homem singular com capacidade plural. Não apenas por seu valioso legado à economia política e à teoria do desenvolvimento, mas por sua ampla cultura e engajamento...

Prefácio

Luciano Coutinho, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

Com a publicação deste livro, o BNDES presta uma merecida homenagem a Fabio Erber, reconhecido como um homem singular com capacidade plural. Não apenas por seu valioso legado à economia política e à teoria do desenvolvimento, mas por sua ampla cultura e engajamento político para o progresso industrial do Brasil. 

Este grande economista do desenvolvimento e da inovação foi pioneiro em entender, elaborar e introduzir no Brasil e na América Latina algumas das percepções mais avançadas sobre tais temas. Aliou com destreza essa capacidade com criatividade, perspicácia e conhecimento dos contextos históricos e políticos. 

Como mostrado por diferentes autores neste livro, Fabio Erber foi responsável por inaugurar linhas de pesquisas, as quais abrangeram desde seu foco central em política industrial e tecnológica, até as pesquisas sobre defesa da concorrência e economia política monetária contemporânea. Com competência incomum, articulou estudos teóricos de diversas linhas do pensamento com o desenho pragmático de políticas. Destaquem-se, em particular, suas contribuições à formulação de políticas de desenvolvimento estruturantes com visão de longo prazo. 

Conheci Fabio Erber quando juntos, ele como secretário executivo adjunto, estruturamos o Ministério da Ciência e Tecnologia. Trabalhamos intensamente durante quatro anos, entre 1985 e 1988. Depois desse período, mantivemos durante muito tempo estreita interação intelectual e acadêmica, ele como pesquisador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e eu como professor da Universidade Estadual de Campinas. 

Como cidadão político e no exercício das funções de professor, pesquisador, economista profissional e gestor governamental, sempre se pautou pelo espírito público e pela dedicação ao desenvolvimento do Brasil. Fabio Erber honrou esses valores como poucos. Tal como testemunham os autores deste livro, suas contribuições têm grande amplitude e aplicabilidade. Esperamos que a publicação deste livro contribua para revigorar suas reflexões e para estimular processos criativos de aprendizado.

Sua atuação no BNDES, igualmente destacada no livro por executivos e ex-assessores, ofereceu-lhe a oportunidade de experimentar na prática os sofisticados e densos conhecimentos que acumulou. Sentimos sua falta. Principalmente quando se registram no Brasil importantes avanços econômicos, sociais, políticos e institucionais, que contribuem para mitigar desigualdades e implantar as bases para impulsionar um ciclo virtuoso de desenvolvimento, que combina um quadro macroeconômico estável com enraizamento da democracia e da inclusão social, dinamização do mercado doméstico, expansão do crédito e grande potencial de investimentos em infraestrutura e revitalização industrial. Quando o mundo inteiro busca novos modos de desenvolvimento sustentável social e ambientalmente, novos paradigmas produtivos e inovativos e atividades motoras do dinamismo e, em seus próprios termos, novas convenções do desenvolvimento. Quando o BNDES e demais bancos oficiais são convocados para atuar de modo ainda mais vigoroso com o objetivo de contra-arrestar os impactos negativos da crise internacional e de formular novas propostas para o desenvolvimento de longo prazo. E quando uma nova geopolítica mundial se configura, acompanhada da reestruturação dos organismos internacionais de financiamento, exigindo novos papéis e formas de atuação dos bancos de desenvolvimento, individualmente e em conjunto, reunindo diversos países, como é o caso de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (Brics). 

Rendemos, assim, nossa homenagem a esse grande brasileiro que dedicou a vida ao desenvolvimento. Como comprova este volume, seu importante legado ao entendimento do desenvolvimento produtivo e inovativo, especialmente no Brasil e em países latino-americanos, nos oferece alento e, acima de tudo, valiosas lições. Lições estas que em muito nos auxiliam a compreender os desafios do futuro, assim como ajudam a desenhar novas políticas voltadas para as oportunidades que se descortinam. 

Bom proveito deste mergulho no patrimônio precioso de conhecimentos que Fabio construiu e nos legou.

Inovação e desenvolvimento: a força e...

1. Introdução 

As noções de que o desenvolvimento econômico e social resulta de mudanças qualitativas e de que nessas transformações a endogeneização da capacidade de promover inovações tem um papel central incluem-se entre as principais...

Inovação e desenvolvimento: a força e permanência das contribuições de Erber

Helena M. M. Lastres, José Cassiolato, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

The text examines some of Fabio Erber’s central contributions to Latin-American thought on development, technology and policy – the importance of endogenizing technical progress, the systemic nature and the local specificities of the innovation process, etc. and the role of the State in these processes. This recalls Erber’s discussion on the function of explicit and implicit policies; aspects of macro, meso and micro innovation; technological and economic relations of Latin-American countries with the most advanced countries and transnational corporations located there; the capacity of local companies to acquire technological know-how; and the limitations of using foreign technology as a focus and the main mechanism for local capacity-building. The text argues that Erber’s ideas, besides representing a pioneering contribution to understanding the circumstances that restricted the creation of production and innovative capacity in Latin-American economies over the last century, are still extremely useful in understanding the limits of current policies, dilemmas and opportunities for Brazilian development.

1. Introdução 

As noções de que o desenvolvimento econômico e social resulta de mudanças qualitativas e de que nessas transformações a endogeneização da capacidade de promover inovações tem um papel central incluem-se entre as principais contribuições da abordagem estruturalista latino-americana. Surgidas no debate que teve lugar ao fim da Segunda Guerra Mundial, essas noções se intensificaram com o reconhecimento dos limites do processo de substituição de importações nos anos 1960, entre outros aprendizados práticos e teóricos, sofrendo aperfeiçoamentos que as revigoram até os dias de hoje. A sua prevalência é reconhecida, pois, apesar de inúmeras tentativas de promover capacitações científico-tecnológicas, as estruturas produtivas dos países latino-americanos, incluindo o Brasil, continuam a apresentar fragilidades na montagem de uma estrutura inovativa autóctone e dinâmica. Fabio Erber foi tanto um dos pioneiros como um dos expoentes nesse debate. Produziu, especialmente nos anos 1970 e 1980, contribuições clássicas que ainda se mostram atuais e valiosíssimas para se compreenderem os processos de desenvolvimento tecnológico na região, seus problemas e limitações e os impasses que dificultam e restringem uma efetiva incorporação virtuosa do progresso técnico nas economias latino-americanas.

Interagimos com Fabio Erber em diferentes circunstâncias e situações. O papel da tecnologia nos processos de desenvolvimento, a importância das políticas públicas e privadas e o papel dos diferentes atores, nacionais e estrangeiros, no desenvolvimento de países como o Brasil foram objetos de inúmeras conversas e discussões. Com Cassiolato, durante 1977-1978, na Universidade de Sussex, Inglaterra, tanto durante as atividades formais da universidade quanto em longas caminhadas nas colinas de Falmer, Brighton; durante 1980-1981, no Instituto de Economia da UFRJ; e, posteriormente, quando ambos participaram da constituição da nova institucionalidade governamental, que resultou na criação do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), no qual ambos ocuparam cargos, entre 1985 e 1988 – Erber como secretário executivo adjunto e Cassiolato como secretário de planejamento. Lastres, nessa época, chefiava o Núcleo de Novos Materiais, também ligado ao novo MCT, que tinha como ministro Renato Archer, e vice-ministro, Luciano Coutinho. Uma nova rodada de interação ocorreu nos anos 1990, quando nos reencontramos no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Este texto pretende discutir algumas das contribuições centrais de Fabio Erber ao pensamento latino-americano sobre desenvolvimento, tecnologia e políticas. Objetiva-se extrair elementos considerados válidos e capazes de ampliar o entendimento da questão do desenvolvimento produtivo e tecnológico, assim como suas implicações para a política. Tais contribuições dizem respeito à importância da endogeneização do progresso técnico, do caráter sistêmico e das especificidades locais do processo de inovação e do papel do Estado nesses processos.

Em primeiro lugar, visa-se resgatar a discussão que Erber realiza sobre as necessárias e inevitáveis relações econômicas e tecnológicas dos países latino-americanos com os países mais avançados e com as corporações transnacionais lá sediadas. Em segundo lugar, e de forma articulada, sobre os condicionantes do aprendizado tecnológico por parte de empresas locais e as limitações da utilização de tecnologia estrangeira como foco e mecanismo principal dos processos de capacitação local. Em terceiro, a forma como Erber analisa o papel das políticas explícitas e implícitas e os aspectos macro, meso e microeconômicos da inovação.

O artigo argumenta que essas ideias representaram uma contribuição significativa à compreensão dos condicionantes que restringiram a endogeneização do progresso técnico por parte das economias latino-americanas nos anos 1970 e 1980, ao contrário do sucesso alcançado por diferentes economias asiáticas, como o Japão e a Coreia do Sul. Ao retomar as características fundamentais da situação brasileira na segunda década do milênio, percebe-se que essa contribuição permanece extremamente útil para se compreenderem os limites das políticas de inovação, os dilemas e as oportunidades do desenvolvimento tecnológico.

Do ponto de vista conceitual, o texto vale-se da abordagem de sistemas de inovação como elemento central do processo de desenvolvimento econômico e social. Essa abordagem, conforme utilizada pela RedeSist, articula a abordagem neoschumpeteriana com o estruturalismo latino-americano, em especial no que se refere à centralidade do progresso técnico nos processos de desenvolvimento.1 

O estudo está organizado da seguinte maneira. Na segunda seção, discutimos a questão da endogeneização do progresso técnico. Na terceira, os condicionantes e limites do aprendizado por parte de atores econômicos e sociais na América Latina são objeto de análise. Na quarta seção, debatemos a importância de atividades portadoras do progresso técnico e o caráter sistêmico do desenvolvimento tecnológico e da inovação. O papel dos diferentes atores empresariais no sistema nacional de inovação é analisado na quinta seção; já a importância das políticas públicas e o papel do Estado são discutidos na sexta. Nas conclusões, é enfatizada a relevância das ideias de Fabio Erber no contexto atual da globalização dominada pelas finanças.

2. Desenvolvimento e Endogeneização do Progresso Técnico

As principais contribuições de Fabio Erber produzidas a partir do início dos anos 1970 enfatizaram a necessidade de endogeneização do progresso técnico como fator fundamental do processo de desenvolvimento brasileiro. Elas constituíram parte importante do debate sobre a insuficiência da industrialização na qualidade de elemento transformador das estruturas econômicas e sociais do país. Erber apontava que o modelo de industrialização adotado, com base na substituição de importações, mostrava-se incapaz de resolver os sérios problemas brasileiros de desigualdade, em especial de incorporar a população brasileira de baixa renda. Na mesma linha do economista Celso Furtado, Erber sustentava que a importação de tecnologia era reforçadora de problemas, na medida em que as tecnologias trazidas – intensivas em capital – haviam sido desenvolvidas para países com diferentes condições e dotações de fatores [Erber (1972)].

Um dos pontos centrais do pensamento estruturalista latino-americano é que as mudanças na economia ocorrem por meio de descontinuidades (geralmente de caráter tecnológico) que afetam, e também são afetadas, pela estrutura econômica, social, política e institucional de cada nação. 

Nessa perspectiva, o desenvolvimento é considerado processo único, não linear e não sequencial. É, portanto, muito criticada a hipótese de alcançar o desenvolvimento por meio de processos de catch-up a partir da importação, reprodução e adaptação de técnicas supostamente superiores de desenvolvimento para outros contextos históricos.2

A mobilização do progresso técnico e a capacidade de tornar endógenos os processos de inovação são consideradas as principais determinantes da dinâmica de acumulação capitalista e de seu desenvolvimento.  Os avanços (produtivos, tecnológicos, organizacionais, institucionais etc.) resultantes de processos inovativos são tidos, assim, como fatores básicos na formação dos padrões de transformação da economia, bem como de seu desenvolvimento de longo prazo. 

As nações que, historicamente, se colocaram à frente do processo inovativo tenderam a ser mais dinâmicas e competitivas, obtendo melhor desempenho econômico e maior poder geopolítico. Dessa forma, foram se estabelecendo as linhas divisórias entre os que estão capacitados a promover ou participar ativamente da dinâmica da inovação e de desenvolvimento e aqueles que foram, ou tendem a ser, deslocados e marginalizados. Freeman (1988), o decano dos autores da corrente neoschumpeteriana, afirma que o hiato temporal entre inovadores e imitadores está positivamente relacionado à sustentação do fluxo de inovações pelos inovadores e à fragilidade das condições necessárias para inovar nos países imitadores. As “assimetrias tecnológicas” agem, ao mesmo tempo, como uma barreira ao acesso às novas tecnologias e como um novo incentivo à inovação para aqueles (empresas, organizações ou países) que estão liderando o processo tecnológico.

Furtado (1983) apontava que, uma vez estabelecido o padrão de apropriação do produto social, o comportamento dos agentes dominantes – organizações e países que controlam posições estratégicas – passa a ser guiado pelo propósito de conservar os privilégios alçados e de que desfrutam. Dessa forma, compreendia a subordinação da inovação aos processos de acumulação e competição capitalista, visando perpetuar e intensificar a reprodução de assimetrias internacionais econômicas, tecnológicas e de acesso ao conhecimento e ao aprendizado.

A visão que Fabio Erber enfatizava, já em seus trabalhos dos anos 1970, tinha como ponto fundamental essa mesma noção de que a orientação dada ao desenvolvimento tecnológico relaciona-se às especificidades e interesses das nações que lideraram esse processo. Essa percepção ressalta a descontextualização e inadequação dessas técnicas ao conjunto de recursos produtivos disponível nos países menos desenvolvidos, entre outras limitações [Erber (1972; 1977)].

Na esteira de outros autores latino-americanos, como Octavio Rodríguez e Celso Furtado, e como apontado por Prado (2011), Erber correlacionou a importação de padrões de consumo no Brasil à importação de tecnologias estrangeiras, impossibilitando o desenvolvimento de tecnologias adequadas às condições brasileiras. Em tal contexto, as empresas de propriedade local tiveram um papel subordinado tendendo a utilizar, de forma defensiva, o licenciamento de tecnologias estrangeiras para poder competir com as filiais de empresas transnacionais.

Em texto que tinha como objetivo principal realizar uma comparação das experiências de desenvolvimento tecnológico e suas políticas no Brasil e em países capitalistas centrais, Erber enfatizava a importância de avançar o entendimento das novas formas de competitividade, assim como do papel do progresso técnico, das empresas transnacionais e seus oligopólios:

foi só após a II Guerra Mundial que os economistas passaram a dar mais atenção às condições que proporcionam o progresso técnico, abandonando a visão do desenvolvimento tecnológico como um fenômeno exógeno à esfera econômica. Subjacente a esse novo interesse estava não apenas a intensificação do ritmo de inovações, como o reconhecimento da expansão dos mercados organizados de forma oligopólica, onde a constituição de barreiras à entrada e a competição com base na diferenciação de produtos eram fortemente influenciadas pelo progresso técnico. Especialmente importante nesse contexto foi o reconhecimento de que um ator passara a desempenhar papel de importância crescente no cenário mundial: as firmas multinacionais [Erber (1980, p. 10)].

3. Assimetrias de acesso ao conhecimento e ao aprendizado

Fabio Erber discute, de forma pioneira e em diversas ocasiões, os condicionantes e limites do aprendizado por parte de atores econômicos e sociais na América Latina. Particularmente relevantes são duas de suas contribuições: a tese de doutorado sobre desenvolvimento tecnológico no caso de bens de capital no Brasil [Erber (1977)] e um texto onde ele comenta e critica as literaturas da dependência latino-americana e a de inspiração neoclássica sobre aprendizagem [Erber (1983)]. Erber aponta como os diversos tipos de assimetria – particularmente as de poder econômico e político – limitam o aprendizado local e as possibilidades de implementar estratégias de desenvolvimento autóctone. Ressalta especialmente as limitações de pôr em prática os conhecimentos adquiridos por meio de licenciamento de tecnologias externas.

Nesses trabalhos, Erber já sugere que as assimetrias tecnológicas são apenas um dos elementos de assimetrias mais amplas e complexas, as quais implicam a impossibilidade de acessar, compreender, absorver, dominar, usar e difundir conhecimentos. Reforça as percepções de que, na grande maioria dos casos, mesmo quando o acesso à nova tecnologia torna-se possível, esta não é adequada à realidade dos países periféricos e de que estes não dispõem de conhecimentos suficientes para fazer uso adequado dessa tecnologia. Isso porque as necessárias capacidades produtivas e inovativas nem sempre estão disponíveis ou suficientemente desenvolvidas. Assim é que, ao discutir as características e impactos das transformações associadas ao desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicações (TIC), aponta a ampliação da separação entre Norte e Sul e a criação de novas formas de divisão do desenvolvimento muito mais sérias do que a tão discutida divisão digital. Arocena e Sutz (2003 e 2005) avançam essa conclusão, argumentando que as novas formas de divisão do conhecimento passam a constituir o aspecto maior da problemática do subdesenvolvimento.

De fato, a importância do conhecimento, assim como da forma e dos condicionantes que cercam seus processos de difusão, aprendizado e acumulação, é destacada por diversos autores latino-americanos explícita ou implicitamente. Furtado (2003, p. 89), por exemplo, aponta que:  

o avanço da ciência experimental (e do progresso técnico) é facilitado pela secularização do saber e pela difusão dos conhecimentos que acompanham a ascensão da burguesia, atuando como um mecanismo multiplicador, abrindo o caminho à revolução tecnológica. 

Já em 1949, o economista Raúl Prebisch destacava que os problemas da produtividade e do desenvolvimento nos países periféricos também estão relacionados à questão da capacitação e que esta se relaciona intimamente à própria evolução do desenvolvimento tecnológico, constituindo um dos contrastes do grau muito desigual de desenvolvimento. Já nos países industrializados, as aptidões desenvolveram-se progressivamente, à medida que foi evoluindo a técnica produtiva.

Tavares (1972, p. 50), ao analisar o processo de industrialização por substituição de importações, enfatizou que: 

os países subdesenvolvidos importam uma tecnologia que foi concebida pelas economias líderes de acordo com as suas constelações de recursos totalmente diversas das nossas. A necessidade de importar essa tecnologia estaria dada pela impossibilidade de criarmos técnicas novas mais adequadas às nossas condições peculiares. 

Dessa forma, o núcleo industrial pode se desenvolver, em um país periférico, utilizando inovações tecnológicas que permitem aproximar-se da estrutura de custos e preços dos países exportadores de manufaturas, mas que não permitem uma rápida transformação da estrutura econômica, pela absorção do setor de subsistência. Processo este que resulta em lenta modificação da produtividade, da estrutura ocupacional e de desenvolvimento do país [Furtado (1961)]. 

Nesse sentido, é possível industrializar e crescer sem romper com a estrutura de dependência e dominação que perpetuariam o subdesenvolvimento [Furtado (1961; 1974)]. Isso ocorre porque é possível que as economias subdesenvolvidas atinjam um alto grau de diversidade e complexidade produtiva, sem desfazer os laços da dependência tecnológica (e dos conhecimentos necessários a sua geração, difusão e uso) e econômica dos grandes centros. Diante desse quadro, identificou-se o mais importante desafio para os países latino-americanos, o qual é ainda muito pertinente nos dias atuais: nosso desenvolvimento orienta-se mais propriamente por processos de imitação do que por uma reflexão sobre as carências e potencialidades internas. Fajnzylber (1990) resume essa questão da seguinte maneira: 

o traço central do processo de desenvolvimento latino-americano é a incorporação insuficiente de progresso técnico – sua contribuição escassa de um pensamento original, baseado na realidade, para definir o leque de decisões que a transformação econômica e social pressupõe. O conjunto-vazio,3 do desenvolvimento econômico e social latino-americano, estaria diretamente vinculado ao que se poderia chamar de incapacidade de abrir a “caixa-preta” do progresso técnico [Fajnzylber (1990, p. 22)].

Essas condições ampliam as condições assimétricas de desenvolvimento econômico e social existentes entre países do centro e de periferia, as quais são reforçadas pelas diferenças em geração, aquisição e uso de conhecimentos, contribuindo para erigir fossos cada vez mais rígidos entre economias avançadas e periféricas [Lastres, Cassiolato e Arroio (2005)].

4. O Caráter Sistêmico do Desenvolvimento Tecnológico e da Inovação 

A importância da inovação e do progresso técnico pode, portanto, ser mais bem apreciada por intermédio de uma visão ampla, contextualizada e sistêmica do desenvolvimento do capitalismo, principalmente em escala mundial. Furtado é reconhecido como autor que em muito destacou a necessidade de compreender os fenômenos relacionados ao avanço tecnológico por meio de tal perspectiva. Furtado explicita que as manifestações mais significativas do progresso técnico4 somente podem ser captadas plenamente por meio de uma visão global do sistema nacional, que inclua a percepção das relações desse sistema com o ambiente que o controla e influencia [Furtado (1961; 1968)].

Em linha semelhante, a visão neoschumpeteriana entende a inovação como um processo sistêmico, gerado e sustentado por relações interfirmas e por uma complexa rede de relações interinstitucionais dependente de seus ambientes sociopolítico-institucionais. Portanto, o impulso ao desenvolvimento, produzido pela introdução e difusão de novas tecnologias, é considerado resultado de trajetórias que são cumulativas e construídas historicamente, de acordo com as especificidades inerentes a um determinado país, região e atividade produtiva.5

Como objeto principal das preocupações de Fabio Erber quanto ao tipo de desenvolvimento produtivo necessário aos processos de mudança estrutural, apontam-se os estudos por ele realizados nos anos 1970 e 1980 sobre as atividades de bens de capital e de eletrônica. A sua tese de doutorado é uma detalhada e complexa pesquisa sobre bens de capital como atividade central na dinâmica industrial, na medida em que ela apresenta ligações técnicas e econômicas com todo o restante de atividades produtivas [Erber (1977)]. Posteriormente, em uma série de trabalhos sobre as atividades de bens de capital, ele concluiu que o entorno sistêmico dessas atividades gera grande influência na competitividade dos produtores [Erber (1992; 2001); Vermulm e Erber (2002)].

Discutindo a falta dessa perspectiva mais ampla e estratégica da política industrial e tecnológica brasileira, em especial no que se referia às TICs, ele assinalou que décadas de estudos sobre desenvolvimento mostram que as diversas atividades industriais desempenham  papéis diferentes na dinâmica industrial e tecnológica, em função de seus encadeamentos produtivos, tecnológicos e de investimentos, que fazem com que um grupo restrito dessas atividades atue como motor do desenvolvimento [Erber (1992)]. Essa função motriz é cumprida por atividades com alta intensida de tecnológica e capacidade de irradiação para outros setores, como notadamente o caso do complexo eletrônico. Erber utilizava constantemente a frase “computer chips não são equivalentes a potato chips” para indicar a importância relativa da criação de capacitações nas diferentes atividades produtivas. Porém, também enfatizava que, no entanto, no caso brasileiro, não apenas inexistia qualquer hierarquia no tratamento dos diferentes setores e atividades produtivas, como também não havia política especial definida para o complexo eletrônico [Erber e Cassiolato (1997)].

Nesse caso, também a perspectiva sistêmica da inovação aparece de forma destacada, ao serem notadas as 

interdependências nas cadeias produtivas e tecnológicas […] [e que] a ação sobre este conjunto de interdependências remete para as políticas de articulação industrial e de estímulo a segmentos particulares que se apresentam como elos importantes da matriz produtiva [Erber (1992, p. 31)].

A ideia básica de sistemas de inovação é que o desempenho inovativo depende não apenas do desempenho de empresas e organizações de ensino e pesquisa, mas também de como elas interagem entre si e com vários outros atores e como as instituições, incluindo as políticas, afetam o desenvolvimento dos sistemas. Entende-se, desse modo, que os processos de inovação que têm lugar no nível da firma são, em geral, gerados e sustentados por suas relações com outras organizações, reforçando que a inovação consiste em fenômeno sistêmico e interativo.

Outro corolário direto de tal entendimento é que, por exemplo, o setor financeiro e as políticas macroeconômicas mais amplas passam a ser objeto de preocupação e ação. Adicionalmente ao entendimento da natureza sistêmica da inovação, destaca-se a relevância da análise das dimensões micro, meso e macroeconômicas, assim como das características das esferas produtiva, financeira, social, institucional e política. A forma como são criadas e evoluem as capacitações produtivas e inovativas em qualquer país passou então a ser compreendida como função do modo de inserção dos diferentes países na economia e geopolítica mundial e de como se articulam essas diferentes dimensões e esferas.

As implicações de política da visão sistêmica aparecem claramente quando Erber aponta que as situações de atraso vigentes nos países subdesenvolvidos se caracterizam pela ausência de elos centrais na estrutura produtiva e institucional, fazendo-se necessária a ação estruturante do Estado para induzir – ou mesmo assumir a responsabilidade, via empresas estatais – de competências na matriz produtiva e inovativa, envolvendo uma ruptura radical das rotinas preexistentes [Erber (1992)]. 

5. O Papel dos diferentes atores: Empresas Transnacionais e Empresas Locais

O processo de industrialização brasileira, a partir de meados dos anos 1950, é tido como exemplo típico de substituição de importações conduzida pelo Estado com forte participação de capital e tecnologia estrangeiros. O papel do Estado não se restringiu a suas funções fiscais e monetárias tradicionais e à prestação de bens públicos. Um papel mais ambicioso foi concebido, incluindo suporte, definição, articulação e financiamento de grandes blocos de investimento, criação de infraestrutura e produção direta de insumos necessários para a industrialização. 

Tavares e Serra (1973) notam que o investimento público teve importante papel de apoio ao setor privado, em particular ao capital estrangeiro. Consideram que o elemento principal que garantiu o dinamismo econômico do período foi o alto grau de “solidariedade orgânica” entre o Estado e as corporações multinacionais, o que garantiu a formação de externalidades e o suprimento de insumos básicos de baixo custo visando sustentar a expansão das multinacionais nos mercados interno e externo. Foi delegado às empresas transnacionais (ETN), entre outros, o papel de canalizar a tecnologia moderna para a economia, cabendo às empresas de capital local um papel subsidiário. Esse papel central das subsidiárias das ETNs no sistema brasileiro de inovação implicaria a transferência de tecnologia de suas matrizes, e as empresas de capital local utilizariam o licenciamento de tecnologias para também participar dos projetos de substituição de importações.

Seguindo a mesma linha crítica, Erber, nos anos 1980, também mostrava os limites desse tipo de estratégia. Discutindo as limitações para o aprendizado local, advindas das tecnologias trazidas por essas empresas, destaca:  

the limited learning […] in the case of foreign subsidiaries, where the parent company had to transfer a manufacturing and detailed design capability but not the others. The Latin American literature suggests that this strategy was not only due to scale-economies in the production of technology but also to the extraordinary profits they reaped through technology-related intra-firm transactions [Erber (1983, p. 15)]. 

A conclusão de Erber (1983, p.15) é que a transferência de tecnologia a partir dos países centrais é estruturalmente limitada no lado do fornecedor da tecnologia (as empresas multinacionais), tendo em vista suas estratégias globais.6  Mas Erber avança ainda mais quando acrescenta que a dependência de tecnologias estrangeiras – originalmente desenvolvidas para atender a problemas de outras sociedades – limita, também de forma estrutural, a acumulação de capacitações voltadas ao aprendizado por parte das empresas controladas pelo capital local.  

[…] (no Brasil) não existem distinções entre capitais segundo sua origem. No entanto, há uma extensa literatura que mostra que as atividades de P&D de firmas transnacionais tendem a ser centralizadas, normalmente junto ao seu país de origem. A tendência ao uso de tecnologia importada tende a propagar-se, entre os fornecedores e competidores destas empresas. Ignorar a diferença e não negociar a implantação dessas atividades na região implica em aceitar um padrão de programas tecnológicos orientado para atividades de adaptação de tecnologias importadas, mantendo baixo o “teto” destes programas [Erber (1999, p. 15-16)]. 

Utilizando evidência empírica de estudos realizados ao longo dos anos 1970 sobre tecnologia e inovação em empresas brasileiras de capital nacional,7 Erber aponta a baixa capacitação das empresas locais e sua pequena interação com as universidades e institutos públicos de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Sua conclusão é que: 

industrial entrepreneurs […] were […] “satisfied” with a low level of local technological activities and a strong reliance on imported technology […] and […] such “satisfaction” can be understood in the light of the pattern of development followed in Brazil since the mid-fifties […] which reduced the importance […] (of) […] a policy of more technological self-reliance [Erber (1980, p. 422)]. 

Erber sugere algumas razões para que tais empresas tivessem inibidas suas estratégias de desenvolvimento tecnológico local. Em primeiro lugar, a desigual concorrência de tecnologias estrangeiras, a qual elevaria o risco e o custo das tentativas de desenvolvimento local, tendo em vista a política de abertura ao capital estrangeiro. Em segundo lugar, particularmente válido para as indústrias de bens de capital e insumos básicos, havia uma pressão dos clientes, em sua maioria empresas subsidiárias de multinacionais, que frequentemente condicionavam as compras ao uso e licenciamento de tecnologias estrangeiras. Uma terceira razão seria as estruturas de mercado nas quais as empresas locais operavam, que permitiam às empresas repassar aos consumidores o custo das tecnologias importadas. Em quarto lugar, o limitado tamanho do mercado local seria supostamente insuficiente para amortizar os custos do desenvolvimento autóctone. Outra razão seria o horizonte temporal de curto prazo com o qual operavam os empresários locais, em razão da fragilidade da estratégia e do planejamento governamental de longo prazo.

Essas razões se associavam à instabilidade, à vulnerabilidade, à hiperinflação e aos demais desafios colocados pelo quadro macroeconômico e contribuíam para conformar políticas implícitas [Herrera (1975)] e regimes malignos [Coutinho (2003)] que em muito limitavam as possibilidades de sucesso de políticas públicas e privadas para o desenvolvimento produtivo e em especial inovativo. A inércia e a placidez do empresariado brasileiro diante de tais desestímulos levava Erber – com suas ponderações certeiras e ácida ironia – a descrever tal postura como de happy dependency.

6. O Papel do Estado 

As políticas de Estado desempenham papel-chave para o desenvolvimento das nações, principalmente na indução do desenvolvimento de seus sistemas de produção e inovação. Em primeiro lugar, objetiva-se assegurar as condições básicas de um quadro político e macroeconômico favorável à conformação de regime benigno e capaz de estimular o desenvolvimento produtivo e inovativo [Coutinho (2003)].8 

Em segundo, a articulação de uma estratégia convencionada de desenvolvimento capaz de ser implementada [Erber (2011)]. Além disso, destacam-se também os objetivos de fortalecer os vínculos produtivos, os processos de aprendizado e de criação e acumulação de capacitações produtivas e inovativas.

Na visão neoschumpeteriana, essas políticas são ainda mais necessárias em épocas consideradas de mudanças radicais, como aquelas associadas ao advento e à difusão de novos paradigmas técnico-econômicos. Autores como Freeman e Perez consideram que durante o estágio inicial de um novo paradigma tecnológico abre-se uma série de oportunidades e desafios para as nações (principalmente as nações periféricas), as quais não se encontram tão comprometidas com o padrão que está sendo superado. 

Essas oportunidades serão maiores quanto maiores forem a descontinuidade do processo tecnológico e o tempo de adaptação das empresas líderes e instituições das nações centrais, que apresentam maiores graus de comprometimento com os padrões anteriores, fato que tende a gerar um maior nível de inércia às mudanças radicais.

Com base nisso, é que diversos autores sublinharam: (i) a importância de políticas buscando adaptar e reorientar os sistemas produtivos e de inovação aos novos cenários; (ii) que a adaptação da economia tenderá a se transformar em um processo lento e doloroso. Em tais ocasiões, o papel de políticas públicas estimulando a promoção e renovação do processo cumulativo de aprendizado é particularmente destacado.9 Nos países periféricos a importância dessas políticas públicas é exponencialmente aumentada. Nesse caso, sugere-se que as políticas e instrumentos sejam continuamente ajustados e reformulados à medida que as tecnologias evoluem, evitando a retração ou destruição do escasso potencial produtivo e inovativo dessas nações. Essas políticas também devem considerar a necessidade de limitar ou prevenir consequências sociais indesejáveis [Freeman (2004)], buscando, centralmente e antes de tudo, promover o desenvolvimento inclusivo, coeso e sustentável das diferentes regiões e países a que se destinam [Cassiolato e Lastres (1999)].10

A absorção do progresso técnico deveria ser realizada por investimentos nos setores mais dinâmicos e difusores do progresso técnico, setores que teriam a liderança no processo de evolução tecnológica e, dessa forma, seria possível inserir maior dinamismo nas economias periféricas. Em razão das dificuldades previsíveis de acumulação de capital e poupança, esses investimentos deveriam ser feitos majoritariamente pelo Estado de forma direta ou indireta. A industrialização dos países periféricos somente seria possível com o apoio de políticas de planejamento estatal, que Celso Furtado sistematizou e implementou com grande competência.

Fiori (2001) nota que os principais teóricos do estruturalismo latino–americano clássico,11 entre os quais, Furtado, defendiam a presença do Estado no apoio à pesquisa científica e tecnológica, à educação superior e à criação de instituições de fomento e no financiamento tanto à produção industrial quanto à capacitação científica e tecnológica: 

Para o estruturalismo existia a importância do papel do Estado na construção de um sistema econômico integrado e capaz de auto-reproduzir-se, de forma relativamente endógena, graças a uma integração virtuosa entre agricultura e a indústria, ao incentivo estatal ao desenvolvimento tecnológico e à criação de um sistema econômico nacional que priorize o crescimento das forças produtivas (p. 43). 

Conforme argumentado, por exemplo, por Erber e Cassiolato (1997), mesmo durante o auge do neoliberalismo, os Estados jamais deixaram de intervir fortemente para fomentar o desenvolvimento produtivo e tecnológico e a expansão de setores estratégicos para a dinâmica estrutural, mesmo que essas políticas fossem camufladas por imperativos estratégico-militares. Tais políticas, que se caracterizam pela complexidade, visam ao desenvolvimento de atividades consideradas estratégicas para o crescimento econômico e à consolidação das bases regionais e locais para o desenvolvimento tecnológico.

As políticas centradas na promoção de sistemas de inovação e nas relações entre empresas e demais atores diferem das políticas baseadas nas antigas visões dicotômicas e linear da inovação. Quanto à forma, destaca-se a tendência de as políticas focalizarem conjuntos de atores e seus ambientes, visando potencializar, disseminar e tornar mais eficazes seus resultados. Os diferentes contextos, sistemas cognitivos e regulatórios e formas de articulação, cooperação e de aprendizado interativo entre agentes são reconhecidos como fundamentais em geração, aquisição, uso e difusão de conhecimentos, particularmente daqueles tácitos.

Alguns países vêm adotando estratégias que explicitamente visam à mobilização de sistemas de inovação [Cassiolato (1999)].12 Outros países, mesmo que não explicitando essa visão sistêmica, vêm na prática envolvendo atores e mobilizando elementos similares.13 Erber foi um dos primeiros autores brasileiros a salientar a importância da política de inovação no Brasil:  

A análise da participação do Estado no processo de desenvolvimento científico e tecnológico dos países capitalistas centrais sugere três conclusões: 1. Embora o nível de desenvolvimento da acumulação de capital e da divisão de trabalho nas economias centrais favoreça o processo de desenvolvimento científico e tecnológico, essas condições favoráveis são em parte reforçadas pela ação do Estado mas, também, em parte criadas pela interferência estatal; 2. As medidas de apoio do Estado ao processo de desenvolvimento científico e tecnológico (especialmente este último) transcendem o apoio às atividades de P&D. Tais medidas, no entanto, são com frequência tomadas com outros objetivos que não o desenvolvimento tecnológico em si: garantir o suprimento interno de certos produtos, reforçar as condições de competição internacional, etc. Nesses casos o desenvolvimento tecnológico é um meio de atingir tais objetivos mais amplos, especialmente no caso das indústrias de ponta; 3. As medidas de apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico estão fortemente concentradas em alguns setores industriais, as chamadas indústrias de ponta, especialmente aquelas ligadas às atividades militares e espaciais [Erber (1980, p. 29)].  

A ação de política é necessária ainda em países como o Brasil, tendo em vista dois fatores principais. Primeiro, porque  

as situações de atraso vigentes nos países subdesenvolvidos se caracterizam pela ausência de elos centrais na estrutura produtiva e institucional, (o) que requer uma ação estruturante do Estado para induzir – ou mesmo assumir a responsabilidade direta via empresas estatais – a montagem de determinados setores na matriz produtiva, envolvendo uma ruptura radical das rotinas preexistentes [Erber (1992, p. 16-17)]. 

Em segundo lugar, e à semelhança dos países avançados, mostra-se necessário criar capacitações naquelas atividades essenciais para a existência da produção industrial. Erber enfatiza as atividades vinculadas à indústria de bens de capital [Erber (1977)] e do complexo eletrônico [Erber (1985)].

Erber sugere que no Brasil tal tipo de política poderia mobilizar muitas oportunidades se fosse mais priorizado. No entanto, já em 1984, discutindo a política de compras de empresas estatais, ele aponta que elas não se preocupavam com as inovações locais dos fornecedores: “Companies were only hired to replicate technologies developed by Cenpes or foreign companies” [Erber (1981, p. 12)]. Em um dos seus textos clássicos dos anos 1980, ele aponta que essa atitude era comum entre as empresas estatais brasileiras durante o período da industrialização baseada em substituição de importações, que demandava que seus fornecedores utilizassem tecnologias já testadas internacionalmente. Para ele, tal requisito

tenderia a gerar um círculo vicioso no qual seus fornecedores, tendo em vista não ter experiência prévia no ‘design’, eram forçados a utilizar o licenciamento e, por usar o licenciamento, não podiam desenvolver sua própria capacidade de projeto [Erber, Guimarães e Araujo Jr. (1984, p. 24)].  

Em trabalho produzido em 1999, Erber analisa a política tecnológica e de inovação implementada na América Latina na última década do milênio passado, ressaltando que um dos principais objetivos das políticas científicas e tecnológicas dos países da região passou a ser o aumento da participação privada no financiamento e na execução de atividades de ciência e tecnologia (C&T) sob a percepção de que a empresa privada deva ser o motor do desenvolvimento tecnológico. Ele aponta que:  

em verdade, este não é um objetivo novo – o Estado desenvolvimentista também o perseguiu com afinco. Seu fracasso sugere que existem causas estruturais para tanto. Entre estas destacam-se a composição da estrutura produtiva, em que os setores intensivos em tecnologia têm pequeno peso; a dominância da importação de tecnologia, fruto da gravitação de empresas internacionais e do tamanho reduzido das empresas nacionais; a configuração incompleta do mercado de capitais, onde faltam mecanismos de risco e a reduzida competição entre as empresas. Os reformistas dos anos noventa ignoraram a primeira, agravaram a segunda, não resolveram a terceira e concentraram-se na última causa [Erber (1999, p. 8-9)]. 

Tal constatação reforça mais uma vez a ideia, há muito estabelecida na América Latina, que as políticas implícitas são muito mais relevantes para as estratégias tecnológicas e de inovação empresariais do que as políticas especialmente desenhadas para a tecnologia e a inovação. Erber reiterava aqui o argumento que as políticas implícitas no Brasil não só não contribuem para a promoção do desenvolvimento tecnológico por parte das empresas, mas, ainda mais importante, tendem a inibi-lo e limitá-lo [Erber (1983)]. 

As conclusões que Erber deriva de sua análise são extremamente importantes e de uma relevância atemporal. O problema do desenvolvimento tecnológico nacional não pode ser resolvido apenas por um aumento das capacitações científicas e tecnológicas, nem pela política explícita de piência e tecnologia, que hoje em dia inclui também a de inovação [Erber (1983)]. Ele sempre destacava que os determinantes do fraco desempenho tecnológico relacionam-se às: 

considerações políticas e econômicas que guiam as ações das empresas e do Estado no que se refere às capacitações tecnológicas locais […] e ao papel das políticas explícitas de C&T […] (que) ao não convergirem com outras políticas, como a de capital estrangeiro, têm sua eficácia extremamente limitada [Erber (1983, p. 17-18)]. 

No Brasil, os diversos mecanismos de apoio à ciência, tecnologia e inovação desenhados têm sido ainda pouco utilizados pelo setor produtivo, o que tem levado alguns analistas a assinalar a existência de um “paradoxo da inovação”. Este resultaria do pressuposto de que as medidas de apoio ao desenvolvimento tecnológico no Brasil, apesar de bem desenhadas, não são bem-sucedidas especialmente em razão da falta de receptividade pelo setor produtivo. Como a impecável análise de Erber indica, o fracasso da política demonstra que, na falta de uma articulação com as políticas implícitas, esta tenderá a ser ineficaz ou nula. 

7. À guisa de Conclusão: a atualidade das ideias de FabioErber em um mundo marcado pela globalização financeira 

A implementação de políticas explícitas voltadas à inovação no Brasil já ocorre há anos, e alguns dos instrumentos, assim como algumas das formas de orientação das políticas, são bem antigos. Aqui se incluem desde o modelo de catch-up com os padrões de investimento privado em P&D, perseguido pela política nacional desde os anos 1970, até os apoios à articulação universidade-indústria, os quais já eram implementados pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) àquela época, atualmente Agência Brasileira de Inovação. Adicionam-se os estímulos para que empresas transnacionais intensifiquem seus esforços de P&D no país e internalizem suas estratégias de inovação. A lógica para essa ênfase reside maiormente na ideia de que a globalização leva as empresas transnacionais a descentralizarem suas atividades tecnológicas e o Brasil deve se aproveitar dessa situação. Sem dúvida, em um mundo interligado, é inegável que qualquer país deva se aproveitar das condições positivas trazidas pelo investimento estrangeiro. 

Os questionamentos quanto ao sucesso de tais políticas necessariamente remetem a questões levantadas por Fabio Erber já nos anos 1970 e 1980: qual é o papel dessas empresas na estratégia brasileira e no sistema nacional de inovação? Que tipo de desenvolvimento tecnológico elas se dispõem, de fato, a realizar fora de seu país de origem? Como a estratégia local das subsidiárias se insere em sua estratégia global? Que estratégias e políticas domésticas vêm sendo implementadas para garantir a ampliação e o enraizamento de capacitações produtivas e inovativas no país? Como são avaliados os resultados alcançados?14

A resposta a essas perguntas vincula-se a outra questão mais ampla, tendo em vista o avanço do processo de financeirização, que caracteriza a economia e a sociedade global nos últimos trinta anos: quais são as principais transformações experimentadas pelas empresas transnacionais que realizam atividades produtivas e inovativas? Aqui, um primeiro ponto refere-se ao atual papel das empresas transnacionais na economia. De acordo com a United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), na década de 1990 havia 37 mil ETNs operando no mundo com 175 mil subsidiárias fora de seus países de origem. No fim de 2007, elas já eram 79 mil com um total de 790 mil filiais estrangeiras. UNCTAD (2011) estima que as ETNs em todo o mundo, tanto no país-sede quanto no exterior, geraram um valor adicionado de aproximadamente US$ 16 trilhões em 2010, representando mais de um quarto do PIB global.

Um segundo ponto relaciona-se à intensa reestruturação global das atividades produtivas que essas empresas promoveram, nos últimos trinta anos, redirecionando os fluxos globais de produção, investimento e comércio – processo que foi facilitado pela difusão do paradigma da microeletrônica e permitido pela onda de liberalização e desregulamentação. Autores como Aglietta e Rebérioux (2005) indicam que tais alterações estão associadas a transformações na organização do capitalismo em termos gerais e ao processo de financeirização da economia. Como as ETNs são em sua maioria sociedades de capital aberto, seu movimento de financeirização tem levado a uma crescente busca da valorização das ações, com impactos negativos nas atividades produtivas e tecnológicas.

Chesnais e Sauviat (2003) apontam que as instituições financeiras adquiriram um poder sem precedentes e ganharam o controle sobre as ETNs não financeiras, moldando seu padrão de investimento (incluindo P&D). De acordo com Vitali, Glattfelder e Battiston (2011), em 2011, 737 grandes empresas transnacionais detinham 80% do controle dos ativos das 43.060 maiores empresas mundiais. Esses autores adicionam que o controle dessas megaempresas se encontra nas mãos de um pequeno núcleo, aproximadamente uma centena de instituições financeiras. Grandes ETNs industriais tornaram-se, na realidade, centros financeiros com atividades industriais.

Por exemplo, em 2007, a divisão mais importante da General Electric relativa a receitas foi a GE Capital, seu braço financeiro (US$ 67 bilhões de um total de US$ 180 bilhões). A GE Capital foi responsável por 55% dos lucros totais da empresa e, se fosse um banco, seria um dos maiores dos Estados Unidos [Cassiolato et al. 2013]. O resultado é uma prioridade aos resultados de curto prazo em detrimento “de atividades de longo prazo, como pesquisa e desenvolvimento, renovação de fábricas e equipamentos, capacitação técnica da força de trabalho e cultivo de relações duradouras com os fornecedores” [Guttmann (2008, p. 13)].

As ETNs passaram a adquirir novos ativos científicos e tecnológicos de outras maneiras que não o desenvolvimento interno de P&D e a acumulação endógeno-corporativa de conhecimento [Chesnais e Sauviat (2003)]. As fusões e aquisições se tornaram uma maneira rápida e barata de se apropriar de possíveis desenvolvimentos tecnológicos gerados por empresas incipientes, que por sua escala têm pouco poder de mercado e limitado acesso a financiamento, o que acaba levando-as a ceder às pressões das grandes ETNs. Essa estratégia é muito menos custosa em relação a tempo e recursos, permitindo, ainda, uma maior distribuição de dividendos. Como parte dessa nova estratégia, os gastos internos em P&D para as grandes empresas transnacionais tornam-se muito menos importantes que as despesas nos demais ativos intangíveis direcionados à inovação.

Levando em conta o poder que exercem no comércio e na produção internacional e as complexas conexões pelas quais organizam indústrias e mercados globais, as ETNs representam uma centralização de ativos financeiros e uma “modalidade organizacional do capital financeiro” [Serfati (2010, p. 144)]. Sua principal vantagem competitiva reside na capacidade de construir um espaço integrado global, com operações financeiras e industriais realizadas de forma combinada com inúmeras filiais (produção, P&D, financeira etc.), coordenadas sob o controle de um escritório central que gerencia recursos e capacidades com o objetivo de dar coerência e eficiência ao processo de valorização do capital.

A inserção e o papel das ETNs nos países periféricos, em especial quanto ao desenvolvimento tecnológico local, são, portanto, afetados pela dinâmica da financeirização. Se nos países centrais ainda persistem os laboratórios e centros de pesquisa, nos países periféricos os esforços tecnológicos são quase exclusivamente adaptativos. Tais países são vistos como plataformas produtivas mais baratas e bons mercados para produtos já existentes. Novas tecnologias permitem que o processo produtivo seja fragmentado e espalhado ao redor do globo, a depender das condições favoráveis que cada país oferece. Amsden (2001) é uma das autoras que mostra que os investimentos de ETNs em países periféricos são modestos em montante e de baixa complexidade, quase nunca relativos a atividades de fronteira tecnológica.

Estudos detalhados sobre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul [Cassiolato et al. (2013); Reddy (2011)] sugerem que, mesmo nesses países, as atividades de P&D, realizadas por empresas transnacionais, são ainda marginais. Mesmo no caso da China, existem evidências de que as atividades tecnológicas das subsidiárias das ETNs são de intensidade relativamente baixa. Sun (2010) apresenta uma análise detalhada das atividades de P&D das subsidiárias de ETNs e conclui que a maior parte de P&D de empresas estrangeiras na China é de natureza adaptativa e de valor absoluto reduzido e que  

o governo chinês e as empresas locais não devem esperar benefícios significativos das atividades tecnológicas das subsidiárias de empresas transnacionais na China. Alternativamente devem focar na construção de capacitações tecnológicas endógenas: a maioria das empresas estrangeiras só vai investir em P&D quando sentirem a concorrência de empresas domésticas (p. 360). 

No Brasil, a dinâmica dos investimentos em desenvolvimento tecnológico segue necessariamente essa tendência global de transição de estratégia. Esperava-se que a abertura dos anos 1990 fosse motivar esforços inovativos e tecnológicos de firmas estrangeiras, contribuir para uma mudança estrutural e para reduzir o déficit comercial por meio do aumento das exportações. No entanto, os novos investimentos foram em grande parte market seeking, voltados para a exploração das oportunidades oferecidas pelo mercado interno (incluindo o Mercosul), e concentraram-se na aquisição de empresas locais, tendo se realizado muito pouco investimento novo. Assim, as transformações por que passam economia e sociedade globais a partir da crescente financeirização recolocam na agenda do desenvolvimento elementos já presentes nos debates realizados nos anos 1960 e 1970.

O ponto central que é mencionado por Erber quanto a essa questão reafirma a necessidade de inserir e articular a política de ciência, tecnologia e inovação na estratégia mais ampla de desenvolvimento. Um primeiro passo por ele apontado é efetuar uma demarcação clara entre padrão de desenvolvimento e padrão de industrialização [Erber (1992)]. Essa sua colocação é avançada em seus trabalhos mais recentes sobre convenções de desenvolvimento [Erber (2011)]. Ele explicita que, associada ao padrão de desenvolvimento, coloca-se uma política nacional, cuja implementação depende da existência de uma coalizão de forças sociais e condições políticas, institucionais e administrativas. À necessidade de uma política nacional de desenvolvimento, sem a qual a de inovação se torna inócua, somam-se outras, quanto à forma – sistêmica – e ao foco – priorizando atividades de caráter estruturante que ele denomina “motores da inovação”, os bens de capital, o complexo eletrônico, as TICs, as biotecnologias etc.:  

Do ponto de vista estrutural, é prioritário dar prosseguimento ao processo de implantação dos setores motores de inovação, tanto pelo papel que estes representam na dinâmica industrial moderna como pela sua precariedade no País. (Mais ainda) […] é desejável obter uma capacidade de inovação, devido aos seus efeitos econômicos, sociais e políticos. Ao mesmo tempo, maiores são as dificuldades para lograr essa capacidade, pela própria rapidez do progresso técnico, sua complexidade cognitiva, escalas crescentes de gastos mínimos e pelas restrições existentes à transferência internacional de conhecimentos, decorrentes tanto da operação do mercado de tecnologia como da estratégia de firmas internacionais [Erber (1992, p. 30-31)].  

Erber prossegue apontando o elemento central em sua tese: 

estabelece-se, a esse propósito, uma distinção crucial entre firmas sob controle nacional e estrangeiro, posto que é parte da lógica destas últimas utilizar as técnicas desenvolvidas nos países avançados, induzindo o mesmo comportamento em seus competidores nacionais. É ilusório imaginar que firmas multinacionais venham a desenvolver uma capacidade de inovação no País, mesmo que o Governo lhes conceda incentivos para tal, seja atuando isoladamente, seja em joint-ventures com firmas nacionais [Erber (1992, p. 31)].  

Em seus últimos trabalhos, em que aprofunda sua análise sobre desenvolvimento, Erber introduz o conceito de convenções de desenvolvimento, que “embora sejam sempre apresentadas como projetos nacionais que levam ao bem comum, refletem, na verdade a distribuição de poder econômico e político prevalecente na sociedade, num determinado período” [Erber (2011, p. 36)]. Para ele, a percepção do governo do Ex-Presidente Lula quanto à necessidade de uma mudança significativa na estratégia de desenvolvimento brasileiro “mais inclusiva do ponto de vista econômico e social, foi interpretada, no âmbito do Governo, de forma diferenciada, gerando duas convenções distintas” [Erber (2011, p. 37)].

Para uma dessas convenções mencionadas por Erber, a institucionalista restrita, de corte neoclássico e que tem uma visão de sociedade competitiva e meritocrática, “cuja eficiência seria garantida pelo funcionamento do mercado” [Erber (2011, p. 38)], a inovação, apesar de ser “vista como o motor do desenvolvimento, tem na abertura internacional um importante papel no seu estímulo através da importação de tecnologias mais produtivas” [Erber (2011, p. 39)].

Apesar de reconhecer a importância do Estado para o fomento da inovação, os adeptos dessa convenção têm “uma clara preferência pelo modelo principal agente, no qual o Governo fixa as diretrizes de política e os agentes executam tais diretrizes e prestam contas (ao governo) por sua execução” (p. 39).

A segunda das convenções, segundo Erber, é por ele chamada de neodesenvolvimentista, com clara inspiração keynesiana. Seus proponentes, por um lado, aceitam a política macroeconômica da convenção institucionalista restrita, mas, por outro, apontam a necessidade de um papel do Estado muito mais ativo. No caso dos investimentos em inovação, é proposta uma série de mecanismos tais como incentivos fiscais, crédito subsidiado e subvenções. Sua conclusão é que: 

a convivência entre as duas convenções se estabelece sob a hegemonia da convenção institucional restrita, assegurada pelo controle do tripé de políticas macroeconômicas […] A combinação entre as duas convenções atende a uma ampla gama de interesses, que a torna muito forte [Erber (2011, p. 51-52)]. 

É importante notar a discussão proposta por Fabio Erber sobre o suposto consenso a respeito da importância da inovação tecnológica, tanto na academia quanto em círculos governamentais, o qual contribuiu para tornar o tema um prestigioso símbolo de modernidade: 

se os conceitos tivessem analogias urbanas, a inovação poderia ser assemelhada a uma dessas praças em forma de estrela, como a De Gaulle em Paris e a Raul Soares em Belo Horizonte, as quais aportam avenidas vindas de diversos lugares, juntam-se e, a seguir, continuam seu percurso rumo a destinações divergentes [Erber (2009, p. 3)]. 

Diferentes concepções sobre inovação (as quatro avenidas, na analogia de Erber) levam a percepções sobre o papel dos atores do processo inovativo e proposições de política que são não só divergentes, mas, algumas vezes, antagônicas. Esta caracterização e as demais contribuições de Erber acima apontadas em muito ajudam a explicar por que a utilização ainda insuficiente por parte do setor privado dos inúmeros instrumentos de política de inovação, disponibilizados nos últimos 15 anos, longe de paradoxal, constitui-se em inevitável consequência de convenções de desenvolvimento questionáveis e visões, pelo menos parcialmente, equivocadas sobre a inovação. Acima de tudo, suas contribuições deixam clara a importância de entender em profundidade as transformações nas formas de geração e difusão das tecnologias, o papel dos diferentes atores e os espaços e limite das políticas públicas e privadas.

As contribuições de Erber a esse debate continuam válidas e merecem constituir objeto de reflexão maior, por parte tanto dos estudiosos do tema quanto dos planejadores, tomadores de decisão e implementadores de política. Cabe finalmente destacar que Fabio Erber propunha uma agenda positiva em uma nova convenção de desenvolvimento. No centro dessa agenda encontram-se sua constante ênfase à necessidade de aumentar o conteúdo tecnológico dos sistemas produtivos existentes e de mudar a estrutura industrial pela promoção das atividades motoras e transmissoras da inovação, como eletrônica e bens de capital. Se este último objetivo parece ainda distante, o primeiro tem se mostrado possível de ser atingido, na medida em que políticas de inclusão, emprego e renda e aumento de capacitações têm descortinado oportunidades para a criação e consolidação de diversos arranjos produtivos e inovativos locais no território nacional. Nestes podem se encontrar exemplos com força capaz de contribuir para uma agenda coesa e sustentável de desenvolvimento, tão necessária para o país.

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Algumas lembranças de Fabio Erber

"INGEGNERI!", "ECONOMISTE!"

Era assim, com entonação irreverente e carinhosa, que nos saudávamos todas as vezes que nos encontramos nos últimos trinta anos, até mesmo em ocasiões de ambiente mais formal.

ver também Algumas lembranças de Fabio Erber

Algumas lembranças de Fabio Erber

Ricardo A. C. Saur, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

The article does not intend to be an academic analysis of Fabio Erber’s work, but simple comments on his contribution to many aspects of Industrial Policy in Brazil, often underrated. It tries to recall one of the fields he has played a role, as usual with the discretion that characterized him. Much before Information Technology & Communication became a cultural commodity, Erber could see the importance of "Informatics" (as ITC was referred then) in the task of modernizing Brazil, and helped initiatives with his wise counsel and direct intra-government support. His modesty, discretion and commitment left a deep mark on those who had the privilege of working and learning together.

“INGEGNERI!”, “ECONOMISTE!”

Era assim, com entonação irreverente e carinhosa, que nos saudávamos todas as vezes que nos encontramos nos últimos trinta anos, até mesmo em ocasiões de ambiente mais formal.

Fabio e eu tínhamos um aspecto comum muito forte, que, além de uma duradoura amizade, nos unia mesmo nas raríssimas ocasiões em que discordávamos de alguma coisa: tínhamos nos conhecido por intermédio do saudoso José Pelúcio Ferreira, um de nossos maiores e mais expressivos gurus capazes de influenciar o pensamento de toda uma geração de jovens ávidos por desenvolvimento com justiça social. Tenho certeza de que muitas das qualidades que Fabio possuía foram muito influenciadas pelas conversas lapidadoras de Pelúcio, sempre eivadas de bom humor e total desprezo pela vaidade.

Não é à toa que os chineses ensinaram que crise e oportunidade andam juntas. Fabio começou em particular a nos ajudar com sua inteligência e perspicácia em uma ocasião de crise. Após o “choque do petróleo” na década de 1970, o país teve que adotar severas medidas de controle de importações e, sem pedir nem querer, vi-me de repente em uma inusitada posição de muita responsabilidade além de provocadora de enorme antipatia.

A Comissão de Coordenação das Atividades de Processamento Eletrônico (Capre), até então voltada inteiramente para racionalizar a compra e o uso de computadores no governo, foi convocada para a missão de examinar pedidos de importação de computadores, suas peças e periféricos, autorizando ou negando sua importação. É que essas importações estavam crescendo muito e já eram o terceiro maior item na pauta de bens. Um teto anual foi fixado para as autorizações (bem abaixo da demanda projetada) e, ao examinar esses pedidos, devíamos dizer “não” a aproximadamente 70% deles. Isso naturalmente ensejou uma tremenda pressão que só poderia ser atendida criando-se algum filtro técnico para examinar a real necessidade da importação, com um mínimo de erros, e estabelecer um grau de prioridades setoriais.

Fabio Erber ajudou-nos muito no Ministério do Planejamento durante todo esse período inicial e continuou atuando silenciosa e discretamente como um bom conselheiro informal durante os próximos anos.

Esse período (anos 1970) coincide com a compra, pela Marinha do Brasil, de modernas fragatas inglesas, que inauguravam uma nova geração tecnológica ao fazer uso intensivo de computadores para navegação e ataque. Os novos mísseis, como o Exocet, eram então disparados não mais por uma ordem da ponte de comando, mas por um comandante de tiro trancado em uma sala sem janelas, apinhada de telas de radar e várias engenhocas, tudo baseado em computadores. Na expressão de um almirante da ocasião, “sem os computadores, essas fragatas tornam-se meras caravelas”.

A Marinha de pronto enxergou a necessidade de “abrir essas caixas–pretas” e estabeleceu alguns programas de desenvolvimento, enviando oficiais ao exterior e preparando uma nova geração de comandantes capazes de entender esse novo patamar tecnológico que tornava obsoletas várias doutrinas e processos. Um desses programas foi acertado com o BNDE (ainda sem o S) por meio do Fundo de Desenvolvimento Técnico-Científico (Funtec, atual BNDES Fundo Tecnológico), destinado em sua versão oficial a projetar e fabricar um computador com tecnologia brasileira – mas, na realidade, mais preocupado em desenvolver uma base de engenharia e conhecimento dessas novas máquinas, buscando aproveitar o quase nada existente em nossa indústria eletrônica. Havia também um ambiente acadêmico estimulante, encontrado nos laboratórios de pós-graduação de algumas universidades pelo retorno de uma grande leva de gente que foi buscar seus mestrados e doutorados no exterior, mas nada se encontrava como um laboratório preocupado em conectar-se com nosso desenvolvimento industrial (como é antigo esse cansativo refrão de aproximar a academia e a indústria, nunca de fato estabelecido como política de Estado no Brasil).

Com o poderoso patrocínio do presidente do BNDE, Marcos Vianna, e a inestimável ajuda do grupo de Pelúcio e Fabio, foi possível montar com a Marinha um programa sério que conseguiu ao final produzir não só um modelo de computador que computava, mas principalmente uma nova linhagem de engenheiros e técnicos que uniram uma sólida base tecnológica dada pela academia a uma série de iniciativas que hoje seriam imediatamente rotuladas de “inovadoras e empreendedoras”. 

As discussões sobre Política Industrial que se desenvolviam no âmbito da agora poderosa Secretaria de Planejamento da Presidência da República, tendo à frente o Ministro João Paulo dos Reis Velloso, além de ensejarem vários programas de sucesso, criaram um ambiente favorável a novas ideias. Aos assessores diretos do ministro somavam-se o Presidente do BNDE, o Secretário-Geral Élcio Costa Couto, e naturalmente Pelúcio e Fabio. Um dos modelos mais estudados foi o adotado na França, conhecido como “Plan Calcul”, que serviu para que a informática (termo que substituiu definitivamente “processamento de dados”) fosse vista de forma mais estratégica, em um certo longínquo prenúncio do que anos mais tarde seria o advento da sociedade da informação.

A adoção de medidas de estímulo e proteção ao que se desejava fosse a indústria nascente de informática no Brasil, que foi tratada pela mídia como “reserva de mercado para computadores”, provoca até hoje discussões – no mais das vezes despidas de informação e dados reais e cheias de afirmações bombásticas sem base (como “nos atrasamos vinte anos”).

Fabio Erber sempre nos questionava sobre esses temas, cobrando os “porquês” dos fracassos e sucessos e, apesar de sempre disposto a dar seu apoio, mantinha uma admirável capacidade de se despir do discurso oficial e questionar, às vezes duramente, o caminho que estávamos seguindo. Mas, uma vez convencido pelos dados e argumentos, não se furtava a assumir posições contra ou a favor e, nesse caso, apesar de um certo ceticismo quase profético quanto à capacidade do governo pós-Geisel de dar continuidade à iniciativa, ele a apoiou quando enxergou suas consequências estratégicas.

A intervenção militar no novo setor com a criação da Secretaria Especial de Informática (SEI) misturou boas intenções com carreirismo e muito autoritarismo, trazendo disputas internas de poder entre os “coronéis do Figueiredo”, e o surgimento dos eternos “amigos do rei” que, nessas horas, enxergam possibilidades de “morder seu pedaço”. Mas isso é outra história que ainda precisa ser recontada.

Em uma coisa a “reserva de mercado” acertou em cheio: ela conseguiu abrir uma das caixas-pretas mais importantes da indústria de computadores, o software de sistemas operacionais. Hoje, todo garoto sabe o que significa software e todos os milhões de usuários dos PCs e Macs já ouviram falar de sua respectiva “plataforma” ou sistema operacional (ou “Windows” é um termo só para veteranos?). No início da computação, a ênfase pública era toda para o hardware, e o software era visto quase como algo secundário. Mas, tão logo começamos realmente a tomar conhecimento dessas novas tecnologias, a verdadeira importância do software ficou evidente.

Ao fim dos governos militares, apesar das intervenções e desperdícios de oportunidades trazidos pelo autoritarismo, constatou-se que aqui havia sido desenvolvido código de sistema operacional da melhor qualidade (Sisne, Sox) e que o nível de prática e ensino de programação estava par a par com os centros mais desenvolvidos (Estados Unidos, Japão, França e Inglaterra) e até à frente de vários países que não tinham essa expertise.

A noção de que realmente aprendemos a desenvolver software básico firmou-se com as acusações de empresas, como Microsoft e Data General, de que o software que havia nos produtos existentes, ou a serem lançados aqui, era cópia pirateada. Isso foi refutado de forma inequívoca, entre outras, pela estatal Cobra Computadores e pela empresa privada Scopus, até mesmo comparando-se trechos de código. Essa intensa pressão norte-americana ainda foi contida durante o governo Sarney pela atuação de pessoas como Renato Archer e Luciano Coutinho, mas, logo em seu início, o governo Collor cedeu de forma oportunística e acabou com a proteção à emergente indústria de informática no Brasil, que rapidamente desnacionalizou-se e quase desapareceu.

Foi esse tópico que me proporcionou novo e agradável encontro muitos anos mais tarde, quando Fabio era diretor do BNDES na gestão Lessa. 

Ao fim dos anos 1990, com a ideia de tornar o Brasil um exportador de software, foi estabelecida uma meta de exportar um milhão de dólares na virada do milênio, e criada a Softex com seu nome original (Sociedade para Fomento da Exportação de Software). Acreditava-se muito em produtos de software, conhecidos como software de pacotes, a serem comercializados por venda de cópias (exatamente como hoje se compra um aplicativo para seu tablet ou smartphone). Esse conceito era correto do ponto de vista técnico, pois tínhamos condições de competir com alta qualidade no desenvolvimento dos códigos para atingir o pacote-produto com um custo adequado. O problema é que, não havendo ainda a internet, os canais de comercialização eram semelhantes a supermercados, dependentes de marcas e de espaço em prateleiras. E aí se revelou nossa grande falta: não tínhamos marcas nem acesso às redes distribuidoras, nem experiência de penetração comercial para vender software-produto diretamente um a um ou mesmo por revendedores. Um dos melhores exemplos foi o caso dos programas de processamento de texto: os mais velhos recordam-se bem da qualidade do CartaCerta e do Redator, softwares totalmente desenvolvidos aqui e que foram esmagados pelos importados da época, mesmo de qualidade inferior.

O resultado desse esforço foi triste: na virada de 2000, não conseguimos nem um quarto da meta estipulada, e criou-se um clima negativo e desencorajador para exportar software.

Nessa mesma época – fim dos anos 1990 –, apareceu o famigerado “bug do milênio”. Até então, as milhares de linhas de código produzidas mundo afora utilizavam apenas dois dígitos para registrar o ano nos programas desenvolvidos. Inúmeros desses programas embutiam tarefas que tomavam decisões comparando dois anos e, com a virada do milênio, isso ficaria totalmente fora de controle ao fazer o computador pensar que o ano 2000 era antes de 1999… A imprensa ajudou muito a disseminar um medo de catástrofes, criando enorme pressão para algo ser feito com prioridade.

O resultado foi um certo pânico para correr contra o relógio e reprogramar todos os programas que fossem atingidos por tal bug, passando a utilizar quatro dígitos para codificar anos. Era uma tarefa repetitiva, de pouca lógica ou complexidade, mas muito, muito extensa. Além disso, era temporária – ninguém queria contratar mais programadores para ter que dispensar logo depois, nem parar seus desenvolvimentos deslocando a mão de obra internamente disponível. Resultado: essa demanda caiu como uma luva para as empresas indianas que constituíram “fábricas de software” imediatamente se movimentarem e explodirem em crescimento e lucros, criando o que se denominou de off-shore outsourcing, e um mito de eficiência e preços baratos. A erradicação do bug do milênio enquadrava-se favoravelmente até na diferença de fuso horário entre Mumbai e Nova York e na obediência cega dos codificadores que adotavam a mesma prática cultural de seus mantras.

No Brasil, em muito menor escala, ocorreu algo semelhante. Surgiram algumas novas e agressivas desenvolvedoras de software na esteira do bug, que se distinguiam exatamente por fugir dos “pacotes” e oferecer serviços de software na modalidade de fábrica. Somando-se a acelerada penetração da informática em todos os setores da economia, criou-se uma nova concepção para o que seria o futuro da indústria brasileira de software: uma oferta de serviços correlacionados ao software, porém, mais abrangente, capaz de tornar o uso da informática pelas empresas algo que vem somado a serviços administrativos ou de relacionamento com o público.

Nos primeiros anos do novo século, algumas das empresas nacionais que souberam aproveitar a onda do bug do milênio se interessaram em conhecer mais de perto o sucesso do modelo indiano e criaram uma associação no começo focada exclusivamente em fomentar a exportação de software e serviços correlatos. A criação da Brasscom foi uma construção delicada no início, pois estavam sendo convidados para colaborar dirigentes de empresas que competiam ferozmente no mercado nacional e que, naturalmente, se viam muito mais como “inimigos” que como “colegas no mesmo barco”. Tive o privilégio de colaborar intensamente nessa construção e conseguir que as desconfianças iniciais fossem superadas, permitindo conduzir, como primeira iniciativa, um convênio com a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), atualmente Agência Brasileira de Inovação, destinado a contratar, muito analogamente ao que fizeram os indianos, uma consultoria internacional de renome que produzisse um plano de ação conjunto governo federal-empresas privadas nacionais para conquistar uma parcela do mercado exterior nos próximos anos. 

Antes mesmo de essa questão terminar, como considerava a participação do BNDES imprescindível para tornar realidade qualquer plano que viesse a ser proposto, fui procurar Fabio Erber no Banco e propor uma conversa sobre o assunto. Com sua habitual franqueza, ele achou até graça e bem-humoradamente disse que não acreditava naquilo, que não via meios de competirmos com os indianos. Mas talvez pelos créditos de amizade e respeito profissional acumulados durante muitos anos, concordou em almoçar e ouvir.

Mostrei-lhe um paper inicial que havia sido elaborado por ocasião da fundação da Brasscom, já com alguns dados do mercado internacional e a penetração indiana respectiva e falei da experiência dos dirigentes nacionais que já estavam ligados na iniciativa, haviam visitado a Índia e estavam confiantes de que poderíamos ter um lugar nesse crescente mercado internacional. Como eu estava realmente entusiasmado pelo assunto, Fabio acabou por proporcionar uma chance de mudar de ideia, pelo método tradicional do Banco quando há um assunto novo e/ou controvertido: reuniões com técnicos de diversas especialidades do quadro do BNDES, nas quais, após uma apresentação, era feita uma verdadeira sessão inquisitória.

O resultado espelhou muito sua personalidade e seu comportamento: uma vez convencido da validade da iniciativa (sem precipitar-se e mantendo suas reservas de dúvidas a serem exploradas a seguir), Fabio passou a apoiar inicialmente uma investigação mais profunda e, com os resultados positivos, a ideia propriamente dita de tornar o Brasil um exportador de software e serviços correlatos.

Por seu intermédio, a Brasscom foi logo recebida pelo presidente Carlos Lessa, que, apesar de mostrar-se muito cético quanto ao sucesso, admitiu a validade da iniciativa e, a partir daí, o Banco sempre esteve presente e ajudou no desenvolvimento desse segmento.

Fabio poderia ter tido o comportamento tecnocrata de descartar algo que era naturalmente novo, arriscado e desafiador. Mas, suas convicções de Política Industrial, que tanto ajudaram o BNDES a retomar seu caminho após os excessos da época anterior, em que Política Industrial era um palavrão no governo e alguns dirigentes só sabiam falar em privatização, somaram-se sua curiosidade de pesquisador e cientista social que acabavam por dizer “me mostre” para só depois formar sua opinião executiva.

O Brasil é hoje um importante player no mercado internacional de outsourcing de software e serviços correlatos e muito se deve ao apoio dado pelo Banco, que, como outras decisões de Políticas com P maiúsculo, teve uma importante (e como sempre discreta) contribuição do economiste Fabio Stefano Erber.

Mas esta foi apenas uma, e das mais modestas, ainda que tão importante, das magníficas contribuições deixadas pela inesquecível figura do economiste Fabio Stefano Erber.

Pensando e implementando políticas: a contribuição...

1. Introdução

Fabio Erber era um homem que, como diria Kant, "ousava conhecer!"1 "Tinha a coragem de usar o seu próprio entendimento",2

ver também Pensando e implementando políticas: a contribuição...

Pensando e implementando políticas: a contribuição de Fabio Erber no BNDES

Dulce Monteiro Filha, José Eduardo Pessoa de Andrade, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

Throughout his academic career, Fabio Erber sought to structure definitions that would help him understand reality and choose the paths he deemed correct. With an encompassing view of the world, the many varying choices he made throughout his life took on an analytical focus based on concepts. And it was through these concepts in his professional and political career that he managed to implement efforts that altered not only the understanding, but also the path of industrial policy taken by the BNDES – something which had an effect on the country. He significantly contributed to recuperating industrial policy in Brazil when he was involved in designing the Industrial, Technological and Foreign Trade Policy (PITCE). While the atmosphere was hostile, Fabio was convinced that the path for industrial policy had to be changed drastically. This paper reveals what took place at the BNDES during this moment in history: the beginning of Lula's administration. It was written by two people who worked with Fabio Erber at the BNDES after the 1990s. The history of the return to industrial policy via the PITCE is presented by means of testimonies from two of Fabio Erber's collaborators involved in designing this policy. Also, the paper aims at presenting the important theoretical discussions that led to the choices made.

1. Introdução

Fabio Erber era um homem que, como diria Kant, “ousava conhecer!”1 “Tinha a coragem de usar o seu próprio entendimento”,2 mesclando os ensinamentos adquiridos como professor de Economia da UFRJ com os resultados da frequente atividade de formulador de políticas governamentais. Assumiu funções públicas em períodos de mudanças políticas no país, nos governos Sarney, Itamar e Lula, com a incumbência de participar da elaboração e da implantação de programas e planos de desenvolvimento que incluíssem ações principalmente nas áreas industrial e tecnológica. 

Durante sua vida, por vários períodos, esteve ligado à implantação de setores de ponta no país, desde os tempos em que trabalhou na Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), atualmente Agência Brasileira de Inovação, na coordenação de um grupo ligado à implantação da Política de Informática do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND).

Foi secretário executivo adjunto no Ministério da Ciência e Tecnologia no governo José Sarney, de 1986 a 1988. Nesse período, esteve envolvido com tarefas da Secretaria-Geral e também com a formulação de políticas.

Quando participou do governo Lula, essa experiência o ajudou na tarefa de opinar na remontagem da estrutura de Estado que permitiu a volta da política industrial ao Brasil. Participou ativamente da elaboração da PITCE. Esse trabalho não foi fácil, por causa da postura adotada pelos governos anteriores, que ressaltava as desvantagens dessa política, e também porque tinha sido destruída grande parte do amplo arcabouço jurídico-institucional da época dos planos de desenvolvimento. Havia outra dificuldade ainda, relacionada à necessidade de priorizar, naquele período, o controle da inflação. A PITCE representou uma mudança institucional, pois foi estabelecida uma nova convenção – a do novo desenvolvimentismo. 

No BNDES, como funcionário de carreira, Fabio assumiu por dois períodos uma diretoria nessa instituição, com atuações marcantes. Em 1992, foi nomeado diretor pelo então presidente da República, Itamar Franco, na gestão do presidente do BNDES Antônio Barros de Castro, e assumiu a responsabilidade pela Área Industrial.

Fabio resolveu criar uma nova estrutura para o funcionamento da Área Industrial. Essa área foi dividida em duas superintendências, cada uma compartimentada em quatro departamentos setoriais, em diferentes graus de agregação dos setores abrangidos. Como diretor da Área Industrial, implantou as gerências setoriais, que têm como tarefa armazenar e analisar informações dos setores industrial, agrícola e de serviços, publicando o BNDES Setorial, entre outros trabalhos e atividades.

No período 2003-2004, assumiu novamente a diretoria e foi um dos principais responsáveis pela volta da política industrial no país e um dos articuladores da PITCE, tendo reestruturado a Área Industrial e a Área de Planejamento do BNDES. Foi o responsável também pela diretoria que criou programas visando à implantação de novos setores ou à dinamização de setores incipientes na matriz industrial brasileira, determinantes para o desenvolvimento tecnológico do país.

1.1. Contexto histórico

De 1955 até 1990, o desenvolvimentismo incorporou as disputas técnicas e políticas,3 usando a intervenção do Estado para, por meio da industrialização, estabelecer um padrão de crescimento.

Os planos que propuseram uma ação mais intervencionista na parte real da economia foram o Plano de Metas e o II PND, pois consideravam, como questão principal, o desenvolvimento a partir do processo de industrialização. Com base no modelo de substituição de importações em setores-chave que poderiam ter efeitos encadeadores e propagar o desenvolvimento para o restante da economia, construía-se um discurso político que enfatizava a possibilidade de espraiar os resultados alcançados para o restante da economia.

Entretanto, já a partir de 1988, com a promulgação da nova Constituição brasileira, o modelo anterior de desenvolvimento foi considerado terminado, em face da crise inflacionária que se tentava combater desde 1986 (Plano Cruzado).

No âmbito interno do BNDES, no governo Sarney, predominava a proposta da “integração competitiva”,4 com o diagnóstico de que a proteção, principalmente alfandegária, aos setores industriais instalados no país, um dos pilares do estímulo à implantação de novas indústrias, não proporcionara eficiência e capacidade competitiva a esses setores. Seria necessário aumentar sua exposição à competição internacional. A possibilidade de atingir eficiência internacional seria tomada como referência para orientar a atuação estratégica ativa do Estado e do BNDES nos setores capazes de se integrar competitivamente à economia mundial, sem o recurso da proteção alfandegária diferenciada.

A abertura da economia brasileira ocorrida nos anos 1990, no governo Fernando Collor, seguindo os preceitos do Consenso de Washington, trouxe uma mudança de modelo econômico e a modificação de um conjunto de normas. Essas normas mudaram o arcabouço técnico e jurídico do país. O governo passou a promover ações visando à diminuição da presença do Estado na economia e à privatização das empresas estatais. Foram estabelecidas medidas de redução acentuada e generalizada das barreiras alfandegárias. Foi adotada uma política industrial horizontal, sem considerar as particularidades e as necessidades de cada setor específico, com exceção aberta na política para os setores de tecnologia de ponta – microeletrônica, novos materiais, química fina e biotecnologia.

A chegada de Fabio à diretoria do BNDES, após a saída de Collor, ocorreu como resultado da alteração no predomínio das forças políticas que comandavam o Brasil. A concepção desenvolvimentista voltou a prevalecer, em face do reconhecimento da importância das políticas proativas no fortalecimento da atividade industrial no país.

O setor industrial não deveria ser abordado como um bloco único e coeso. Era a avaliação das vantagens das políticas setoriais verticais diferenciadas em relação às horizontais indiferenciadas. A incorporação da eficiência para enfrentar a concorrência internacional não ocorrera de modo uniforme pelos diferentes setores. Novas ações e muitas inovações deveriam ser formuladas e implementadas. Políticas diferenciadas incorporando as especificidades e as necessidades de cada setor industrial deveriam ser adotadas.

1.2. A visão sobre política industrial 

O Banco Mundial e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) perceberam, nos anos 1990, que era necessário voltar a discutir política industrial.

Em 1993, o Banco Mundial enfatizou a importância da coordenação, registrando que, além de enfocar falhas de funcionamento do mercado, mesmo na ausência destas, as políticas de governo deveriam tratar as falhas de coordenação, que, por si só, podem gerar importantes falhas de mercado.

A OCDE elaborou um texto que foi bastante debatido [Postel-Vinay (1999)], no qual afirmava:

Se a política externa, a política econômica parecem noções intuitivas, a política industrial apresenta noção diversa e representação diferente segundo os interlocutores e países: política de competitividade para um ambiente favorável às empresas para uns, desenvolvimento de grandes pesquisas para outros, para estes se amoldando com uma política tecnológica, por vezes enfim perseguindo através de suas ajudas financeiras como um meio de acompanhar reestruturações, ou como um resto de políticas setoriais. Esclarecer o conceito é pois necessário, e isto sob um período muito longo para limitar os efeitos da ótica conjuntural (p. 18). 

A OCDE passou a defender políticas de promoção de competitividade, em substituição ao termo política industrial.

No entendimento de OCDE (1998), a política de competitividade tinha como principal papel contribuir para o estabelecimento de uma ampla estrutura de mercados eficientes e para a correção de falhas de mercado que podiam retardar a contribuição dos negócios ao crescimento econômico e do emprego. Essas políticas procuravam, entre outros aspectos, privilegiar economias de coordenação, para reduzir assimetrias de informação entre os agentes econômicos, a fim de minimizar falhas de governo e de mercado e estimular maior eficiência no uso de fatores que contribuíam para crescentes ganhos de produtividade. Apoiavam a modernização produtiva e promoviam ainda a atração de novos entrantes.

Em 1998-1999, o Banco Mundial também deu particular ênfase à importância da informação, na era do conhecimento, para o crescimento econômico, destacando seu aspecto vital para o eficiente funcionamento dos mercados. Os agentes econômicos, em geral, têm problemas de acesso à informação, isto é, os mercados de conhecimento frequentemente falham, o que influencia negativamente a competitividade. 

Os debates levantados pelo Banco Mundial e pela OCDE decorreram da abertura econômica em grande número de países. Como exposto em Monteiro Filha e Piccinini (2001), em uma economia aberta o instrumental usado nas análises de mercado/estratégias/progresso técnico não pode ser o mesmo de economias fechadas. Em economias abertas, a competitividade das cadeias produtivas e dos países depende de sua capacidade de reagir a novas oportunidades e desafios, respondendo às demandas no timing adequado.

No texto “O Retorno da Política Industrial”, Fabio Erber teve a coragem de explicitar o que todos que trabalhavam com o assunto sabiam: 

O tema política industrial evoca divisões profundas entre os economistas. Durante a última década, a própria expressão tornou-se um tabu, tendo sido banida da retórica dominante (quando indispensáveis, usam-se eufemismos como política de competitividade) [Erber (2002a, p. 637)].

Fabio tinha uma visão própria de política industrial, que desenvolveu por sua experiência profissional, mas, seguindo a tradição inaugurada por Herrera (1971), enfatizou a necessidade de perceber as dimensões explícita e implícita e elaborou a diferença entre elas. Chamou de políticas industriais explícitas aquelas, definidas pela ação do Estado, que visam, diretamente, alterar o comportamento das empresas industriais, direcionando de forma específica a mudança pretendida. Entendia como políticas industriais implícitas as que procuram alcançar determinados objetivos que são definidos, em parte, à luz da teoria sobre o processo de desenvolvimento.

Em sua concepção,5 a política industrial faz parte de um sistema, de forma que sua eficácia depende da convergência de políticas implícitas com as demais políticas, principalmente a macroeconômica. A convergência entre políticas industriais explícitas e implícitas depende das condições macroeconômicas e dos objetivos do desenvolvimento que o Estado pretende alcançar.

Ao mesmo tempo, achava relevante uma visão da economia que captasse sua complexidade. Para isso, procurava entender a diferença entre as partes do sistema econômico, usando o conceito de setor. Defendia que o nível de agregação a ser utilizado – definição de setor – deve depender do tipo de problema a ser tratado [Erber (2002b)].

A operação de um setor é um processo coletivo, em que o resultado final difere da soma das partes, o que pode ser esquematizado na metáfora da “cadeia” (entendendo-se cadeia como o processo produtivo que transforma as matérias-primas em produtos e os leva à fase em que são comercializados, sendo agregado valor em cada uma das etapas percorridas). Isso conduz à percepção de que a força de um setor é inversamente proporcional à fraqueza de seu elo mais débil. “Ilhas de excelência”6 esparsas em um mar de subdesenvolvimento não conduzem à sua superação. É, portanto, uma visão sistêmica da economia.

A interdependência também existe entre setores, que mantêm fortes relações de compra e venda visando ao abastecimento de determinado mercado (citando, como exemplo, o complexo têxtil), ou para juntar setores industriais que compartilhem da mesma base técnica, embora forneçam a mercados distintos (o exemplo dado é o complexo eletrônico). São os chamados setores mesoeconômicos [Erber (2002b, p. 10)]. 

Podem existir várias políticas industriais, em decorrência também da especialização, nas quais setores e cadeias são definidos por base técnica e mercado. Estratégias e competências de arranjos empresariais são determinadas pelo relacionamento das empresas com relação a mercado e pela rede de interações empresariais, levando-se em consideração a base técnica.

A diversidade das Políticas Industriais é também uma imposição técnico-econômica: os setores e cadeias produtivas apresentam características distintas, que impõem tratamento diferenciado. Mesmo as políticas mais horizontais, como as políticas macro, têm rebatimentos setoriais distintos. Igualmente, a heterogeneidade das empresas, em termos de tamanho e origem do capital, introduz diferenças importantes na sua lógica de transformação de portfólios – o que implica em Políticas Industriais diferenciadas. […] Finalmente, a especificidade dos ativos que compõem a empresa também implica em diferenciação de Políticas Industriais [Erber (2002a, p. 639)]. 

Fabio chamava a atenção para o fato de que políticas macroeconômicas têm rebatimentos setoriais distintos. E, igualmente, a heterogeneidade das empresas, quanto a tamanho e origem do capital, introduz diferenças importantes na lógica de transformação do conjunto – reforçando a necessidade de políticas industriais diferenciadas.

O autor enfatizava que, para um país retardatário, o timing é importante para que possa ocorrer o catching-up com os países desenvolvidos e sustentava que a política industrial acelera esse processo.7 A ausência de política é uma política de manutenção do status quo, isto é, “mais do mesmo”, e não uma situação de não política. Políticas de desenvolvimento geram desequilíbrios para poder promover o emparelhamento com os países mais adiantados, porque mudanças estruturais ocorrem nesse contexto. A política industrial é, assim, um instrumento poderoso na promoção do desenvolvimento [Erber (2002a, p. 647-648)].

2. Contribuição de Fabio Erber a partir dos anos 1990

2.1. Atuação no BNDES de 1993 a 1994

Com vivência acadêmica, na esfera pública e no BNDES, Fabio apresentou novas ideias para fortalecer o setor industrial no Brasil, assumindo, ao mesmo tempo, a direção da área específica do BNDES na qual seria possível manejar instrumentos capazes de atingir os fins desejados.

No governo Itamar, de 1992 a 1994, havia grande preocupação com a hiperinflação e a estagnação do Produto Interno Bruto (PIB), com um decréscimo acentuado do crescimento da economia brasileira. Na década de 1980, o crescimento do PIB foi de 1,57% a.a., bem menor do que os 7,45% a.a. no período 1945-1980. Era grande o questionamento externo e interno sobre o grau de proteção da economia brasileira, principalmente em relação aos produtos industriais. A economia era fechada e não havia estímulos ao aumento da eficiência e da competitividade dos setores industriais. 

Uma das primeiras ações de Fabio, alterando a tradição dos procedimentos praticados na Área Industrial do BNDES, foi a proposta de criação de gerências setoriais em cada um dos departamentos integrantes de sua estrutura. Argumentou, na época, que a atuação tradicional do BNDES nas fases do projeto – análise, aprovação, contratação e acompanhamento – permitia que os técnicos e responsáveis gerassem competências e conhecimentos qualitativamente diferenciados.

Além disso, outros conhecimentos gerados durante as fases do projeto, primordialmente de caráter mais setorial, eram pouco registrados nos relatórios. Eram conhecimentos obtidos nas leituras, nas conversas internas ou com representantes das empresas e nas conversas ocorridas em eventos com representantes dos setores industriais envolvidos. Esse conhecimento gerado em nível tácito, não formalizado e sistematizado, era difundido na instituição primordialmente pela convivência informal dos técnicos mais antigos com os mais novos.

Fabio compreendeu e identificou a importância para um banco de desenvolvimento desse conhecimento, ainda muito pouco aproveitado, tanto internamente, na instituição, quanto externamente, pelas demais instituições públicas, órgãos de governo e entidades privadas.8

Mesmo com a nova inflexão no predomínio das forças políticas que comandavam o país, com a presidência de Fernando Henrique Cardoso e a prevalência da concepção neoliberal e das propostas de políticas horizontais indiferenciadas, as gerências setoriais permaneceram na estrutura do BNDES como um legado da contribuição de Fabio, como diretor do BNDES, durante aquele período. 

Em 1997, após a saída de Fabio da diretoria do BNDES, outras áreas operacionais aprovaram a extensão da criação de gerências setoriais: a Área Social e a Área de Infraestrutura. A participação do Banco na evolução de alguns setores estratégicos e, inversamente, o peso desses setores na carteira do Banco justificaram a institucionalização de centros de conhecimento setorial na forma de gerências setoriais.

Na apresentação do livro BNDES 50 Anos – histórias setoriais, Fabio explica o recorte setorial [Erber (2002b)]: 

[…] a avaliação das propostas de financiamento submetidas ao Banco requer a competência para analisar os setores em que os candidatos ao financiamento se inserem. Em outras palavras, o BNDES, como outras instituições financeiras semelhantes, requer, operacionalmente, alto grau de inteligência setorial. Dada a diversidade das operações do Banco, este tem ainda que deter a competência para realizar a análise de novos setores. Para ser eficaz, tal conjunto de competências precisa estar institucionalizado, de forma a não depender de indivíduos específicos – o que implica contar com uma massa crítica de técnicos qualificados em análises setoriais. Esse tipo de consideração presidiu a decisão da diretoria do Banco de criar as Gerências Setoriais do BNDES, em 1993 (p. 13).

[…] será fundamental a concepção das Gerências Setoriais como “núcleos de inteligência setorial”, agindo articuladamente com as áreas operacionais do Banco e os demais aparatos do Estado (p. 14).

Apesar da importância da recuperação da história setorial, especialmente num país onde esse tipo de informação é reconhecidamente precário […] [os estudos] fornecem elementos importantes para a revisão crítica do passado recente e, principalmente, contribuem para a formulação de políticas setoriais e para a própria atuação do Banco. Nesse sentido, cumprem a função estratégica das Gerências Setoriais de atuarem como centros de inteligência para a formulação de políticas de desenvolvimento (p. 14).

As gerências setoriais (GESETs), de 1993 até hoje, vêm sendo responsáveis ou contribuíram para a elaboração de publicações, tais como BNDES Setorial, Informe Setorial, Relato Setorial, Textos para Discussão, estudos, estudos especiais e livros.

Júlio Ramundo, diretor do BNDES, que é funcionário da instituição desde 1992, conta que as GESETs foram criadas com o objetivo de sistematização da informação, mas não têm apenas essa função. Elas conseguem apreender o conhecimento tácito que existe em uma organização como o BNDES, gerando uma postura impessoal na proposição de política setorial. Os chefes de departamento, que são os responsáveis diretos pelo relacionamento com os setores, passam a ter capacidade de verbalizar essas políticas mais articuladamente.

Segundo Pedro Palmeira, chefe do Departamento de Produtos Intermediários Químicos e Farmacêuticos da Área Industrial do Banco, as GESETs dispõem de um nível de conhecimento do setor e das empresas que permite uma atuação sobre disfunções existentes. Os estudos setoriais são muito importantes em setores intensivos em ciência e tecnologia, que têm formas de se expressar muito técnicas e bastante diversificadas, uma vez que utilizam ampla gama de conhecimentos científicos. As GESETs permitem que o BNDES opere com empresas com risco mais elevado do que outros financiadores privados, que nem sequer examinam os pedidos de empréstimos, pela dificuldade de entendimento da operação da empresa. É usual colocarem spreads muito elevados, impedindo que projetos ligados à inovação sejam financiados. 

2.2. Os anos 1990 segundo Fabio Erber

Ao analisar os anos 1990, Fabio especifica o embasamento teórico das ideias motivadoras da mudança que levou a convenção neoliberal a se tornar hegemônica no Brasil. Ela era constituída por um tripé intelectual dado por:

(i) o programa de pesquisas novo-clássico que, combinando suposições sobre os agentes econômicos maximizadores e dotados de expectativas racionais, equilíbrio contínuo de mercados, taxa natural de desemprego e decisões de oferta dependentes de preços relativos, postulava a ineficácia de políticas ativas do Estado, salvo por meio de “surpresas”;

(ii) a invasão da ciência política pelos postulados da economia neoclássica (notadamente o individualismo maximizador de interesses privados), que levou a teoria da escolha pública a teorizar a “apropriação” do Estado por interesses particulares – seja por coalizões restritas, seja pela própria burocracia. Em consequência a ação do Estado deveria ser restringida e submetida a regras rígidas e transparentes e a burocracia “insulada” das pressões econômicas e políticas;

(iii) os aportes da “nova economia institucional” que explicavam o desenvolvimento de instituições adequadas que, na fase atual do capitalismo, estimulassem a inovação e reduzissem os custos de transação. Embora indispensáveis, as instituições estatais deveriam ser tão market friendly quanto possível, de preferência “simulando a atuação do mercado, de forma a privilegiar a alocação eficiente de recursos e inovação”.

As pernas do tripé reforçavam-se mutuamente e retomaram o etapismo – notadamente na visão de Fim da História [Fukuyama (1989)] – pela qual o desenvolvimento, adequadamente conduzido, levava necessariamente a uma sociedade “pós-histórica”, regida pelo mercado e com um sistema político de democracia representativa [Erber (2007, p. 52-53)].

Essa visão dinâmica da sociedade foi traduzida, como já mencionado, em um conjunto de recomendações, em um decálogo que ficou conhecido como Consenso de Washington, originariamente destinado a países da América Latina, mas rapidamente ampliado a países em desenvolvimento.

Fabio destaca ainda quatro aspectos fundamentais que definem as duas convenções:

I. O desenvolvimentismo partia da sociedade para chegar ao agente individual. Na convenção neoliberal, o percurso é oposto.

II. A velha convenção via o desenvolvimentismo como a transformação da estrutura produtiva, com as instituições adequando-se a esta transformação, ao passo que a recomendação básica da convenção neoliberal é de get the institutions right, acerto que levaria a uma estrutura produtiva apropriada à alocação eficiente de recursos.

III. O Estado é para o desenvolvimentismo o motor do desenvolvimento, seja por causa das falhas de mercado, seja porque representa o interesse da coletividade. Para os neoliberais, as falhas do Estado são mais daninhas que as falhas de mercado, e o Estado tende a ser apropriado e deve ter seu poder discricionário limitado ao máximo. Os mercados, ao contrário, devem ser estimulados e, quanto mais completos, maior será a probabilidade de desenvolvimento.

IV. Os desenvolvimentistas insistiam que o subdesenvolvimento é um processo histórico específico e que a história dos países periféricos não é uma repetição defasada do percurso dos países mais avançados. Os neoliberais recuperam o etapismo, em uma versão ainda mais simplificada que as prevalecentes nos anos 1960, como a de Rostow (1964) [Erber (2007, p. 54 e 55)].

Fabio Erber apontava ainda que o modelo de estabilização implantado depois de 1990 montou um arcabouço institucional, na esperança de desenvolver um capitalismo financeiro no país9 e de dar maior competitividade à economia brasileira para capacitá-la a atuar em um mundo globalizado. 

Somava suas conclusões com autores como Chagas (2006), que argumentava que a instabilidade econômica, com a inflação acelerada e a inoperância do Estado em relação à política industrial e tecnológica, levou à cristalização de uma conformação estrutural caracterizada por acentuada heterogeneidade tecnológica e estrutural e por fraca capacidade de inovação, fatores que passaram a ser óbices à retomada do crescimento. Os problemas enfrentados pela estrutura produtiva eram vistos como o esgotamento do modelo de desenvolvimento, identificado pela queda dos índices de produtividade.

2.3. Fabio Erber volta à diretoria do BNDES em 2003

Em 2002, Fabio Erber escrevia que, em face da necessidade de retomar o crescimento econômico e das pesadas restrições macroeconômicas existentes, “parece muito provável que a nova estratégia de desenvolvimento venha a novamente privilegiar as alterações na estrutura produtiva, atuando por meio de políticas setoriais” [Erber (2002b, p. 14)].

Nesse contexto, com a mudança de governo, em 2003, voltou a ideia de política industrial, e Fabio Erber foi um protagonista dessa história. Foi nomeado diretor do BNDES pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na gestão do presidente do BNDES Carlos Lessa.

Inicialmente, ficou responsável pelas Áreas de Planejamento e Mercado de Capitais. No Planejamento, promoveu uma reestruturação remodelando o departamento de estudos, para iniciar análises de alguns setores, como tecnologia da informação, farmacêutico e biotecnologia. Nas estatísticas do BNDES, estudou-se a possibilidade de obter informações sobre apoio financeiro a locais por Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), em vez de por macrorregiões (Norte, Nordeste, Sul, Sudeste, Centro-Oeste), o que possibilitaria melhor avaliação de políticas de inclusão social. Estudou-se que ações o Banco poderia adotar para incentivar o emprego no país. Foram demandados estudos sobre a fragilidade externa do país, sobre a implicação dos acordos comerciais para o Brasil e sobre a integração com a América do Sul, assim como foi solicitada uma agenda de trabalho conjunta das Áreas de Planejamento e de Exportação, objetivando estruturar operações que visassem ao desenvolvimento de cadeias produtivas. Entretanto, já no início do segundo semestre Fabio foi deslocado para as Áreas de Crédito e Industrial.

No período de 2003 a 2004, foi um dos principais responsáveis pela volta da política industrial no país e um dos articuladores da PITCE. Reestruturou a Área Industrial e a Área de Planejamento do BNDES, assim como foi o responsável pela diretoria que criou programas visando à implantação de novos setores e ao fortalecimento de setores incipientes na matriz industrial brasileira, determinantes para o desenvolvimento tecnológico do país.

O ambiente hostil à ideia de política industrial demandava, na época, uma resposta à questão: por que o Brasil precisa de política industrial? Como pensador, Fabio Erber preocupou-se em responder a essa pergunta, e, como operador de políticas públicas, se propôs a desenvolver instrumentos de política industrial, adequados ao momento de transição – do predomínio de uma convenção10 neoliberal para uma desenvolvimentista. 

Como desenvolvimentista, propunha uma mudança estrutural e frequentemente se referia à necessidade de não se fazer apenas “mais do mesmo”.

Em períodos de reestruturação das instituições, era indispensável, para o estabelecimento de uma nova convenção, a compreensão dos instrumentos de política usados pela convenção anterior, que tinham de ser modificados para a implantação de novas.

Num contexto extremamente adverso, a política industrial precisava articular primeiro as instituições que possibilitariam sua existência. Assim, é fácil entender por que a PITCE se propôs a uma atuação mais restrita que a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), que lhe seguiu. O arcabouço institucional capaz de administrar a implantação de uma política mais ampla não existia mais, principalmente porque havia clareza quanto à importância de políticas diferenciadas para indústrias com lógicas distintas, conforme mostrava o texto do documento Diretrizes de Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior:11

A organização industrial e a dinâmica da inovação e difusão de tecnologias determinam comportamentos empresariais diferenciados. Desta forma, a política para um setor intensivo em capital, estruturado por grandes empresas, não pode ser a mesma que para outro setor, intensivo em trabalho e caracterizado por pequenas empresas. De forma análoga, setores industriais que geram inovação não podem ser tratados da mesma forma que setores que são mais receptores de inovações geradas em outros segmentos produtivos. A dinâmica de cada processo é diferente, o que exige tratamento diferenciado.

2.4. Atuação como “operador” de política: PITCE

Quando no segundo semestre de 2003 assumiu a Diretoria Industrial do BNDES, Fabio passou a se empenhar tanto na coordenação da implantação da política industrial quanto no desenvolvimento de programas de financiamento para os setores de software, fármacos e medicamentos e bens de capital. Além disso, recriou um programa horizontal denominado Fundo de Desenvolvimento Técnico-Científico (Funtec, atual BNDES Fundo Tecnológico), para financiar o desenvolvimento tecnológico.

Essa atuação era coordenada por Brasília. Havia, no governo, a Câmara de Política Econômica (CPE), ministerial, que se reunia na Casa Civil, coordenada pela Fazenda – o secretário de Política Econômica formalmente montava a pauta, mas os ministros tinham participação ativa, diretamente, e compareciam às reuniões semanais. A CPE criou o Grupo Executivo da PITCE, que tinha representantes de vários órgãos – o do BNDES era o Fabio Erber. Havia uma coordenação: Edmundo Machado de Oliveira (Fazenda), Alessandro Teixeira (que na época estava na Apex), Mario Sergio Salerno e Fernando Rezende. Na função de articulador político, Glauco Arbix conversou com todos os ministros ligados ao assunto para lançar a ideia de política industrial. Até a formalização do documento Diretrizes de política industrial, tecnológica e de comércio exterior, lançado em novembro de 2003, o grupo fazia reuniões semanais. Havia subgrupos específicos também.

Fabio Erber teve participação destacada, pois não ficou na abordagem “corporativa”, segundo declarações de Mario Salerno. Contribuiu na formulação geral e na articulação. Apresentou algumas vezes sua análise da experiência anterior com planejamento, um alerta para a superação dos possíveis problemas.

Como Mario Sergio Salerno12 chama a atenção,  

um dos resultados desse processo foi a compreensão da necessidade de novas construções institucionais. Foi proposta a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial, envolvendo ministros, industriais e sindicalistas para a discussão das estratégias, aconselhamento de ações e consultas, e da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), uma instituição autônoma, que fosse independente do orçamento da União, operando sob comando direto do MDIC, coordenadamente com o MCT. A proposta era a de reunir um corpo profissional enxuto mas dedicado em tempo integral para coordenar, monitorar andamento, propor novas ações e eventualmente operar algum instrumento específico. Com essas duas entidades atuando, esperava-se que aumentasse a coordenação intragovernamental e a interlocução com a indústria, o que é fundamental numa política na qual o Estado não interfere diretamente na produção, mas busca incentivar posturas e ações da iniciativa privada.  

Em 2004, amadureceu a ideia da criação da ABDI, quando o grupo executivo não conseguiu mais trabalhar, pois cada um tinha de cuidar de suas tarefas em seus órgãos. Fabio Erber participou ativamente dessa concepção. Ela foi discutida com os ministros “diretos” – ministro da Fazenda, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e ministro da Ciência e Tecnologia –, que inicialmente faziam parte de seu conselho de administração. O projeto de lei resultante foi aprovado por unanimidade.

A PITCE, aprovada em 31 de março de 2004, colocou no centro das preocupações políticas a inovação e a agregação de valor aos processos, produtos e serviços da indústria nacional.

Propunha três eixos de ação: linhas horizontais visando à inovação e ao desenvolvimento tecnológico, inserção externa/exportações, ambiente institucional e modernização da indústria brasileira como um todo; apoio mais incisivo nos setores estratégicos, definidos como software, semicondutores, bens de capital, fármacos e medicamentos; e apoio às chamadas atividades portadoras de futuro, identificadas como biotecnologia, nanotecnologia e energia renovável.

No governo federal, em depoimento, Mario Salerno13 conta que existiam três níveis de discussão que levaram à articulação da PITCE:

  • Câmara de Política Econômica (CPE) – ministros da Fazenda, do Desenvolvimento Indústria e Comércio, do Planejamento Orçamento e Gestão, da Casa Civil e da Ciência e Tecnologia. Conforme o tema, o ministro da área era chamado. O grupo executivo participava dessas reuniões, que ocorreram em 2003.
  • Grupo executivo – o grupo era fechado: além da coordenação – Ipea, Fazenda e MDIC –, contou com a participação assídua de Fabio Erber, que, apesar de não estar formalmente na coordenação (composta apenas de pessoas sediadas em Brasília), foi quem mais ajudou, segundo Mario Salerno. No documento da PITCE, na capa, há a relação dos órgãos que participaram (evidentemente, não de forma homogênea).
  • Grupos diversos – normalmente, se reuniam na Secretaria Executiva do MF, para tentar chegar a algum consenso ou proposta para ser levada à CPE.

2.5. A preocupação com o desenvolvimento tecnológico  

Ao diferenciar os três grupamentos de políticas (horizontais, setores estratégicos e as atividades portadoras de futuro), a PITCE enfatizou a necessidade de investimento em setores cujas inovações objetivariam mudar radicalmente, num período curto de tempo, a capacidade de competição do país. Na concepção de Schumpeter, a concorrência é um processo dinâmico marcado pela introdução e pela difusão contínua de inovações. Assim, é indispensável introduzir setores inexistentes na matriz industrial brasileira.

Profundo conhecedor da literatura sobre desenvolvimento tecnológico, Fabio Erber foi um especialista conhecido no Brasil e no exterior. Com um humor refinado, usava slogans engraçados para transmitir suas mensagens, como “Inovações em computer chips têm consequências distintas de modificações em potatoes chips“. 

Em texto escrito para Cepal/Ipea, ele demonstrou a preocupação que norteou sua vida profissional: 

Olhando a literatura de uma perspectiva histórica, dimensão singularmente ausente nos estudos recentes sobre inovação, é recorrente a constatação de que, no Brasil, investe-se pouco em P&D, o aprendizado é passivo, as inovações são defensivas, o sistema de inovações fragmentado e imaturo. As comparações internacionais confirmam, com riqueza de detalhes, esse padrão, que pouco se modifica ao longo do tempo [Erber (2010, p. 69-70)]. 

Complementando, ainda: 

A estrutura industrial brasileira pouco se teria alterado desde o início dos anos 1980, quando se completou o II PND.

A abertura dos anos 1990 prometia libertar a capacidade de inovação das peias da estrutura interna via os efeitos dinamizadores do comércio internacional e do investimento estrangeiro. Suas consequências para a inovação local, mediadas pela estrutura produtiva, merecem análise mais detalhada. Aparentemente, a abertura comercial ampliou o peso relativo dos setores intensivos em recursos naturais e reduziu o dos setores mais intensivos em tecnologia.

A importação de inovações, incorporadas ou não em bens de capital e insumos, permite a rápida difusão de inovações, mas inibe a expansão dos setores motores e difusores das inovações e não gera nas cadeias produtivas o processo de aprendizado entre fornecedores e compradores que cria capacidade de inovar – problemas apontados desde os remotos anos 1970. Especificidades locais, não só de recursos, mas também de mercado, como a baixa renda, parecem explicar boa parte das inovações introduzidas pelas empresas estrangeiras, que correspondem por parte substancial do esforço inovador brasileiro [Erber (2010, p. 69-70)].  

Como um dos principais articuladores da PITCE, Fabio explicou no texto da Cepal/Ipea sua preocupação com o desenvolvimento tecnológico, pois, ao ser lançada, a política tinha o propósito de retomar a transformação da estrutura produtiva, mediante o reforço dos setores motores e difusores de inovações. Não estava excluído o apoio a inovações secundárias, tais como novos métodos de produção, novas fontes de matéria-prima, novos mercados, novas formas de organização, entre as diversas estratégias que podem construir um elemento decisivo na concorrência capitalista, novas aplicações e usos para produtos e processos, bem como as melhorias no que já existe, pois também constituem inovações. Em todos os casos, a inovação requer a introdução do novo no mercado, conferindo, assim, a vantagem competitiva – ou, nos termos de Schumpeter, a posição de monopólio temporário – ao inovador.

Acrescentou ainda Fabio que, pela teoria de sistemas de inovação e pela observação dos dados da Pintec,  

é fundamental estudar o processo de inovação ao nível das cadeias produtivas, além da análise tradicional por setores, identificando, na cadeia, onde estão os centros geradores de inovações, como estas se transmitem ao longo da cadeia, com quais efeitos multiplicadores sobre as inovações nos demais elos da cadeia [Erber (2010, p. 70)]. 

Apesar de haver consenso quanto à importância da inovação, há grande dificuldade no entendimento dos conceitos envolvidos, de forma que a implementação de políticas públicas não conseguiu criar ainda um círculo virtuoso. Do ponto de vista da literatura acadêmica, Fabio chama a atenção para o fato de que, a partir da década de 1990, quatro caminhos tornaram a inovação um lócus de convergência teórica em economia [Erber (2010)]: a teoria do comércio internacional (mais linear), as teorias do crescimento econômico (em que a inovação é variável central), o programa evolucionista neoschumpeteriano e os estudos de desenvolvimento.

O programa evolucionista neoschumpeteriano desenvolveu conceitos que influenciaram a literatura brasileira dos anos 1990 [Erber (1992); Coutinho e Ferraz (1994); Ferraz, Kupfer e Haguenauer (1996)], considerando a inovação como variável central para o crescimento. Eles partem do axioma da diversidade entre as firmas, que tem como base as teorias de Penrose (1959). Os paradigmas tecnológicos de Dosi (1982) estão também frequentemente presentes nas conversas sobre apoio à inovação.

Autores dessa escola propuseram, por exemplo, um corte analítico baseado no fluxo de inovações, os setores podiam ser divididos em: motores, que geram as principais, baseados em ciência – como a eletrônica –, receptores, cuja demanda é atendida principalmente pela oferta de outros (bens de consumo durável), e os intermediários, cuja demanda é suprida, em parte, por esforços internos – principalmente inovações incrementais – e, em parte – as mais radicais –, por inovações geradas pelos setores motores. Os setores intermediários (por exemplo, bens de capital e insumos de produção) atuam como supridores de inovações entre si e, notadamente, para os receptores. A essa taxonomia setorial, Erber (1992) associava uma taxonomia de intervenções estatais que seguia a relação risco/custo da inovação. 

A partir da segunda metade dos anos 1980, o estudo da complexidade do processo de inovação foi enriquecido com a adição da dimensão do aprendizado. Passou a ser importante

estudar como relações duradouras e padrões de interação e dependência estabeleciam-se, evoluíam e dissolviam-se com o correr do tempo [Lundvall (2007)]. Como, além das empresas, participam desse processo outros tipos de instituições, não empresariais, a dimensão institucional resultava ampliada, incorporando, explicitamente, a ação do Estado [Erber (2010, p. 13)]. 

Assim, o modelo de passagem linear do conhecimento, da ciência para o novo produto ou processo por meio do desenvolvimento tecnológico (a P&D), dava lugar a uma visão de “sistemas de inovação”, mais complexa e diversificada. 

Dependendo do foco de análise, tal especificidade pode ser vista pela ótica nacional [Freeman (1995); Lundvall (1992); Nelson (1993)], setorial [Malerba e Orsenigo (1997)] ou regional [Cassiolato e Lastres (2003)], pois, conforme aponta Lundvall (2007), um dos pais do conceito de “sistemas de inovação”, em uma recente revisão, é, essencialmente, um focusing device [Erber (2010, p. 14)]14

A visão de sistemas de inovação, em qualquer de seus focos, enfatizava a diferença entre a abordagem da hélice tripla e do tecnoglobalismo, como uma especificidade do sistema, como afirmam Cassiolato e Lastres (2005).

2.6. Fabio Erber como implementador de política no BNDES

A implementação das ações da PITCE no BNDES foi coordenada principalmente pelo diretor Fabio Erber, responsável pelo desenvolvimento de quatro novos programas que faziam parte do grupamento denominado Opções Estratégicas: Novo Prosoft, Semicondutores, Profarma e Bens de Capital. No âmbito da PITCE, foi implementado ainda o Modermaq, pela FINAME, e foi definido, apenas com operações diretas, o novo Funtec. 

Com relação às Opções Estratégicas da PITCE, não houve um programa para semicondutores e o de bens de capital foi alterado. Nos semicondutores, não houve programa de financiamento porque a ação que cabia era a de atração de investimentos. Não havia no país empresas a serem incentivadas a crescer. O programa para bens de capital teve dificuldades de implementação e foi alterado posteriormente, com inúmeros desdobramentos.

Novo PROSOFT – Programa para o Desenvolvimento da Indústria Nacional de Software e Correlatos

Júlio Cesar Maciel Ramundo, atual diretor do BNDES, era na época o chefe de departamento que tratava dos setores do complexo eletrônico na Área Industrial do BNDES e foi responsável tanto pelo programa de software quanto pelo incentivo à captação de empresas interessadas em vir para o Brasil.

Quando Fabio Erber se tornou diretor da Área Industrial, no segundo semestre de 2003, Júlio Ramundo, que tinha assumido o Departamento de Eletrônica em janeiro de 2003, a convite do superintendente Paulo Roberto de Souza Melo, afirmou: 

Eu já tinha adquirido muito conhecimento através de um estudo sobre semicondutores realizado pelo Consórcio liderado pela McKinsey e também através de outro trabalho realizado pelo MIT para a Softex sobre software, onde eu era conselheiro, como representante do BNDES. Artur Pereira Nunes que, naquele momento, desempenhou um papel muito importante na mudança de conceito, havia contratado este trabalho.

Com relação ao software, ficou claro que o BNDES precisava modificar o seu programa PROSOFT antigo, pois este era direcionado ao desenvolvimento de empresas fabricantes de software produto, quando na verdade países emergentes, como a Índia, estavam tendo sucesso em serviços de software. A base de seu crescimento no setor de TI era na geração de codificação e do software como serviço.

Fabio Erber chamava a minha atenção, me instigando a pensar, perguntando se apoiar uma fábrica qualquer poderia levar à mudança da estrutura da indústria. Dizia que este apoio poderia constituir uma ação política de fato. Fabio questionava o antigo Prosoft.

Trouxe ao BNDES muitos especialistas da área, que foram entrevistados. A conclusão apontava para o desenvolvimento de um programa para serviços. O Novo Prosoft foi lançado na PITCE com este outro conceito, isto é, visando incentivar o software serviço.

Naquele momento, o contexto político dentro do BNDES era muito difícil, pela falta de apoio, mas Fabio Erber conseguiu o aval da Diretoria para implementar o programa dentro do Banco. Mesmo o corpo técnico tinha dificuldade em aceitar o apoio no setor, por suas especificidades – empresas muito pequenas, com uma quantidade grande de problemas.

Na minha opinião, foi muito importante também a aceitação pelo Ministério da Fazenda, na figura do Marcos Lisboa (ex-aluno do IE-UFRJ), da necessidade de política industrial no país. Acho que o Fabio Erber era respeitado intelectualmente, o que ajudou no entendimento das questões que se procurava resolver [Ramundo (2013)]. 

Para a implantação de linhas de financiamento específicas para os setores da política industrial, foram feitas provisões na contabilidade do Banco para suportar eventuais inadimplências das empresas apoiadas. No setor de software, não haveria possibilidade de grandes perdas, por causa do reduzido porte das empresas.

Júlio Ramundo continuou a narrativa, afirmando: 

Fabio Erber trouxe a política para dentro do BNDES e permitiu que se elaborasse o programa. Se fosse outro o Diretor do Banco, não teria havido um redirecionamento do apoio financeiro ao software de serviços. 

O Novo Prosoft foi concebido com todo apoio do BNDES num único programa, através de três sub-segmentos: Prosoft-Empresa, Prosoft-Comercialização e Prosoft-Exportação [Ramundo (2013)] 

Eram financiados investimentos e planos de negócios de empresas sediadas no Brasil, bem como a comercialização no mercado interno e as exportações de software e serviços correlatos. 

Com relação a semicondutores, foram iniciados contatos com várias empresas a fim de identificar as condições necessárias para viabilizar investimentos no país. Representantes do BNDES participaram de negociações com essas empresas no exterior.

PROFARMA – Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica 

O Profarma teve sua origem nas atividades do Departamento de Indústrias Químicas, reorganizado quando Carlos Lessa assumiu a Presidência do BNDES. A convite do superintendente da Área Industrial, Paulo Roberto Melo, a chefia desse departamento foi ocupada por José Eduardo Pessoa de Andrade, de fevereiro de 2003 a maio de 2004. Este, após vivenciar uma experiência na Fundação Oswaldo Cruz, de junho de 2001 a janeiro de 2003, na Diretoria de Planejamento, acabava de retornar ao Banco. Influenciado por essa experiência, criou uma gerência específica para cuidar e desenvolver a indústria química para a saúde, convidando Pedro Palmeira para coordená-la. 

Fabio, responsável pela Área de Planejamento, incentivou a realização de estudos sobre o setor farmacêutico e passou a acompanhar os trabalhos iniciados no Departamento de Indústrias Químicas. 

O Banco já havia operado um programa de financiamento de medicamentos genéricos, formulado na gestão anterior, de Eleazar de Carvalho Filho. Contudo, esse programa não teve o desenvolvimento esperado. 

A implementação de uma política específica foi fortemente influenciada pelo desempenho da indústria no Brasil, com expansão do déficit comercial de US$ 100 milhões, no início da década de 1990, para US$ 2 bilhões, em 2003, pelo fechamento de mais de mil linhas de fabricação de produtos nesse período, pela queda acumulada de 12% na venda de unidades farmacêuticas entre 1996 e 2003 e pelo fato de as empresas transnacionais responderem por 70% do valor dessas vendas.

Os dois executivos, José Eduardo e Pedro Palmeira, reconhecendo e diagnosticando a falta de experiência e conhecimento do BNDES sobre a cadeia produtiva farmacêutica, passaram a estudar e aprofundar sua compreensão sobre essa indústria. Para tanto, realizaram um programa de visitas às principais empresas nacionais e entrevistas com seus dirigentes, além de participarem de seminários setoriais. Incluíram discussões com representantes de outros órgãos públicos, como o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), o Ministério da Saúde, a Fundação Oswaldo Cruz, o Instituto Butantan, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e também de associações empresariais privadas, como a Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina), a Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais (Alanac) e a Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos (Pró Genéricos).

Essas atividades marcaram o início da melhor compreensão por parte do BNDES sobre a indústria farmacêutica e a importância atribuída à valorização do conhecimento já adquirido por várias instituições científicas e profissionais e pelas empresas. O desafio seria elaborar a contribuição que o BNDES, como instituição de fomento e desenvolvimento, poderia oferecer por meio do crédito apropriado para a consolidação dessa indústria no Brasil.

Nessa fase, ainda não haviam sido formalizados os grupos de elaboração e encaminhamento da política industrial no primeiro governo Lula. 

Entretanto, Fabio e a Diretoria do BNDES incentivaram a realização desse trabalho pela importância atribuída à retomada da atuação desenvolvimentista da instituição.

No segundo trimestre de 2003, o Banco foi chamado a participar formalmente do Fórum de Competitividade da Cadeia Farmacêutica no MDIC. Aos representantes do BNDES, foi atribuída a coordenação do Grupo de Trabalho de Investimentos. Inicialmente, José Eduardo Pessoa de Andrade assumiu essa coordenação, com a participação de Pedro Palmeira, que a assumiu posteriormente. Esse grupo teve de analisar os entraves para o desenvolvimento da indústria no Brasil e propor alternativas de financiamento que contribuíssem para superá-los. Partindo do princípio de que a inovação é o driver principal dessa indústria intensiva em conhecimento e tecnologia, constatou-se a defasagem existente no Brasil, já que apenas os segmentos de pequena e baixa intensidade tecnológica estavam implantados. 

No segundo semestre de 2003, quando Fabio Erber assumiu a responsabilidade pela Área Industrial, as atividades realizadas pelo Fórum no MDIC e a atuação dos representantes do BNDES passaram a integrar a agenda do diretor, principalmente em relação ao papel das empresas de capital estrangeiro, sem interesse em implantar no Brasil os estágios tecnologicamente mais sofisticados.

Essas informações eram apresentadas a Fabio Erber, que participava das articulações para a elaboração da PITCE. Pedro Palmeira relata:  

Esta política teria uma ação vertical. De forma corajosa, ela faria escolhas estratégicas e um dos setores que viria a ser escolhido como Opção Estratégica era meu objeto de trabalho – a cadeia farmacêutica (farmoquímicos e medicamentos). 

Começo a ter uma interação mais forte com o Fabio no sentido de buscar uma compreensão do que poderia ser feito, qual o alcance possível desse instrumento de política. Em setembro de 2003, surge o pedido para a formulação de um programa, e Fabio disse para apresentar o que estava sendo discutido no GT do MDIC. A proposta de programa tinha uma construção bastante interessante, baseado no entendimento do José Eduardo e no meu, durante o ano. Havíamos pensado um programa subdividido em três subprogramas que atenderiam os pontos de demanda por financiamento ou onde o BNDES teria um papel indutor de comportamento da indústria [Palmeira (2013)].

Na visão dos dois executivos, José Eduardo e Pedro Palmeira, a criação no BNDES de um programa setorial diferenciado de apoio aos investimentos na cadeia produtiva farmacêutica, como contribuição para a política industrial, poderia incentivar o aumento da produção de medicamentos e seus insumos no país. Haveria melhora nos padrões de qualidade dos medicamentos produzidos, para adequá-los às exigências do órgão regulatório nacional, a Anvisa, e colaborar para a melhoria da saúde e da qualidade de vida da população brasileira. Assim, a realização de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação no país poderia ser estimulada e seria fortalecida a posição da empresa nacional nos aspectos econômico, financeiro, comercial e tecnológico. Dessa forma, o objetivo de redução do déficit comercial dessa cadeia produtiva poderia ser alcançado.

Procurou-se, então, incorporar essas ideias nos três subprogramas propostos:

  • Subprograma Profarma Produção: para apoio aos investimentos associados à produção, englobando implantação, expansão ou modernização da capacidade produtiva, aquisição de equipamentos novos nacionais ou importados sem similaridade com o nacional, aquisição de softwares nacionais e outras despesas desses investimentos. Reconhece-se em alguns dos itens a preocupação da articulação com a política industrial que estava em formulação. Além desses itens, foi incluído também o financiamento para adequação das empresas produtoras aos padrões regulatórios da Anvisa, principalmente as despesas para obtenção do registro de medicamentos e de cumprimento das exigências dos testes de bioequivalência e biodisponibilidade, que procuram assegurar qualidade terapêutica dos medicamentos genéricos equivalente aos medicamentos de marca. Essas últimas atividades foram compreendidas como um passo inicial capaz de contribuir para o fortalecimento da capacitação técnico-científica tradicional das empresas nacionais.
  • Subprograma Profarma – P, D & I: para estimular a realização de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação no país, com perspectivas de aproveitamento dos recursos da biodiversidade e criação de condições para a obtenção de novas moléculas. Esse subprograma constituiu um desafio à atuação do BNDES, que teve de aprender, conhecer, classificar e definir os tipos de gastos em pesquisa que poderiam ser apoiados. Representou uma inflexão na prática histórica do BNDES, que havia aprendido a controlar os gastos incorridos somente no investimento para a implantação de unidades industriais.
  • Subprograma Profarma – Fortalecimento das Empresas Nacionais: para apoiar a incorporação, a aquisição ou a fusão de empresas que levassem à criação de companhias de controle nacional de maior porte e/ ou mais verticalizadas. Esse subprograma baseou-se no diagnóstico da necessidade de fortalecer e modernizar as empresas nacionais, ainda sem porte e gestão adequados para participar do processo de concorrência e da inovação na indústria farmacêutica. 

O Profarma foi inicialmente estruturado visando à modernização e à expansão da capacidade produtiva, em virtude da mudança no ambiente regulatório que estava em curso. Estava também previsto o apoio à fusão e à aquisição, pois se acreditava que algumas empresas não aguentariam a mudança regulatória e que o Banco, de forma criteriosa, deveria dar suporte a uma concentração saudável do setor. Por fim, o mote principal do programa era a inovação, o que seria um desafio, e aí a interação com o Fabio foi importante.

Quando o programa foi apresentado ao Fabio, ele achou que a proposta estava muito conservadora. Ele disse: “Vocês precisam ousar mais. Quero uma proposta mais ousada”.

Os dois executivos ficaram surpresos com a manifestação do diretor. Influenciados pela tradição, haviam elaborado a proposta com todo o cuidado para atenuar os riscos e evitar perdas para o BNDES, em condições que já eram as melhores praticadas para o financiamento naquele momento. Foram autorizados a ir além. Outra proposta foi redigida, sugerindo uma taxa de juros fixa para o Profarma – P, D & I, que fosse, em termos reais, zero ou próxima de zero. Assim, a indução à inovação passou a contar com uma taxa fixa de 6% a.a. (a meta de inflação era exatamente de 6% a.a.).

A PITCE foi lançada em abril de 2004, enquanto o Profarma foi aprovado pela Diretoria do BNDES em 29 de março de 2004. Esse programa ainda permanece e tem sido renovado, desde então, com ajustes em suas condições. É considerado um caso de sucesso pela origem na articulação público-privada e pela capacidade que teve de induzir o comportamento da indústria. 

O BNDES mantém uma reserva em sua contabilidade para garantir o Banco de eventuais perdas e inadimplências.

BNDES FUNTEC: Fundo Tecnológico 

O BNDES Fundo Tecnológico (Funtec), que também fez parte da PITCE, embora lançado posteriormente aos outros programas, foi estruturado pela primeira vez por um grupo de representantes de suas áreas: Doris Lustman, pelo Planejamento, Luiz Henrique Rosati, pela Vice-Presidência, e Dulce Monteiro Filha, pela Área Industrial. Como um fundo que seria formado com recursos próprios do BNDES, não reembolsáveis, sofreu diversas mudanças ao longo de sua história, mas permanece vigente sem grandes alterações em seu formato original.

Rosati desenhou o novo Funtec, extraindo seu formato de um produto semelhante chamado Fundo de Desenvolvimento Técnico-Científico (Funtec), criado em 1964 por meio da Resolução BNDES 146. Esse fundo estabelecia que os recursos poderiam ser aplicados sob a forma de doação, subvenção, empréstimo reembolsável e participação societária e seriam destinados à manutenção de cursos de pós-graduação e a pesquisas técnico-científicas, entendendo-se como tais os programas, projetos-pilotos e experimentações técnico-científicas no campo das indústrias básicas.

Como uma das ações da PITCE, o Funtec possibilitou aplicações não reembolsáveis e participação acionária em projetos que contemplassem o desenvolvimento de inovações tecnológicas definidas como “introdução no mercado brasileiro de um produto (bem ou serviço) tecnologicamente novo ou substancialmente aprimorado ou introdução na empresa de um processo produtivo tecnologicamente novo ou substancialmente aprimorado”, desde que houvesse a manifestação de interesse comercial por parte de empresa brasileira interessada, ou por conjunto de empresas organizadas em arranjos produtivos.

A importância do estabelecimento de uma relação entre empresa e instituto de pesquisa foi o ponto alto da proposta desse programa. A defesa do Funtec baseava-se na argumentação de que a obrigatoriedade da manifestação de interesse por parte de uma empresa destinava-se a evitar que fossem aplicados recursos em linhas de pesquisa que não resultassem em aplicação comercial, agravando o problema brasileiro de alta produção científica e baixa geração de tecnologias aplicáveis.

Segundo Rosati, a preocupação em desenvolver no país um “ambiente” que propiciasse a inovação em decorrência da relação entre empresa e instituto de pesquisa é a parte central da proposta do Funtec. Segundo Fabio Erber, esse programa visava apoiar o desenvolvimento de sistemas inovativos impactantes, de grande porte, que fossem relevantes para o país. Portanto, esse programa não interferiria na atuação da Finep. 

Para implementação desse programa seria importante estudar a inovação ao nível das cadeias produtivas, identificando, na cadeia, onde estão os centros geradores de inovações, como estas se transmitem ao longo da cadeia, com quais efeitos multiplicadores sobre as inovações nos demais elos da cadeia.

3. Conclusão 

A literatura econômica muito poucas vezes tem explicitado como teoria e prática, conjuntamente, podem (e devem) procurar soluções para os problemas do mundo real.

A vida de Fabio Erber, que manteve uma atuação como operador de políticas públicas e como pensador, nos propiciou mostrar como o estudo teórico pode ser aliado à vivência prática, desfazendo a imagem, frequentemente vinculada, de que a política está sempre ligada a interesses escusos.

Essa imagem tem levado à estruturação de regras comportamentais, inclusive inseridas no nosso direito, que, por serem genéricas e abstratas, procuram a padronização de comportamentos, impedindo que as especificidades dos problemas sejam estudados. Os grandes problemas têm de ser analisados em seus detalhes, cabendo a padronização apenas quando houver um grande número de problemas mais simples a serem resolvidos. Os movimentos que tiverem grande impacto em mudanças estruturais desejáveis são necessários para tornar o país mais competitivo.

Por meio de sua visão de mundo, Fabio procurou definir conceitos, que usou para compreender a realidade e interagir com ela, estruturando formas de ação política.

Como especialista em políticas públicas industriais e tecnológicas, teve participação importante em mudanças estruturais, que têm possibilitado maior competitividade da economia brasileira.

Esteve ligado à implantação de setores de ponta, defendendo que os países devem ter preocupação permanente de introduzir em suas matrizes industriais os setores que propiciam transformações radicais, determinantes para seu desenvolvimento tecnológico, sem esquecer a importância do estudo das cadeias produtivas e do conceito sistêmico da inovação para manter o país competitivo em nível internacional.

Fabio defendia que, para um país retardatário, o timing é importante para que possa ocorrer o catching-up com os países desenvolvidos e considerava que a política industrial acelerava esse processo. A ausência de política é uma política de manutenção do status quo, isto é, mais do mesmo, e não uma situação de não política. Enfatizava ainda que políticas de desenvolvimento geram desequilíbrios para poderem promover o emparelhamento com os países mais adiantados, porque mudanças estruturais ocorrem nesse contexto.

Participou ativamente de 2003 a 2004 do retorno da política industrial: a PITCE. Como diretor do BNDES, foi responsável pela criação de novos programas de apoio ao desenvolvimento de software, além de ter permitido o financiamento do software serviço e incentivado a fabricação de fármacos no país, assim como patrocinou a reativação do Funtec. Esse foi criado com o intuito de apoiar o desenvolvimento de sistemas inovativos impactantes, de grande porte, relevantes para o país, como a inovação ao nível das cadeias produtivas, identificando onde estão os centros geradores de inovações, como estas se transmitem ao longo da cadeia e quais são seus efeitos multiplicadores sobre as inovações nos demais elos da cadeia.

Como teórico, Fabio deixou, para os que se preocupam com o futuro, as reflexões sobre convenções e representações sociais que servem de guia às práticas sociais dos agentes que as subscrevem. A análise das convenções requer o estudo de práticas sociais que delas decorrem e, idealmente, do processo de interação entre esquema cognitivo e sua práxis.

Como ressaltou, “talvez pecando por otimismo, parece-me que estão se desenvolvendo, entre os economistas, as bases analíticas para uma nova convenção que vê o desenvolvimento como resultante da coevolução das estruturas produtiva, institucional e financeira, reconhecendo o caráter histórico e singular de cada trajetória nacional”, como identificou em Ocampo (2005). “Estudos sobre globalização da produção, comércio e finanças, sobre as diferenças no crescimento e em sua sustentação entre países, sobre a importância da inovação” (identificando-se e preocupando-se com setores portadores de futuro, como a PITCE os chamou) “e da informação assimétrica na dinâmica internacional e nacional, têm contribuído para este processo de geração” [Ocampo (2005)]. 

O otimismo corre sempre o risco de tornar-se ilusão, especialmente para os derrotados, complementa Fabio, e lembra Millôr Fernandes: “No fim, tudo termina bem e, se ainda não está bem, é que ainda não terminou” [Erber (2007, p. 57)].

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Antitruste e advocacia da concorrência:...

1. Introdução

A defesa da concorrência só se tornou um objeto relevante de política pública no Brasil após a aprovação da Lei 8.884/94, que instituiu o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência...

Antitruste e advocacia da concorrência: perspectivas do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência à luz da experiência australiana

José Tavares de Araújo Júnior, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

This article focuses on the efforts made by the Brazilian System for Protecting Competition (SBDC) over the last two decades. It highlights not only its main virtues, which include procedure transparency and the increasingly strict application of antitrust standards, but also some of its shortcomings that were corrected by Law No. 12,529/11. This reform afforded the SBDC the necessary tools to tackle its main challenge, which is to foster articulation between competition defense and other public policies. To outline the magnitude of this challenge, the article describes the Australian experience from 1970 to 1990, when that country managed to overcome some institutional obstacles that were quite similar to those currently pervading the Brazilian economy.

1. Introdução

A defesa da concorrência só se tornou um objeto relevante de política pública no Brasil após a aprovação da Lei 8.884/94, que instituiu o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) e conferiu poderes ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para agir como autoridade antitruste independente. Não por acaso, essa lei foi editada em 11 de junho de 1994, duas semanas após a promulgação da Lei 8.880/94, que lançou o Plano Real. De fato, ambos os estatutos fazem parte do conjunto de reformas econômicas implantadas no país naquela década, que incluiu a abertura da economia, a restauração do padrão monetário, a abolição dos controles generalizados de preços, a privatização de empresas estatais e a criação de agências reguladoras em setores de infraestrutura e de utilidade pública.

Em qualquer economia em que vigore o regime de liberdade de preços, o papel do órgão antitruste é preservar o interesse público e promover a eficiência produtiva, coibindo condutas privadas e removendo distorções de mercado que possam impedir a realização desses dois objetivos. Como resumiu Amato (1997), o exercício dessa função implica um dilema permanente:

In a democratic society, there are two bounds that should never be crossed: one beyond which the unlegitimated power of individuals arises, and the other beyond which legitimate public power becomes illegitimate. Where do these two bounds lie? This is the real nub of the dilemma (p. 3). 

À luz do dilema formulado por Amato, este artigo discute o desempenho do SBDC nas últimas duas décadas, bem como as perspectivas que foram inauguradas com a edição da Lei 12.529 em 30 de novembro de 2011. No caso brasileiro, esse dilema tem uma configuração peculiar, em virtude da herança advinda de sessenta anos de políticas econômicas baseadas em substituição de importações, em que as preocupações com poder de mercado, eficiência produtiva e bem-estar do consumidor eram virtualmente ausentes. Assim, a principal dificuldade enfrentada pelo Cade não tem sido a de punir condutas anticompetitivas do setor privado, mas a de lidar com distorções de mercado criadas por outros órgãos governamentais.

A partir da Lei 12.529, o SBDC passou a dispor de mecanismos mais efetivos para lidar com esse desafio. Durante a vigência da lei anterior, os instrumentos da advocacia da concorrência se restringiam ao Art. 7, inciso X, e Art. 14, inciso, XIII.1 Entre 1994 e 2011, esses artigos foram aplicados em raras oportunidades, com resultados desanimadores. A Câmara de Comércio Exterior (Camex), por exemplo, costuma ignorar a lei antitruste quando concede proteção antidumping a firmas que ocupam posições dominantes no mercado doméstico, e que usarão aquela proteção para ampliar seu poder monopolista [Tavares de Araujo (2010)].

Na nova lei, os dispositivos acima foram incluídos no Art. 9, inciso VIII, enquanto o Art. 19 conferiu à Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (SEAE) um conjunto de atribuições que permitem aferir danos potenciais à ordem econômica advindos de normas em elaboração em distintas instâncias estatais, bem como analisar as condições de concorrência vigentes em setores específicos e propor medidas para corrigir eventuais distorções encontradas. Quando julgar conveniente, a SEAE poderá opinar sobre medidas submetidas à consulta pública por agências reguladoras, projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, atos normativos da administração pública federal, estadual e municipal, ações antidumping, alterações de tarifas de importação e encaminhar aos órgãos competentes recomendações para alterar normas que tenham caráter anticompetitivo. O Art. 19 determina ainda que a SEAE divulgue anualmente um relatório de suas ações voltadas à promoção da concorrência.

O texto está organizado da seguinte forma. A segunda seção contém um sumário da evolução do SBDC no período 1994-2011, apontando seus principais méritos, que são a transparência de procedimentos e o crescente rigor na aplicação das normas antitruste, bem como algumas de suas deficiências que, em princípio, foram corrigidas pela Lei 12.529/11. A terceira seção toma como referência a experiência australiana durante as décadas de 1970 a 1990 para discutir as perspectivas da advocacia da concorrência no Brasil. Por fim, a quarta seção encerra a discussão com um breve comentário sobre as diferenças institucionais entre a Austrália e o Brasil.

2. Breve Histórico do SBDC: 1994-2011 

Para lidar com o dilema formulado por Amato, a autoridade antitruste precisa cumprir três requisitos básicos: (a) identificar tempestivamente as situações em que o poder de mercado pode ser exercido unilateralmente ou por meio de condutas concertadas; (b) dispor de instrumentos efetivos para coibir ambos os tipos de condutas; e (c) ser capaz de aplicar esses instrumentos de forma expedita e na medida adequada. 

A história do SBDC entre 1994 e 2011 pode ser descrita como um processo de capacitação gradual para o exercício dos requisitos acima.  Alguns aspectos desse processo estão registrados nas duas edições do livro A revolução do antitruste no Brasil, organizadas por César Mattos em 2003 e 2008. A primeira edição mostra que a maioria dos casos julgados pelo Cade até 2002 referiu-se a atos de concentração e que o combate a condutas anticompetitivas ficou em segundo plano. Além disso, as distorções de mercado criadas por falhas de regulação e outras formas de intervenção estatal não foram enfrentadas pelo SBDC nesse período. Entretanto, a segunda edição revela que, nos anos seguintes, o Cade teve oportunidade de examinar diversos temas da agenda antitruste contemporânea, tais como: restrições verticais em indústrias de rede, formação de preços em mercados de dois lados, domínio de nichos de mercado em indústrias de alta tecnologia, vínculos de exclusividade entre produtores e revendedores, demanda por bens hedônicos, compartilhamento de rotas entre companhias aéreas, estratégias de predação etc. Por outro lado, algumas punições exemplares foram aplicadas em casos de cartel e de condutas unilaterais. Por fim, ainda que timidamente, a advocacia da concorrência começou a ser praticada pelo SBDC.

Outro indicador do amadurecimento da autoridade antitruste no Brasil é o livro de Pedro Dutra, que reúne 23 entrevistas com membros do Cade entre 1986 e 2008.2 Os depoimentos ratificam três aspectos usuais nas análises sobre o estado atual da defesa da concorrência no país.3 O primeiro diz respeito à irrelevância do Cade no período anterior a 1994, como bem ilustra a seguinte declaração de Mauro Grinberg, que foi conselheiro entre 1986 e 1990. Comentando um dos casos julgados na sua época, ele observa:

A análise econômica foi muito rudimentar, a análise era quase só jurídica. Não havia um corpo técnico; os conselheiros, eles mesmos, analisavam o ato, praticamente sem apoio administrativo. Eu nem sequer tinha sala no CADE, trabalhava no meu gabinete no Ministério da Fazenda e só ia ao prédio do CADE para as sessões. Nenhum conselheiro tinha sala no CADE; havia uma sala coletiva em que todos ficavam na véspera da sessão. Tudo era muito frugal, o CADE não era convidado para seminários. O próprio Conselho Interministerial de Preços, o famigerado CIP, simplesmente ignorava os ofícios do CADE, pedindo preços de produtos e serviços, informações gerais de mercado. A relação do CADE com os órgão do governo era muito tênue e pouco respeitosa [Dutra (2009, p. 20)].4

O segundo aspecto, reiterado em vários depoimentos, é o de que embora a qualidade técnica das decisões do Cade tenha melhorado rapidamente após a aprovação da Lei 8.884/94, o SBDC não dispõe ainda hoje de recursos humanos e orçamentários compatíveis com suas atribuições. Como notou Afonso Arinos de Mello Franco Neto, que foi conselheiro entre 2001 e 2002, essa deficiência tem sido mitigada mediante esforços individuais:  

O CADE tinha funcionários responsáveis, embora em número muito reduzido, e, sob uma perspectiva moderna, com uma organização, a meu ver, inadequada. Nos gabinetes, os funcionários funcionavam em torno do Conselheiro, mas de forma independente entre si. Havia muito poucos canais formais de colaboração entre eles. E não havia os recursos materiais necessários; havia pouco material de consulta, não havia coleções de dados, nem meios adequados para procurar informações sobre os mercados. Cada conselheiro trabalhava por conta própria. No que podia, eu me socorria do nosso meio acadêmico: alunos podem nos ajudar a fazer levantamentos de dados ou uma pesquisa; enfim, eu trazia algum trabalho para a vida acadêmica que eu continuava vivendo. Mas, claro, não é o ideal, e sim que o CADE seja dotado dos meios materiais e humanos para trabalhar com facilidade [Dutra (2009, p. 138)].

O terceiro traço marcante na história do SBDC é a transparência de seu processo decisório. As reuniões do Plenário do Cade são abertas ao público e, desde 2005, transmitidas ao vivo pela internet. Os principais documentos sobre os casos julgados, que incluem os pareceres redigidos pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) do Ministério da Fazenda, Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça, Ministério Público, Procuradoria do Cade, os votos dos conselheiros e a ementa da decisão estão disponíveis no sítio <www.cade.gov.br>. Além de assegurar a independência da autoridade antitruste, esse procedimento tem outros méritos, como apontou Elizabeth Farina, que presidiu o Conselho entre 2004 e 2008: 

A transparência não atende apenas ao dever da publicidade, ela melhora o nível técnico das decisões. O conselheiro sabe que os debates feitos no plenário estão sendo ouvidos por especialistas, pelo público interessado, assim como os advogados também sabem que a sustentação oral deles, os argumentos deles, e dos economistas também, estão sendo expostos, são debatidos. Todos cuidam mais, sabendo que o escrutínio do que fazem é maior. Se se quiser recuperar o áudio da sessão posteriormente, é possível, a qualquer tempo. Não há segredo. Note-se que esse processo ajuda inclusive o processo seletivo no CADE; o pretendente a um cargo no plenário sabe que o que fizer estará exposto ao público [Dutra (2009, p. 225)]. 

A transparência tornou-se um procedimento fundamental para conferir respeitabilidade ao SBDC em âmbito nacional e internacional em um curto intervalo de tempo.5 O ponto de partida para a construção dessa imagem foi a Lei 8.884/94, que deu ao Cade os instrumentos necessários para introduzir no Brasil os princípios contemporâneos da defesa da concorrência. Essa lei foi uma resposta oportuna ao novo cenário estabelecido no país após a reforma comercial do governo Collor, o Plano Real e o fim dos controles generalizados de preços. No ambiente que vigorou até o fim dos anos 1980, de economia fechada, sem moeda doméstica e preços tabelados, a legislação antitruste estava reduzida, inevitavelmente, a uma formalidade jurídica, como bem ilustrou a patética experiência do Cade entre 1963 e 1992.

Entretanto, além da escassez de pessoal e da elevada rotatividade dos funcionários, o SBDC padecia de outras deficiências advindas de pequenas falhas da Lei 8.884/94. A principal delas era o critério de notificação de atos de concentração ao Cade, que obrigava o sistema a examinar um número desnecessariamente alto de operações, comprometendo o desempenho das demais funções da autoridade antitruste, relativas à repressão de condutas anticompetitivas e à advocacia da concorrência. Entre 2004 e 2008, o Cade analisou em média 500 atos de concentração por ano, que corresponderam a cerca de 30% do número de operações notificadas às autoridades norte-americanas nesse período, cuja economia é dez vezes maior do que a brasileira [Farina (2009)]. Para enfrentar esse problema, a SEAE e SDE introduziram, em 2002, um rito sumário que passou a ser aplicado nos casos mais simples. Daí em diante, cerca de 80% das operações foram analisadas por meio desse procedimento [Farina e Araújo (2009)].

A combinação entre escassez de pessoal e carga elevada de atribuições deixava o Cade diante do risco permanente de tomar decisões erradas, que poderiam afetar sua credibilidade. De fato, a experiência internacional contém vários registros de uso indevido da lei antitruste. Nos Estados Unidos, alguns exemplos notáveis foram Brown Shoe, Realemon e IBM.6 A história do SBDC no período em análise não contém eventos similares a estes, apesar de algumas decisões controvertidas, como Kolynos-Colgate e Nestlé-Garoto [Tavares de Araujo (2006)]. No entanto, existem evidências robustas de que esse tipo de risco esteve sempre presente. Em 9 de abril de 2010, por exemplo, o Cade decidiu, por unanimidade, arquivar o Processo Administrativo 08012.007104/2002-98, no qual a Nellitex Indústria Têxtil Ltda. acusava a Têxtil J. Serrano de praticar preços predatórios no mercado de tecidos sintéticos de polipropileno, que são usados para estofar móveis de baixo custo. Esse processo havia sido instaurado pela SDE em outubro de 2002. Após estudar o caso durante cinco anos e meio, a Secretaria aceitou as alegações da Nellitex, a despeito da impossibilidade desse tipo de conduta em uma indústria como a têxtil, na qual a tecnologia é difundida e cuja oferta é composta por cerca de quatro mil firmas estabelecidas no país, 700 das quais localizadas no município de Americana, sede da representante. Em junho de 2008, a SDE encaminhou o processo ao Cade, recomendando a condenação da J. Serrano. Nos 21 meses seguintes, os autos foram examinados pela Procuradoria do Cade, o Ministério Público e o conselheiro relator. Embora a decisão final tenha sido correta, esse caso poderia ter sido encerrado em 2002.

Visando aprimorar a Lei 8.884/94, o Presidente Lula encaminhou ao Congresso, em 2005, uma proposta de reestruturação do SBDC que unificava os três órgãos (Cade, SEAE e SDE), estabelecia a análise prévia dos atos de concentração, reduzia o número de operações a serem submetidas ao Cade e criava condições para a formação de um quadro de funcionários especializados em normas antitruste. Esse projeto, que começou a ser elaborado pelo governo Fernando Henrique Cardoso em 2000, foi aprovado na Câmara de Deputados em dezembro de 2009, com o apoio de todos os partidos, revisado pelo Senado em 2010 e finalmente sancionado pela Presidente Dilma em 2011. Essa reforma marcou o início de uma nova etapa na história do SBDC, na qual o Cade habilitou-se a enfrentar seu principal desafio, que é o de promover a articulação entre a defesa da concorrência e as demais políticas públicas. A complexidade dessa tarefa está ilustrada na próxima seção.

3. Advocacia da Concorrência: A experiência Australiana 

As novas funções da SEAE sob a Lei 12.529/11, comentadas na introdução deste artigo, são equivalentes às da Productivity Commission da Austrália, criada em 1973 sob a denominação de Industries Assistance Commission (IAC) e que desempenhou um papel central nas reformas econômicas executadas naquele país, nas décadas de 1980 e 1990 [Banks e Carmichael (2007)].7 A experiência australiana é especialmente relevante para o Brasil, por se tratar de uma economia cujo crescimento industrial também foi baseado em políticas de substituição de importações entre os anos 1930 e 1970, e cujos processos de abertura do mercado doméstico, privatização de serviços de utilidade pública e de implantação do regime de liberdade de preços enfrentaram resistências similares àquelas observadas aqui nos últimos vinte anos.

A IAC surgiu de uma peculiaridade da economia australiana durante a época da substituição de importações, que foi a persistência do debate público sobre custos e benefícios do protecionismo ao longo da primeira metade do século passado. Não por acaso, o conceito de proteção efetiva foi formulado originalmente em 1957 pelo economista australiano Max Corden, no artigo clássico “The Calculation of the Cost of Protection”. Já em 1921, o Parlamento havia criado o Tariff Board, com funções similares àquelas exercidas pela Comissão de Política Aduaneira (CPA) no Brasil entre 1957 e 1990, mas com uma diferença importante, que era a obrigação de divulgar relatórios periódicos sobre as consequências macroeconômicas das barreiras comerciais em vigor no país. O primeiro deles foi o Brigden Report, que apresentou uma análise abrangente da estrutura tarifária da Austrália em 1929 e que inspirou inúmeros estudos acadêmicos nas décadas seguintes, inclusive os de Corden. Até o fim dos anos 1960, os relatórios do Tariff Board não estimularam qualquer antagonismo às políticas industriais executadas pelo governo. Pelo contrário, o consenso da época era o de que os benefícios gerados pelo crescimento industrial superavam em muito os custos da proteção. A tarifa de importação era percebida como um investimento social cujo valor presente deveria ser confrontado com a expectativa de expansão da economia no futuro próximo [Corden (1957)]. Tal consenso também vigorava no Brasil e nos demais países da América Latina, salvo quanto a um detalhe fundamental: na Austrália, os relatórios do Tariff Board consolidaram a visão de que barreiras comerciais só são racionais quando forem seletivas, temporárias, e com resultados mensuráveis. Na América Latina, o protecionismo tornou-se uma ideologia.

Na década de 1970, aquele consenso começou a desaparecer. O Tariff Board foi substituído pela IAC, com um mandato mais amplo de promover a transparência das condições de concorrência na economia australiana, indo além da política comercial e passando a incluir qualquer política pública que possa afetar as barreiras à entrada em indústrias locais, elevar os lucros de firmas selecionadas, estimular condutas oportunistas e outras distorções de mercado. No seu primeiro relatório anual, em 1974, o papel da IAC foi assim descrito:

In summary, the Commission’s role is to advise the Government on how individual industries, and industry in general, should be encouraged to develop in Australia. In providing this advice, it is required to have regard to the interests of the community as a whole, and relate its advice to the generally accepted economic and social objectives of the community. The Commission is concerned primarily with the long term development of industries, rather than with the fluctuations which may occur in their rate of development from one year to another, due to temporary changes in their business environment. The principles and objectives in the Industries Assistance Commission Act provide the general policy basis for the long term development of Australian industries [citado por Rattigan, Carmichael, Banks (1989, p. 98-99)].

Para promover transparência, a IAC deu início a uma série de estudos com foco em três temas principais: (a) as características do processo de competição em diferentes setores da economia, incluindo não apenas a indústria de transformação, mas também agricultura, mineração, transportes, energia, construção civil, telecomunicações etc.; (b) a efetividade das políticas públicas vigentes no país em diversas áreas, como incentivos ao desenvolvimento científico e tecnológico, serviços de saúde, regulação de aeroportos, proteção ao meio ambiente, regulação de monopólios naturais etc.; (c) avaliação de eventuais conflitos entre o interesse nacional e os incentivos seletivos a determinados tipos de atividade. Rapidamente, este último tema se tornou uma das marcas da IAC. Em vez de estimular controvérsias teóricas sobre a definição de interesse nacional, a Comissão procurava, de forma pragmática, confrontar os ganhos auferidos pelos beneficiários de incentivos seletivos com os impactos gerados em outros segmentos da economia.

A IAC não tinha qualquer poder executivo. Sua única função era produzir relatórios sobre temas em destaque na agenda de política econômica do país em determinado momento, e divulgá-los em tempo hábil. Isso foi suficiente para gerar uma animosidade imediata no interior da burocracia australiana, no Parlamento e no setor privado. Nos primeiros anos de sua existência, a lista de inimigos da IAC incluía políticos influentes como J. D. Anthony e Ian Sinclair, ministros como James Cairns, e a Metal Trades Industries Association (MTIA), com cerca de seis mil membros, responsáveis por mais de 50% da força de trabalho empregada na indústria de transformação [Rattigan (1986)]. Segundo o presidente da MTIA em 1976, o objetivo real da IAC era destruir a indústria australiana:

We do not need the IAC, which is an excessively elaborate and expensive body of economic theorists, to tell us that most goods we make in Australia can be more cheaply imported by Australia […] What we need is to call a halt to the activities of the IAC in recommending the dismantling of sections of Australian industry. It is a folly of the greatest magnitude if we allow ourselves to be persuaded by a pure economic theory to close our factories because of our high cost structure [Canberra Times, citado em Rattigan (1986, p. 264)].

Apesar dessas resistências, as reformas prosseguiram. Em 1974, a lei antitruste foi reformulada, e entre as diversas inovações introduzidas, a mais importante foi a criação da Trade Practices Commission (TPC). A primeira lei antitruste australiana havia sido editada em 1906, mas constituía, até então, uma formalidade jurídica inútil, posto que o país nem mesmo dispunha de um órgão executor daquela lei. De fato, vários países tiveram leis antitruste irrelevantes durante grande parte do século passado, como Canadá, cuja lei foi anterior ao Sherman Act, e Nova Zelândia, entre 1908 e o fim dos anos 1970. Na América Latina, esse fenômeno ocorreu na Argentina a partir de 1919, Brasil (1962), Chile (1959), Colômbia (1959) e México (1934).

Na década de 1980, mudanças institucionais importantes afetaram diversas áreas da economia australiana, como mercado de trabalho, comércio exterior, energia, transportes, telecomunicações e sistema financeiro. Nesse ambiente, o debate sobre defesa da concorrência ganhou novo fôlego. Em 1993, o Hilmer Committee Report introduziu o conceito de comprehensive competition policy, sugerindo que a defesa da concorrência só é efetiva quando vai além dos instrumentos antitruste convencionais e incorpora todas as ações governamentais que regulam o processo de competição, como barreiras comerciais, subsídios, propriedade intelectual, regulação de monopólios, normas técnicas e proteção ao consumidor. Essa visão orientou a transformação da TPC em Australian Competition and Consumer Commission (ACCC), com poderes para influir, quando julgar pertinente, nas ações do governo em todas aquelas áreas.

4. Comentário Final 

Uma diferença importante entre as experiências da Austrália e do Brasil é que lá a advocacia da concorrência precedeu a criação da autoridade antitruste, ao passo que aqui ela surgiu como uma consequência da consolidação institucional daquela autoridade. Isso certamente facilitará o trabalho da SEAE, mas não significa a ausência de desafios, que provavelmente serão documentados nos próximos relatórios anuais dessa secretaria. Sob vários aspectos, o atual debate sobre o suposto risco de desindustrialização da economia brasileira é similar àquele que ocorreu na Austrália na década de 1970. O alarmismo do setor empresarial e a lógica dos argumentos protecionistas são idênticos, embora o vilão da história tenha sido substituído. Em lugar dos relatórios da IAC, a fonte dos males agora é a apreciação da taxa de câmbio. Resta saber como a SEAE vai lidar com essa questão.

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Nota do autor

Nos últimos anos da vida de Fabio Erber, a defesa da concorrência havia se tornado um tema constante de nossos almoços que, em geral, se transformavam em animados seminários. Quase sempre éramos os últimos a sair do restaurante. Este artigo é baseado em dois trabalhos meus [Tavares de Araujo (2010; 2012)] que foram particularmente influenciados por aqueles almoços.

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Defesa da concorrência e desenvolvimento:...

1. Considerações Iniciais

Em 2008, um influente grupo de acadêmicos, advogados e economistas, renomados especialistas em antitruste nos Estados Unidos, publicou...

Defesa da concorrência e desenvolvimento: notas sobre o debate e sua aplicação no caso brasileiro

Luiz Carlos Delorme Prado, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

This paper discusses the political economy of the antitrust legislation that was approved as a part of the liberal reforms made by Brazilian government in the 1990s. The paper makes a comparison between the liberal institutional reforms, mainly in the Fernando Henrique Cardoso government, and the macroeconomic structural adjustment imposed by the dynamics of the external debt negotiation agenda.

1. Considerações Iniciais

Em 2008, um influente grupo de acadêmicos, advogados e economistas, renomados especialistas em antitruste nos Estados Unidos, publicou um livro, organizado pelo professor Robert Pitofsky, no qual manifestavam seu incômodo com a direção das interpretações e do enforcement do direito antitruste naquele país. Nesse sentido, declaravam:

[…] uma sensação de desconforto com relação à direção das interpretações e implementação da legislação antitruste. Em particular, preocupa-nos a preferência por modelos econômicos sobre fatos, a tendência de assumir que os mecanismos de livre mercado curam todas as imperfeições de mercado, a crença de que só a eficiência importa, grandes erros em termos de doutrina, mas, acima de tudo, a falta de apoio à implementação rigorosa e a disposição das autoridades de aprovar transações questionáveis se houver um mínimo de defesa [Pitofsky (2008, p. 5)].1

Mas, apesar dessas manifestações, nas últimas duas décadas houve grande ampliação da legislação antitruste e foram criadas instituições para a implementação de políticas de defesa da concorrência em grande número de países na Ásia, nas Américas e até mesmo na África. Em alguns casos, países com frágeis aparatos estatais e escassez de recursos humanos especializados usaram extensivamente consultores de países industriais avançados, notadamente dos Estados Unidos, para implantar leis copiadas, em grande parte, dos países originários das consultorias.

Por outro lado, alguns autores influentes eram, por diversas razões, céticos quanto à eficácia de política antitruste em países em desenvolvimento. Dessa forma, Laffont sustentava:

Concorrência é, inequivocamente, uma coisa boa no mundo ideal dos economistas. Esse mundo tem como premissas grande número de participantes em todos os mercados, ausência de bens públicos, ausência de externalidades, ausência de assimetria de informações, ausência de monopólios naturais, mercados completos, agentes inteiramente racionais, um sistema judiciário efetivo para a implementação de contratos e um governo eficiente para transferir quaisquer ganhos fixos (lump sum) para alcançar uma redistribuição desejada. Uma vez que os países em desenvolvimento estão longe do mundo ideal, não é sempre desejável encorajar concorrência nesses países [Laffont (1998)].2

Na opinião desse autor, alguma forma de política industrial, combinada com o que chama de expert advice, poderia ser a melhor estratégia para promover desenvolvimento. Nessa linha, o autor sustenta que o controle de cartéis internacionais que afetariam países em desenvolvimento deveria ser realizado por meio de uma política internacional de defesa da concorrência.

Em uma linha um pouco diferente, mas igualmente cética quanto à aplicação das políticas antitruste tradicionais para os países em desenvolvimento, na visão de Ajit Singh e Rahul Dhumale, a forma de política de defesa da concorrência implementada para países como os Estados Unidos ou a Grã-Bretanha não é adequada [Singh e Dhumale (1999)]. Esses autores sustentam, entre outros pontos, que a ênfase deveria ser dada mais à eficiência dinâmica do que à eficiência estática e, ainda, que se deveria buscar um nível ótimo de concorrência (e não um nível máximo) para promover o crescimento de longo prazo da produtividade. Finalmente, Singh e Dhumale (1999) defendem que deveriam ser compatibilizadas as políticas industriais com as políticas de defesa da concorrência. 

Mas, apesar de algum recuo na implementação das políticas antitruste nos Estados Unidos e do ceticismo de sua conveniência para os países em desenvolvimento, leis de defesa da concorrência multiplicaram-se no mundo na década de 1990.3 Nos países em desenvolvimento, tais leis foram promulgadas como parte da agenda de reformas de segunda geração, voltadas essencialmente para promover mudanças nas instituições desses países, cuja inadequação explicaria o fracasso das chamadas reformas de primeira geração, implementadas pelas políticas públicas recomendadas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que ficaram conhecidas pelo nome de Consenso de Washington [Prado (2011, p. 324)].

Um fato interessante da história econômica e institucional no Brasil é a existência de iniciativas para a criação de uma legislação antitruste, em uma época em que tais políticas existiam quase exclusivamente nos Estados Unidos e no Canadá. Desde a década de 1930, havia no Brasil debates sobre a necessidade de criar uma legislação antitruste. Nos últimos meses do Estado Novo, em 1945, por meio do Decreto-Lei 7.666, foi até criada uma instituição que tem o nome da atual agência de defesa da concorrência brasileira: Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Com a revogação desse decreto no governo provisório de José Linhares, depois da deposição de Getúlio Vargas, essa legislação ficou suspensa até que, depois de muita controvérsia, foi aprovada outra legislação que novamente criou o Cade, em setembro de 1962.4 No entanto, até a década de 1980, política antitruste, tal como se discutia no país, era vista com desconfiança tanto pelo setor empresarial doméstico quanto por representantes das empresas estrangeiras que operavam no Brasil. 

Na década de 1990, no entanto, houve uma mudança significativa sobre a questão. Anteriormente, política antitruste era discutida na esfera jurídica e defendida pelos críticos das empresas transnacionais. Nos anos 1990, jovens economistas formados nos Estados Unidos ou na Europa, que passaram a desempenhar importantes funções no Estado, após a crise do desenvolvimentismo na década de 1980, começaram a se interessar pelo tema no país. A partir do governo de Itamar Franco e, especialmente, com o governo Fernando Henrique Cardoso, políticas de defesa da concorrência e de regulação econômica foram consideradas elementos essenciais em uma nova estratégia de desenvolvimento.

O objetivo deste artigo é discutir a economia política da criação da legislação de defesa da concorrência no contexto das reformas liberais implementadas no país na década de 1990. As reformas institucionais realizadas principalmente durante o governo de FHC foram produto do interesse doméstico de implementar alterações nas instituições que promovessem um ambiente market friendly. As reformas faziam parte de uma nova agenda de desenvolvimento, que, por sua vez, tinha como fundamento teórico uma nova teoria do desenvolvimento de inspiração neoliberal.

Portanto, sustenta-se que a política de mudança institucional é distinta das reformas macroeconômicas realizadas na primeira metade da década de 1990, que foram essencialmente impostas ao país, como parte da agenda de negociação da dívida externa, nos termos do Plano Brady. Ou seja, embora implementadas domesticamente com base na formulação de economistas brasileiros, elas eram fundamentais para que a dívida externa brasileira fosse renegociada e para que um plano de estabilização monetária fosse bem-sucedido. Por outro lado, embora inspiradas no mesmo modelo, as reformas institucionais que criaram as agências reguladoras e reformularam o sistema brasileiro de defesa da concorrência são resultantes das políticas domésticas, baseadas em uma nova concepção de estratégia de desenvolvimento. Portanto, o tema do trabalho é a relação entre política de defesa da concorrência e política de desenvolvimento no contexto das reformas liberais da década de 1990.5

Além desta introdução, o artigo tem mais quatro seções. Na segunda seção, discutem-se a crise das políticas desenvolvimentistas tradicionais e o surgimento de uma nova agenda de desenvolvimento fundada nas abordagens neoliberais. Na terceira seção, abordam-se as reformas liberais na década de 1990 e a agenda de desenvolvimento neoliberal surgida nesse contexto. A quarta seção analisa a defesa da concorrência no Brasil, em uma abordagem histórica. O objetivo dessa seção é mostrar como a legislação brasileira evoluiu entre a década de 1930 e a década de 1990. A quinta seção discute a difusão internacional das leis de defesa da concorrência e discute como elas foram implementadas nos países em desenvolvimento e no Brasil em particular. A seção termina por mostrar que, no caso brasileiro, tal como na maioria dos países em desenvolvimento, essa legislação foi, essencialmente, produto do convencimento, ou seja, da difusão das ideias neoliberais e não da pressão internacional por reformas econômicas.

2. Políticas de desenvolvimento: das visões desenvolvimentistas às políticas neoliberais 

Gerald Meier, um dos primeiros professores de desenvolvimento econômico, afirmava que essa área é, simultaneamente, uma das mais antigas e uma das mais atuais da economia [Meier (1985, p. 3)].6 Lembrava esse autor que as principais questões tratadas pelos economistas clássicos, as raízes do crescimento econômico e o processo de mudança econômica de longo prazo, são hoje investigadas pela disciplina que chamamos desenvolvimento econômico.7 Depois dos clássicos, durante um longo período, o tema foi abandonado.

Até a década de 1930, tanto a teoria neoclássica quanto a nascente economia keynesiana preocupavam-se com outras questões.8 Na década de 1940, no entanto, surgiu uma literatura que discutia as implicações da crescente divergência nos níveis de renda entre um grupo de países que tinham passado por rápidas transformações estruturais e o resto do mundo.

Esses autores observaram que, embora esses países economicamente atrasados se mantivessem presos na armadilha da estagnação malthusiana, isso não implicava que não tinham sido afetados pelas mudanças nas economias centrais. Ao contrário, esses teriam sido integrados como periferia do núcleo dinâmico da economia mundial. Percebiam, portanto, que a produção acadêmica existente não tratava das questões enfrentadas por essas economias, as quais passaram a ser chamadas de subdesenvolvidas.9

Nas décadas seguintes, até a crise da teoria do desenvolvimento na década de 1970, as razões do atraso econômico e as estratégias para superá-lo foram intensamente discutidas. Na década de 1970, o tema perdeu parte de seu glamour, ou seja, deixou de ser considerado high theory, nos principais centros de produção teórica. Até mesmo um autor progressista como Krugman considerou os programas de pesquisa de desenvolvimento difusos, por não formarem um corpo teórico consistente e carecerem do uso de instrumental analítico para comunicar suas ideias aos economistas contemporâneos.10 Analisando as razões desse abandono, Albert Hirschman, com sua tradicional capacidade analítica para identificar processos sociais, propôs a tese, em um conhecido artigo publicado em 1981, no calor da crise desse campo de conhecimento, de que a decadência da teoria do desenvolvimento foi o resultado da estranha coalizão entre o neomarxismo e a monoeconomia [Hirschman (1981)].

Para esse autor, os dois pilares da teoria do desenvolvimento eram: (i) a crítica à ideia de monoeconomismo, isto é, a teoria que sustentava que as leis econômicas podem ser aplicadas igualmente em economias desenvolvidas e subdesenvolvidas; e (ii) a ideia de benefício mútuo, isto é, a concepção de que as relações econômicas entre essas economias poderiam ser administradas de forma a gerar benefício para ambos. Para Hirschman, o ressurgimento do liberalismo repudiava essa abordagem ao reafirmar que só havia uma teoria econômica aplicável a países desenvolvidos e em desenvolvimento. Para esses liberais, as políticas heterodoxas agravavam o problema que queriam resolver.11 Por outro lado, autores como Gunder-Frank e outros integrantes da visão mais extrema da corrente dependentista manifestavam seu crescente ceticismo sobre a possibilidade de superação do subdesenvolvimento por meio das políticas públicas defendidas pelos economistas desenvolvimentistas [Prado (1993)]. Nesse contexto, a teoria do desenvolvimento teria perdido a sustentação por autores à esquerda e à direita do espectro político, acabando por ser abandonada.

Na década seguinte, a antiga teoria do desenvolvimento não encontrava mais apoio no mundo acadêmico e era desacreditada no campo da política econômica. A década de 1980 foi marcada pela ascensão de teóricos do neoliberalismo e pelo abandono das políticas econômicas desenvolvimentistas em países afetados pela crise da dívida externa. Nessa década, a teoria do desenvolvimento, já enfraquecida pelas razões apontadas por Hirschman, sofreu, no plano teórico, ataques vigorosos de Deepak Lal. Além disso, as políticas econômicas desenvolvimentistas foram, também, duramente atacadas por Anne Krueger, economista-chefe do Banco Mundial entre 1982 e 1987. Deepak Lal, que presidiria futuramente a famosa Mont Pèlerin Society, publicou em 1983 um influente livro intitulado The poverty of development economics, em que criticava o que chamava de “dogma dirigista”.12 Krueger substituiu Hollis B. Chenery, que ocupava a função desde 1972, marcando a transformação intelectual do Banco Mundial para uma instituição dominada por ideias neoliberais.13 Essa economista foi autora de numerosos artigos e livros em que criticava as abordagens tradicionais de política de desenvolvimento e recomendava políticas públicas market friendly para países em desenvolvimento.14

Portanto, a teoria do desenvolvimento – surgida na década de 1940 com o objetivo de promover crescimento com mudança estrutural, produto de uma ordem econômica otimista, influenciada pela visão de mundo keynesiana, que acreditava na capacidade de intervenção do Estado para corrigir falhas de mercado – foi definitivamente abandonada na década de 1980. Por outro lado, nesses anos, a discussão sobre desenvolvimento foi ocupada pelos modelos de crescimento endógenos, tais como os desenvolvidos por Romer (1986) e Lucas (1988). Tais modelos tinham como objetivo discutir os mecanismos de convergência econômica (ou sua ausência) entre economias com diferentes níveis de renda. Segundo eles, diferentemente da visão dos modelos de crescimento neoclássicos de Solow, havia externalidades positivas na acumulação de capital.15 Tais modelos não tratavam de mudança estrutural e ainda abandonavam completamente a tradição keynesiana de considerar a existência de um caso especial, aplicado ao país desenvolvido, e um caso geral, aplicado ao país em desenvolvimento.

No fim da década, no entanto, uma nova teoria do desenvolvimento passou a dominar a agenda dos organismos internacionais e começou a influenciar as políticas públicas nos países em desenvolvimento. Esse ressurgimento veio de uma fonte inesperada. Suas linhas gerais já vinham sendo propostas por autores como Krueger.16 A crise econômica dos países em desenvolvimento na década de 1980, como resultado da instabilidade financeira internacional na década anterior, foi imputada pelas autoridades que controlavam os organismos internacionais ao erro das políticas de desenvolvimento empreendidas pelos países periféricos. Nesse contexto, foram propostas novas políticas de desenvolvimento, inspiradas pela nova ortodoxia que se estruturava para substituir a ordem econômica keynesiana, que vinha sendo rapidamente desmontada. Essa nova ortodoxia passou a ser conhecida popularmente como neoliberalismo.

Neoliberalismo não é um conceito usado por seus defensores e não é um bom nome para o fenômeno histórico que descreve. O termo foi originalmente proposto na década de 1930 pelo economista alemão Alexander Rüstow para descrever as novas correntes liberais que davam prioridade ao mercado, como alternativa a uma estrutura burocrática e hierárquica de ordenação da economia [Gamble (2006 p. 21)]. Essas correntes eram, normalmente, associadas à Escola Econômica de Friburgo e tinham como sua principal formulação a ideia de economia social de mercado. Essa abordagem, também conhecida como ordoliberalismo, pretendia promover uma ordem econômica baseada no mercado, mas condicionada aos pressupostos de dignidade humana e liberdade, sob uma moral universal kantiana.17 O conceito tomou outro sentido quando passou a ser usado pelos opositores das políticas liberais radicais praticadas pelos jovens economistas, formados em Chicago, que assumiram as principais funções econômicas na ditadura de Augusto Pinochet.18

Por ser usado de forma ambígua, neoliberalismo pode ser adequadamente descrito como um essentially contested concept, como W. B. Gallie chamou a classe de conceitos que, entre outras características, envolve disputas infinitas sobre seu emprego por seus usuários.19 No entanto, apesar da controvérsia em torno de seu uso, esse conceito revela um fenômeno real e relevante de ser descrito. Uma vez devidamente qualificado, o conceito ajuda a compreender o debate, a partir da década de 1970, sobre políticas públicas, tanto no mundo acadêmico quanto na esfera política.

A partir dessa década, uma série de crises financeiras internacionais, que decorreu do fim do sistema de Bretton Woods, interrompeu o longo período de prosperidade nos países industriais avançados. O fim da prosperidade abriu espaço para a crítica do keynesianismo e para a ascensão de novas correntes econômicas liberais. Entre essas novas abordagens, podem-se destacar, em macroeconomia, as teses de Milton Friedman e de Lucas sobre políticas macroeconômicas ativas; a nova economia política de Buchanan com sua teoria de public choice e, ainda, a nova economia institucional, com Douglass North e Ronald Coase.

Simultaneamente, nos países em desenvolvimento, a eclosão da crise da dívida externa serviu de justificativa para a crítica das políticas desenvolvimentistas e abriu espaço para a formulação de uma nova agenda de desenvolvimento, que recomendava reformas das políticas públicas e um novo papel do Estado. Esses dois movimentos são diferentes aspectos da ascensão do que se convencionou chamar de neoliberalismo.

Portanto, chamo de neoliberalismo as novas correntes liberais que ascenderam com a crise do keynesianismo, no centro, e do desenvolvimentismo, na periferia, que tinham por objetivo promover uma nova ordem econômica, com base numa ampla reforma do papel do Estado e das instituições, para criar uma sociedade orientada pelo mercado e não por outros objetivos, como equidade, bem-estar social ou desenvolvimento.20

As políticas públicas propostas pela agenda neoliberal para os países em desenvolvimento pretendem promover mudanças estruturais. Por isso, trata-se de uma nova teoria de desenvolvimento econômico.21 No entanto, a ordem das mudanças é inversa à da tradição desenvolvimentista, que promove mudança estrutural como consequência do processo do crescimento, ou seja, o crescimento deve vir acompanhado de mudança estrutural para se tornar processo de desenvolvimento. Inversamente, na visão neoliberal, o crescimento é produto da mudança estrutural que deve ser promovida pela reforma de Estado e das instituições. Portanto, na teoria do desenvolvimento de inspiração neoliberal, promovem-se, primeiro, mudanças nas estruturas econômicas, por meio de políticas market friendly – como consequência dessas mudanças, o setor privado aproveita as oportunidades disponíveis, com a confiança necessária para correr riscos em função das garantias de direito de propriedade, e atua como o agente promotor do crescimento econômico. 

Essa mudança de agenda sobre o tema de desenvolvimento foi tratada por Erber por meio da abordagem da teoria das convenções.22 Com base em Orléan (1989), esse autor definia convenções como uma representação coletiva com estruturas de expectativas e comportamento individuais. Dessa forma, uma convenção manifesta-se como um conjunto de regras e agendas positiva e negativa e uma teleologia que as orienta [Erber (2008, p. 3)]. Erber tratava o conjunto de políticas oriundas das influências da teoria do desenvolvimento como convenção de desenvolvimento. Para ele, esta foi substituída por uma convenção neoliberal, que lhe era simetricamente oposta. Essa nova convenção seria focada na mudança institucional, com o objetivo de restabelecer a primazia das instituições de mercado. Suas metas principais eram reduzir e controlar a intervenção do Estado, defender os direitos de propriedade e, ainda, promover a liberalização do comércio internacional, investimento e fluxos financeiros. Portanto, essa mudança institucional seria altamente seletiva.

A abordagem de Erber traz a esse debate uma dimensão sociológica, que transcende as discussões tradicionais sobre o tema. No entanto, considero equivocada a visão de que a convenção neoliberal levava à redução do papel do Estado. Essa era uma afirmação corrente entre os autores dessa tradição, mas sua política era muito mais abrangente. Ou seja, como Erber argumenta, essa convenção propõe uma agenda de reformas institucionais focada na promoção do funcionamento do mercado. Mas, ao sustentar essa agenda, a política neoliberal implica a promoção de uma sequência de reformas, que só pode ser realizada por meio de uma grande intervenção do Estado, embora de natureza distinta da intervenção sob a convenção desenvolvimentista.

Até a década de 1970, a oposição à agenda desenvolvimentista vinha de uma visão conservadora que rejeitava a agenda de reformas promovida pelas políticas desenvolvimentistas. A partir da década de 1980, as abordagens neoliberais não mais rejeitam reformas, mas defendem sua própria agenda de reformas que pretendia acabar com as políticas anteriores e também criar uma nova ordem que estabelecesse as condições econômicas e políticas para implementar um novo modelo econômico. Por isso, o neoliberalismo nos países em desenvolvimento, ao contrário do seu discurso, tem um viés altamente intervencionista. Sua agenda incluiu necessariamente a reformulação do papel do Estado. Por um lado, a nova agenda implica reforma administrativa com a redução dos funcionários públicos e alienação de empresas estatais, mas, por outro, tem como objetivo criar novas instituições, tais como as agências reguladoras e uma agência de defesa da concorrência, para administrar a nova ordem econômica market friendly.

O neoliberalismo no centro teve, desde o início, apoio da população em função da sucessão de crises na década de 1970 – afinal, Margaret Thatcher, Ronald Reagan e Helmut Kohl foram chefes de governos muito populares.23 Na periferia, no entanto, a agenda de reformas neoliberais foi, de início, promovida por governos autoritários ou imposta de fora. Ou seja, na década de 1970 os únicos países em desenvolvimento que promoveram políticas neoliberais foram as ditaduras sul-americanas do Chile, da Argentina e do Uruguai.24 Na década de 1980, políticas neoliberais foram implementadas por governos populistas no Peru, com Alberto Fujimori, na Argentina, com Carlos Menem, e no Brasil, com Fernando Collor.25 Somente na década de 1990, a agenda neoliberal recebeu maior apoio popular na região, principalmente em virtude do fato de que as reformas neoliberais foram necessárias para a renegociação da dívida externa, que era fundamental para a estabilização monetária na região. Ou seja, nos países em desenvolvimento que enfrentaram a crise da dívida externa na década de 1980, a agenda de reformas foi exigida como contrapartida da aceitação do Plano Brady e foi imposta a todos os países em desenvolvimento que renegociaram a dívida externa e recorreram às organizações internacionais.

As organizações internacionais exigiam que os países devedores se submetessem a novas regras para que pudessem obter empréstimos ou financiamentos. Essas condicionalidades formavam um conjunto de políticas que deveria ser o sustentáculo de uma nova estratégia de desenvolvimento, que, segundo Stanley Fischer, era a única remanescente, já que “não há mais dois paradigmas concorrentes sobre desenvolvimento econômico”.26 

A nova estratégia de desenvolvimento, que se convencionou chamar de Consenso de Washington por causa da repercussão de um texto de John Williamson, apresentava-se como um rompimento radical com as visões anteriores.27 O primeiro conjunto de reformas recomendado tratava essencialmente de medidas macroeconômicas.28 Os efeitos dessas reformas, no entanto, foram decepcionantes. Dessa forma, a década de 1990, para a maioria dos países em desenvolvimento (particularmente na América Latina), foi marcada por graves crises econômicas e baixo crescimento. Em um artigo que teve grande repercussão, Ocampo (2004, p. 84) resumiu o resultado dessas políticas da seguinte forma:

Este artigo sustenta que os benefícios das reformas econômicas orientadas para o mercado que a América Latina empreendeu desde a metade da década de 1980 foram superestimados e seus riscos foram largamente subestimados. As reformas estruturais, em conjunto com a crescente disciplina monetária e fiscal, foram bem-sucedidas em muitas áreas, particularmente em reduzir a inflação, induzir o crescimento e a diversificação das exportações e em atrair o investimento direto estrangeiro. Mas as frustrações são o resultado de um crescimento econômico que se mantém baixo e volátil, do crescente dualismo da economia e, particularmente, dos resultados sociais desapontadores. Algumas premissas básicas dos reformadores provaram-se inteiramente erradas, particularmente as premissas que a baixa inflação e melhor controle dos déficits orçamentários garantiriam o acesso estável para os mercados de capitais internacionais e para o crescimento econômico dinâmico, e que a maior produtividade nas firmas e nos setores mais dinâmicos iriam automaticamente difundir-se pela economia, levando a uma aceleração generalizada do crescimento econômico.

Apesar dos resultados insatisfatórios, tanto no plano acadêmico quanto na esfera da política pública, os defensores das políticas de desenvolvimento neoliberais consideravam que a razão desse desempenho provinha da insuficiência dessas reformas, não da natureza do diagnóstico. A resposta desses grupos foi aumentar a aposta e recomendar uma nova rodada de reformas. As chamadas reformas de segunda geração, diferentemente das primeiras, que tratavam essencialmente de questões macroeconômicas, concentravam-se em recomendações de mudanças institucionais para adequar as instituições nacionais a um modelo ideal. Essas instituições transformadas deveriam, idealmente, levar aos resultados propostos no modelo original e nunca alcançados [Prado (2011, p. 324)].29

Essas reformas, que, se eficazes, deveriam mudar o ambiente institucional desses países, tinham entre suas mais importantes recomendações as alterações no sistema legal e regulatório e o aumento da eficiência do setor público. Portanto, pretendia-se reformar as instituições públicas que operavam segundo o modelo de intervenção das políticas desenvolvimentistas, para torná-las funcionais em um modelo de intervenção que aumentasse a eficiência dos mecanismos de mercado, eliminando os empecilhos que dificultavam para os agentes econômicos privados aproveitar oportunidades e responder aos sinais de mercado. Portanto, tratava-se de aumentar o papel do mercado, por meio da criação de instituições que facilitassem seu funcionamento.

Entre os principais temas dessa agenda, estavam a proteção aos direitos de propriedade, a garantia da execução dos contratos, a defesa dos direitos de propriedade intelectual, a defesa da concorrência, a execução (enforcement) das decisões judiciais, a melhoria da gestão pública e a melhoria do sistema educacional. Sustentava-se, portanto, que o diagnóstico da estratégia de desenvolvimento neoliberal estava correta, embora os remédios empregados para implementá-la fossem insuficientes. Nessa interpretação, era necessário o aprofundamento das medidas e não a alteração de rumo.

Uma parte fundamental dessas recomendações era a criação de novas agências estatais que deveriam regular serviços privatizados. Nesse cenário, um sistema de defesa da concorrência, com uma legislação para sua aplicação e com uma forte agência antitruste, seria fundamental para promover a ordem econômica desejada e, ainda, impedir a excessiva concentração empresarial e práticas anticompetitivas por empresas com grande poder de mercado. Com base nesses princípios, leis e autoridades antitruste, assim como agências reguladoras, deveriam ser criadas na América Latina e, em geral, nos principais países em desenvolvimento. Essas novas instituições seriam controladas por técnicos, que deveriam ser os guardiões dos princípios do livre-mercado e, ainda, aplicadores técnicos (idealmente, apolíticos) dessa nova ordem. 

Nesse contexto, entre 1991 e 1994, foram criados no Brasil o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e, ainda, no decorrer do governo FHC, as principais agências reguladoras.

3. Reforma de Estado e Políticas de Desenvolvimento: A experiência Brasileira

O fracasso do Plano Cruzado no Brasil, já evidente no início de 1987, teve como principal consequência política a redução do apoio popular a estratégias econômicas identificadas como heterodoxas. Isso se deu em um contexto de importantes mudanças institucionais, por meio da Constituição de 1988, e da fragmentação da representação e da capacidade de ação coletiva do setor empresarial.30 A ação administrativa do governo Sarney contribuiu para reforçar esse quadro. Esse governo se mostrava incapaz de dar respostas à crescente insatisfação e às demandas da população, em um momento em que sua capacidade de persuasão se reduzia rapidamente.

O fracasso do primeiro governo democrático depois de 21 anos de ditadura militar gerou grande insatisfação. Além disso, generalizou-se a demanda por mudanças profundas nas políticas públicas brasileiras. Em decorrência desse sentimento, a campanha eleitoral em 1989 deu-se com polarização das preferências populares entre dois candidatos de esquerda e um da nova direita. Este último, embora de uma tradicional família de políticos nordestinos, apresentava-se como sem vínculos com os partidos tradicionais e caracterizava-se por um discurso inflamado e fortemente antiestado. A vitória eleitoral de Collor marcou uma transformação profunda da ordem econômica brasileira, que viria mostrar-se duradoura.

O novo presidente não podia ser caracterizado como um liberal. Ao contrário, seu discurso previa formas de intervenção do Estado que certamente não pressupunham o princípio liberal de garantias de direito de propriedade e segurança jurídica. No entanto, seu programa previa uma profunda alteração do papel do Estado.31 Nesse sentido, seu governo marcou o início de um ciclo de reformas liberais, que se aprofundaram nos governos seguintes. Ou seja, depois de um início atribulado e populista, sob o governo Collor, as políticas de reforma do Estado vieram a constituir, nos governos seguintes, um projeto efetivo de mudanças institucionais, para a implementação de um novo modelo de desenvolvimento, com base nas formulações do Consenso de Washington. 

Reformas econômicas associadas exclusivamente à ideia de uma agenda conservadora foram uma novidade da década de 1990. Historicamente, a ideia de reformas econômicas aparece em diversos momentos da história recente brasileira associada a situações de crise econômica e/ou política. No início da década de 1960, o tema era polarizado entre a ideia de reformas de base e a de reformas econômicas modernizadoras. Por um lado, os defensores das reformas de base, que se inspiravam na literatura estruturalista, argumentavam que a continuidade do desenvolvimento brasileiro requeria um conjunto de mudanças institucionais que pudesse mudar algumas das características mais perversas da estrutura econômica brasileira. Esperavam, portanto, que as reformas permitiriam melhorar a distribuição de renda e diversificar o consumo doméstico – a mais importante entre elas era a reforma agrária. Uma abordagem distinta era defendida por autores liberais, como Eugênio Gudin ou Octávio Gouvêa de Bulhões, que sustentavam que não havia qualquer característica especial no Brasil que justificasse a ação do Estado de forma distinta da realizada nos países mais avançados. Esses economistas defendiam mudanças para eliminar o populismo econômico, que estaria na raiz da inflação e de outros problemas econômicos brasileiros.

Mas a ideia de reformas econômicas que tomava corpo no Brasil no início da década de 1990 não retomava o debate anterior: sua origem e sua trajetória eram distintas. Essa ideia alimentava-se, no âmbito doméstico, da percepção, por amplos setores da opinião pública, de que o fracasso do governo Sarney poderia ser imputado à insistência de manter uma estratégia de desenvolvimento baseada na intervenção do Estado, que abria espaço à ineficiência e à corrupção. A crise da década de 1980 era vista como a prova definitiva do fracasso do modelo de desenvolvimento brasileiro. O Estado interventor seria também produto de uma concepção autoritária de sociedade e deveria ser enterrado no mesmo túmulo do regime militar.

Isso se somava à crescente popularidade na comunidade empresarial (em especial no setor financeiro, mas também nos meios acadêmicos) da agenda de reformas liberais que foi chamada por John Williamson de Consenso de Washington. A conjuntura internacional contribuía para sua difusão. Os Estados Unidos tinham sido vitoriosos na Guerra Fria: o regimesocialista dos países do Leste Europeu desintegrava-se rapidamente. E na América Latina as ideias estruturalistas pareciam ter sido definitivamente abandonadas pelos novos governantes. O fracasso das políticas de estabilização heterodoxas na década de 1980, no Brasil, na Argentina e no Peru, foi visto como evidência de que as estratégias de desenvolvimento regionais deveriam ser modificadas.

Um marco importante nesse processo foi o fim do governo militar no Chile com a eleição de Patricio Aylwin, mas com a permanência da política econômica liberal. Esta era vista como a principal razão para o bom desempenho da economia chilena desde 1985 e, portanto, não deveria ser modificada pelo novo governo democrático. No fim da década de 1980, vários governos sul-americanos passaram a empreender políticas liberais e implementar reformas econômicas, inclusive alguns governados por políticos com tradição populista, como Carlos Andrés Pérez, na Venezuela, e Carlos Menem, na Argentina. Na mesma época, chegaram ao poder César Gaviria, na Colômbia, e Alberto Fujimori, no Peru. Collor fez uma campanha para a presidência defendendo abertamente reformas no aparelho de Estado. Mas as reformas de Collor não foram produto da vitória de um partido de direita com ideias claras sobre os rumos que queria imprimir ao futuro da sociedade brasileira. Não havia uma pressão de partidos políticos de direita, como na Argentina e no México, nem o governo tinha sido ainda hegemonizado por um grupo tecnocrático liberal, normalmente com doutorado norte-americano, como no caso do México, na década de 1980, e no da Argentina, na década de 1970. A estratégia de campanha de Collor foi atacar os setores organizados da sociedade brasileira e apelar à massa desorganizada. Nesse sentido, essa estratégia é mais parecida com as ações dos presidentes Miguel de la Madrid e Carlos Salinas em seus ataques ao corporativismo mexicano e sua intenção de usar as reformas contra as organizações existentes da sociedade.32 A política econômica de Collor respaldava-se na percepção quase generalizada de que o Estado brasileiro tinha perdido sua capacidade de investir. Por outro lado, vários setores sob o controle do Estado não eram mais estratégicos para o desenvolvimento e, finalmente, o que restava de respeitável no desenvolvimentismo tinha sido destruído pela politização fisiológica do governo Sarney.33 Portanto, a ideia de reformas como parte de uma nova agenda de desenvolvimento no Brasil foi se firmando lentamente. Tendo como ponto de partida a avalanche de medidas propostas por Collor, permaneceu com poucas mudanças em todos os governos brasileiros na década de 1990.

Embora o governo Collor tenha iniciado um amplo programa de privatizações, somente no governo FHC foram criados os marcos regulatórios para a gestão dos serviços públicos privatizados. Para isso, o governo FHC aprovou a legislação necessária para viabilizar a quebra de monopólios do Estado e a concessão de serviços públicos. Nessa linha, foi aprovada a Emenda Constitucional número 8, que estabeleceu as bases jurídicas para as concessões de serviços públicos, assim como outras formas de delegações, como autorizações e permissões. Da mesma forma, foram criadas as principais agências reguladoras: a Lei 9.427, de 26 de dezembro de 1996, instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e disciplinou o regime de concessões de serviços públicos de energia elétrica; a Lei 9.478, de 6 de agosto de 1997, criou a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e estabeleceu os marcos legais para o monopólio do petróleo; a Lei 9.472, de 16 de julho de 1997, criou a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e estabeleceu o marco legal para a atuação das empresas de telecomunicações no país; a Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, criou a Agência Nacional de Saúde (ANS) e estabeleceu o marco legal de atuação dos planos e seguros privados de assistência à saúde.

O governo FHC tinha em seus quadros a densidade teórica e a capacidade administrativa de implementar medidas econômicas market friendly, que são consistentes com as propostas de reformas de segunda geração. Não se tratava de imposição de fora. Isso pode ser mostrado analisando-se a dinâmica de cada uma das reformas. O Brasil não conseguiria alcançar uma negociação internacional dentro do chamado Plano Brady se não realizasse as reformas macroeconômicas exigidas por essa agenda. No caso, os compromissos necessários para o acordo foram realizados durante os governos Collor e Itamar Franco.

Embora a política de reformas fosse vista internacionalmente de forma positiva, a percepção pelas potências ocidentais da fragilidade interna do governo Collor e, ainda, a percepção de que sua negociação externa foi feita de forma menos dócil do que a esperada deterioraram a imagem do Brasil, principalmente com os Estados Unidos.34 Por outro lado, embora Itamar fosse reconhecidamente mais nacionalista do que Collor, como este estava mais envolvido com os muitos problemas domésticos, deu pouca prioridade à discussão de questões internacionais. Nesse sentido, a política externa foi delegada a atores de reconhecido prestígio internacional, dentro e fora da comunidade diplomática.35 Nesse contexto, aos poucos foi ficando claro que a diplomacia brasileira caminharia para alcançar um acordo de negociação da dívida externa e adotar uma postura cooperativa, com uma relação econômica positiva com os Estados Unidos e os principais países industriais avançados.36 Assim, tendo como principal negociador Pedro Malan, o Brasil alcançou um acordo no âmbito do Plano Brady.

O Plano Brady tinha explicitamente como exigência programas de ajuste estrutural por parte dos países devedores. A negociação tinha como premissas fundamentais: (a) o problema da dívida seria resolvido por meio de uma negociação caso a caso; e (b) a redução das dívidas e a liberalização dos recursos estavam subordinadas a um programa de reformas sob a supervisão do FMI, principalmente em questões fiscais, e do Banco Mundial, na agenda de reforma do Estado.37 Mas a agenda microeconômica que se seguiu às políticas macroeconômicas foi guiada por lógica diferente. As reformas de segunda geração tinham por objetivo promover a retomada sustentada do crescimento econômico. Elas faziam parte de uma agenda de desenvolvimento. Nessa linha, elas não eram requisitos para a agenda doméstica, embora certamente estimuladas e apoiadas pelas mesmas forças políticas que impunham os termos da agenda macroeconômica.38 Nesse contexto, foi montado no Brasil um moderno sistema de defesa da concorrência e, em 1994, foi aprovada a Lei 8.884, que estabeleceu as bases legais para esse sistema.

4. A Defesa da concorrência no Brasil: uma abordagem Histórica

Até a década de 1990, a legislação brasileira que tratava de assuntos concorrenciais tinha duas preocupações fundamentais: reprimir os chamados “crimes contra a economia popular” ou controlar as ameaças ao interesse público dos chamados “trustes”, vistos, principalmente, como cartéis internacionais. Autoridades de defesa da concorrência, com instrumentos legais e materiais para atuar com eficácia na promoção da ordem econômica, só foram criadas no Brasil na década de 1990.39 Historicamente, houve grande resistência para a aprovação no país de uma legislação antitruste. A exemplo de países como os Estados Unidos e o Canadá, os primeiros movimentos para a criação dessa legislação eram movidos por razões políticas e não por argumentos econômicos.40 No Brasil, a sociedade civil que liderou o movimento antitruste não tinha a mesma força que nesses dois países da América do Norte. O processo de criação dessa legislação no Brasil dependeu de um complexo equilíbrio nas relações entre Estado e sociedade.

Desde o Estado Novo, discutia-se a necessidade de impor limites à atuação de empresas com forte poder de mercado e a práticas colusivas de empresas internacionais. No entanto, durante décadas houve forte resistência à aprovação dessa legislação, que era vista, contraditoriamente, como uma ameaça à economia de mercado. Somente foi possível aprovar uma legislação antitruste abrangente e eficaz com a agenda de reformas liberais da década de 1990, cuja ênfase estava na montagem de um sistema público que fosse funcional a uma nova ordem econômica market friendly.

As primeiras provisões legais sobre assuntos concorrenciais surgiram no Brasil na década de 1930. Na Constituinte de 1934, uma emenda proposta por Prado Kelly, Christovão Barcelos e Asdrubal de Azevedo previa um artigo que dispunha:

Ficam proibidos os trustes, assim como os monopólios de indústria ou comércio, fixando a lei ordinária as respectivas sanções e salvo à União, quando a esses, o direito de os instituir, em benefício do interesse coletivo ou da defesa da economia nacional [Assembleia Nacional Constituinte (1934, p. 156)].

Na justificativa da emenda, esses constituintes alegavam “a repulsa de nosso direito à existência dos monopólios de indústria e comércio, como ofensa à liberdade econômica” [Assembleia Nacional Constituinte (1934, p. 156)]. Recorriam, ainda, como precedente, ao dispositivo da Lei 3.070-A, de 31 de dezembro de 1915, que previa que o Presidente da República poderia: 

modificar a taxa dos impostos de importação, indo mesmo até permitir a entrada livre de direitos, durante certo prazo, para os artigos de procedência estrangeira que possam competir com os similares nacionais, desde que estes sejam produzidos ou negociados por trustes [Lei 3.070, de 31 de dezembro de 1915, art. 2o, n. IX].

Esses primeiros textos legais com disposições antitruste tinham por objetivo caracterizar crimes contra a economia popular e incluíam como ilícitas as práticas de abuso de poder de mercado e a transgressão de tabelas oficiais de preço. Portanto, nesse primeiro momento, a questão concorrencial confundia-se com o que era conhecido como “crimes contra a economia popular”.41

O Decreto-Lei 869/1938, que tratava de crimes contra a economia popular, era uma legislação penal e não de direito administrativo. A primeira lei brasileira que tratava na esfera administrativa de questões antitruste foi de 1945, nos últimos meses do Estado Novo, tendo como autor o ministro do Trabalho, Agamenon Magalhães. O Decreto-Lei 7.666, chamado de Lei Malaia, criava a Comissão de Defesa Econômica (Cade) e dava poderes ao governo para expropriar qualquer organização cujos negócios lesassem o interesse nacional, mencionando, especificamente, as empresas nacionais e estrangeiras, vinculadas aos trustes e cartéis.42

Essa lei definiu alguns problemas concorrenciais adequadamente, embora influenciada por uma retórica nacionalista, característica daquele período histórico. A criação da Comissão Administrativa de Defesa Econômica foi proposta no art. 19, como um órgão, com personalidade jurídica própria, diretamente subordinado à Presidência da República e presidido pelo ministro de Justiça e Negócios Interiores.

A lei foi duramente combatida por setores que a consideravam intervencionista e influenciada por ideias esquerdistas. O Departamento de Estado dos Estados Unidos interpretou a legislação como um ato de nacionalismo econômico e pressionou o governo Vargas para revogá-la.43 Setores oposicionistas protestaram contra a medida, qualificando a Comissão de Defesa Econômica como um instrumento nazifascista, que ameaçava a economia brasileira. A lei foi revogada pelo presidente provisório José Linhares, poucos dias depois da deposição de Vargas.

O tema, no entanto, continuou em pauta e retornou ao debate na Constituinte. Como resultado, na Constituição de 1946, o art.148 estabeleceu:

A Lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso econômico inclusive as uniões ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua natureza, que tenham por fim dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros [Brasil (1946)].44 

Esse artigo constitucional demandava uma lei para ser efetivo. Para isso, foi proposto o Projeto de Lei 122, de 1948, que também era de autoria do então deputado Agamenon Magalhães. Essa iniciativa encontrou grande oposição no Legislativo e o projeto não foi aprovado pelo Congresso brasileiro.

Na ausência de uma lei antitruste que permitisse atuações do Estado por meio de disposições de direito administrativo, a intervenção do governo fazia-se por leis penais, nas quais se definiam os crimes contra a economia popular. Nessa linha, Getúlio Vargas, em seu segundo governo, promulgou a Lei 1.522, de 26 de dezembro de 1951, baseada na Lei contra a Economia Popular de 1938, na qual eram caracterizados como crimes desde ações típicas de abuso de poder econômico até a cobrança de juros com taxas acima da permitida em lei.45

A resistência do Congresso e o desinteresse do governo produziram o efeito de evitar, até a década de 1960, a discussão da criação de uma lei antitruste. Ficou institucionalizado um crescente uso de intervenção direta do Executivo, sem intermediação de autoridades administrativas, em temas que hoje seriam considerados questões de defesa da concorrência ou de defesa do consumidor.

Na década de 1960, voltou-se a debater a necessidade de uma lei antitruste. Durante o parlamentarismo, Tancredo Neves, empossado como primeiro-ministro, anunciou que

o governo acompanha com atenção a discussão da Lei Antitruste no Senado federal e espera utilizar amplamente todos os poderes que o Congresso lhe conceder no objetivo de combater a especulação e as práticas monopolistas.46

Em setembro de 1962, 17 anos depois da revogação da Lei Malaia e 16 anos após a promulgação da Constituição de 1946, foi, finalmente, aprovada a Lei 4.137/62, que regulamentava o dispositivo constitucional sobre abuso de poder econômico.

Essa lei criou, por meio do art. 8o, o Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência, com a finalidade de apurar e reprimir os abusos de poder econômico. Nesse período, as relações do Brasil com os Estados Unidos passavam por dificuldades por causa da política externa independente brasileira e, ainda, do pouco interesse das autoridades norte-americanas de oferecer apoio para reduzir os graves problemas de balança de pagamento brasileiros.47 Além disso, empresas norte-americanas e canadenses que atuavam na área de serviços públicos sentiam-se insatisfeitas com as dificuldades para reajustar tarifas e temiam a privatização, tal como a realizada pelo governador Leonel Brizola, na Companhia de Energia Elétrica Rio-Grandense, filial da American & Foreign Power, Inc. 

Nessas circunstâncias, a Lei 4.137/62, criada em um momento de muita instabilidade política, durante o governo João Goulart, teve grande dificuldade de produzir efeitos. Repressão a cartéis era na época associada à intenção de controlar empresas estrangeiras. Portanto, havia forte resistência de setores conservadores para sua implementação. Além disso, embora já à época influenciada pela legislação norte-americana, tinha um viés fortemente intervencionista, pois entre suas competências estava a de “fiscalizar a administração das empresas de economia mista e das que constituem patrimônio nacional”.48 A fiscalização do Cade estendia-se à gestão econômica das empresas de economia mista, seu regime de contabilidade e o exame anual dos seus balanços e relatórios. 

Durante o regime autoritário, pouco se avançou nas questões antitruste. Esse foi um período em que o Estado usou a legislação que permitia o tabelamento de preços para implementar uma política de intervenção na atividade econômica privada por meio de estratégias econômicas do setor público. Nessa linha, os preços deveriam ser disciplinados por órgãos de intervenção direta, como a Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab) e, mais tarde, o Conselho Interministerial de Preços (CIP) e não pelo Cade, que pouco atuou na época [Da Mata (1980, p. 916)]. Durante esse período, em várias áreas intensivas em capital, incentivou-se uma divisão do mercado com base em um tripé: com empresas privadas nacionais, privadas estrangeiras e públicas. Nesse sentido, pouco espaço havia para uma política de defesa da concorrência.

Na Nova República, a legislação de concorrência foi renovada, mantendo, no entanto, a característica anterior de definir de maneira vaga os ilícitos concorrenciais, sem criar mecanismos efetivos para repressão ao poder econômico. Mesmo assim, foi aprovada uma nova regulamentação da Lei 4.137/62, por meio do Decreto 92.323, de 23 de janeiro de 1986, que revogou o Decreto 52.025, de 1963. Esse documento legal dispôs:

Art 1º Será reprimido o abuso do poder econômico, quaisquer que sejam as formas que assuma, desde que caracterizadas, isolada ou simultaneamente, situações de:

      1. domínio dos mercados;
      2. eliminação da concorrência;

III. aumento arbitrário dos lucros.

Art 2º São agentes todos quantos, pessoas naturais ou jurídicas, públicas e privadas, desenvolvam atividade que cause, direta ou indiretamente, situações definidas em lei, caracterizadoras de abuso do poder econômico.

Art 3º Os agentes sujeitar-se-ão, sem prejuízo da responsabilidade civil e criminal, às seguintes sanções, cominadas pela Lei no 4.137, de 10 de setembro de 1962:

      1. multa;
      2. intervenção judicial;

III. liquidação judicial.

Art 4º A multa, cominada entre 05 (cinco) e 10.000 (dez mil) vezes o maior valor de referência vigente no País, na data da decisão do CADE, será fixada, levando-se em consideração:

      1. a gravidade do abuso;
      2. a vantagem auferida pelo agente;

III. o prejuízo causado pela prática abusiva, quer a terceiros, quer à economia nacional.

§ 1º A aplicação da multa à pessoa jurídica dar-se-á sem prejuízo de sua imposição aos respectivos controladores, administradores e gerentes.

§ 2º A reincidência do agente legitimará a imposição de nova multa cujo limite será igual a 20.000 (vinte mil) vezes o maior valor de referência vigente no País, à data da decisão do CADE. 

Nessa década, foi dado um passo importante para um marco jurídico duradouro da legislação antitruste com a aprovação na Constituição Federal de 1988, no Título VII, que trata da ordem econômica, de um princípio geral que determinava a repressão do “abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.49 

No governo Collor, no início da década de 1990, a motivação para a aprovação de uma legislação de defesa da concorrência por meio de lei ordinária e, ainda, a criação de mecanismos legais para sua implementação foram distintas dos períodos anteriores. Como muitas medidas desse governo, a legislação antitruste aprovada nesse período foi influenciada por sua visão de reforma de Estado, que era comum nesse governo e misturava aspectos liberais com elementos intervencionistas.50

Na ocasião, o Cade estava parado havia três anos. Muitos dos integrantes do governo militar e, depois, dos setores conservadores na Nova República viam com desconfiança o funcionamento do Cade.51 Embora o tema da defesa da concorrência estivesse no programa do governo Collor, e durante seu governo foi aprovada a Lei 8.158/1991, que criou a Secretaria de Direito Econômico e alterou alguns pontos da Lei 4.137/1962, a operação das atividades do Cade encontrou grande dificuldade para se desenvolver. Somente em fevereiro de 1992, assumiu a presidência do órgão Ruy Coutinho, que teve um importante papel para a formação de um grupo de trabalho para elaboração de uma nova Lei de Defesa da Concorrência.

Nesse momento, tal lei era, ainda, vista com desconfiança, tal como o fora desde a década de 1930. Um novo projeto de Lei de Defesa da Concorrência que vinha sendo formulado por um grupo de juristas recebeu forte oposição das organizações empresariais, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

Foi no governo Itamar Franco, tendo Rubens Ricupero como ministro da Fazenda, que foi criado o Sistema de Defesa da Concorrência, formado pela SDE, pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) e pelo Cade. A Lei 8.884, de 11 de junho de 1994, foi promulgada quando o Plano Real estava sendo executado e fazia parte do conjunto de mudanças institucionais que marcaria a transição para uma nova ordem econômica. Sua motivação imediata era criar bases institucionais para garantir preços moderados, promovendo um ambiente competitivo, que seria compatível com uma economia com baixa inflação. A defesa da concorrência seria, assim, um modelo alternativo (liberal), que deveria substituir os velhos mecanismos (intervencionistas) de administração de preços.

A nova legislação criou o moderno Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, no qual a Secretaria de Defesa Econômica (SDE) do Ministério da Justiça e a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda eram órgãos de instrução, enquanto o Cade atuava como tribunal administrativo, por meio de conselheiros, indicados pelo Executivo, aprovados pelo Senado, com mandato fixo e com grande autonomia para interpretar e implementar a Lei 8.884/94.

Até o governo Collor, o debate sobre questões concorrenciais era realizado quase exclusivamente por profissionais da área de direito. A comissão criada para estudar e sugerir um projeto do que viria a ser a Lei 8.884/94, o marco jurídico da transformação do Cade em uma agência antitruste moderna, era formada exclusivamente por juristas e funcionários do governo de formação jurídica.52 Uma das dificuldades encontradas pela tramitação do projeto foi o desejo do presidente Itamar Franco e de seu ministro da Justiça, Alexandre Dupeyrat, de incluir mecanismos para o controle de preços – o que iria frontalmente contra uma legislação antitruste moderna.53 O que alterou o equilíbrio de forças, no caso, foi a decisiva participação do Ministério da Fazenda. O ministro da Fazenda entendia que a aprovação da nova lei era fundamental para que, quando o Plano Real entrasse em vigor, o controle de preços fosse substituído pela defesa da concorrência. Nesse sentido, foram colocados à disposição do Cade, pelos secretários da área econômica, técnicos de grande capacidade para ajudar a organizar o funcionamento do sistema. Na época, a Fazenda conseguiu fazer com que fosse incorporado ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência a SEAE, que, juntamente com a SDE, era o órgão de instrução do sistema. Na ocasião, houve uma disputa entre o Ministério da Fazenda e o Ministério da Justiça sobre a que pasta deveria ficar vinculado o Cade. No entanto, a influência do Ministério da Fazenda na composição dos novos integrantes do Conselho foi fundamental. Em 1996, o substituto de Ruy Coutinho foi o economista Gesner de Oliveira, um quadro de grande competência técnica e com formação similar à dos outros economistas da equipe econômica do governo FHC.

Ou seja, a partir do governo de FHC, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência passou a ter um papel importante nas transformações institucionais necessárias, segundo a nova estratégia de desenvolvimento que estava sendo montada, para a retomada de crescimento da economia. Na visão de Fabio Erber, esse era um modelo de convenção institucionalista, que tinha como cerne a ideia de que

é o estabelecimento de normas e organizações que garantam o correto funcionamento dos mercados, de forma que estes cumpram suas funções de alocar recursos do modo mais produtivo, gerando poupanças, investimento e, em consequência, crescimento econômico [Erber (2010, p. 20-21)]. 

Na minha interpretação, trata-se da aplicação da nova teoria de desenvolvimento, que vinha se formando desde os anos 1980 e que fazia parte, no Brasil e em outros países em desenvolvimento, das chamadas reformas de segunda geração.

5. Conclusão: Difusão da legislação de Defesa da concorrência e a relação entre concorrência e desenvolvimento 

Antes da Segunda Guerra Mundial, apenas os Estados Unidos e o Canadá tinham uma legislação antitruste e os mecanismos institucionais para implementá-la. Na maioria dos países da Europa e da Ásia não havia qualquer restrição à constituição de cartéis e à concentração econômica. Depois do conflito mundial, os Estados Unidos iniciaram uma política de difusão e, em alguns casos, de imposição de sua tradição de defesa da concorrência para outros lugares do mundo. Nos Estados Unidos, essa legislação tinha surgido do temor do crescimento do big business no fim do século XIX. No pós-guerra, imputava-se aos cartéis e conglomerados empresariais alemães e aos zaibatsus japoneses o estímulo ao militarismo de seus países.54  Nesse sentido, havia o entendimento de que uma legislação antitruste adequada, que promovesse um ambiente concorrencial, contribuiria para evitar o ressurgimento da aliança entre esses grandes grupos e segmentos autoritários do Estado.

Esse caso não se aplicava aos países em desenvolvimento. Portanto, quando o Brasil, nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial, tentou implantar uma legislação de defesa da concorrência, havia o temor de que esse poderia afetar os interesses das empresas americanas. Por outro lado, no Brasil, a intervenção do Estado por meio da repressão aos chamados “crimes econômicos” e o controle direto sobre os preços pareciam mais eficazes, uma vez que na tradição jurídica brasileira a ideia de agência independente era inexistente.55

O tema retornou à pauta na década de 1980, mas apenas na década de 1990 um sistema de defesa da concorrência foi criado no Brasil. Nesse mesmo período, houve grande difusão no mundo de leis de defesa da concorrência. Como mostra o interessante estudo de Susan Sell, isso decorreu essencialmente da difusão das ideias sobre o papel de um ambiente concorrencial para o desenvolvimento e não de mecanismos de coerção.56 No caso, foram as elites locais dos países em desenvolvimento que implementaram leis antitruste, na esteira das reformas market friendly, das décadas de 1980 e 1990. No entanto, nesse período houve ativa participação de autoridades norte-americanas e consultores independentes para o treinamento e a difusão de princípios de defesa da concorrência.57 Nessa linha, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês) estabeleceu na década de 1980 vários programas para difusão e treinamento de temas de práticas empresariais restritivas (restrictive business practices – RBP). No início da década de 1990, um grande número de países em desenvolvimento criou leis de defesa da concorrência. Dessa forma, exceto no caso do Chile, cuja legislação de defesa da concorrência remontava a 1973, como parte das políticas liberais do governo Pinochet, a maioria dos países em desenvolvimento de renda média teve sua legislação moderna aprovada na primeira metade da década de 1990. Esse foi o caso do México e da Coreia do Sul, que aprovaram essa legislação em 1992, da Venezuela, em 1993, e do Brasil, em 1994.

Finalmente, embora os novos estatutos tivessem como base a legislação norte-americana, sua implementação não seguiu a mesma dinâmica desse país. Assim como a prática do antitruste era distinta entre os Estados Unidos, a Europa Ocidental e o Japão, também foi sendo adaptada à realidade de cada um dos países. Curiosamente, enquanto era ampliada no mundo, essa legislação estava retrocedendo nos Estados Unidos, em vista dos ataques às práticas antitruste norte-americanas da chamada Escola de Chicago.58

O que explica a diferença entre a ascensão da legislação antitruste entre os países em desenvolvimento e o relativo recuo nos Estados Unidos é que no caso desse país o que movia a prática era a visão tradicional de defesa do bem-estar do consumidor. Para os países em desenvolvimento, no entanto, tratava-se de reformas institucionais, que ficaram conhecidas como reformas de segunda geração, o que explica também por que nesses países, com algumas exceções, há pouca discussão sobre a relação entre legislação antitruste e as visões tradicionais sobre política de desenvolvimento.59 Se elas cumpriram a função esperada na teoria neoliberal de desenvolvimento não é objeto deste artigo, mas a relação entre esse tema e a agenda de desenvolvimento foi originalmente trazida por economistas acadêmicos que atuaram no governo FHC.60 Muitos dos defensores da defesa da concorrência nos Estados Unidos também eram favoráveis a sua difusão entre os países em desenvolvimento.61Por outro lado, alguns autores nos Estados Unidos eram também céticos em relação a sua eficácia na periferia.62 Da mesma forma, entre os economistas dos países em desenvolvimento havia opiniões controversas quanto a sua conveniência. Mas, depois de mais de uma década dessa legislação, a evidência disponível é que elas vieram para ficar. No entanto, a forma como estão sendo implementadas é muito mais diversificada do que imaginavam seus formuladores.63

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Expectativas, incerteza e convenções

1. Introdução

Fabio Erber, ao aposentar-se do BNDES e passar a ocupar seu posto de professor titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ) em tempo integral, escolheu...

Expectativas, incerteza e convenções

Fernando J. Cardim de Carvalho, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

In Fabio Erber’s final years, the concept of conventional behavior was one of his main subjects. This concept makes it possible to establish connections between theories on expectations such as Keynes’ premise – which focuses on both taking decisions at times of uncertainty and on individuals – and theories that emphasize elements that are common to structuring the expectations of several agents. Such a connection establishes not only the possibility of observing collective behavior at a certain moment, but also identifying elements of continuity in these behaviors over time. In this paper, Erber’s development convention concept is examined in comparison with the Keynesian theory on expectations, responding to the author’s insistent call for dialogue between related theoretical perspectives.

1. Introdução

Fabio Erber, ao aposentar-se do BNDES e passar a ocupar seu posto de professor titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ) em tempo integral, escolheu entre seus temas centrais de investigação acadêmica o que chamou de convenção de desenvolvimento. Esse tema de pesquisa o colocou na fronteira entre várias correntes de investigação, especialmente a keynesiana (ou pós-keynesiana), a schumpeteriana e a institucionalista. Para os que conheceram Erber, nada havia de surpreendente em uma escolha assim, dado que uma das características mais consistentes de sua vida intelectual foi a independência que sempre manteve em relação às escolas existentes de pensamento econômico, inclusive as heterodoxas.

Keynes, mesmo antes da publicação de sua Teoria geral do emprego, juros e moeda (TG), em 1936, enfatizou a importância de se entender como as expectativas dos agentes econômicos são formadas, porque delas dependiam suas decisões com relação a consumo e investimento. A teoria keynesiana de expectativas apoia-se em uma visão de mundo em que a incerteza irredutível do futuro é uma característica central. As mais importantes decisões de caráter econômico que uma pessoa pode tomar são sempre apostas na plausibilidade de um dado futuro. Consumidores apostam que suas rendas futuras evoluirão dessa ou daquela maneira, o que lhes deverá permitir comprar um determinado bem de consumo. O mesmo vale para investidores, em uma aposta ainda mais arriscada: a de que os ativos que adquirem renderão no futuro aquilo que se espera no presente, de modo a, no mínimo, viabilizar os compromissos financeiros necessários a serem assumidos no momento da decisão.

A teoria de formação de expectativas sob incerteza de Keynes levou muitos de seus seguidores a dar ênfase a sua natureza criativa, de “causa não causada”, como escreveu George Shackle, um dos mais influentes economistas a discutir o tema. Expectativas não são endógenas, isto é, elas não são determinadas mecanicamente por fatores objetivos de modo a permitir que o comportamento de consumidores e investidores pudesse ser reduzido a modelos mecânicos de qualquer natureza, em que leis férreas de movimento ou de gravitação se impõem aos agentes, independentemente do que estes decidam fazer.

A hipótese proposta por Keynes mostrou sua fertilidade muitas vezes. Em especial, desde a eclosão da crise financeira internacional nos Estados Unidos, em 2007, multiplicaram-se as ocasiões em que economistas teóricos ortodoxos, mas também autoridades de governo e até mesmo participantes dos mercados financeiros foram lembrados das dramáticas limitações que cercam seus modelos de análise, sempre baseados na noção de que mercados de ativos são arriscados, mas que esses riscos são mensuráveis e que medidas apropriadas de hedge podem ser sempre tomadas para neutralizar tais riscos. Essas “sólidas” defesas desmancharam-se todas no ar quando a crise realmente chegou, exatamente como Keynes advertiu em um passado nem tão distante.

A novidade ou a excitação gerada pelo conceito de incerteza, contudo, serviu para focalizar a teoria de expectativas resultante, talvez de modo excessivo, na subjetividade dos seus determinantes. No entanto, uma teoria puramente individualista de expectativas, como a proposta, por exemplo, pelos austríacos, não é efetivamente tão fértil quanto possa parecer. Expectativas são formadas por indivíduos, mas há que se reconhecer que, no mundo real, em muitos casos, elas tendem a convergir para valores que são amplamente compartilhados. O que propicia essa convergência? Por que em certas situações há convergências, mas em outras não? Em outras palavras, quais são os fatores de natureza interpessoal que atuam na formação de expectativas de modo a criar movimentos agregados na economia?

Na TG, Keynes ofereceu o conceito de comportamento convencional, formas de ação individual que seguiriam padrões coletivos. Keynes não parece ter se interessado pela convenção em si, mas em extrair consequências de sua provável existência.

Na TG, encontram-se características do comportamento convencional identificadas aqui e ali, implicações de sua existência ou de seu desaparecimento, razões por que esse conceito pode ser útil, mas pouco mais do que isso.

Erber, em vários trabalhos, especialmente nos últimos, concentrou-se exatamente nesse problema. Em particular, interessou-o menos uma teoria geral das convenções do que a exploração de uma forma específica de manifestação, a que chamou de convenção do desenvolvimento, interessado como sempre esteve em desenvolver argumentos teóricos que pudessem ser aplicados imediatamente ao estudo de problemas da economia brasileira. Erber chegou ao conceito menos por via de Keynes que pela via dos trabalhos de economistas franceses, notadamente André Orléan, sobre o tema, mas jamais perdeu de vista a possibilidade de fertilização cruzada que esse tipo de problema oferecia com a teoria keynesiana, entre outras. De fato, entre as conclusões mais frequentes de seus trabalhos sobre o tema, Erber invariavelmente listava a possibilidade, ou mesmo a necessidade, de diálogo entre correntes heterodoxas, sobretudo a keynesiana, a schumpeteriana e a evolucionária, a que o foco na formação de convenções convidava.

Neste artigo, pretende-se responder, pelo menos parcialmente, ao chamado de Fabio Erber, discutindo-se o conceito de convenção de desenvolvimento a partir de uma perspectiva keynesiana. Para tanto, na seção seguinte, reconstitui-se a teoria keynesiana da formação de expectativas e tomada de decisões para identificar os espaços abertos para a consideração de fatores de natureza interpessoal. Também nessa seção, examina-se o conceito de comportamento convencional, uma tarefa menos ambiciosa que o estudo pleno do conceito de convenção proposto por Erber, mas que abre a porta para o diálogo com as proposições feitas por outras correntes teóricas. Na terceira seção, com base em trabalhos de Erber, explora-se a noção de convenção, particularmente, a de convenção do desenvolvimento. Como fez Erber, também será mantido o caso brasileiro como pano de fundo, que às vezes emerge para o centro do palco, para o exame desse conceito. A quarta seção trata de algumas possibilidades abertas pela ideia de convenção de desenvolvimento, conectando as duas seções anteriores. A quinta seção apresenta as conclusões.

2. Formação de expectativas sob incerteza

A teoria keynesiana da decisão é, hoje em dia, amplamente conhecida e, nesta seção, não se pretende introduzir qualquer novidade essencial. Antes, o que se almeja é construir uma visão da teoria de expectativas que mostre o espaço para a consideração de fatores interpessoais na sua formação e que permita também avançar na análise das consequências das decisões tomadas. Esse é o contexto em que o conceito de comportamento convencional é introduzido por Keynes no Capítulo 12 da TG.

O problema da tomada de decisões racionais sob condições de incerteza foi um dos maiores problemas a interessar Keynes. Na verdade, seu interesse manifestou-se antes mesmo de se decidir pela economia como foco profissional. À época de Keynes, muitos fenômenos sociais eram explicados por apelo a fatores irracionais. A sucessão de períodos de prosperidade e contração econômicas, por exemplo, os chamados ciclos econômicos, para muitos economistas era explicável pela ocorrência de uma sucessão de ondas irracionais de otimismo e pessimismo. Keynes não negava a importância ou a influência de fatores não racionais na tomada de decisões dos indivíduos, mas dedicou-se desde logo a investigar: (1) como identificar os elementos não racionais envolvidos nesse processo (o que exigia, naturalmente, identificar também quais eram os elementos racionais envolvidos); (2) como e em que extensão esses elementos não racionais influenciavam a escolha final entre alternativas de ação. 

A importância dessa investigação parecia autoevidente para Keynes e seus contemporâneos. O último quarto do século XIX e o primeiro do século XX foram um período marcado pela erosão das certezas mais profundas que haviam definido o pensamento ocidental por, diga-se, centenas de anos. Os pilares do cristianismo tradicional tinham sido abalados por Darwin e pelos geólogos que reestimaram a idade da Terra mostrando que a teoria da evolução era plenamente plausível.

Outros choques ainda estavam por vir, especialmente com a teoria da relatividade e a demonstração de que nem mesmo tempo nem espaço eram os absolutos que se pensou por tanto tempo (Keynes não parece ter sido afetado pela revolução quântica).

Nesse quadro de mudanças e instabilidade, a posição de vanguarda ocupada pela Grã-Bretanha no cenário internacional não sobreviveria aos eventos desencadeados pela chamada Grande Depressão do fim do século XIX. O declínio da economia inglesa, a emergência de novas potências, especialmente Estados Unidos e Alemanha, no cenário internacional, o aumento das tensões imperiais que culminaram na Primeira Guerra Mundial e nas agitações que se seguiram a seu término não apenas criaram profundas instabilidades políticas, mas, como logo se apercebeu Keynes, também refletiam contradições mais profundas do próprio sistema capitalista como existia até então.

Em uma passagem significativa de sua primeira grande obra de sucesso, The economic consequences of the peace, Keynes advertia que o capitalismo moderno, no início do século XX, encontrava-se em uma encruzilhada. Baseado como era em uma profunda desigualdade na distribuição de renda e riqueza, o capitalismo tinha sua legitimidade sustentada por sua eficiência na promoção do crescimento econômico e da extensão, ainda que gradual e desigual, do bem-estar para todos. Capitalistas podiam apropriar-se de uma parcela da renda e da riqueza muito maior do que a dos trabalhadores, na medida em que não consumissem seus lucros, mas os reinvestissem na produção. No entanto, argumentou Keynes, no fim do século XIX as grandes fronteiras de investimento tinham se esgotado. O sistema passaria a enfrentar um dilema que poderia vir a ser fatal se uma saída não fosse encontrada entre a necessidade de estimular o consumo de capitalistas para manter o nível de atividades, à custa do agravamento das tensões sociais (pelo contraste entre o consumo conspícuo dos grupos de altas rendas e o magro consumo dos trabalhadores) ou a contenção do consumo de capitalistas, levando a uma persistente estagnação. No primeiro dos grandes paradoxos sistêmicos que caracterizariam a obra de Keynes, o capitalismo se debateria entre o sucesso econômico em meio à instabilidade política ou a estabilidade política com estagnação econômica. Mantidas as regras do jogo, a situação tenderia a se deteriorar em qualquer circunstância.1

É nesse quadro de instabilidade que se deve entender a ênfase que Keynes atribuiu ao conceito de incerteza. A preocupação de Keynes não era com a incerteza em si, ou com o debate do livre-arbítrio. Em suas obras, ele raramente tomou partido entre os grupos que defendiam alguma forma de determinismo histórico e os que propunham a plenitude do livre-arbítrio, quaisquer que fossem suas convicções pessoais a respeito. 

Nelas, preocupou-se não com a natureza do universo, mas com como os indivíduos sentem a incerteza que cerca o futuro de cada um e, o mais importante, como se preparam para enfrentá-la, isto é, que tipo de cuidados cada um toma para se defender das consequências possivelmente danosas de uma decisão tomada diante de uma expectativa de futuro que seja desapontada.2 As grandes inovações teóricas propostas por Keynes giram todas em torno de atitudes dos agentes econômicos explicadas pela tentativa de reduzir ou contornar a incerteza que cerca suas decisões. Preferência pela liquidez, poupança precaucionária, o próprio princípio da demanda efetiva, até mesmo o comportamento convencional, como se argumentará mais adiante, são todas formas de comportamento cuja racionalidade é perceptível quando se considera o contexto de incertezas que cerca cada decisão individual. São essas precauções que quebram o mecanicismo da teoria econômica que Keynes rejeitou. Os trade-offs entre resultados e exposição ao risco que tomar decisões representa quebram a relação rígida que abordagens mecanicistas propõem entre condições objetivas e comportamentos, tornando impossível reduzir a teoria econômica a um ramo da física, como almejaram (e ainda almejam) gerações de economistas. Conforme explicou Keynes em uma carta a Roy Harrod:

Eu também quero enfatizar fortemente o ponto de que a economia é uma ciência moral. Eu mencionei antes que ela lida com introspecção e com valores. Eu poderia ter acrescentado que ela lida com motivos, expectativas, incertezas psicológicas. É preciso estar constantemente em guarda contra tratar o material como constante e homogêneo. É como se a queda da maçã ao chão dependesse dos motivos da maçã, de se vale a pena cair no chão, e se o chão quer que a maçã caia, e de cálculos equivocados por parte da maçã a respeito da distância que a separa do centro da terra (CWJMK XIV, p. 300).

A primeira grande contribuição dada por Keynes ao tema foi precisamente no volume Treatise on probability, em que ele examinou o método indutivo não como teoria epistemológica, mas como fundamento da decisão racional sob incerteza. Baseado no pressuposto óbvio de que uma decisão sempre se refere ao futuro e que, por definição, a informação sobre esse futuro será sempre incompleta já que o que acontecerá no futuro dependerá também do próprio resultado da decisão a ser tomada no presente, Keynes examinou como a evidência passada e presente poderia ser utilizada para estabelecer as bases racionais de uma tomada de decisão, que nunca seriam suficientes, de qualquer modo, para evitar a consideração de elementos não racionais (arracionais, mais do que irracionais) no processo. A teoria de probabilidades proposta ali por Keynes (em oposição ao sentido dominante, laplaciano, de probabilidade de um evento como a razão entre a frequência desse evento e o total de eventos possíveis) não eliminaria o papel da avaliação do que ele chamou de “peso da evidência”, isto é, a avaliação da “força” que deveria ser atribuída a uma relação entre causas e efeitos.

Essas preocupações estiveram presentes, de forma mais ou menos explícita, em toda sua obra, inclusive, ou especialmente, a de natureza aplicada a problemas econômicos. Foi na TG, sua obra magna, que Keynes chegou a um tratamento mais acabado do problema. Na TG, Keynes explorou não apenas implicações da consideração da incerteza do futuro, como a emergência de comportamentos defensivos importantes, que poderiam afetar a determinação do nível de produto e emprego, como é o caso de uma variação na preferência pela liquidez, mas, de certa forma, deu um passo atrás para considerar também como expectativas seriam formadas (e como deveriam ser estilizadas para inclusão em um modelo teórico de operação da economia) nessas circunstâncias.

A intuição fundamental que orientou o tratamento dado por Keynes às expectativas na TG foi a de que o horizonte temporal pelo qual uma determinada decisão comprometa o tomador é fundamental para a determinação de seu comportamento. Quando a decisão compromete o tomador por pouco tempo, ou seja, apenas no futuro mais imediato, sugere Keynes, é razoável supor que a incerteza que cerca esse futuro imediato não seja muito grande. Em outras palavras, surpresas são possíveis (no sentido da ocorrência de eventos que nem mesmo faziam parte da lista de possibilidades consideradas pelo tomador de decisões), mas elas tenderiam a ser raras e com efeitos mais ou menos limitados. Uma decisão “errada” (no sentido de assumir um desenvolvimento futuro diferente daquele que efetivamente ocorreu) não teria, provavelmente, grandes consequências, porque o desvio entre o cenário projetado e o cenário efetivamente verificado tipicamente não seria muito grande. Keynes argumenta que, a curtos intervalos de tempo, a experiência mostra que raramente o mundo passa por mudanças significativas. Se isso fosse verdadeiro, o ganho obtido por minimizar desvios entre expectativas e desenvolvimentos efetivos seria pequeno demais para cobrir o custo de recriar “teorias” sobre o futuro repetidas vezes. Decisões que não envolvessem horizontes temporais mais largos, portanto, chamadas por Keynes na TG de expectativas de curto termo, seriam basicamente adaptativas, obtidas por um fenômeno semelhante ao aprendizado: a repetição do processo de decisão sob a permanência da maioria das condições, diga-se assim, estruturais da economia permitiria que elas fossem assim consideradas de modo a que o tomador de decisões teria apenas de promover, a cada ocasião em que fosse chamado a decidir, um ajuste marginal nas informações consideradas. Na TG, Keynes assume que decisões de produzir são em geral orientadas por tais expectativas. Elas são tomadas sequencialmente de forma frequente em uma economia empresarial e não valeria a pena o empresário repensar as bases de operação da economia em que vive a cada vez que fosse decidir o quanto produzir. Novamente, vale lembrar que o tema que interessa a Keynes não é o determinismo por si. O mundo não é “certo” no curto termo e incerto no longo, mas, para o agente que tem de tomar uma decisão, é assim que as coisas lhe parecem. 

A mesma estabilidade de contexto não pode ser assumida para o longo termo, ou seja, no caso de decisões cujo horizonte temporal de eficácia seria largo. Se o horizonte temporal fosse largo, a permanência das condições estruturais correntes da economia poderia ser assumida. Não apenas eventos perturbadores de larga escala poderiam ocorrer (o que também poderia acontecer no futuro mais imediato), mas suas consequências teriam tido uma possibilidade de desdobramento maior, modificando de forma mais ou menos profunda as estruturas econômicas. Entre as grandes perturbações que poderiam ocorrer estão os choques externos (como fenômenos meteorológicos ou geológicos, por exemplo), tanto como as mudanças provocadas pela própria ação dos agentes econômicos, quando tomassem o que Shackle chamou de decisões cruciais, aquelas que têm implicações tão profundas que destroem o ambiente em que foram tomadas, impedindo sua repetição e, portanto, o aprendizado e a adaptação. Mas, mesmo que grandes perturbações não tivessem lugar, por qualquer causa, o mero efeito cumulativo de mudanças menos dramáticas poderia conduzir, no longo termo, a economia para uma configuração amplamente diversa daquela considerada quando da tomada de decisão. Era, portanto, nesse horizonte temporal mais largo que a incerteza se fazia sentir com mais intensidade, pela percepção, por parte do próprio tomador de decisões, de que seria impossível projetar cenários com um mínimo de segurança para datas muito afastadas no futuro, e a demanda por formas de proteção, hedge, se fazia mais forte.

No caso de decisões voltadas para o longo termo, isto é, orientadas pelo que Keynes chamou de expectativas de longo termo, a informação disponível no momento da decisão não seria desprezível, mas seria certamente percebida, pelo próprio tomador de decisões, como insuficiente. Seria aqui que as expectativas sobre o futuro se tornariam o que, novamente, Shackle denominou de causa não causada (uncaused cause). O tomador de decisões teria de imaginar (e saberia estar imaginando) cenários futuros e decidir até que ponto acreditaria nesses cenários o suficiente para justificar o comprometimento de recursos por esse horizonte, como ocorre, no caso de investimentos empresariais, ou da aquisição de bens de consumo durável de maior valor, no caso de consumidores. Nesse caso, propôs Keynes, é importante poder separar os elementos racionais dos arracionais do processo de decisão, distinguindo os elementos de cálculo racional (de lucratividade, de satisfação, do que seja) da confiança que o tomador de decisões possa ter nos próprios cálculos ou, mais precisamente, na relevância da informação utilizada para efetuá-los. 

Essa teoria de expectativas foi utilizada por Keynes não apenas na TG, mas também nos anos seguintes a sua publicação, quando ela foi aplicada tanto em suas análises de conjuntura quanto no julgamento da eficácia de políticas de administração de demanda agregada. Nas mãos de seus seguidores, a teoria refinou seu foco nas implicações do processo de decisão descrito, enfatizando especialmente a instabilidade das expectativas, especialmente as de longo termo, e a possibilidade que essa teoria abria para a ocorrência de mudanças súbitas e catastróficas na trajetória das variáveis econômicas mais importantes.

Um desafio importante a essa teoria, no entanto, recebeu relativamente pouca atenção. Como visto, a teoria de Keynes enfatiza a liberdade do indivíduo quando forma suas expectativas em relação às condições correntes, já que a decisão está mais amarrada a cenários imaginados que a realidades presentes. No entanto, nem todos os cenários imagináveis são vistos pelos tomadores de decisão como igualmente possíveis. Em particular, há uma tendência razoavelmente visível para a convergência das expectativas formadas independentemente por indivíduos e não apenas, ainda que mais fortemente, no curto termo.3 Por quê?

O foco quase exclusivo lançado sobre o indivíduo por autores como Shackle, por exemplo, dificulta a resposta a essa pergunta. A resposta de Shackle sobre os limitantes que atuam sobre a formação das expectativas dos agentes era a consideração de “leis naturais”. No entanto, os indivíduos identificam outros obstáculos a reduzir a plausibilidade de certos cenários que não sejam apenas aqueles em que a projeção de futuros envolva uma violação de alguma lei natural. A própria vida em sociedade serve como limitante à plausibilidade do que é imaginável (e que esteja de acordo com as leis da natureza). Algumas das barreiras criadas pela sociedade são identificáveis com facilidade. Por exemplo, indivíduos a cada momento têm sua liberdade de ação restringida pela existência de compromissos contratuais (ou, similarmente, por costumes, obrigações de outra natureza etc.). A existência de obrigações contratuais contraídas no passado determina a tomada de decisão no presente, limitando o conjunto de cenários futuros que possam ser considerados. Do mesmo modo, o perfil presente do estoque de capital existente, do estoque de conhecimento de todas as naturezas, das habilidades dos fatores de produção etc. também é dado e serve para restringir as possibilidades de trajetória futura àquelas que partam desses dados.

Mas há mais do que restrições naturais, materiais ou institucionais envolvidas a constranger o processo de tomada de decisões. Há pelo menos uma consideração final a ser feita que é enfrentar as restrições representadas pelo próprio caráter individual independente das decisões a serem tomadas. A convivência de um grande número de unidades de decisão independentes em um determinado momento do tempo torna necessário, a cada tomador de decisão, formar expectativas sobre as expectativas alheias. Se os planos escolhidos individualmente não forem consistentes entre si, eles não poderão ser concretizados, e as expectativas serão desapontadas, mesmo se tiverem sido respeitadas as restrições naturais, materiais e institucionais já mencionadas. Mas, no capitalismo, não existem mecanismos explícitos e obrigatórios de conciliação prévia de expectativas e planos. É possível, mas implausível na já longa história basicamente bem-sucedida do capitalismo, argumentar que a convergência de expectativas tem sido obtida por coincidência. A existência de convenções e do que Keynes chamou de comportamento convencional é certamente uma hipótese mais promissora.

3. Convenções 

A definição de convenção é relativamente direta: é uma crença compartilhada por um certo número de indivíduos. Keynes a usa nesse sentido, e Erber também o fará. Uma convenção, portanto, é um redutor de incertezas ao tornar previsível o comportamento daqueles que se assume compartilhar a mesma crença. Mas a relevância de uma convenção naturalmente dependerá de quantos indivíduos compartilham uma determinada crença. Keynes usou a ideia de convenção no sentido de uma crença dominante em um dado momento, aquela capaz de explicar não apenas o comportamento de um indivíduo, mas, na verdade, da economia como um todo. Erber e os economistas franceses seguiram um caminho diverso, como se verá a seguir.

Convenções são frágeis por natureza, dado que nada garante que uma proposição amplamente aceita e firmemente acreditada não desapareça de uma hora para outra. De fato, o colapso de convenções é um dos temas mais fascinantes de um projeto de pesquisa sobre a formação de expectativas. Mas, em um dado momento, embora sempre haja dissidentes (e crenças candidatas a substituir a dominante), Keynes usa a expressão comportamento convencional para distinguir precisamente as formas de comportamento resultantes da aceitação da convenção dominante em um dado momento.

Nos trabalhos de Erber, há uma preocupação central com a identificação de outras convenções além daquela dominante, até porque a competição entre elas e a eventual substituição de uma por outra se constituiu, talvez, no tema que mais atraiu seus esforços nessa área.4 Assim, Erber (2011) aceita a definição de convenção oferecida por Orléan, um dos líderes da corrente francesa de estudo do tema, e que expõe da seguinte forma: 

Para lidar com os problemas de incerteza e coordenação, as sociedades utilizam instituições – as “regras do jogo”. Nos planos cognitivo e comportamental estas regras estão estruturadas por convenções. Formalmente, temos uma convenção se, dada uma população P, observamos um comportamento C que tem as seguintes características: (i) C é compartilhado por todos os membros de P; (ii) cada membro de P acredita que todos os demais seguirão C e (iii) tal crença dá aos membros de P razões suficientes para adotar C (p. 32). 

Em outras palavras, qualquer comportamento compartilhado por um grupo de indivíduos define uma convenção, desde que esses indivíduos aceitem a regra de comportamento que a define. A aceitação da regra comum permite a cada membro dessa população antecipar a reação dos seus companheiros a estímulos correntes, delinear o modo pelo qual tais estímulos serão transformados em um plano de ação, e, talvez, embora Erber não chegue a definir esse ponto, até mesmo como reagirão a choques específicos no futuro. Com isso, cada indivíduo minimiza uma fonte importante de incertezas no que diz respeito à consistência entre suas decisões e seus planos de ação e à dos outros membros da população.

Essa definição mais geral de convenções oferece uma vantagem e uma desvantagem em relação ao foco mais estreito sobre as crenças dominantes, proposto por Keynes. A vantagem é permitir ao analista captar a diversidade de visões concorrentes de como opera a economia, o que pode ser útil caso, por qualquer razão, a crença dominante venha a sofrer um colapso. A desvantagem é que, ao explicitar a coexistência, a cada momento, de várias convenções, torna-se necessário definir algum critério pelo qual se possam eliminar da análise as crenças com menor chance de virem a se tornar dominantes e que, portanto, possam ser eliminadas do conjunto de possibilidades a serem consideradas. Em outras palavras, se toda crença compartilhada pode ser considerada uma convenção, em que ponto se traça a linha, se é que isso é possível, que separa as convenções que merecem estudo daquelas que definem minorias inefetivas, cultos exóticos, modas e manias? Por outro lado, se um filtro puder ser definido, as formas de interação entre as crenças dominantes ou potencialmente dominantes, até mesmo para definir as regras de sucessão de uma para outra, tornam-se uma importante área de reflexão e análise.

Assim, embora Keynes e os franceses definam convenção essencialmente da mesma forma, interessa ao primeiro apenas a convenção dominante, ao passo que, aos segundos, a convivência e a concorrência entre regras do jogo diversas, aceitas por populações definidas, parecem ser o tema principal.

Duas diferenças adicionais parecem resultar desse contraste. O conceito adotado por Keynes inclui apenas o modo pelo qual a economia (ou partes dela) parece funcionar. Um exemplo dado por Keynes de uma variável convencional é a taxa de juros, porque dependeria do modo pelo qual os agentes econômicos entenderiam que ela é determinada e sua visão do que seria seu valor “normal”. 

Já no argumento de Erber, convenções são um conceito mais especializado e incluem não apenas hipóteses comuns a respeito da operação efetiva da economia, mas também uma hierarquia comum de fins. Em outras palavras, não apenas se cultiva uma visão comum de como funciona uma economia de mercado (por exemplo, se mercados de trabalho permitem a emergência de desemprego involuntário ou se tendem a permanecer na posição correspondente à taxa natural de desemprego), mas também uma hierarquia definidora da solução para eventuais trade-offs que exijam alguma intervenção externa (por exemplo, por meio de política econômica). Assim, quando Erber contrasta o que chamou de “convenção do desenvolvimento” com a “convenção da estabilidade”, não são apenas hipóteses diversas dos mecanismos fundamentais de operação da economia que fundamentam o contraste entre as convenções, mas também a preferência, na primeira, pela promoção do desenvolvimento, mesmo que isso possa sacrificar a estabilidade, ou a promoção da estabilidade, mesmo que isso possa sacrificar o desenvolvimento, no caso da segunda.5 Além disso, Erber preocupou-se primordialmente com a análise das formas de intervenção da política econômica na operação da economia e na persecução dos fins propostos por cada convenção. Por isso, uma convenção incluiria também uma especificação dos instrumentos de intervenção cuja eficiência deveria ser maior.

Assim, enquanto o conceito keynesiano de convenção resume-se à descrição do que os participantes de uma dada economia julgam possível (como a trajetória da taxa de juros), no conceito francês adotado por Erber, a convenção inclui também o que se julga desejável ou prioritário e como a consecução desses objetivos seria viabilizada ou facilitada pela intervenção de política econômica.

Um segundo elemento comum às duas noções de convenção é sua natureza antiteleológica. De fato, a convenção substitui a noção de que há atração a uma trajetória comum. Ela se baseia exatamente na ideia de que comportamentos não convergem “naturalmente” para nenhuma regra comum, a não ser na existência de uma convenção. Erber (2002, p. 15) ressalta que mesmo a ideia de trajetória é uma construção teórica própria de modelos teleológicos. A noção de trajetória assume implicitamente que dois pontos em uma sequência estão ligados por alguma relação de causalidade, quando é possível que sejam apenas exatamente isso: dois pontos alcançados em datas diferentes, sem nada mais que os ligue que a suposição feita por alguns (orientada por uma convenção) de que algum mecanismo defina uma conexão necessária. O conceito de incerteza de Keynes é antitético a qualquer visão teleológica, e a escola da convenção compartilha tal posição.

Como observado acima, na abordagem de Erber, uma questão de extrema importância refere-se ao surgimento de convenções (como elas são originadas) e, ainda mais, como elas se sucedem como dominantes. Apoiando-se no exemplo do Brasil no período do pós-Segunda Guerra Mundial, Erber aponta a (gradual?) substituição da convenção do desenvolvimento pela da estabilidade. A primeira é introduzida como 

trata[ndo] das transformações estruturais que devem ser introduzidas na sociedade, estabelecendo o que há de “errado” no presente, fruto do passado, qual o futuro desejável, quais estruturas devem ser mudadas e as agendas de mudança, positiva e negativa [Erber (2011, p. 33)]. 

Essa convenção tendeu a se organizar em torno de modelos neokeynesianos de crescimento, da família Harrod-Domar, e se concretizou por meio de leis, regulações e utilização de instrumentos de política econômica [Erber (2012, p. 12)].

Já a convenção de estabilidade define-se, na sua acepção mais simples, talvez, pela aceitação do que John Williams tornou conhecido como o Consenso de Washington.6

Para Erber, a ascensão da convenção de estabilidade se explicaria de modo essencial pelas mudanças no contexto externo à economia brasileira, transformações complexas de natureza tanto econômica quanto política e mesmo ideológica, que tornaram não apenas seus objetivos prioritários de algum modo menos prioritários, mas também seus instrumentos de intervenção obsoletos ou francamente disfuncionais. O argumento é forte, mas parece não conferir nenhum papel a fatores internos, até mesmo a inabilidade da convenção do desenvolvimento para eventualmente responder às expectativas dos agentes com relação a seus fins (o desenvolvimento não foi atingido) e aos problemas emergentes em paralelo para os quais suas respostas eram débeis (a aceleração da inflação no período pós-1979).

De fato, o conhecimento de como mudanças promovidas pelo próprio sucesso de uma determinada convenção, que incluem a ampliação das expectativas do público, a perda de urgência que problemas vão sofrendo ao serem atacados com algum sucesso e a acumulação de “detritos” (como foi o caso da aceleração inflacionária dos anos 1980 em diante), parece ser peça essencial de uma reflexão sobre como convenções se estabelecem como dominantes em cada momento.

Em um de seus últimos trabalhos, Erber estende sua reflexão ao exame do governo Lula da Silva. Erber propõe que seus dois mandatos, como aliás já teria sido também o caso dos mandatos precedentes, de Fernando Henrique Cardoso, são marcados pelo conflito e pela luta por hegemonia de variantes das duas convenções, de desenvolvimento e de estabilidade, que parecem servir de matriz para as escolhas específicas feitas a cada período. No governo Cardoso, segundo Erber, o conflito entre variantes das duas convenções nunca teria ameaçado realmente o predomínio da convenção da estabilidade. Nos governos Lula da Silva, uma forma desta última teria dominado o primeiro mandato, mas, no segundo, um certo impasse teria sido estabelecido, tornando sua caracterização mais difícil.

Na avaliação do governo Lula, Erber introduziu mais um elemento de análise do conceito de convenções. Ao mostrar as formas específicas que as convenções de estabilidade e de desenvolvimento assumiram no interior do governo (e contrastá-las com outras variantes não participantes da administração), Erber implicitamente abriu nova frente no estudo do tema, a relação entre matrizes mais gerais de compreensão do funcionamento da economia e as formas específicas que essas matrizes vão assumindo em configurações políticas dadas.7

O grau de flexibilidade de uma determinada matriz deve certamente ter alguma influência sobre a possibilidade de derivação de formas aplicadas de cada convenção apropriadas às características de cada momento histórico.

O Brasil viveu a predominância de várias convenções durante o século XX e neste início de milênio. Seguindo uma pista sugerida por Erber, de que a diversidade de crenças compartilhadas “vaza” para a cultura popular, manifestando-se, por exemplo, sob a forma de provérbios ou outras formas de expressão, é possível dizer que já se vive a “convenção do Jeca Tatu”, do país enorme e atrasado, perdido em doenças crônicas e na ignorância e incapaz de reagir, sucedida pela convenção dos “50 anos em 5”, em que se acreditou que tudo era possível, até mesmo o desenvolvimento econômico e a transformação estrutural do país. A convenção dos “50 anos em 5” durou até o fim do governo Geisel, tendo afinal cedido sua preeminência a uma versão moderna da convenção do Jeca Tatu, da inevitabilidade do atraso, do país do futuro que sempre será, das décadas perdidas, mesmo depois da reconquista da estabilidade monetária.8 

4. A Convenção do Desenvolvimento

O interesse central de Fabio Erber em toda essa discussão era, indiscutivelmente, como recuperar o espaço para a convenção de desenvolvimento como a convenção hegemônica na sociedade brasileira. Ao retornar, por um instante, ao sentido keynesiano do termo, o primeiro requisito para essa recuperação seria o convencimento da sociedade de que o desenvolvimento é possível (não apenas o crescimento econômico, que tem se mostrado suficientemente difícil, mas também a transformação estrutural definidora do desenvolvimento). Nos termos propostos por Erber, o requisito seria na verdade recuperar a noção (não é claro que seria uma convenção no sentido por ele proposto, embora se trate claramente de uma convenção no sentido de Keynes) de progresso, isto é, a crença de que a mudança é efetivamente possível e está ao alcance da sociedade brasileira.

Novamente no sentido de Keynes, se a crença na possibilidade de desenvolvimento (independentemente de especificações mais precisas sobre a forma que esse desenvolvimento deve tomar ou dos instrumentos necessários para alcançá-lo), que sucumbiu à sucessão de décadas perdidas, for reconstruída, por si só seria de se esperar uma ressurreição entre empresários do que Keynes chamou de animal spirits, uma disposição espontânea para enfrentar os riscos associados ao investimento, na confiança de que outros estariam fazendo o mesmo. 

Em um tal contexto, políticas de fomento e suporte ao crescimento também deveriam ter sua eficácia aumentada, porque a sensibilidade dos agentes econômicos aos estímulos lançados pelo governo deve crescer, se se acredita que outros estarão também atendendo ao chamado.9

Para isso, no entanto, é preciso reconstruir a convenção de que políticas de promoção do, ou apoio ao, desenvolvimento podem ser eficazes, algo que teria desaparecido com a longa hegemonia da “convenção de estabilidade” que relegava o Estado a uma função secundária, de garantia apenas da estabilidade macroeconômica, entendida em sentido estreito. O “plano” seria a corporificação, de certo modo, de uma convenção do desenvolvimento.

A força da noção de plano foi erodida por uma conjunção de fatores de importância desigual nas últimas décadas do século XX. Por um lado, o bem-vindo colapso das formas totalitárias de planejamento praticadas no Leste Europeu e na extinta URSS alimentou a ideia de que qualquer intervenção pública contém, no mínimo, as sementes do autoritarismo. No caso brasileiro, essa noção foi reforçada pelo sucesso de autores mais extremadamente liberais (cultores da convenção da estabilidade) de que o entusiasmo de alguns governantes do período militar pelo planejamento econômico era prova, em si mesma, da natureza autoritária de qualquer forma de intervenção. O sucesso, pelo menos por algum tempo, do argumento liberal obscureceu o registro histórico que lista várias formas de planejamento compatíveis com regimes politicamente abertos, a começar pelo planejamento indicativo francês no pós-Segunda Guerra Mundial. Mas a construção da hegemonia de uma determinada convenção é um problema político tanto quanto, se não mais, econômico. Economistas simpáticos a alguma noção de convenção não estão aparelhados adequadamente para explorar, com a profundidade necessária, a questão da substituição de convenções dominantes.

5. Conclusão 

Como mostrou Erber, uma forma específica de convenção de desenvolvimento recuperou sua força (se não necessariamente a hegemonia) no segundo mandato do Presidente Lula da Silva. Sua posição foi reforçada pela bem-sucedida administração das ondas de choque da crise econômica internacional que atingiram a economia brasileira ao fim de 2008.

Estratégia e instrumentos semelhantes foram reaplicados em 2012, mas com efeitos pífios sobre a economia, permitindo que partidários da convenção da estabilidade reabrissem a questão de sua hegemonia, cujas raízes nunca chegaram a ser realmente mais profundas. Em uma primeira, e necessariamente especulativa, aproximação, o desempenho da economia brasileira em 2012 parece ser um exemplo de livro-texto confirmando a eficácia da noção de convenção. Há uma percepção generalizada na sociedade brasileira de que as medidas de expansão tomadas ao longo de 2012 não funcionaram porque os agentes econômicos (especialmente os empresários) não teriam acreditado em sua eficácia. Ou, em termos mais apropriados à noção de convenção, os agentes não estariam convencidos que os outros agentes tivessem acreditado na eficácia das medidas, o que faria com que, caso algum empresário tivesse efetivamente respondido aos estímulos, acabaria por perceber que sua resposta seria anulada pela falta de adesão dos outros. Em outras palavras, a hipótese é que faltaria a crença compartilhada na eficácia das medidas tomadas que, por si, as tornaria ineficazes já que ninguém assumiria o risco de mover-se sem ter segurança que outros estariam movendo-se em simpatia.

Se a tese de Erber estiver correta, não bastaria escolher os instrumentos adequados, não bastaria nem mesmo convencer os agentes econômicos, um a um, de que os objetivos são factíveis e os instrumentos são eficazes, é preciso ainda convencê-los de que um número suficiente de agentes está convencido disso para garantir o sucesso de uma iniciativa. A convenção é um instrumento de coordenação de expectativas, de informação a cada um do que outros esperam resultar de um dado estímulo. Mas construir uma convenção envolve não apenas conhecer como funciona a economia, mas também saber persuadir politicamente um número suficiente de agentes da sua correção para que a política possa demonstrar sua eficácia e, assim, reforçar a convenção que a sustenta. Fabio Erber, corretamente, sustentou insistentemente que a solução desse problema exigiria não um debate entre correntes de economia, mas um debate entre várias disciplinas de ciências sociais. Para nosso pesar e nosso prejuízo, esse debate terá de prosseguir sem o privilégio de sua participação.

Referências Bibliográficas

ERBER, F. (2002) The Brazilian development in the nineties – myths, circles and structures. , Nova Economia, 12, 1, jan.-jun.

ERBER, F. (2011) As convenções de desenvolvimento no governo Lula: um ensaio de economia política. , Revista de Economia Política, 31 (1), jan.-mar.

ERBER, F. (2012) The evolution of development conventions, Revista de Economia Contemporânea, 16, 1, jan.-abr.,

MOGGRIDGE, D. (Ed.). (1981) The collected writings of John Maynard Keynes., Londres: MacMillan, [volumes identificados por CWJMK, seguido do número de volume em algarismos romanos], 1973,1981.

PENROSE, E. (1980) The theory of growth of the firm. , Armonk: M.E. Sharpe,

Convenções: uma visão sociológica do...

1. Introdução 

Como bem notou Prado (2011), o professor Fabio Stefano Erber era um economista do desenvolvimento, que entendia desenvolvimento como: 

[...] processo que...

Convenções: uma visão sociológica do desenvolvimento econômico

André de Melo Modenesi, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

Erber's contribution to understanding development conventions has made him a theorist of the ideas of development. Based on the assumption that economic theory is not neutral axiologically, he has explained where the development conventions prevailing in contemporary Brazil came from and where they are leading us to. Acting more like a social scientist, Erber's epistemological stance becomes very clear: ontologically, Economics is Politics. By using the concept of convention to explain the problem of interest rates in Brazil, Erber has founded a research program focused on Political Economy and devoted to study the Brazilian contemporary monetary policy. An important part of Erber's legacy is to have shown that the belief that a given convention of development could be transformed into a national project aiming at the common good is actually a utopia.

1. Introdução 

Como bem notou Prado (2011), o professor Fabio Stefano Erber era um economista do desenvolvimento, que entendia desenvolvimento como: 

[…] processo que envolvia taxas de crescimento per capita elevadas, aumento de produtividade, mas, sobretudo, mudanças estruturais na economia e na sociedade, que implicavam alterações no comportamento dos agentes econômicos. A ideia de que o processo de desenvolvimento tinha como condição necessária mudanças nas instituições e na cultura sempre esteve presente na obra deste autor [p. 199-200; grifos meus].

É a partir dessa constatação que se apreendem a relevância e o significado do conceito de convenção do desenvolvimento na obra de Erber. Ainda que ele tenha tratado mais especificamente do tema somente no fim de sua carreira, o conceito de convenção é crucial a seu objeto de estudo, o desenvolvimento econômico.

Seu foco de análise vai muito além das políticas econômicas e de seus efeitos sobre a produtividade, a produção, o emprego, a renda etc. O desenvolvimento é concebido como um fenômeno multifacetado em que a dimensão econômica – tanto micro quanto macro – não se dissocia de seus vieses1 sociológico e político. Quem promove e, portanto, condiciona o desenvolvimento são, em última instância, os atores sociais. Para além do papel dos gestores de política econômica, Erber ressalta a importância de grupos de interesse, organizações, instituições multilaterais (como o FMI e o Banco Mundial), acadêmicos, formadores de opinião, eleitores etc. no processo de desenvolvimento.

Erber foi mais do que um economista do desenvolvimento focado em problemas práticos ou com a preocupação precípua de transformar a realidade. À luz de sua contribuição sobre as convenções de desenvolvimento, Erber pode ser entendido como um teórico das ideias de desenvolvimento. Partindo do princípio de que a teoria econômica não é neutra do ponto de vista axiológico, ele mostrou de onde vêm – ou como surgem – e para onde nos levam as concepções de desenvolvimento prevalecentes no Brasil contemporâneo. Aproximando-se mais de um cientista social – portanto, distanciando-se do formalismo abstrato que distingue os economistas contemporâneos do mainstream –, ele assume uma postura epistemológica clara:

[…] Economia é ontologicamente política. Um de seus propósitos é contribuir para a discussão dos interesses econômicos que estão subjacentes às teorias sobre os objetivos e procedimentos recomendados para o desenvolvimento brasileiro [Erber (2011, p. 32)].

Este capítulo está dividido em cinco seções, incluindo esta introdução e a conclusão. Na segunda, é tratada a gênese da ideia de convenção do desenvolvimento na obra de Erber. Em seguida, retrata-se como o autor desenvolve e aplica o conceito na análise do governo do Presidente Lula. Na quarta seção, ressalta-se que Erber – ao usar o conceito de convenção para explicar o problema da taxa de juros no Brasil – inaugura uma linha de pesquisa, focada na economia política, a respeito da política monetária brasileira contemporânea. Na conclusão, propõe-se que um de seus principais legados no desenvolvimento do tema foi mostrar que a crença de que uma determinada convenção de desenvolvimento se materializa em um “projeto nacional” que vise ao “bem comum” é uma utopia. 

2. A Gênese do conceito de Convenção de Desenvolvimento

Erber foi reconhecidamente influenciado pela escola francesa da regulação, tendo aplicado suas teses e conceitos na análise do padrão de desenvolvimento brasileiro. Esse fato é crucial para compreender a gênese, o desenvolvimento e o significado de convenção em sua obra.

Ele define o padrão de desenvolvimento como “[…] conjunto de relações entre os agentes econômicos e sociais, que garante, ao longo de um período de tempo, a manutenção dos processos de acumulação de capital e de preservação do poder político” [Erber (1992, p. 8; grifos meus)]. No plano econômico, essas relações se traduzem em um conjunto de normas: de acumulação; produção; consumo; financiamento; inovação e difusão de progresso técnico; intervenção do Estado; e inserção internacional. Segundo Erber:

Essas relações constituem-se, historicamente, em cada formação nacional. No entanto, estão sujeitas a limites dados pela lógica do sistema como um todo e pela prevalência, em nível internacional, de uma dada formação hegemônica, política e economicamente […] as relações são elas mesmas seletivas – elas definem um elenco de “problemas” a serem tratados e as formas de solucioná-los, assumindo caráter cumulativo. Daí na tradição kuhniana, as chamarmos de normas ou paradigmas [Erber (1992, p. 9; grifos meus)].

Aqui se encontram dois elementos centrais do conceito de convenção de desenvolvimento, posteriormente utilizado pelo autor. Primeiro, a ideia de que se trata de um fenômeno que transcende o plano econômico. Seu caráter sociológico deriva da relevância atribuída às inter-relações entre os atores sociais. Trata-se de um fenômeno genuinamente social: algo sui generis, uma totalidade que, a despeito do papel desempenhado por suas partes, não se reduz à mera soma destas. É um fenômeno emergente: externo ao comportamento dos indivíduos e que não se reduz à cognição individual [De Wolf e Holvoet (2005)].

Segundo, o estabelecimento de um conjunto de problemas ao qual se atribui um correspondente conjunto de soluções, posteriormente denominados de agenda, sob a influência de Lakatos (1970).

A ideia de convenção aparece mais claramente – ainda que não de forma explícita – em Erber (1996), em que o conceito de mito é tratado com detalhe. Posteriormente, ela é usada em Erber (2002): “Part of the conventions which help social actors to deal with uncertainty are ‘stories’ told about change – of how change is necessary and, especially feasible, even under difficult circumstances” (p. 15). Nessa mesma obra, ele também explora as noções de mito e de agenda, positiva e negativa, em duas seções.

O conceito de convenção é desenvolvido com profundidade por Erber (2004) em uma seção especificamente destinada às convenções do desenvolvimento. No fim de sua carreira, Erber (2007; 2008a; 2008b; 2008c; 2008d; 2009; 2010; 2011; 2012) volta-se quase que exclusivamente ao tema, aprofundando e lapidando o conceito de forma exaustiva (como será visto nas próximas seções).2 Ele é usado sob a influência tanto de Keynes quanto dos chamados convencionalistas franceses, por exemplo, Orléan (1989; 2004) e Jodelet (1989).3 De acordo com Erber (2004, p. 40-41):

Conventions are sets of beliefs shared by a community for, among other purposes, problem-setting and problem-solving. They are a heuristic device for dealing with uncertainty. Conventions may stem from different sources: religion, myths, scientific theories, etc. Since the Enlightenment the prestige of science as a source of conventions has increased, albeit at the cost of dressing up other sources (such as myths) in the guise of scientific theories. […] conventions embody a set of criteria which specify a “positive agenda“, the set of problems which should be tackled and a set of solutions which should be used to solve such problems. The criteria also specify a “negative agenda”, problems which are not relevant and solutions to (relevant) problems which should be avoided (grifos meus).

O próprio autor reconhece a contribuição de Castro (1993), que propõe a dicotomia entre as convenções do “crescimento” e da “estabilidade”. A primeira vigorou no país entre o pós-Segunda Guerra e o fim da década de 1980. A segunda conquistou sua hegemonia a partir da década de 1990.4 Erber (2004; 2008c), além de registrar que “deve” a Castro (1993) o uso da noção de convenção, também credita a influência de Schön (1988) e de Lakatos (1970), de quem usa os conceitos de agenda positiva e negativa (nominados, inicialmente, como conjunto de problemas/soluções).

Ele também usa os conceitos de “regras do jogo” e de “modelos mentais compartilhados”, de North (1990) e de Denzau e North (2004), respectivamente. Erber também reconhece e cita a contribuição de Schumpeter (1964) na formação de sua própria visão do desenvolvimento econômico. Em artigo originalmente apresentado no XII Congresso da Sociedade Internacional J. A. Schumpeter, Erber (2012) usa uma definição mais formal de convenção, bem como formula uma definição de convenção de desenvolvimento: 5

Such set of rules, the positive and negative agendas they generate and the teleology underlying them are a convention – a collective representation which structures individual expectations and behavior [Orléan (1989)], in the sense that, given a population P, we observe a behavior C which holds the following characteristics: (1) C is shared by all members of P; (2) every member of P believes all other members will follow C; (3) such belief provides members of P with a sufficient reason to adopt C [Orléan (2004)]. A convention arises out of the interaction of social agents but it is external to such agents and cannot be reduced to their individual cognition, i.e. it is an emergent phenomenon [De Wolf and Holvoet (2005)]. In every society there are many conventions dealing with different aspects of economic and social behavior (e.g. the quality of traded goods, the working of the financial system). Following our definition, a development convention is concerned with structural change. This begs the question about which “structures” are to be changed? The answer to that question differentiates development conventions [Erber (2012, p. 8; grifos do autor)].

A existência de convenções de desenvolvimento decorre diretamente da própria concepção de desenvolvimento econômico, que não se reduz ao crescimento do PIB ou da renda per capita – o que em suas palavras simplesmente seria “mais do mesmo”. As transformações estruturais subjacentes – e que caracterizam – o processo de desenvolvimento geram incerteza (no sentido dado por Keynes) e problemas de coordenação (como enfatizado pelos convencionalistas franceses). Assim, as convenções existem para mitigar as incertezas e os resultantes problemas de coordenação que marcam o processo de desenvolvimento.

Na próxima seção, será visto como Erber aplicou o conceito de convenção do desenvolvimento ao analisar o governo do Presidente Lula  (2003-2011).

3. As convenções de desenvolvimento no Governo Lula 

No fim dos anos 1980, é observada profunda e radical mudança no padrão de desenvolvimento brasileiro. A ascensão do liberalismo econômico como doutrina hegemônica global – sob a égide do Consenso de Washington – somou-se ao descontentamento doméstico com os resultados medíocres do modelo desenvolvimentista observados na “década perdida”. Não parece exagero dizer que a aceleração inflacionária e o baixo crescimento criaram uma insatisfação quase que generalizada no país. O esgotamento decretado desse padrão abriu espaço para ascensão do modelo neoliberal.

De forma simplificada, foi assim que se deu a passagem da convenção do crescimento para a convenção da estabilidade, como originalmente proposto por Castro (1993). Essa transição de padrões de desenvolvimento – que permeou vários governos durante cerca de duas décadas – é o pano de fundo da discussão sobre as convenções do desenvolvimento na obra de Erber.6 Nesse sentido, ele explora e aprofunda as complexidades por trás da dicotomia fundamental proposta por Castro.

Mais precisamente, Erber (2008c; 2008d; 2009; 2010; 2011) usa o conceito de convenção de desenvolvimento para analisar, especificamente, o governo do Presidente Lula, cujo início foi marcado por uma situação de extrema incerteza. Ele foca o embate entre duas convenções: uma chamada de “institucionalista”; e outra de “neodesenvolvimentista”.

A primeira mostrou-se hegemônica, ainda que a segunda também tenha exercido influência no governo Lula, como detalhado a seguir. Erber (2011, p. 31-32) também identifica coexistência de duas outras convenções: a “neoliberal”, que, apesar de ter perdido força após as crises dos anos 1990 [Erber (2012)], destaca-se na crítica ao intervencionismo do governo Lula; e a “novo-desenvolvimentista”, de inspiração pós-keynesiana e que se opõe frontalmente ao chamado tripé macroeconômico – metas de inflação e fiscais e câmbio flutuante.

A convenção institucionalista permeia os discursos e documentos do Banco Central do Brasil (BCB) e do Ministério da Fazenda e se fundamenta em um referencial teórico neoclássico e na chamada nova economia institucional [North (1990)]. Ela se assenta no mito de uma sociedade competitiva e meritocrática, em que o livre-mercado e as instituições corretas assegurariam a eficiência econômica, principalmente do ponto de vista alocativo. A eficiência distributiva seria fortalecida por investimentos em capital humano (educação) e programas sociais focalizados, como preconizado pelo Banco Mundial. 

As forças de mercado – amparadas em um sistema de preços que sinalize corretamente as escassezes relativas – gerariam uma alocação eficiente de recursos que, por sua vez, asseguraria o crescimento econômico. As instituições, materializadas em normas e organizações, favoreceriam o bom funcionamento dos mercados. A garantia dos direitos de propriedade e dos credores (como a Lei de Falências) e a redução dos custos de transação são, igualmente, tidas como essenciais ao desenvolvimento. De forma geral, preconiza-se a realização das reformas institucionais de segunda geração, i.e. pós-Consenso de Washington.

Merece destaque a crença de que níveis reduzidos de inflação (ao garantir o bom funcionamento do sistema de preços) são precondição fundamental para o desenvolvimento. De fato, o BCB desempenhou papel absolutamente crucial e seu presidente assumiu status de ministro no governo Lula. É uma organização – estruturada com base no modelo agente-principal – que deve ser independente do sistema político (mas não do mercado financeiro, como mostrado adiante) para evitar a tentação profana de acionar o viés inflacionário. A estabilidade de preços torna-se sagrada, considerada um “bem em si mesmo”, conforme o presidente do Banco Central americano, Ben Bernanke.

A convenção institucionalista, apesar de sua hegemonia, foi adotada de forma apenas restrita, privilegiando-se o controle da inflação. Assim, no topo da agenda do governo Lula figurou estabilidade de preços, perseguida como objetivo fundamental. A política macroeconômica centrou-se no combate à inflação, conferindo-se ao tripé de política econômica um caráter assimétrico: a política monetária (metas de inflação) condicionou e restringiu as políticas cambial e fiscal.

As altas taxas de juros atraíam capitais externos – em busca de ganhos de arbitragem – contribuindo, assim, para a valorização do real. A valorização do real, por sua vez, facilitava o controle da inflação. Assim, o câmbio tornou-se um dos principais canais de transmissão da política monetária. De fato, fomos recordistas mundiais em termos de taxas de juros (reais), e o real foi uma das moedas que mais valorizou, durante o governo Lula.7 Grosso modo, as metas fiscais eram cumpridas por meio da contenção dos gastos, notadamente de investimento. Eventuais conflitos entre o controle da inflação e os demais objetivos macroeconômicos (como o crescimento econômico e a redução do desemprego) eram resolvidos em prol do objetivo sagrado da estabilidade de preços.

Como bem ressalta Erber (2011), apesar de a estabilidade de preços ser apresentada como um bem em si mesmo com característica de um bem público – de cujos benefícios ninguém é excluído –, a política econômica adotada (fundamentada no tripé assimétrico) não era neutra do ponto de vista distributivo, apresentando ganhadores e perdedores muito bem definidos.

Dentre os perdedores, destacam-se os devedores e os demandantes de crédito. O Estado, maior devedor individual, gastou em média cerca de 6% do PIB ao ano com o pagamento de juros da dívida pública. Os demandantes de crédito privado também perdem. O sistema financeiro torna-se pouco funcional, privilegiando as operações com títulos públicos. O resultado é uma alta concentração (no total dos ativos do sistema financeiro) de ativos de curto prazo, alta liquidez e rentabilidade. Consequentemente, fica comprometido o financiamento do investimento (produtivo e em inovação), essencial às transformações estruturais subjacentes ao desenvolvimento. Entre os ganhadores, ressaltam-se as unidades superavitárias, de uma forma geral, e o sistema financeiro em particular, cujas receitas se concentram nos elevados ganhos com operações de tesouraria. Erber (2011) ressalta que o lucro líquido dos bancos brasileiros triplicou, tendo sua taxa de lucro saltado de 15% para 23%, entre os anos de 2003 e 2007. As famílias mais ricas também se beneficiam: as empresas não financeiras e os indivíduos receberam em média 80% das rendas financeiras, entre 1995 e 2005, segundo dados apresentados por Bruno (2007).

Mas essa convenção não é benéfica apenas para o sistema financeiro e os rentistas. Em linha com a lógica da financeirização – que marca o país no período analisado –, as empresas do setor produtivo, principalmente as com alta geração de caixa, também se beneficiam do binômio juros altos-câmbio valorizado, ao obter ganhos financeiros polpudos com a aplicação de seu caixa. Destacam-se os industriais produtores de bens intermediários; produtores e comercializadores de commodities; atacadistas; cadeias de lojas de bens de consumo, por exemplo. A elevada exposição da Aracruz e da Sadia a derivativos cambiais (vinda à tona em fins de 2008) ilustra bem esse fato.

Erber assinala que, por sua vez, a valorização do real é um subproduto da política monetária, dela não podendo se dissociar: “[A] valorização do câmbio é irmã siamesa dos juros altos” [Erber (2011, p. 43)]. Os importadores de bens e serviços se favorecem largamente, ao passo que os produtores domésticos e exportadores se prejudicam com a valorização do real. Em conjunto, os juros altos e o câmbio valorizado também beneficiam aqueles que têm acesso ao mercado de crédito internacional e os remetentes de recursos para o exterior (sob a forma de investimentos, remessas de lucro, dividendos etc.). 

Em suma, apesar de apresentada como benéfica a todos, visando ao bem comum, a estratégia de estabilização – centrada no binômio juros altos-câmbio valorizado – não era neutra do ponto de vista distributivo, gerando ganhadores e perdedores claramente estabelecidos.

A chamada convenção neodesenvolvimentista coexistiu, ainda que de forma subordinada, com a convenção institucionalista – que foi hegemônica no período. Suas diretrizes encontram-se no Plano Plurianual de Aplicações (PPA) 2003-2007 e na Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE). Ela foi reforçada com a mudança no comando do Ministério da Fazenda (marcada pela saída do Ministro Palocci) e a reeleição de Lula, em 2006. Fundamentava-se em cinco pilares:

  1. investimento em infraestrutura (notadamente energia, logística e saneamento), destacando-se o papel das estatais e do financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES);
  2. investimento residencial, baseado em crédito público e privado, com vistas a reduzir o déficit habitacional;
  3. círculo virtuoso entre elevação do consumo – em razão do aumento do salário mínimo, das transferências e do emprego formal – e investimento em capital fixo e inovação;
  4. investimento em inovação, com subsídios e incentivos fiscais; e
  5. política externa independente, privilegiando as relações com os países em desenvolvimento.

Seu referencial teórico é de natureza keynesiana, conferindo-se ao Estado e às políticas públicas um papel crucial. Destaca-se a busca de um círculo virtuoso entre aumento de renda das camadas mais pobres – capitaneado por políticas públicas de transferência de renda e a recomposição do salário mínimo – e investimentos estratégicos liderados pelo Estado.

Em oposição ao caráter mais liberal da convenção institucionalista, o Estado tem função estratégica na implementação de seus cinco pilares. Particularmente o papel desempenhado pelo setor público nos dois primeiros e no último pilar aproxima essa convenção da antiga convenção desenvolvimentista. Por outro lado, essa convenção, apesar de compartilhar elementos do novo-desenvolvimentismo, dele se distancia em um ponto crucial: a aceitação do tripé macroeconômico. 

A convenção neodesenvolvimentista apoia-se no mito de uma sociedade cooperativa e inclusiva. Ampara-se na busca de um pacto social e nas metáforas do Presidente Lula que comparam a sociedade a uma família e interpreta os problemas econômicos baseado na lógica da economia do lar. O papel de destaque na agenda do governo Lula exercido pelas políticas de inclusão social (pela redução da pobreza e materializado no terceiro pilar) distancia essa convenção tanto da antiga convenção desenvolvimentista quanto da neoliberal.

Por fim, cabe notar que a relação entre as convenções institucionalista e neodesenvolvimentista é dialética. Por um lado, elas se se antagonizam em aspectos fundamentais. Por outro, elas se fortalecem mutuamente.8 Conforme Erber (2011), a principal “ponte” entre elas é a fé na capacidade purgatória da estabilidade de preços – obtida, por sua vez, pelo tripé de política econômica. Assim, sob a hegemonia de uma convenção da estabilidade – que serve a ambas as convenções (institucionalista e neodesenvolvimentista) – elas se reforçam e asseguram o status quo, atendendo, assim, a uma “ampla gama de interesses”. Em suas palavras: 

Existem, porém, “pontes” entre as duas convenções, que reduzem os conflitos entre elas e, ao mesmo tempo, consolidam a hegemonia da convenção de estabilidade. Entre estas, destaca-se a percepção de que os “pobres” tendem a ser os mais prejudicados em períodos de alta inflação e o sucesso político das políticas de inclusão, que, obtido com baixo custo fiscal e taxas de crescimento relativamente restritas, reduz a importância de altas taxas de crescimento como instrumento de legitimação política […] e permite a conciliação entre as duas convenções. […] a convivência entre as duas convenções se estabelece sob a hegemonia da convenção institucional restrita, assegurada pelo controle do tripé de políticas macroeconômicas e pelo fato das políticas neo-desenvolvimentistas não ferirem os interesses representados pela convenção institucionalista restrita, desde que as políticas em que esta última se materializa sejam mantidas. A combinação entre as duas convenções atende a uma ampla gama de interesses, que a torna muito forte […] [Erber (2011, p. 51; grifos meus)].

Na próxima seção, será visto como o conceito de convenção do desenvolvimento tem sido aplicado especificamente na análise da política monetária brasileira contemporânea, caracterizada pelas maiores taxas de juros reais do planeta. Será dado destaque à força da convenção da estabilidade, que preconiza o conservadorismo que marca a condução da política monetária recente.

4. O problema das taxas de juros no Brasil sob a ótica das convenções 

Um dos legados da obra de Erber foi o uso do conceito de convenção do desenvolvimento na explicação do chamado problema da taxa de juros no Brasil [Modenesi e Modenesi (2012)]. Bresser e Nakano (2002) foram precursores na aplicação da ideia para explicar o excesso de rigidez monetária praticado no país desde o lançamento do Plano Real – período em que, grosso modo, se observaram as maiores taxas de juros reais do mundo.9 No entanto, eles não desenvolveram o tema, apenas propondo que: “[d]epois da persistente manutenção da taxa de juros em nível muito elevado é natural que surja o medo de redução, e que esse nível se torne uma convenção” (p. 169).

Erber (2011) contribui decisivamente para o aprofundamento da tese de que há uma convenção favorecendo o conservadorismo na condução da política monetária no Brasil. Segundo ele, a excessiva rigidez monetária deveria ser explicada pelo viés da economia política. Assim, as altas taxas de juros não configurariam problema de natureza exclusivamente macroeconômica. Elas seriam o resultado de uma influente coalizão de interesses formada em torno da manutenção dos juros em níveis elevados e da resultante valorização do real.

Como já visto, Erber destaca, com propriedade, a não neutralidade da política econômica adotada no governo Lula. Ele identifica a existência de uma ampla e poderosa “coalizão de interesses” enraizada em torno do binômio juros altos-valorização cambial. A coalizão é benéfica não só para os rentistas – que lucram com aplicações financeiras – e seus demais beneficiários (ver seção anterior), como também para o próprio BCB, que se beneficia da reputação de ser um banco central conservador ou extremamente avesso à inflação. Assim, não se trata de uma típica situação em que o agente, o BCB, é capturado pelo principal, os rentistas. Em suas palavras:

[e]xiste, pois, uma ampla e poderosa constelação de interesses, estruturada ao longo do tempo em torno à combinatória altos juros-câmbio valorizado, que estabeleceu uma convenção que estes elementos são essenciais para o desenvolvimento do país. […]. Esta coalizão de interesses tem poderosos instrumentos para consolidar e difundir sua convenção de desenvolvimento. O mais explícito está nas mãos do sistema financeiro […]. Mas há outros […] como o financiamento de campanhas políticas, as relações com os membros do Congresso, os “anéis burocrático-empresariais” […] e as relações com a mídia […]. O Banco Central é um membro necessário desta coalizão […]. Para o estabelecimento da coalizão e da convenção que lhe serve de representação social, basta que o Banco Central e os membros privados derivem benefícios conjuntos da mesma política – no caso, o prestígio de cumprir as metas e os lucros derivados dos altos juros e do câmbio valorizado [Erber (2011, p. 43)].

Cabe notar que os economistas mais ortodoxos têm certa dificuldade em assimilar o correto significado dessa tese – provavelmente por ela transcender a teoria econômica, dado seu caráter eminentemente sociológico. Ela, também, não pode ser formalizada em um modelo teórico abstrato, em que o tempo histórico e as relações sociais e políticas são irrelevantes – prática corrente entre os economistas do mainstream. Assim, é comum ver essa tese apresentada de forma totalmente distorcida. Por exemplo, Schwartsman (2011) interpreta-a como se ela simplesmente sugerisse haver uma “conspiração” dos analistas do Boletim Focus visando “induzir o BC a definir uma trajetória da taxa de juros mais alta do que a estritamente necessária”. É verdade que o Focus é um dos elementos usados, para manter o status quo, por parte dos beneficiários da convenção – inclusive o BCB, como mostrado por Guimarães (2008; 2009). Porém, a tese não se reduz a uma mera “conspiração”.10

É legítimo dizer que Erber inaugurou uma linha de pesquisa focada na economia política da política monetária brasileira contemporânea. A partir de sua contribuição, Correa (2010), Oreiro (2012) e Seabra e Dequech (2013), por exemplo, aproximam a tese da convenção sobre a taxa de juros da formulação de Keynes. Modenesi et al. (2013), assim como Erber, usam as abordagens, de Keynes (e pós-keynesianos) e dos convencionalistas franceses, de forma explicitamente convergente. Eles propõem que a estratégia de condução da política monetária, de forma geral, e a fixação da taxa Selic, em particular, são governadas por convenções.

No campo mais empírico, os parâmetros da função de reação estimada por Modenesi (2008; 2011) e por Modenesi, Martins e Modenesi (2013) ratificam a visão de que o BCB foi altamente conservador. De maneira geral, os resultados evidenciam uma excessiva lentidão nos movimentos da Selic e um elevado patamar da taxa de juros de equilíbrio. Chernavsky (2007; 2008) também apresenta evidência empírica favorável à tese da convenção.

Com as mudanças na política econômica – especialmente na estratégia de combate à inflação – iniciadas no fim do governo Lula (notadamente em fins do ano de 2010) e aprofundadas no governo Dilma (após o ano de 2012), a contribuição de Erber mostrou-se uma relevante explicação para as altas taxas de juros no Brasil. Ficou claro que os juros altos refletiam muito mais uma questão pertencente ao âmbito da economia política do que qualquer outra tese poderia prever.11

De fato, pode-se dizer que não havia um genuíno impedimento macroeconômico para a queda dos juros. Não houve crise bancária, tampouco se verificou uma fuga de capitais. A alta inflação crônica não voltou. Além disso, não foi preciso uma drástica reorientação na política fiscal, como proposto pelos defensores da visão fiscalista – uma das explicações mais populares para o problema. Assim, os juros reais – de curto e de longo prazo – caíram refletindo, em última instância, uma decisão política da Presidência da República, sem que maiores desequilíbrios macroeconômicos ameaçassem o sucesso da nova política monetária. Nesse sentido, a tese de Erber foi corroborada.

Por um lado, o BCB reduziu a Selic de forma absolutamente inédita – e a manteve em um mínimo histórico – sem que a inflação se distanciasse de forma significativa da média do período pós-Plano Real.12 Por outro, a virulência da reação contrária à redução considerada “inesperada” da Selic – sobretudo pelos representantes do mercado financeiro – revela o papel e a força da convenção pró-conservadorismo prevalecente na política monetária brasileira, como mostrado a seguir.

Segundo Modenesi, Martins e Modenesi (2012), a nova postura do BCB concretizou-se em corte, não previsto pelo mercado financeiro, de 50 pontos percentuais na taxa Selic, na reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) de agosto de 2011. Esse movimento gerou pesadas perdas para a maioria dos operadores do mercado de Depósito Interfinanceiro (DI), que apostava na manutenção dos juros. O BCB contrariou, frontalmente, o chamado “consenso” (ou a convenção) de mercado, antecipando em cerca de três meses a redução da Selic implícita no Swap DI, verificando-se forte ajuste nas posições no mercado de juros futuros.

Esses autores bem notam que essa decisão se baseou em quadro inflacionário mais benigno, marcado por: (i) ameaça de recrudescimento da crise europeia e consequente manutenção dos juros internacionais em patamares mínimos históricos; (ii) arrefecimento da atividade econômica doméstica; e (iii) reaproximação da inflação ao centro da meta. Além disso, eles ressaltam a contribuição do Ministério da Fazenda, que atuou de forma mais coordenada com o BCB, ao elevar a meta de superávit primário; e, especialmente, ao alterar os rendimentos da caderneta de poupança, removendo uma espécie de piso que dificultava a queda da taxa Selic.13

Somem-se a isso mais dois elementos cruciais para a queda dos juros. Primeiro, a diversificação dos instrumentos de política monetária – com o uso de medidas macroprudenciais e de controle de crédito. Finalmente, as medidas de combate à inflação de custo recentemente adotadas, com destaque para a desoneração da folha de pagamentos; e a redução no preço de energia elétrica.

A despeito de bem fundamentada, a decisão de reduzir a Selic gerou uma onda de críticas, particularmente dos participantes do mercado financeiro (doméstico e internacional). A “ampla e poderosa constelação de interesses” estruturada em torno dos juros altos (e do  câmbio valorizado) mobilizou-se na defesa de sua visão de mundo e de sua agenda (tanto positiva quanto negativa).14 Apesar do momento de crise, eles pediam mais do mesmo e rechaçaram as mudanças de forma agressiva.

Conforme Nakano (2011), os porta-vozes do sistema financeiro vieram a público lamentar a quebra de “protocolo”, da “liturgia” e a subversão dos “princípios mais valiosos” do regime de metas de inflação, o que teria deixado o mercado financeiro “perplexo”. Os bancos estavam “acostumados a uma relação, no mínimo, promíscua”, na qual o BCB meramente sancionava as expectativas de inflação (reveladas pelo Focus) e de taxa de juros (expressas nos contratos do Swap DI). Segundo o autor, esse protocolo foi rompido, e o “BC finalmente tornou-se independente” do mercado financeiro. Assim, “[é] compreensível que aqueles que ganham com juros elevados defendam os ‘princípios valiosos’ da atual regra” (p. A-15).

Nas manifestações de espanto e inconformidade, destacam-se dois artigos cujos títulos revelam o intuito de deboche: “Cortes em ritmo de samba” [Olivares (2011)] e “Adeus à regra de Taylor e bem-vinda a regra Rousseff” [Schmidt (2011)]. Jensen e Ribeiro (2012), por sua vez, fizeram alarme: “Em algum momento o governo vai se defrontar com escolhas difíceis. A inflação poderá se desgarrar da meta […]. Na melhor hipótese, o tripé é retomado. Na pior, aprofundam-se os assassinatos institucionais […]” (p. A-29).

Radical foi a reação de Franco (2011), ex-presidente do BCB. Ele atacou a mudança na política monetária e, dissimuladamente, a pessoa do ministro da Fazenda. Começou sugerindo o deixa-como-está-pra-ver-como-é-que-fica, desastrosamente já experimentado na crise do subprime, materializado no chamado erro de Meirelles.15 Ele advertiu que, antecipando-se à crise, o BCB acaba “deixando a forte impressão de que os senhores do Copom sabem mais do que o mercado”. Afinal, veio engrossar não somente o batalhão dos descrentes com a crise, mas também a ladainha das “viúvas” que se beneficiavam da antiga liturgia. À beira já do misticismo, pontificou: “[e]sses mistérios – e não há quem se atreva a contestar o tamanho dos riscos de que fala o BCB – suspenderam as considerações habituais que compõem a liturgia do regime de metas” (p. A-14).

É importante notar que os que se opuseram mais radicalmente a essa mudança de rumo na política monetária foram, particularmente, os participantes e representantes do mercado financeiro. Antes de tudo, os operadores alavancados do DI que apostaram na direção errada e amargaram pesadas perdas. Nesse caso, o conflito de interesse é explícito e inequívoco: a queda “inesperada” nos juros gerou prejuízos para aqueles que apostaram na manutenção das altas taxas de juros. Ao criticar o BCB, eles estavam meramente defendendo ou justificando suas posições em contratos de Swap DI. Naturalmente, isso não é feito de forma explícita. Antes pelo contrário, busca-se travestir os interesses de um grupo específico como se visassem ao bem comum.

Engrossando o coro dos descontentes, seguiram-se, por dever de ofício, os analistas de mercado (economistas chefes, chefes de departamento de “pesquisa” e estrategistas das instituições financeiras), agindo como genuínos defensores dos interesses do mercado financeiro. A atuação desse grupo assemelha-se à de um conjunto de lobistas a defender a “visão de mundo” e os interesses do sistema financeiro.

Visto sob outro ângulo, a maioria das críticas (e, particularmente, as mais pesadas) não veio dos investidores, dos poupadores, muito menos da grande maioria dos empresários dos setores produtivos, sobretudo os pequenos e médios.

A despeito da intensa reação contrária, cabe ressaltar o posicionamento favorável de dois economistas com inequívocas credenciais ortodoxas, P. Arida e S. Werlang, respectivamente ex-presidente e ex-diretor do BCB. Arida aprova a nova política anti-inflacionária, revelando a expectativa de que já se estava dissipando a reação negativa provocada pela mudança da prática “tradicional”:

Quando o BCB e a Fazenda começaram a praticar as medidas macroprudenciais e a restrição ao ingresso de capitais, o mercado recebeu as iniciativas com relativo ceticismo. Queriam que o BC praticasse o tradicional, isto é, que elevasse os juros […]. Eu mesmo usei medidas dessa natureza, em 1995 […]. Os mercados estão pessimistas, eu sei, mas, e digo por experiência própria, criticar é fácil, fazer melhor é difícil. […] E havia muito alarmismo com as macroprudenciais. Agora, esse alarmismo se desfaz, porque os resultados estão sendo entregues [Valor Econômico (2011, p. A-14; grifos meus)].

Sua análise merece destaque. Primeiro, por seu pessoal reconhecimento do acerto das mudanças. Segundo, pela identificação da resistência (e do alarmismo) de se romper com a convenção de que a Selic tem que se manter elevada a qualquer custo – para impedir a volta da alta inflação, ainda presente na memória coletiva do brasileiro.

Finalmente, Werlang reconheceu que o governo tinha acertado ao reduzir a Selic e, sobretudo, ao vir mudando a estratégia de controle da inflação: “Eu achei muito positivo […] a ideia de usar a política fiscal também para combater a inflação. Essa combinação de mais política fiscal e menos política monetária […] é boa” [Valor Econômico (2012, p. A-10)].

Em suma, as recentes alterações na política anti-inflacionária ilustram bem a tese de Erber sobre a relevância das convenções de desenvolvimento na explicação para o problema das taxas de juros no Brasil. Para além das tecnicalidades macroeconômicas, o viés da economia política mostra-se fértil, além de poderoso do ponto de vista explicativo.

5. Considerações Finais 

Ainda que Erber tenha tratado mais especificamente do tema somente no fim de sua carreira, o conceito de convenção é elemento crucial a seu objeto de estudo, o desenvolvimento econômico. Sua análise vai muito além das políticas econômicas e de seus efeitos sobre a produtividade, a produção, o emprego, a renda etc. O desenvolvimento é entendido como um fenômeno multifacetado em que a dimensão econômica – tanto micro quanto macro – não se dissocia de seus vieses sociológico e político.

Partindo-se desse princípio, Erber inaugurou uma linha de pesquisa focada na economia política da política monetária brasileira contemporânea. As recentes mudanças na estratégia de combate à inflação ilustram e, mais do que isso, corroboram sua tese sobre a relevância das convenções de desenvolvimento para explicar o problema das taxas de juros no Brasil. Para além das questões macroeconômicas, o viés da economia política mostra-se fértil e poderoso do ponto de vista explicativo.

Talvez a principal contribuição de Erber no desenvolvimento do tema foi mostrar que a crença de que uma determinada convenção de desenvolvimento se materializa em um “projeto nacional” que visa ao “bem comum” é algo tão utópico quanto acreditar na “vontade geral” de J. J. Rousseau. Na realidade, uma convenção de desenvolvimento atende a interesses constituídos especificamente – em uma determinada sociedade e um dado momento histórico – que afetam os diversos atores sociais e/ou grupos de interesse de forma diferenciada:

Embora sejam sempre apresentadas como “projetos nacionais” que levam ao “bem comum”, refletem, na verdade a distribuição de poder econômico e político prevalecente na sociedade, num determinado período. […] nenhuma convenção de desenvolvimento consegue acomodar a todos [Erber (2011, p. 36; grifos meus)].

Essa é uma lição especialmente relevante para os jovens economistas contemporâneos: a cientificidade e a neutralidade tão almejadas pelo mainstream da profissão de economista são uma utopia.

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Nota do autor

Registro a importante contribuição de Rui Lyrio Modenesi e de Norberto Montani Martins. Este capítulo se beneficiou largamente de nossas discussões e, em certo sentido, é também um dos frutos do trabalho conjunto por nós desenvolvidos sobre o tema. Particularmente a terceira seção reproduz algumas ideias contidas em Modenesi, Martins e Modenesi (2012). Agradeço também os comentários de Luiz Carlos Prado e a pesquisa bibliográfica realizada por Hellen Lima.

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Macro and micro issues related to natural...

1. Fabio

Lifelong consistency with one's own ideals and values is probably one of the more important – and harder to achieve – qualities human beings can have. This is exactly how I come to think of...