Antitruste e advocacia da concorrência: perspectivas do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência à luz da experiência australiana

José Tavares de Araújo Júnior, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

This article focuses on the efforts made by the Brazilian System for Protecting Competition (SBDC) over the last two decades. It highlights not only its main virtues, which include procedure transparency and the increasingly strict application of antitrust standards, but also some of its shortcomings that were corrected by Law No. 12,529/11. This reform afforded the SBDC the necessary tools to tackle its main challenge, which is to foster articulation between competition defense and other public policies. To outline the magnitude of this challenge, the article describes the Australian experience from 1970 to 1990, when that country managed to overcome some institutional obstacles that were quite similar to those currently pervading the Brazilian economy.

1. Introdução

A defesa da concorrência só se tornou um objeto relevante de política pública no Brasil após a aprovação da Lei 8.884/94, que instituiu o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) e conferiu poderes ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para agir como autoridade antitruste independente. Não por acaso, essa lei foi editada em 11 de junho de 1994, duas semanas após a promulgação da Lei 8.880/94, que lançou o Plano Real. De fato, ambos os estatutos fazem parte do conjunto de reformas econômicas implantadas no país naquela década, que incluiu a abertura da economia, a restauração do padrão monetário, a abolição dos controles generalizados de preços, a privatização de empresas estatais e a criação de agências reguladoras em setores de infraestrutura e de utilidade pública.

Em qualquer economia em que vigore o regime de liberdade de preços, o papel do órgão antitruste é preservar o interesse público e promover a eficiência produtiva, coibindo condutas privadas e removendo distorções de mercado que possam impedir a realização desses dois objetivos. Como resumiu Amato (1997), o exercício dessa função implica um dilema permanente:

In a democratic society, there are two bounds that should never be crossed: one beyond which the unlegitimated power of individuals arises, and the other beyond which legitimate public power becomes illegitimate. Where do these two bounds lie? This is the real nub of the dilemma (p. 3). 

À luz do dilema formulado por Amato, este artigo discute o desempenho do SBDC nas últimas duas décadas, bem como as perspectivas que foram inauguradas com a edição da Lei 12.529 em 30 de novembro de 2011. No caso brasileiro, esse dilema tem uma configuração peculiar, em virtude da herança advinda de sessenta anos de políticas econômicas baseadas em substituição de importações, em que as preocupações com poder de mercado, eficiência produtiva e bem-estar do consumidor eram virtualmente ausentes. Assim, a principal dificuldade enfrentada pelo Cade não tem sido a de punir condutas anticompetitivas do setor privado, mas a de lidar com distorções de mercado criadas por outros órgãos governamentais.

A partir da Lei 12.529, o SBDC passou a dispor de mecanismos mais efetivos para lidar com esse desafio. Durante a vigência da lei anterior, os instrumentos da advocacia da concorrência se restringiam ao Art. 7, inciso X, e Art. 14, inciso, XIII.1 Entre 1994 e 2011, esses artigos foram aplicados em raras oportunidades, com resultados desanimadores. A Câmara de Comércio Exterior (Camex), por exemplo, costuma ignorar a lei antitruste quando concede proteção antidumping a firmas que ocupam posições dominantes no mercado doméstico, e que usarão aquela proteção para ampliar seu poder monopolista [Tavares de Araujo (2010)].

Na nova lei, os dispositivos acima foram incluídos no Art. 9, inciso VIII, enquanto o Art. 19 conferiu à Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (SEAE) um conjunto de atribuições que permitem aferir danos potenciais à ordem econômica advindos de normas em elaboração em distintas instâncias estatais, bem como analisar as condições de concorrência vigentes em setores específicos e propor medidas para corrigir eventuais distorções encontradas. Quando julgar conveniente, a SEAE poderá opinar sobre medidas submetidas à consulta pública por agências reguladoras, projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, atos normativos da administração pública federal, estadual e municipal, ações antidumping, alterações de tarifas de importação e encaminhar aos órgãos competentes recomendações para alterar normas que tenham caráter anticompetitivo. O Art. 19 determina ainda que a SEAE divulgue anualmente um relatório de suas ações voltadas à promoção da concorrência.

O texto está organizado da seguinte forma. A segunda seção contém um sumário da evolução do SBDC no período 1994-2011, apontando seus principais méritos, que são a transparência de procedimentos e o crescente rigor na aplicação das normas antitruste, bem como algumas de suas deficiências que, em princípio, foram corrigidas pela Lei 12.529/11. A terceira seção toma como referência a experiência australiana durante as décadas de 1970 a 1990 para discutir as perspectivas da advocacia da concorrência no Brasil. Por fim, a quarta seção encerra a discussão com um breve comentário sobre as diferenças institucionais entre a Austrália e o Brasil.

2. Breve Histórico do SBDC: 1994-2011 

Para lidar com o dilema formulado por Amato, a autoridade antitruste precisa cumprir três requisitos básicos: (a) identificar tempestivamente as situações em que o poder de mercado pode ser exercido unilateralmente ou por meio de condutas concertadas; (b) dispor de instrumentos efetivos para coibir ambos os tipos de condutas; e (c) ser capaz de aplicar esses instrumentos de forma expedita e na medida adequada. 

A história do SBDC entre 1994 e 2011 pode ser descrita como um processo de capacitação gradual para o exercício dos requisitos acima.  Alguns aspectos desse processo estão registrados nas duas edições do livro A revolução do antitruste no Brasil, organizadas por César Mattos em 2003 e 2008. A primeira edição mostra que a maioria dos casos julgados pelo Cade até 2002 referiu-se a atos de concentração e que o combate a condutas anticompetitivas ficou em segundo plano. Além disso, as distorções de mercado criadas por falhas de regulação e outras formas de intervenção estatal não foram enfrentadas pelo SBDC nesse período. Entretanto, a segunda edição revela que, nos anos seguintes, o Cade teve oportunidade de examinar diversos temas da agenda antitruste contemporânea, tais como: restrições verticais em indústrias de rede, formação de preços em mercados de dois lados, domínio de nichos de mercado em indústrias de alta tecnologia, vínculos de exclusividade entre produtores e revendedores, demanda por bens hedônicos, compartilhamento de rotas entre companhias aéreas, estratégias de predação etc. Por outro lado, algumas punições exemplares foram aplicadas em casos de cartel e de condutas unilaterais. Por fim, ainda que timidamente, a advocacia da concorrência começou a ser praticada pelo SBDC.

Outro indicador do amadurecimento da autoridade antitruste no Brasil é o livro de Pedro Dutra, que reúne 23 entrevistas com membros do Cade entre 1986 e 2008.2 Os depoimentos ratificam três aspectos usuais nas análises sobre o estado atual da defesa da concorrência no país.3 O primeiro diz respeito à irrelevância do Cade no período anterior a 1994, como bem ilustra a seguinte declaração de Mauro Grinberg, que foi conselheiro entre 1986 e 1990. Comentando um dos casos julgados na sua época, ele observa:

A análise econômica foi muito rudimentar, a análise era quase só jurídica. Não havia um corpo técnico; os conselheiros, eles mesmos, analisavam o ato, praticamente sem apoio administrativo. Eu nem sequer tinha sala no CADE, trabalhava no meu gabinete no Ministério da Fazenda e só ia ao prédio do CADE para as sessões. Nenhum conselheiro tinha sala no CADE; havia uma sala coletiva em que todos ficavam na véspera da sessão. Tudo era muito frugal, o CADE não era convidado para seminários. O próprio Conselho Interministerial de Preços, o famigerado CIP, simplesmente ignorava os ofícios do CADE, pedindo preços de produtos e serviços, informações gerais de mercado. A relação do CADE com os órgão do governo era muito tênue e pouco respeitosa [Dutra (2009, p. 20)].4

O segundo aspecto, reiterado em vários depoimentos, é o de que embora a qualidade técnica das decisões do Cade tenha melhorado rapidamente após a aprovação da Lei 8.884/94, o SBDC não dispõe ainda hoje de recursos humanos e orçamentários compatíveis com suas atribuições. Como notou Afonso Arinos de Mello Franco Neto, que foi conselheiro entre 2001 e 2002, essa deficiência tem sido mitigada mediante esforços individuais:  

O CADE tinha funcionários responsáveis, embora em número muito reduzido, e, sob uma perspectiva moderna, com uma organização, a meu ver, inadequada. Nos gabinetes, os funcionários funcionavam em torno do Conselheiro, mas de forma independente entre si. Havia muito poucos canais formais de colaboração entre eles. E não havia os recursos materiais necessários; havia pouco material de consulta, não havia coleções de dados, nem meios adequados para procurar informações sobre os mercados. Cada conselheiro trabalhava por conta própria. No que podia, eu me socorria do nosso meio acadêmico: alunos podem nos ajudar a fazer levantamentos de dados ou uma pesquisa; enfim, eu trazia algum trabalho para a vida acadêmica que eu continuava vivendo. Mas, claro, não é o ideal, e sim que o CADE seja dotado dos meios materiais e humanos para trabalhar com facilidade [Dutra (2009, p. 138)].

O terceiro traço marcante na história do SBDC é a transparência de seu processo decisório. As reuniões do Plenário do Cade são abertas ao público e, desde 2005, transmitidas ao vivo pela internet. Os principais documentos sobre os casos julgados, que incluem os pareceres redigidos pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) do Ministério da Fazenda, Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça, Ministério Público, Procuradoria do Cade, os votos dos conselheiros e a ementa da decisão estão disponíveis no sítio <www.cade.gov.br>. Além de assegurar a independência da autoridade antitruste, esse procedimento tem outros méritos, como apontou Elizabeth Farina, que presidiu o Conselho entre 2004 e 2008: 

A transparência não atende apenas ao dever da publicidade, ela melhora o nível técnico das decisões. O conselheiro sabe que os debates feitos no plenário estão sendo ouvidos por especialistas, pelo público interessado, assim como os advogados também sabem que a sustentação oral deles, os argumentos deles, e dos economistas também, estão sendo expostos, são debatidos. Todos cuidam mais, sabendo que o escrutínio do que fazem é maior. Se se quiser recuperar o áudio da sessão posteriormente, é possível, a qualquer tempo. Não há segredo. Note-se que esse processo ajuda inclusive o processo seletivo no CADE; o pretendente a um cargo no plenário sabe que o que fizer estará exposto ao público [Dutra (2009, p. 225)]. 

A transparência tornou-se um procedimento fundamental para conferir respeitabilidade ao SBDC em âmbito nacional e internacional em um curto intervalo de tempo.5 O ponto de partida para a construção dessa imagem foi a Lei 8.884/94, que deu ao Cade os instrumentos necessários para introduzir no Brasil os princípios contemporâneos da defesa da concorrência. Essa lei foi uma resposta oportuna ao novo cenário estabelecido no país após a reforma comercial do governo Collor, o Plano Real e o fim dos controles generalizados de preços. No ambiente que vigorou até o fim dos anos 1980, de economia fechada, sem moeda doméstica e preços tabelados, a legislação antitruste estava reduzida, inevitavelmente, a uma formalidade jurídica, como bem ilustrou a patética experiência do Cade entre 1963 e 1992.

Entretanto, além da escassez de pessoal e da elevada rotatividade dos funcionários, o SBDC padecia de outras deficiências advindas de pequenas falhas da Lei 8.884/94. A principal delas era o critério de notificação de atos de concentração ao Cade, que obrigava o sistema a examinar um número desnecessariamente alto de operações, comprometendo o desempenho das demais funções da autoridade antitruste, relativas à repressão de condutas anticompetitivas e à advocacia da concorrência. Entre 2004 e 2008, o Cade analisou em média 500 atos de concentração por ano, que corresponderam a cerca de 30% do número de operações notificadas às autoridades norte-americanas nesse período, cuja economia é dez vezes maior do que a brasileira [Farina (2009)]. Para enfrentar esse problema, a SEAE e SDE introduziram, em 2002, um rito sumário que passou a ser aplicado nos casos mais simples. Daí em diante, cerca de 80% das operações foram analisadas por meio desse procedimento [Farina e Araújo (2009)].

A combinação entre escassez de pessoal e carga elevada de atribuições deixava o Cade diante do risco permanente de tomar decisões erradas, que poderiam afetar sua credibilidade. De fato, a experiência internacional contém vários registros de uso indevido da lei antitruste. Nos Estados Unidos, alguns exemplos notáveis foram Brown Shoe, Realemon e IBM.6 A história do SBDC no período em análise não contém eventos similares a estes, apesar de algumas decisões controvertidas, como Kolynos-Colgate e Nestlé-Garoto [Tavares de Araujo (2006)]. No entanto, existem evidências robustas de que esse tipo de risco esteve sempre presente. Em 9 de abril de 2010, por exemplo, o Cade decidiu, por unanimidade, arquivar o Processo Administrativo 08012.007104/2002-98, no qual a Nellitex Indústria Têxtil Ltda. acusava a Têxtil J. Serrano de praticar preços predatórios no mercado de tecidos sintéticos de polipropileno, que são usados para estofar móveis de baixo custo. Esse processo havia sido instaurado pela SDE em outubro de 2002. Após estudar o caso durante cinco anos e meio, a Secretaria aceitou as alegações da Nellitex, a despeito da impossibilidade desse tipo de conduta em uma indústria como a têxtil, na qual a tecnologia é difundida e cuja oferta é composta por cerca de quatro mil firmas estabelecidas no país, 700 das quais localizadas no município de Americana, sede da representante. Em junho de 2008, a SDE encaminhou o processo ao Cade, recomendando a condenação da J. Serrano. Nos 21 meses seguintes, os autos foram examinados pela Procuradoria do Cade, o Ministério Público e o conselheiro relator. Embora a decisão final tenha sido correta, esse caso poderia ter sido encerrado em 2002.

Visando aprimorar a Lei 8.884/94, o Presidente Lula encaminhou ao Congresso, em 2005, uma proposta de reestruturação do SBDC que unificava os três órgãos (Cade, SEAE e SDE), estabelecia a análise prévia dos atos de concentração, reduzia o número de operações a serem submetidas ao Cade e criava condições para a formação de um quadro de funcionários especializados em normas antitruste. Esse projeto, que começou a ser elaborado pelo governo Fernando Henrique Cardoso em 2000, foi aprovado na Câmara de Deputados em dezembro de 2009, com o apoio de todos os partidos, revisado pelo Senado em 2010 e finalmente sancionado pela Presidente Dilma em 2011. Essa reforma marcou o início de uma nova etapa na história do SBDC, na qual o Cade habilitou-se a enfrentar seu principal desafio, que é o de promover a articulação entre a defesa da concorrência e as demais políticas públicas. A complexidade dessa tarefa está ilustrada na próxima seção.

3. Advocacia da Concorrência: A experiência Australiana 

As novas funções da SEAE sob a Lei 12.529/11, comentadas na introdução deste artigo, são equivalentes às da Productivity Commission da Austrália, criada em 1973 sob a denominação de Industries Assistance Commission (IAC) e que desempenhou um papel central nas reformas econômicas executadas naquele país, nas décadas de 1980 e 1990 [Banks e Carmichael (2007)].7 A experiência australiana é especialmente relevante para o Brasil, por se tratar de uma economia cujo crescimento industrial também foi baseado em políticas de substituição de importações entre os anos 1930 e 1970, e cujos processos de abertura do mercado doméstico, privatização de serviços de utilidade pública e de implantação do regime de liberdade de preços enfrentaram resistências similares àquelas observadas aqui nos últimos vinte anos.

A IAC surgiu de uma peculiaridade da economia australiana durante a época da substituição de importações, que foi a persistência do debate público sobre custos e benefícios do protecionismo ao longo da primeira metade do século passado. Não por acaso, o conceito de proteção efetiva foi formulado originalmente em 1957 pelo economista australiano Max Corden, no artigo clássico “The Calculation of the Cost of Protection”. Já em 1921, o Parlamento havia criado o Tariff Board, com funções similares àquelas exercidas pela Comissão de Política Aduaneira (CPA) no Brasil entre 1957 e 1990, mas com uma diferença importante, que era a obrigação de divulgar relatórios periódicos sobre as consequências macroeconômicas das barreiras comerciais em vigor no país. O primeiro deles foi o Brigden Report, que apresentou uma análise abrangente da estrutura tarifária da Austrália em 1929 e que inspirou inúmeros estudos acadêmicos nas décadas seguintes, inclusive os de Corden. Até o fim dos anos 1960, os relatórios do Tariff Board não estimularam qualquer antagonismo às políticas industriais executadas pelo governo. Pelo contrário, o consenso da época era o de que os benefícios gerados pelo crescimento industrial superavam em muito os custos da proteção. A tarifa de importação era percebida como um investimento social cujo valor presente deveria ser confrontado com a expectativa de expansão da economia no futuro próximo [Corden (1957)]. Tal consenso também vigorava no Brasil e nos demais países da América Latina, salvo quanto a um detalhe fundamental: na Austrália, os relatórios do Tariff Board consolidaram a visão de que barreiras comerciais só são racionais quando forem seletivas, temporárias, e com resultados mensuráveis. Na América Latina, o protecionismo tornou-se uma ideologia.

Na década de 1970, aquele consenso começou a desaparecer. O Tariff Board foi substituído pela IAC, com um mandato mais amplo de promover a transparência das condições de concorrência na economia australiana, indo além da política comercial e passando a incluir qualquer política pública que possa afetar as barreiras à entrada em indústrias locais, elevar os lucros de firmas selecionadas, estimular condutas oportunistas e outras distorções de mercado. No seu primeiro relatório anual, em 1974, o papel da IAC foi assim descrito:

In summary, the Commission’s role is to advise the Government on how individual industries, and industry in general, should be encouraged to develop in Australia. In providing this advice, it is required to have regard to the interests of the community as a whole, and relate its advice to the generally accepted economic and social objectives of the community. The Commission is concerned primarily with the long term development of industries, rather than with the fluctuations which may occur in their rate of development from one year to another, due to temporary changes in their business environment. The principles and objectives in the Industries Assistance Commission Act provide the general policy basis for the long term development of Australian industries [citado por Rattigan, Carmichael, Banks (1989, p. 98-99)].

Para promover transparência, a IAC deu início a uma série de estudos com foco em três temas principais: (a) as características do processo de competição em diferentes setores da economia, incluindo não apenas a indústria de transformação, mas também agricultura, mineração, transportes, energia, construção civil, telecomunicações etc.; (b) a efetividade das políticas públicas vigentes no país em diversas áreas, como incentivos ao desenvolvimento científico e tecnológico, serviços de saúde, regulação de aeroportos, proteção ao meio ambiente, regulação de monopólios naturais etc.; (c) avaliação de eventuais conflitos entre o interesse nacional e os incentivos seletivos a determinados tipos de atividade. Rapidamente, este último tema se tornou uma das marcas da IAC. Em vez de estimular controvérsias teóricas sobre a definição de interesse nacional, a Comissão procurava, de forma pragmática, confrontar os ganhos auferidos pelos beneficiários de incentivos seletivos com os impactos gerados em outros segmentos da economia.

A IAC não tinha qualquer poder executivo. Sua única função era produzir relatórios sobre temas em destaque na agenda de política econômica do país em determinado momento, e divulgá-los em tempo hábil. Isso foi suficiente para gerar uma animosidade imediata no interior da burocracia australiana, no Parlamento e no setor privado. Nos primeiros anos de sua existência, a lista de inimigos da IAC incluía políticos influentes como J. D. Anthony e Ian Sinclair, ministros como James Cairns, e a Metal Trades Industries Association (MTIA), com cerca de seis mil membros, responsáveis por mais de 50% da força de trabalho empregada na indústria de transformação [Rattigan (1986)]. Segundo o presidente da MTIA em 1976, o objetivo real da IAC era destruir a indústria australiana:

We do not need the IAC, which is an excessively elaborate and expensive body of economic theorists, to tell us that most goods we make in Australia can be more cheaply imported by Australia […] What we need is to call a halt to the activities of the IAC in recommending the dismantling of sections of Australian industry. It is a folly of the greatest magnitude if we allow ourselves to be persuaded by a pure economic theory to close our factories because of our high cost structure [Canberra Times, citado em Rattigan (1986, p. 264)].

Apesar dessas resistências, as reformas prosseguiram. Em 1974, a lei antitruste foi reformulada, e entre as diversas inovações introduzidas, a mais importante foi a criação da Trade Practices Commission (TPC). A primeira lei antitruste australiana havia sido editada em 1906, mas constituía, até então, uma formalidade jurídica inútil, posto que o país nem mesmo dispunha de um órgão executor daquela lei. De fato, vários países tiveram leis antitruste irrelevantes durante grande parte do século passado, como Canadá, cuja lei foi anterior ao Sherman Act, e Nova Zelândia, entre 1908 e o fim dos anos 1970. Na América Latina, esse fenômeno ocorreu na Argentina a partir de 1919, Brasil (1962), Chile (1959), Colômbia (1959) e México (1934).

Na década de 1980, mudanças institucionais importantes afetaram diversas áreas da economia australiana, como mercado de trabalho, comércio exterior, energia, transportes, telecomunicações e sistema financeiro. Nesse ambiente, o debate sobre defesa da concorrência ganhou novo fôlego. Em 1993, o Hilmer Committee Report introduziu o conceito de comprehensive competition policy, sugerindo que a defesa da concorrência só é efetiva quando vai além dos instrumentos antitruste convencionais e incorpora todas as ações governamentais que regulam o processo de competição, como barreiras comerciais, subsídios, propriedade intelectual, regulação de monopólios, normas técnicas e proteção ao consumidor. Essa visão orientou a transformação da TPC em Australian Competition and Consumer Commission (ACCC), com poderes para influir, quando julgar pertinente, nas ações do governo em todas aquelas áreas.

4. Comentário Final 

Uma diferença importante entre as experiências da Austrália e do Brasil é que lá a advocacia da concorrência precedeu a criação da autoridade antitruste, ao passo que aqui ela surgiu como uma consequência da consolidação institucional daquela autoridade. Isso certamente facilitará o trabalho da SEAE, mas não significa a ausência de desafios, que provavelmente serão documentados nos próximos relatórios anuais dessa secretaria. Sob vários aspectos, o atual debate sobre o suposto risco de desindustrialização da economia brasileira é similar àquele que ocorreu na Austrália na década de 1970. O alarmismo do setor empresarial e a lógica dos argumentos protecionistas são idênticos, embora o vilão da história tenha sido substituído. Em lugar dos relatórios da IAC, a fonte dos males agora é a apreciação da taxa de câmbio. Resta saber como a SEAE vai lidar com essa questão.

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Nota do autor

Nos últimos anos da vida de Fabio Erber, a defesa da concorrência havia se tornado um tema constante de nossos almoços que, em geral, se transformavam em animados seminários. Quase sempre éramos os últimos a sair do restaurante. Este artigo é baseado em dois trabalhos meus [Tavares de Araujo (2010; 2012)] que foram particularmente influenciados por aqueles almoços.