Defesa da concorrência e desenvolvimento: notas sobre o debate e sua aplicação no caso brasileiro

Luiz Carlos Delorme Prado, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

This paper discusses the political economy of the antitrust legislation that was approved as a part of the liberal reforms made by Brazilian government in the 1990s. The paper makes a comparison between the liberal institutional reforms, mainly in the Fernando Henrique Cardoso government, and the macroeconomic structural adjustment imposed by the dynamics of the external debt negotiation agenda.

1. Considerações Iniciais

Em 2008, um influente grupo de acadêmicos, advogados e economistas, renomados especialistas em antitruste nos Estados Unidos, publicou um livro, organizado pelo professor Robert Pitofsky, no qual manifestavam seu incômodo com a direção das interpretações e do enforcement do direito antitruste naquele país. Nesse sentido, declaravam:

[…] uma sensação de desconforto com relação à direção das interpretações e implementação da legislação antitruste. Em particular, preocupa-nos a preferência por modelos econômicos sobre fatos, a tendência de assumir que os mecanismos de livre mercado curam todas as imperfeições de mercado, a crença de que só a eficiência importa, grandes erros em termos de doutrina, mas, acima de tudo, a falta de apoio à implementação rigorosa e a disposição das autoridades de aprovar transações questionáveis se houver um mínimo de defesa [Pitofsky (2008, p. 5)].1

Mas, apesar dessas manifestações, nas últimas duas décadas houve grande ampliação da legislação antitruste e foram criadas instituições para a implementação de políticas de defesa da concorrência em grande número de países na Ásia, nas Américas e até mesmo na África. Em alguns casos, países com frágeis aparatos estatais e escassez de recursos humanos especializados usaram extensivamente consultores de países industriais avançados, notadamente dos Estados Unidos, para implantar leis copiadas, em grande parte, dos países originários das consultorias.

Por outro lado, alguns autores influentes eram, por diversas razões, céticos quanto à eficácia de política antitruste em países em desenvolvimento. Dessa forma, Laffont sustentava:

Concorrência é, inequivocamente, uma coisa boa no mundo ideal dos economistas. Esse mundo tem como premissas grande número de participantes em todos os mercados, ausência de bens públicos, ausência de externalidades, ausência de assimetria de informações, ausência de monopólios naturais, mercados completos, agentes inteiramente racionais, um sistema judiciário efetivo para a implementação de contratos e um governo eficiente para transferir quaisquer ganhos fixos (lump sum) para alcançar uma redistribuição desejada. Uma vez que os países em desenvolvimento estão longe do mundo ideal, não é sempre desejável encorajar concorrência nesses países [Laffont (1998)].2

Na opinião desse autor, alguma forma de política industrial, combinada com o que chama de expert advice, poderia ser a melhor estratégia para promover desenvolvimento. Nessa linha, o autor sustenta que o controle de cartéis internacionais que afetariam países em desenvolvimento deveria ser realizado por meio de uma política internacional de defesa da concorrência.

Em uma linha um pouco diferente, mas igualmente cética quanto à aplicação das políticas antitruste tradicionais para os países em desenvolvimento, na visão de Ajit Singh e Rahul Dhumale, a forma de política de defesa da concorrência implementada para países como os Estados Unidos ou a Grã-Bretanha não é adequada [Singh e Dhumale (1999)]. Esses autores sustentam, entre outros pontos, que a ênfase deveria ser dada mais à eficiência dinâmica do que à eficiência estática e, ainda, que se deveria buscar um nível ótimo de concorrência (e não um nível máximo) para promover o crescimento de longo prazo da produtividade. Finalmente, Singh e Dhumale (1999) defendem que deveriam ser compatibilizadas as políticas industriais com as políticas de defesa da concorrência. 

Mas, apesar de algum recuo na implementação das políticas antitruste nos Estados Unidos e do ceticismo de sua conveniência para os países em desenvolvimento, leis de defesa da concorrência multiplicaram-se no mundo na década de 1990.3 Nos países em desenvolvimento, tais leis foram promulgadas como parte da agenda de reformas de segunda geração, voltadas essencialmente para promover mudanças nas instituições desses países, cuja inadequação explicaria o fracasso das chamadas reformas de primeira geração, implementadas pelas políticas públicas recomendadas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que ficaram conhecidas pelo nome de Consenso de Washington [Prado (2011, p. 324)].

Um fato interessante da história econômica e institucional no Brasil é a existência de iniciativas para a criação de uma legislação antitruste, em uma época em que tais políticas existiam quase exclusivamente nos Estados Unidos e no Canadá. Desde a década de 1930, havia no Brasil debates sobre a necessidade de criar uma legislação antitruste. Nos últimos meses do Estado Novo, em 1945, por meio do Decreto-Lei 7.666, foi até criada uma instituição que tem o nome da atual agência de defesa da concorrência brasileira: Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Com a revogação desse decreto no governo provisório de José Linhares, depois da deposição de Getúlio Vargas, essa legislação ficou suspensa até que, depois de muita controvérsia, foi aprovada outra legislação que novamente criou o Cade, em setembro de 1962.4 No entanto, até a década de 1980, política antitruste, tal como se discutia no país, era vista com desconfiança tanto pelo setor empresarial doméstico quanto por representantes das empresas estrangeiras que operavam no Brasil. 

Na década de 1990, no entanto, houve uma mudança significativa sobre a questão. Anteriormente, política antitruste era discutida na esfera jurídica e defendida pelos críticos das empresas transnacionais. Nos anos 1990, jovens economistas formados nos Estados Unidos ou na Europa, que passaram a desempenhar importantes funções no Estado, após a crise do desenvolvimentismo na década de 1980, começaram a se interessar pelo tema no país. A partir do governo de Itamar Franco e, especialmente, com o governo Fernando Henrique Cardoso, políticas de defesa da concorrência e de regulação econômica foram consideradas elementos essenciais em uma nova estratégia de desenvolvimento.

O objetivo deste artigo é discutir a economia política da criação da legislação de defesa da concorrência no contexto das reformas liberais implementadas no país na década de 1990. As reformas institucionais realizadas principalmente durante o governo de FHC foram produto do interesse doméstico de implementar alterações nas instituições que promovessem um ambiente market friendly. As reformas faziam parte de uma nova agenda de desenvolvimento, que, por sua vez, tinha como fundamento teórico uma nova teoria do desenvolvimento de inspiração neoliberal.

Portanto, sustenta-se que a política de mudança institucional é distinta das reformas macroeconômicas realizadas na primeira metade da década de 1990, que foram essencialmente impostas ao país, como parte da agenda de negociação da dívida externa, nos termos do Plano Brady. Ou seja, embora implementadas domesticamente com base na formulação de economistas brasileiros, elas eram fundamentais para que a dívida externa brasileira fosse renegociada e para que um plano de estabilização monetária fosse bem-sucedido. Por outro lado, embora inspiradas no mesmo modelo, as reformas institucionais que criaram as agências reguladoras e reformularam o sistema brasileiro de defesa da concorrência são resultantes das políticas domésticas, baseadas em uma nova concepção de estratégia de desenvolvimento. Portanto, o tema do trabalho é a relação entre política de defesa da concorrência e política de desenvolvimento no contexto das reformas liberais da década de 1990.5

Além desta introdução, o artigo tem mais quatro seções. Na segunda seção, discutem-se a crise das políticas desenvolvimentistas tradicionais e o surgimento de uma nova agenda de desenvolvimento fundada nas abordagens neoliberais. Na terceira seção, abordam-se as reformas liberais na década de 1990 e a agenda de desenvolvimento neoliberal surgida nesse contexto. A quarta seção analisa a defesa da concorrência no Brasil, em uma abordagem histórica. O objetivo dessa seção é mostrar como a legislação brasileira evoluiu entre a década de 1930 e a década de 1990. A quinta seção discute a difusão internacional das leis de defesa da concorrência e discute como elas foram implementadas nos países em desenvolvimento e no Brasil em particular. A seção termina por mostrar que, no caso brasileiro, tal como na maioria dos países em desenvolvimento, essa legislação foi, essencialmente, produto do convencimento, ou seja, da difusão das ideias neoliberais e não da pressão internacional por reformas econômicas.

2. Políticas de desenvolvimento: das visões desenvolvimentistas às políticas neoliberais 

Gerald Meier, um dos primeiros professores de desenvolvimento econômico, afirmava que essa área é, simultaneamente, uma das mais antigas e uma das mais atuais da economia [Meier (1985, p. 3)].6 Lembrava esse autor que as principais questões tratadas pelos economistas clássicos, as raízes do crescimento econômico e o processo de mudança econômica de longo prazo, são hoje investigadas pela disciplina que chamamos desenvolvimento econômico.7 Depois dos clássicos, durante um longo período, o tema foi abandonado.

Até a década de 1930, tanto a teoria neoclássica quanto a nascente economia keynesiana preocupavam-se com outras questões.8 Na década de 1940, no entanto, surgiu uma literatura que discutia as implicações da crescente divergência nos níveis de renda entre um grupo de países que tinham passado por rápidas transformações estruturais e o resto do mundo.

Esses autores observaram que, embora esses países economicamente atrasados se mantivessem presos na armadilha da estagnação malthusiana, isso não implicava que não tinham sido afetados pelas mudanças nas economias centrais. Ao contrário, esses teriam sido integrados como periferia do núcleo dinâmico da economia mundial. Percebiam, portanto, que a produção acadêmica existente não tratava das questões enfrentadas por essas economias, as quais passaram a ser chamadas de subdesenvolvidas.9

Nas décadas seguintes, até a crise da teoria do desenvolvimento na década de 1970, as razões do atraso econômico e as estratégias para superá-lo foram intensamente discutidas. Na década de 1970, o tema perdeu parte de seu glamour, ou seja, deixou de ser considerado high theory, nos principais centros de produção teórica. Até mesmo um autor progressista como Krugman considerou os programas de pesquisa de desenvolvimento difusos, por não formarem um corpo teórico consistente e carecerem do uso de instrumental analítico para comunicar suas ideias aos economistas contemporâneos.10 Analisando as razões desse abandono, Albert Hirschman, com sua tradicional capacidade analítica para identificar processos sociais, propôs a tese, em um conhecido artigo publicado em 1981, no calor da crise desse campo de conhecimento, de que a decadência da teoria do desenvolvimento foi o resultado da estranha coalizão entre o neomarxismo e a monoeconomia [Hirschman (1981)].

Para esse autor, os dois pilares da teoria do desenvolvimento eram: (i) a crítica à ideia de monoeconomismo, isto é, a teoria que sustentava que as leis econômicas podem ser aplicadas igualmente em economias desenvolvidas e subdesenvolvidas; e (ii) a ideia de benefício mútuo, isto é, a concepção de que as relações econômicas entre essas economias poderiam ser administradas de forma a gerar benefício para ambos. Para Hirschman, o ressurgimento do liberalismo repudiava essa abordagem ao reafirmar que só havia uma teoria econômica aplicável a países desenvolvidos e em desenvolvimento. Para esses liberais, as políticas heterodoxas agravavam o problema que queriam resolver.11 Por outro lado, autores como Gunder-Frank e outros integrantes da visão mais extrema da corrente dependentista manifestavam seu crescente ceticismo sobre a possibilidade de superação do subdesenvolvimento por meio das políticas públicas defendidas pelos economistas desenvolvimentistas [Prado (1993)]. Nesse contexto, a teoria do desenvolvimento teria perdido a sustentação por autores à esquerda e à direita do espectro político, acabando por ser abandonada.

Na década seguinte, a antiga teoria do desenvolvimento não encontrava mais apoio no mundo acadêmico e era desacreditada no campo da política econômica. A década de 1980 foi marcada pela ascensão de teóricos do neoliberalismo e pelo abandono das políticas econômicas desenvolvimentistas em países afetados pela crise da dívida externa. Nessa década, a teoria do desenvolvimento, já enfraquecida pelas razões apontadas por Hirschman, sofreu, no plano teórico, ataques vigorosos de Deepak Lal. Além disso, as políticas econômicas desenvolvimentistas foram, também, duramente atacadas por Anne Krueger, economista-chefe do Banco Mundial entre 1982 e 1987. Deepak Lal, que presidiria futuramente a famosa Mont Pèlerin Society, publicou em 1983 um influente livro intitulado The poverty of development economics, em que criticava o que chamava de “dogma dirigista”.12 Krueger substituiu Hollis B. Chenery, que ocupava a função desde 1972, marcando a transformação intelectual do Banco Mundial para uma instituição dominada por ideias neoliberais.13 Essa economista foi autora de numerosos artigos e livros em que criticava as abordagens tradicionais de política de desenvolvimento e recomendava políticas públicas market friendly para países em desenvolvimento.14

Portanto, a teoria do desenvolvimento – surgida na década de 1940 com o objetivo de promover crescimento com mudança estrutural, produto de uma ordem econômica otimista, influenciada pela visão de mundo keynesiana, que acreditava na capacidade de intervenção do Estado para corrigir falhas de mercado – foi definitivamente abandonada na década de 1980. Por outro lado, nesses anos, a discussão sobre desenvolvimento foi ocupada pelos modelos de crescimento endógenos, tais como os desenvolvidos por Romer (1986) e Lucas (1988). Tais modelos tinham como objetivo discutir os mecanismos de convergência econômica (ou sua ausência) entre economias com diferentes níveis de renda. Segundo eles, diferentemente da visão dos modelos de crescimento neoclássicos de Solow, havia externalidades positivas na acumulação de capital.15 Tais modelos não tratavam de mudança estrutural e ainda abandonavam completamente a tradição keynesiana de considerar a existência de um caso especial, aplicado ao país desenvolvido, e um caso geral, aplicado ao país em desenvolvimento.

No fim da década, no entanto, uma nova teoria do desenvolvimento passou a dominar a agenda dos organismos internacionais e começou a influenciar as políticas públicas nos países em desenvolvimento. Esse ressurgimento veio de uma fonte inesperada. Suas linhas gerais já vinham sendo propostas por autores como Krueger.16 A crise econômica dos países em desenvolvimento na década de 1980, como resultado da instabilidade financeira internacional na década anterior, foi imputada pelas autoridades que controlavam os organismos internacionais ao erro das políticas de desenvolvimento empreendidas pelos países periféricos. Nesse contexto, foram propostas novas políticas de desenvolvimento, inspiradas pela nova ortodoxia que se estruturava para substituir a ordem econômica keynesiana, que vinha sendo rapidamente desmontada. Essa nova ortodoxia passou a ser conhecida popularmente como neoliberalismo.

Neoliberalismo não é um conceito usado por seus defensores e não é um bom nome para o fenômeno histórico que descreve. O termo foi originalmente proposto na década de 1930 pelo economista alemão Alexander Rüstow para descrever as novas correntes liberais que davam prioridade ao mercado, como alternativa a uma estrutura burocrática e hierárquica de ordenação da economia [Gamble (2006 p. 21)]. Essas correntes eram, normalmente, associadas à Escola Econômica de Friburgo e tinham como sua principal formulação a ideia de economia social de mercado. Essa abordagem, também conhecida como ordoliberalismo, pretendia promover uma ordem econômica baseada no mercado, mas condicionada aos pressupostos de dignidade humana e liberdade, sob uma moral universal kantiana.17 O conceito tomou outro sentido quando passou a ser usado pelos opositores das políticas liberais radicais praticadas pelos jovens economistas, formados em Chicago, que assumiram as principais funções econômicas na ditadura de Augusto Pinochet.18

Por ser usado de forma ambígua, neoliberalismo pode ser adequadamente descrito como um essentially contested concept, como W. B. Gallie chamou a classe de conceitos que, entre outras características, envolve disputas infinitas sobre seu emprego por seus usuários.19 No entanto, apesar da controvérsia em torno de seu uso, esse conceito revela um fenômeno real e relevante de ser descrito. Uma vez devidamente qualificado, o conceito ajuda a compreender o debate, a partir da década de 1970, sobre políticas públicas, tanto no mundo acadêmico quanto na esfera política.

A partir dessa década, uma série de crises financeiras internacionais, que decorreu do fim do sistema de Bretton Woods, interrompeu o longo período de prosperidade nos países industriais avançados. O fim da prosperidade abriu espaço para a crítica do keynesianismo e para a ascensão de novas correntes econômicas liberais. Entre essas novas abordagens, podem-se destacar, em macroeconomia, as teses de Milton Friedman e de Lucas sobre políticas macroeconômicas ativas; a nova economia política de Buchanan com sua teoria de public choice e, ainda, a nova economia institucional, com Douglass North e Ronald Coase.

Simultaneamente, nos países em desenvolvimento, a eclosão da crise da dívida externa serviu de justificativa para a crítica das políticas desenvolvimentistas e abriu espaço para a formulação de uma nova agenda de desenvolvimento, que recomendava reformas das políticas públicas e um novo papel do Estado. Esses dois movimentos são diferentes aspectos da ascensão do que se convencionou chamar de neoliberalismo.

Portanto, chamo de neoliberalismo as novas correntes liberais que ascenderam com a crise do keynesianismo, no centro, e do desenvolvimentismo, na periferia, que tinham por objetivo promover uma nova ordem econômica, com base numa ampla reforma do papel do Estado e das instituições, para criar uma sociedade orientada pelo mercado e não por outros objetivos, como equidade, bem-estar social ou desenvolvimento.20

As políticas públicas propostas pela agenda neoliberal para os países em desenvolvimento pretendem promover mudanças estruturais. Por isso, trata-se de uma nova teoria de desenvolvimento econômico.21 No entanto, a ordem das mudanças é inversa à da tradição desenvolvimentista, que promove mudança estrutural como consequência do processo do crescimento, ou seja, o crescimento deve vir acompanhado de mudança estrutural para se tornar processo de desenvolvimento. Inversamente, na visão neoliberal, o crescimento é produto da mudança estrutural que deve ser promovida pela reforma de Estado e das instituições. Portanto, na teoria do desenvolvimento de inspiração neoliberal, promovem-se, primeiro, mudanças nas estruturas econômicas, por meio de políticas market friendly – como consequência dessas mudanças, o setor privado aproveita as oportunidades disponíveis, com a confiança necessária para correr riscos em função das garantias de direito de propriedade, e atua como o agente promotor do crescimento econômico. 

Essa mudança de agenda sobre o tema de desenvolvimento foi tratada por Erber por meio da abordagem da teoria das convenções.22 Com base em Orléan (1989), esse autor definia convenções como uma representação coletiva com estruturas de expectativas e comportamento individuais. Dessa forma, uma convenção manifesta-se como um conjunto de regras e agendas positiva e negativa e uma teleologia que as orienta [Erber (2008, p. 3)]. Erber tratava o conjunto de políticas oriundas das influências da teoria do desenvolvimento como convenção de desenvolvimento. Para ele, esta foi substituída por uma convenção neoliberal, que lhe era simetricamente oposta. Essa nova convenção seria focada na mudança institucional, com o objetivo de restabelecer a primazia das instituições de mercado. Suas metas principais eram reduzir e controlar a intervenção do Estado, defender os direitos de propriedade e, ainda, promover a liberalização do comércio internacional, investimento e fluxos financeiros. Portanto, essa mudança institucional seria altamente seletiva.

A abordagem de Erber traz a esse debate uma dimensão sociológica, que transcende as discussões tradicionais sobre o tema. No entanto, considero equivocada a visão de que a convenção neoliberal levava à redução do papel do Estado. Essa era uma afirmação corrente entre os autores dessa tradição, mas sua política era muito mais abrangente. Ou seja, como Erber argumenta, essa convenção propõe uma agenda de reformas institucionais focada na promoção do funcionamento do mercado. Mas, ao sustentar essa agenda, a política neoliberal implica a promoção de uma sequência de reformas, que só pode ser realizada por meio de uma grande intervenção do Estado, embora de natureza distinta da intervenção sob a convenção desenvolvimentista.

Até a década de 1970, a oposição à agenda desenvolvimentista vinha de uma visão conservadora que rejeitava a agenda de reformas promovida pelas políticas desenvolvimentistas. A partir da década de 1980, as abordagens neoliberais não mais rejeitam reformas, mas defendem sua própria agenda de reformas que pretendia acabar com as políticas anteriores e também criar uma nova ordem que estabelecesse as condições econômicas e políticas para implementar um novo modelo econômico. Por isso, o neoliberalismo nos países em desenvolvimento, ao contrário do seu discurso, tem um viés altamente intervencionista. Sua agenda incluiu necessariamente a reformulação do papel do Estado. Por um lado, a nova agenda implica reforma administrativa com a redução dos funcionários públicos e alienação de empresas estatais, mas, por outro, tem como objetivo criar novas instituições, tais como as agências reguladoras e uma agência de defesa da concorrência, para administrar a nova ordem econômica market friendly.

O neoliberalismo no centro teve, desde o início, apoio da população em função da sucessão de crises na década de 1970 – afinal, Margaret Thatcher, Ronald Reagan e Helmut Kohl foram chefes de governos muito populares.23 Na periferia, no entanto, a agenda de reformas neoliberais foi, de início, promovida por governos autoritários ou imposta de fora. Ou seja, na década de 1970 os únicos países em desenvolvimento que promoveram políticas neoliberais foram as ditaduras sul-americanas do Chile, da Argentina e do Uruguai.24 Na década de 1980, políticas neoliberais foram implementadas por governos populistas no Peru, com Alberto Fujimori, na Argentina, com Carlos Menem, e no Brasil, com Fernando Collor.25 Somente na década de 1990, a agenda neoliberal recebeu maior apoio popular na região, principalmente em virtude do fato de que as reformas neoliberais foram necessárias para a renegociação da dívida externa, que era fundamental para a estabilização monetária na região. Ou seja, nos países em desenvolvimento que enfrentaram a crise da dívida externa na década de 1980, a agenda de reformas foi exigida como contrapartida da aceitação do Plano Brady e foi imposta a todos os países em desenvolvimento que renegociaram a dívida externa e recorreram às organizações internacionais.

As organizações internacionais exigiam que os países devedores se submetessem a novas regras para que pudessem obter empréstimos ou financiamentos. Essas condicionalidades formavam um conjunto de políticas que deveria ser o sustentáculo de uma nova estratégia de desenvolvimento, que, segundo Stanley Fischer, era a única remanescente, já que “não há mais dois paradigmas concorrentes sobre desenvolvimento econômico”.26 

A nova estratégia de desenvolvimento, que se convencionou chamar de Consenso de Washington por causa da repercussão de um texto de John Williamson, apresentava-se como um rompimento radical com as visões anteriores.27 O primeiro conjunto de reformas recomendado tratava essencialmente de medidas macroeconômicas.28 Os efeitos dessas reformas, no entanto, foram decepcionantes. Dessa forma, a década de 1990, para a maioria dos países em desenvolvimento (particularmente na América Latina), foi marcada por graves crises econômicas e baixo crescimento. Em um artigo que teve grande repercussão, Ocampo (2004, p. 84) resumiu o resultado dessas políticas da seguinte forma:

Este artigo sustenta que os benefícios das reformas econômicas orientadas para o mercado que a América Latina empreendeu desde a metade da década de 1980 foram superestimados e seus riscos foram largamente subestimados. As reformas estruturais, em conjunto com a crescente disciplina monetária e fiscal, foram bem-sucedidas em muitas áreas, particularmente em reduzir a inflação, induzir o crescimento e a diversificação das exportações e em atrair o investimento direto estrangeiro. Mas as frustrações são o resultado de um crescimento econômico que se mantém baixo e volátil, do crescente dualismo da economia e, particularmente, dos resultados sociais desapontadores. Algumas premissas básicas dos reformadores provaram-se inteiramente erradas, particularmente as premissas que a baixa inflação e melhor controle dos déficits orçamentários garantiriam o acesso estável para os mercados de capitais internacionais e para o crescimento econômico dinâmico, e que a maior produtividade nas firmas e nos setores mais dinâmicos iriam automaticamente difundir-se pela economia, levando a uma aceleração generalizada do crescimento econômico.

Apesar dos resultados insatisfatórios, tanto no plano acadêmico quanto na esfera da política pública, os defensores das políticas de desenvolvimento neoliberais consideravam que a razão desse desempenho provinha da insuficiência dessas reformas, não da natureza do diagnóstico. A resposta desses grupos foi aumentar a aposta e recomendar uma nova rodada de reformas. As chamadas reformas de segunda geração, diferentemente das primeiras, que tratavam essencialmente de questões macroeconômicas, concentravam-se em recomendações de mudanças institucionais para adequar as instituições nacionais a um modelo ideal. Essas instituições transformadas deveriam, idealmente, levar aos resultados propostos no modelo original e nunca alcançados [Prado (2011, p. 324)].29

Essas reformas, que, se eficazes, deveriam mudar o ambiente institucional desses países, tinham entre suas mais importantes recomendações as alterações no sistema legal e regulatório e o aumento da eficiência do setor público. Portanto, pretendia-se reformar as instituições públicas que operavam segundo o modelo de intervenção das políticas desenvolvimentistas, para torná-las funcionais em um modelo de intervenção que aumentasse a eficiência dos mecanismos de mercado, eliminando os empecilhos que dificultavam para os agentes econômicos privados aproveitar oportunidades e responder aos sinais de mercado. Portanto, tratava-se de aumentar o papel do mercado, por meio da criação de instituições que facilitassem seu funcionamento.

Entre os principais temas dessa agenda, estavam a proteção aos direitos de propriedade, a garantia da execução dos contratos, a defesa dos direitos de propriedade intelectual, a defesa da concorrência, a execução (enforcement) das decisões judiciais, a melhoria da gestão pública e a melhoria do sistema educacional. Sustentava-se, portanto, que o diagnóstico da estratégia de desenvolvimento neoliberal estava correta, embora os remédios empregados para implementá-la fossem insuficientes. Nessa interpretação, era necessário o aprofundamento das medidas e não a alteração de rumo.

Uma parte fundamental dessas recomendações era a criação de novas agências estatais que deveriam regular serviços privatizados. Nesse cenário, um sistema de defesa da concorrência, com uma legislação para sua aplicação e com uma forte agência antitruste, seria fundamental para promover a ordem econômica desejada e, ainda, impedir a excessiva concentração empresarial e práticas anticompetitivas por empresas com grande poder de mercado. Com base nesses princípios, leis e autoridades antitruste, assim como agências reguladoras, deveriam ser criadas na América Latina e, em geral, nos principais países em desenvolvimento. Essas novas instituições seriam controladas por técnicos, que deveriam ser os guardiões dos princípios do livre-mercado e, ainda, aplicadores técnicos (idealmente, apolíticos) dessa nova ordem. 

Nesse contexto, entre 1991 e 1994, foram criados no Brasil o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e, ainda, no decorrer do governo FHC, as principais agências reguladoras.

3. Reforma de Estado e Políticas de Desenvolvimento: A experiência Brasileira

O fracasso do Plano Cruzado no Brasil, já evidente no início de 1987, teve como principal consequência política a redução do apoio popular a estratégias econômicas identificadas como heterodoxas. Isso se deu em um contexto de importantes mudanças institucionais, por meio da Constituição de 1988, e da fragmentação da representação e da capacidade de ação coletiva do setor empresarial.30 A ação administrativa do governo Sarney contribuiu para reforçar esse quadro. Esse governo se mostrava incapaz de dar respostas à crescente insatisfação e às demandas da população, em um momento em que sua capacidade de persuasão se reduzia rapidamente.

O fracasso do primeiro governo democrático depois de 21 anos de ditadura militar gerou grande insatisfação. Além disso, generalizou-se a demanda por mudanças profundas nas políticas públicas brasileiras. Em decorrência desse sentimento, a campanha eleitoral em 1989 deu-se com polarização das preferências populares entre dois candidatos de esquerda e um da nova direita. Este último, embora de uma tradicional família de políticos nordestinos, apresentava-se como sem vínculos com os partidos tradicionais e caracterizava-se por um discurso inflamado e fortemente antiestado. A vitória eleitoral de Collor marcou uma transformação profunda da ordem econômica brasileira, que viria mostrar-se duradoura.

O novo presidente não podia ser caracterizado como um liberal. Ao contrário, seu discurso previa formas de intervenção do Estado que certamente não pressupunham o princípio liberal de garantias de direito de propriedade e segurança jurídica. No entanto, seu programa previa uma profunda alteração do papel do Estado.31 Nesse sentido, seu governo marcou o início de um ciclo de reformas liberais, que se aprofundaram nos governos seguintes. Ou seja, depois de um início atribulado e populista, sob o governo Collor, as políticas de reforma do Estado vieram a constituir, nos governos seguintes, um projeto efetivo de mudanças institucionais, para a implementação de um novo modelo de desenvolvimento, com base nas formulações do Consenso de Washington. 

Reformas econômicas associadas exclusivamente à ideia de uma agenda conservadora foram uma novidade da década de 1990. Historicamente, a ideia de reformas econômicas aparece em diversos momentos da história recente brasileira associada a situações de crise econômica e/ou política. No início da década de 1960, o tema era polarizado entre a ideia de reformas de base e a de reformas econômicas modernizadoras. Por um lado, os defensores das reformas de base, que se inspiravam na literatura estruturalista, argumentavam que a continuidade do desenvolvimento brasileiro requeria um conjunto de mudanças institucionais que pudesse mudar algumas das características mais perversas da estrutura econômica brasileira. Esperavam, portanto, que as reformas permitiriam melhorar a distribuição de renda e diversificar o consumo doméstico – a mais importante entre elas era a reforma agrária. Uma abordagem distinta era defendida por autores liberais, como Eugênio Gudin ou Octávio Gouvêa de Bulhões, que sustentavam que não havia qualquer característica especial no Brasil que justificasse a ação do Estado de forma distinta da realizada nos países mais avançados. Esses economistas defendiam mudanças para eliminar o populismo econômico, que estaria na raiz da inflação e de outros problemas econômicos brasileiros.

Mas a ideia de reformas econômicas que tomava corpo no Brasil no início da década de 1990 não retomava o debate anterior: sua origem e sua trajetória eram distintas. Essa ideia alimentava-se, no âmbito doméstico, da percepção, por amplos setores da opinião pública, de que o fracasso do governo Sarney poderia ser imputado à insistência de manter uma estratégia de desenvolvimento baseada na intervenção do Estado, que abria espaço à ineficiência e à corrupção. A crise da década de 1980 era vista como a prova definitiva do fracasso do modelo de desenvolvimento brasileiro. O Estado interventor seria também produto de uma concepção autoritária de sociedade e deveria ser enterrado no mesmo túmulo do regime militar.

Isso se somava à crescente popularidade na comunidade empresarial (em especial no setor financeiro, mas também nos meios acadêmicos) da agenda de reformas liberais que foi chamada por John Williamson de Consenso de Washington. A conjuntura internacional contribuía para sua difusão. Os Estados Unidos tinham sido vitoriosos na Guerra Fria: o regimesocialista dos países do Leste Europeu desintegrava-se rapidamente. E na América Latina as ideias estruturalistas pareciam ter sido definitivamente abandonadas pelos novos governantes. O fracasso das políticas de estabilização heterodoxas na década de 1980, no Brasil, na Argentina e no Peru, foi visto como evidência de que as estratégias de desenvolvimento regionais deveriam ser modificadas.

Um marco importante nesse processo foi o fim do governo militar no Chile com a eleição de Patricio Aylwin, mas com a permanência da política econômica liberal. Esta era vista como a principal razão para o bom desempenho da economia chilena desde 1985 e, portanto, não deveria ser modificada pelo novo governo democrático. No fim da década de 1980, vários governos sul-americanos passaram a empreender políticas liberais e implementar reformas econômicas, inclusive alguns governados por políticos com tradição populista, como Carlos Andrés Pérez, na Venezuela, e Carlos Menem, na Argentina. Na mesma época, chegaram ao poder César Gaviria, na Colômbia, e Alberto Fujimori, no Peru. Collor fez uma campanha para a presidência defendendo abertamente reformas no aparelho de Estado. Mas as reformas de Collor não foram produto da vitória de um partido de direita com ideias claras sobre os rumos que queria imprimir ao futuro da sociedade brasileira. Não havia uma pressão de partidos políticos de direita, como na Argentina e no México, nem o governo tinha sido ainda hegemonizado por um grupo tecnocrático liberal, normalmente com doutorado norte-americano, como no caso do México, na década de 1980, e no da Argentina, na década de 1970. A estratégia de campanha de Collor foi atacar os setores organizados da sociedade brasileira e apelar à massa desorganizada. Nesse sentido, essa estratégia é mais parecida com as ações dos presidentes Miguel de la Madrid e Carlos Salinas em seus ataques ao corporativismo mexicano e sua intenção de usar as reformas contra as organizações existentes da sociedade.32 A política econômica de Collor respaldava-se na percepção quase generalizada de que o Estado brasileiro tinha perdido sua capacidade de investir. Por outro lado, vários setores sob o controle do Estado não eram mais estratégicos para o desenvolvimento e, finalmente, o que restava de respeitável no desenvolvimentismo tinha sido destruído pela politização fisiológica do governo Sarney.33 Portanto, a ideia de reformas como parte de uma nova agenda de desenvolvimento no Brasil foi se firmando lentamente. Tendo como ponto de partida a avalanche de medidas propostas por Collor, permaneceu com poucas mudanças em todos os governos brasileiros na década de 1990.

Embora o governo Collor tenha iniciado um amplo programa de privatizações, somente no governo FHC foram criados os marcos regulatórios para a gestão dos serviços públicos privatizados. Para isso, o governo FHC aprovou a legislação necessária para viabilizar a quebra de monopólios do Estado e a concessão de serviços públicos. Nessa linha, foi aprovada a Emenda Constitucional número 8, que estabeleceu as bases jurídicas para as concessões de serviços públicos, assim como outras formas de delegações, como autorizações e permissões. Da mesma forma, foram criadas as principais agências reguladoras: a Lei 9.427, de 26 de dezembro de 1996, instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e disciplinou o regime de concessões de serviços públicos de energia elétrica; a Lei 9.478, de 6 de agosto de 1997, criou a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e estabeleceu os marcos legais para o monopólio do petróleo; a Lei 9.472, de 16 de julho de 1997, criou a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e estabeleceu o marco legal para a atuação das empresas de telecomunicações no país; a Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, criou a Agência Nacional de Saúde (ANS) e estabeleceu o marco legal de atuação dos planos e seguros privados de assistência à saúde.

O governo FHC tinha em seus quadros a densidade teórica e a capacidade administrativa de implementar medidas econômicas market friendly, que são consistentes com as propostas de reformas de segunda geração. Não se tratava de imposição de fora. Isso pode ser mostrado analisando-se a dinâmica de cada uma das reformas. O Brasil não conseguiria alcançar uma negociação internacional dentro do chamado Plano Brady se não realizasse as reformas macroeconômicas exigidas por essa agenda. No caso, os compromissos necessários para o acordo foram realizados durante os governos Collor e Itamar Franco.

Embora a política de reformas fosse vista internacionalmente de forma positiva, a percepção pelas potências ocidentais da fragilidade interna do governo Collor e, ainda, a percepção de que sua negociação externa foi feita de forma menos dócil do que a esperada deterioraram a imagem do Brasil, principalmente com os Estados Unidos.34 Por outro lado, embora Itamar fosse reconhecidamente mais nacionalista do que Collor, como este estava mais envolvido com os muitos problemas domésticos, deu pouca prioridade à discussão de questões internacionais. Nesse sentido, a política externa foi delegada a atores de reconhecido prestígio internacional, dentro e fora da comunidade diplomática.35 Nesse contexto, aos poucos foi ficando claro que a diplomacia brasileira caminharia para alcançar um acordo de negociação da dívida externa e adotar uma postura cooperativa, com uma relação econômica positiva com os Estados Unidos e os principais países industriais avançados.36 Assim, tendo como principal negociador Pedro Malan, o Brasil alcançou um acordo no âmbito do Plano Brady.

O Plano Brady tinha explicitamente como exigência programas de ajuste estrutural por parte dos países devedores. A negociação tinha como premissas fundamentais: (a) o problema da dívida seria resolvido por meio de uma negociação caso a caso; e (b) a redução das dívidas e a liberalização dos recursos estavam subordinadas a um programa de reformas sob a supervisão do FMI, principalmente em questões fiscais, e do Banco Mundial, na agenda de reforma do Estado.37 Mas a agenda microeconômica que se seguiu às políticas macroeconômicas foi guiada por lógica diferente. As reformas de segunda geração tinham por objetivo promover a retomada sustentada do crescimento econômico. Elas faziam parte de uma agenda de desenvolvimento. Nessa linha, elas não eram requisitos para a agenda doméstica, embora certamente estimuladas e apoiadas pelas mesmas forças políticas que impunham os termos da agenda macroeconômica.38 Nesse contexto, foi montado no Brasil um moderno sistema de defesa da concorrência e, em 1994, foi aprovada a Lei 8.884, que estabeleceu as bases legais para esse sistema.

4. A Defesa da concorrência no Brasil: uma abordagem Histórica

Até a década de 1990, a legislação brasileira que tratava de assuntos concorrenciais tinha duas preocupações fundamentais: reprimir os chamados “crimes contra a economia popular” ou controlar as ameaças ao interesse público dos chamados “trustes”, vistos, principalmente, como cartéis internacionais. Autoridades de defesa da concorrência, com instrumentos legais e materiais para atuar com eficácia na promoção da ordem econômica, só foram criadas no Brasil na década de 1990.39 Historicamente, houve grande resistência para a aprovação no país de uma legislação antitruste. A exemplo de países como os Estados Unidos e o Canadá, os primeiros movimentos para a criação dessa legislação eram movidos por razões políticas e não por argumentos econômicos.40 No Brasil, a sociedade civil que liderou o movimento antitruste não tinha a mesma força que nesses dois países da América do Norte. O processo de criação dessa legislação no Brasil dependeu de um complexo equilíbrio nas relações entre Estado e sociedade.

Desde o Estado Novo, discutia-se a necessidade de impor limites à atuação de empresas com forte poder de mercado e a práticas colusivas de empresas internacionais. No entanto, durante décadas houve forte resistência à aprovação dessa legislação, que era vista, contraditoriamente, como uma ameaça à economia de mercado. Somente foi possível aprovar uma legislação antitruste abrangente e eficaz com a agenda de reformas liberais da década de 1990, cuja ênfase estava na montagem de um sistema público que fosse funcional a uma nova ordem econômica market friendly.

As primeiras provisões legais sobre assuntos concorrenciais surgiram no Brasil na década de 1930. Na Constituinte de 1934, uma emenda proposta por Prado Kelly, Christovão Barcelos e Asdrubal de Azevedo previa um artigo que dispunha:

Ficam proibidos os trustes, assim como os monopólios de indústria ou comércio, fixando a lei ordinária as respectivas sanções e salvo à União, quando a esses, o direito de os instituir, em benefício do interesse coletivo ou da defesa da economia nacional [Assembleia Nacional Constituinte (1934, p. 156)].

Na justificativa da emenda, esses constituintes alegavam “a repulsa de nosso direito à existência dos monopólios de indústria e comércio, como ofensa à liberdade econômica” [Assembleia Nacional Constituinte (1934, p. 156)]. Recorriam, ainda, como precedente, ao dispositivo da Lei 3.070-A, de 31 de dezembro de 1915, que previa que o Presidente da República poderia: 

modificar a taxa dos impostos de importação, indo mesmo até permitir a entrada livre de direitos, durante certo prazo, para os artigos de procedência estrangeira que possam competir com os similares nacionais, desde que estes sejam produzidos ou negociados por trustes [Lei 3.070, de 31 de dezembro de 1915, art. 2o, n. IX].

Esses primeiros textos legais com disposições antitruste tinham por objetivo caracterizar crimes contra a economia popular e incluíam como ilícitas as práticas de abuso de poder de mercado e a transgressão de tabelas oficiais de preço. Portanto, nesse primeiro momento, a questão concorrencial confundia-se com o que era conhecido como “crimes contra a economia popular”.41

O Decreto-Lei 869/1938, que tratava de crimes contra a economia popular, era uma legislação penal e não de direito administrativo. A primeira lei brasileira que tratava na esfera administrativa de questões antitruste foi de 1945, nos últimos meses do Estado Novo, tendo como autor o ministro do Trabalho, Agamenon Magalhães. O Decreto-Lei 7.666, chamado de Lei Malaia, criava a Comissão de Defesa Econômica (Cade) e dava poderes ao governo para expropriar qualquer organização cujos negócios lesassem o interesse nacional, mencionando, especificamente, as empresas nacionais e estrangeiras, vinculadas aos trustes e cartéis.42

Essa lei definiu alguns problemas concorrenciais adequadamente, embora influenciada por uma retórica nacionalista, característica daquele período histórico. A criação da Comissão Administrativa de Defesa Econômica foi proposta no art. 19, como um órgão, com personalidade jurídica própria, diretamente subordinado à Presidência da República e presidido pelo ministro de Justiça e Negócios Interiores.

A lei foi duramente combatida por setores que a consideravam intervencionista e influenciada por ideias esquerdistas. O Departamento de Estado dos Estados Unidos interpretou a legislação como um ato de nacionalismo econômico e pressionou o governo Vargas para revogá-la.43 Setores oposicionistas protestaram contra a medida, qualificando a Comissão de Defesa Econômica como um instrumento nazifascista, que ameaçava a economia brasileira. A lei foi revogada pelo presidente provisório José Linhares, poucos dias depois da deposição de Vargas.

O tema, no entanto, continuou em pauta e retornou ao debate na Constituinte. Como resultado, na Constituição de 1946, o art.148 estabeleceu:

A Lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso econômico inclusive as uniões ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua natureza, que tenham por fim dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros [Brasil (1946)].44 

Esse artigo constitucional demandava uma lei para ser efetivo. Para isso, foi proposto o Projeto de Lei 122, de 1948, que também era de autoria do então deputado Agamenon Magalhães. Essa iniciativa encontrou grande oposição no Legislativo e o projeto não foi aprovado pelo Congresso brasileiro.

Na ausência de uma lei antitruste que permitisse atuações do Estado por meio de disposições de direito administrativo, a intervenção do governo fazia-se por leis penais, nas quais se definiam os crimes contra a economia popular. Nessa linha, Getúlio Vargas, em seu segundo governo, promulgou a Lei 1.522, de 26 de dezembro de 1951, baseada na Lei contra a Economia Popular de 1938, na qual eram caracterizados como crimes desde ações típicas de abuso de poder econômico até a cobrança de juros com taxas acima da permitida em lei.45

A resistência do Congresso e o desinteresse do governo produziram o efeito de evitar, até a década de 1960, a discussão da criação de uma lei antitruste. Ficou institucionalizado um crescente uso de intervenção direta do Executivo, sem intermediação de autoridades administrativas, em temas que hoje seriam considerados questões de defesa da concorrência ou de defesa do consumidor.

Na década de 1960, voltou-se a debater a necessidade de uma lei antitruste. Durante o parlamentarismo, Tancredo Neves, empossado como primeiro-ministro, anunciou que

o governo acompanha com atenção a discussão da Lei Antitruste no Senado federal e espera utilizar amplamente todos os poderes que o Congresso lhe conceder no objetivo de combater a especulação e as práticas monopolistas.46

Em setembro de 1962, 17 anos depois da revogação da Lei Malaia e 16 anos após a promulgação da Constituição de 1946, foi, finalmente, aprovada a Lei 4.137/62, que regulamentava o dispositivo constitucional sobre abuso de poder econômico.

Essa lei criou, por meio do art. 8o, o Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência, com a finalidade de apurar e reprimir os abusos de poder econômico. Nesse período, as relações do Brasil com os Estados Unidos passavam por dificuldades por causa da política externa independente brasileira e, ainda, do pouco interesse das autoridades norte-americanas de oferecer apoio para reduzir os graves problemas de balança de pagamento brasileiros.47 Além disso, empresas norte-americanas e canadenses que atuavam na área de serviços públicos sentiam-se insatisfeitas com as dificuldades para reajustar tarifas e temiam a privatização, tal como a realizada pelo governador Leonel Brizola, na Companhia de Energia Elétrica Rio-Grandense, filial da American & Foreign Power, Inc. 

Nessas circunstâncias, a Lei 4.137/62, criada em um momento de muita instabilidade política, durante o governo João Goulart, teve grande dificuldade de produzir efeitos. Repressão a cartéis era na época associada à intenção de controlar empresas estrangeiras. Portanto, havia forte resistência de setores conservadores para sua implementação. Além disso, embora já à época influenciada pela legislação norte-americana, tinha um viés fortemente intervencionista, pois entre suas competências estava a de “fiscalizar a administração das empresas de economia mista e das que constituem patrimônio nacional”.48 A fiscalização do Cade estendia-se à gestão econômica das empresas de economia mista, seu regime de contabilidade e o exame anual dos seus balanços e relatórios. 

Durante o regime autoritário, pouco se avançou nas questões antitruste. Esse foi um período em que o Estado usou a legislação que permitia o tabelamento de preços para implementar uma política de intervenção na atividade econômica privada por meio de estratégias econômicas do setor público. Nessa linha, os preços deveriam ser disciplinados por órgãos de intervenção direta, como a Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab) e, mais tarde, o Conselho Interministerial de Preços (CIP) e não pelo Cade, que pouco atuou na época [Da Mata (1980, p. 916)]. Durante esse período, em várias áreas intensivas em capital, incentivou-se uma divisão do mercado com base em um tripé: com empresas privadas nacionais, privadas estrangeiras e públicas. Nesse sentido, pouco espaço havia para uma política de defesa da concorrência.

Na Nova República, a legislação de concorrência foi renovada, mantendo, no entanto, a característica anterior de definir de maneira vaga os ilícitos concorrenciais, sem criar mecanismos efetivos para repressão ao poder econômico. Mesmo assim, foi aprovada uma nova regulamentação da Lei 4.137/62, por meio do Decreto 92.323, de 23 de janeiro de 1986, que revogou o Decreto 52.025, de 1963. Esse documento legal dispôs:

Art 1º Será reprimido o abuso do poder econômico, quaisquer que sejam as formas que assuma, desde que caracterizadas, isolada ou simultaneamente, situações de:

      1. domínio dos mercados;
      2. eliminação da concorrência;

III. aumento arbitrário dos lucros.

Art 2º São agentes todos quantos, pessoas naturais ou jurídicas, públicas e privadas, desenvolvam atividade que cause, direta ou indiretamente, situações definidas em lei, caracterizadoras de abuso do poder econômico.

Art 3º Os agentes sujeitar-se-ão, sem prejuízo da responsabilidade civil e criminal, às seguintes sanções, cominadas pela Lei no 4.137, de 10 de setembro de 1962:

      1. multa;
      2. intervenção judicial;

III. liquidação judicial.

Art 4º A multa, cominada entre 05 (cinco) e 10.000 (dez mil) vezes o maior valor de referência vigente no País, na data da decisão do CADE, será fixada, levando-se em consideração:

      1. a gravidade do abuso;
      2. a vantagem auferida pelo agente;

III. o prejuízo causado pela prática abusiva, quer a terceiros, quer à economia nacional.

§ 1º A aplicação da multa à pessoa jurídica dar-se-á sem prejuízo de sua imposição aos respectivos controladores, administradores e gerentes.

§ 2º A reincidência do agente legitimará a imposição de nova multa cujo limite será igual a 20.000 (vinte mil) vezes o maior valor de referência vigente no País, à data da decisão do CADE. 

Nessa década, foi dado um passo importante para um marco jurídico duradouro da legislação antitruste com a aprovação na Constituição Federal de 1988, no Título VII, que trata da ordem econômica, de um princípio geral que determinava a repressão do “abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.49 

No governo Collor, no início da década de 1990, a motivação para a aprovação de uma legislação de defesa da concorrência por meio de lei ordinária e, ainda, a criação de mecanismos legais para sua implementação foram distintas dos períodos anteriores. Como muitas medidas desse governo, a legislação antitruste aprovada nesse período foi influenciada por sua visão de reforma de Estado, que era comum nesse governo e misturava aspectos liberais com elementos intervencionistas.50

Na ocasião, o Cade estava parado havia três anos. Muitos dos integrantes do governo militar e, depois, dos setores conservadores na Nova República viam com desconfiança o funcionamento do Cade.51 Embora o tema da defesa da concorrência estivesse no programa do governo Collor, e durante seu governo foi aprovada a Lei 8.158/1991, que criou a Secretaria de Direito Econômico e alterou alguns pontos da Lei 4.137/1962, a operação das atividades do Cade encontrou grande dificuldade para se desenvolver. Somente em fevereiro de 1992, assumiu a presidência do órgão Ruy Coutinho, que teve um importante papel para a formação de um grupo de trabalho para elaboração de uma nova Lei de Defesa da Concorrência.

Nesse momento, tal lei era, ainda, vista com desconfiança, tal como o fora desde a década de 1930. Um novo projeto de Lei de Defesa da Concorrência que vinha sendo formulado por um grupo de juristas recebeu forte oposição das organizações empresariais, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

Foi no governo Itamar Franco, tendo Rubens Ricupero como ministro da Fazenda, que foi criado o Sistema de Defesa da Concorrência, formado pela SDE, pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) e pelo Cade. A Lei 8.884, de 11 de junho de 1994, foi promulgada quando o Plano Real estava sendo executado e fazia parte do conjunto de mudanças institucionais que marcaria a transição para uma nova ordem econômica. Sua motivação imediata era criar bases institucionais para garantir preços moderados, promovendo um ambiente competitivo, que seria compatível com uma economia com baixa inflação. A defesa da concorrência seria, assim, um modelo alternativo (liberal), que deveria substituir os velhos mecanismos (intervencionistas) de administração de preços.

A nova legislação criou o moderno Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, no qual a Secretaria de Defesa Econômica (SDE) do Ministério da Justiça e a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda eram órgãos de instrução, enquanto o Cade atuava como tribunal administrativo, por meio de conselheiros, indicados pelo Executivo, aprovados pelo Senado, com mandato fixo e com grande autonomia para interpretar e implementar a Lei 8.884/94.

Até o governo Collor, o debate sobre questões concorrenciais era realizado quase exclusivamente por profissionais da área de direito. A comissão criada para estudar e sugerir um projeto do que viria a ser a Lei 8.884/94, o marco jurídico da transformação do Cade em uma agência antitruste moderna, era formada exclusivamente por juristas e funcionários do governo de formação jurídica.52 Uma das dificuldades encontradas pela tramitação do projeto foi o desejo do presidente Itamar Franco e de seu ministro da Justiça, Alexandre Dupeyrat, de incluir mecanismos para o controle de preços – o que iria frontalmente contra uma legislação antitruste moderna.53 O que alterou o equilíbrio de forças, no caso, foi a decisiva participação do Ministério da Fazenda. O ministro da Fazenda entendia que a aprovação da nova lei era fundamental para que, quando o Plano Real entrasse em vigor, o controle de preços fosse substituído pela defesa da concorrência. Nesse sentido, foram colocados à disposição do Cade, pelos secretários da área econômica, técnicos de grande capacidade para ajudar a organizar o funcionamento do sistema. Na época, a Fazenda conseguiu fazer com que fosse incorporado ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência a SEAE, que, juntamente com a SDE, era o órgão de instrução do sistema. Na ocasião, houve uma disputa entre o Ministério da Fazenda e o Ministério da Justiça sobre a que pasta deveria ficar vinculado o Cade. No entanto, a influência do Ministério da Fazenda na composição dos novos integrantes do Conselho foi fundamental. Em 1996, o substituto de Ruy Coutinho foi o economista Gesner de Oliveira, um quadro de grande competência técnica e com formação similar à dos outros economistas da equipe econômica do governo FHC.

Ou seja, a partir do governo de FHC, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência passou a ter um papel importante nas transformações institucionais necessárias, segundo a nova estratégia de desenvolvimento que estava sendo montada, para a retomada de crescimento da economia. Na visão de Fabio Erber, esse era um modelo de convenção institucionalista, que tinha como cerne a ideia de que

é o estabelecimento de normas e organizações que garantam o correto funcionamento dos mercados, de forma que estes cumpram suas funções de alocar recursos do modo mais produtivo, gerando poupanças, investimento e, em consequência, crescimento econômico [Erber (2010, p. 20-21)]. 

Na minha interpretação, trata-se da aplicação da nova teoria de desenvolvimento, que vinha se formando desde os anos 1980 e que fazia parte, no Brasil e em outros países em desenvolvimento, das chamadas reformas de segunda geração.

5. Conclusão: Difusão da legislação de Defesa da concorrência e a relação entre concorrência e desenvolvimento 

Antes da Segunda Guerra Mundial, apenas os Estados Unidos e o Canadá tinham uma legislação antitruste e os mecanismos institucionais para implementá-la. Na maioria dos países da Europa e da Ásia não havia qualquer restrição à constituição de cartéis e à concentração econômica. Depois do conflito mundial, os Estados Unidos iniciaram uma política de difusão e, em alguns casos, de imposição de sua tradição de defesa da concorrência para outros lugares do mundo. Nos Estados Unidos, essa legislação tinha surgido do temor do crescimento do big business no fim do século XIX. No pós-guerra, imputava-se aos cartéis e conglomerados empresariais alemães e aos zaibatsus japoneses o estímulo ao militarismo de seus países.54  Nesse sentido, havia o entendimento de que uma legislação antitruste adequada, que promovesse um ambiente concorrencial, contribuiria para evitar o ressurgimento da aliança entre esses grandes grupos e segmentos autoritários do Estado.

Esse caso não se aplicava aos países em desenvolvimento. Portanto, quando o Brasil, nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial, tentou implantar uma legislação de defesa da concorrência, havia o temor de que esse poderia afetar os interesses das empresas americanas. Por outro lado, no Brasil, a intervenção do Estado por meio da repressão aos chamados “crimes econômicos” e o controle direto sobre os preços pareciam mais eficazes, uma vez que na tradição jurídica brasileira a ideia de agência independente era inexistente.55

O tema retornou à pauta na década de 1980, mas apenas na década de 1990 um sistema de defesa da concorrência foi criado no Brasil. Nesse mesmo período, houve grande difusão no mundo de leis de defesa da concorrência. Como mostra o interessante estudo de Susan Sell, isso decorreu essencialmente da difusão das ideias sobre o papel de um ambiente concorrencial para o desenvolvimento e não de mecanismos de coerção.56 No caso, foram as elites locais dos países em desenvolvimento que implementaram leis antitruste, na esteira das reformas market friendly, das décadas de 1980 e 1990. No entanto, nesse período houve ativa participação de autoridades norte-americanas e consultores independentes para o treinamento e a difusão de princípios de defesa da concorrência.57 Nessa linha, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês) estabeleceu na década de 1980 vários programas para difusão e treinamento de temas de práticas empresariais restritivas (restrictive business practices – RBP). No início da década de 1990, um grande número de países em desenvolvimento criou leis de defesa da concorrência. Dessa forma, exceto no caso do Chile, cuja legislação de defesa da concorrência remontava a 1973, como parte das políticas liberais do governo Pinochet, a maioria dos países em desenvolvimento de renda média teve sua legislação moderna aprovada na primeira metade da década de 1990. Esse foi o caso do México e da Coreia do Sul, que aprovaram essa legislação em 1992, da Venezuela, em 1993, e do Brasil, em 1994.

Finalmente, embora os novos estatutos tivessem como base a legislação norte-americana, sua implementação não seguiu a mesma dinâmica desse país. Assim como a prática do antitruste era distinta entre os Estados Unidos, a Europa Ocidental e o Japão, também foi sendo adaptada à realidade de cada um dos países. Curiosamente, enquanto era ampliada no mundo, essa legislação estava retrocedendo nos Estados Unidos, em vista dos ataques às práticas antitruste norte-americanas da chamada Escola de Chicago.58

O que explica a diferença entre a ascensão da legislação antitruste entre os países em desenvolvimento e o relativo recuo nos Estados Unidos é que no caso desse país o que movia a prática era a visão tradicional de defesa do bem-estar do consumidor. Para os países em desenvolvimento, no entanto, tratava-se de reformas institucionais, que ficaram conhecidas como reformas de segunda geração, o que explica também por que nesses países, com algumas exceções, há pouca discussão sobre a relação entre legislação antitruste e as visões tradicionais sobre política de desenvolvimento.59 Se elas cumpriram a função esperada na teoria neoliberal de desenvolvimento não é objeto deste artigo, mas a relação entre esse tema e a agenda de desenvolvimento foi originalmente trazida por economistas acadêmicos que atuaram no governo FHC.60 Muitos dos defensores da defesa da concorrência nos Estados Unidos também eram favoráveis a sua difusão entre os países em desenvolvimento.61Por outro lado, alguns autores nos Estados Unidos eram também céticos em relação a sua eficácia na periferia.62 Da mesma forma, entre os economistas dos países em desenvolvimento havia opiniões controversas quanto a sua conveniência. Mas, depois de mais de uma década dessa legislação, a evidência disponível é que elas vieram para ficar. No entanto, a forma como estão sendo implementadas é muito mais diversificada do que imaginavam seus formuladores.63