Estabilização, distribuição de renda e política industrial
Fabio S. Erber, Propostas de políticas apresentadas ao PT
As notas a seguir visam contribuir para o debate sobre a política industrial adequada a um processo que pretende, ao mesmo tempo, lograr uma relativa estabilidade de preços, retomar o crescimento econômico e promover uma distribuição de renda mais equitativa. Compõem-se de cinco seções. Na primeira, analisam-se algumas relações entre políticas de estabilização, de distribuição de rendas e industrial, num enfoque macroeconômico. A segunda seção apresenta em mais detalhe o conceito de política industrial utilizado. A terceira seção examina as implicações de uma redistribuição de renda em termos de política industrial para os setores mais diretamente afetados - os produtores de bens-salário industrial e de serviços sociais básicos. A quarta seção trata brevemente da questão da inovação tecnológica e de políticas diferenciadas segundo a propriedade do capital das empresas. Para concluir, na quinta seção comenta-se, ainda mais brevemente, algumas características que o Estado deverá assumir num novo padrão de desenvolvimento. Talvez seja desnecessário insistir sobre a sumariedade do tratamento dado a temas tão amplos. No entanto, vale advertir que, embora propositivas, as notas são, deliberadamente, mais conceituais que operativas, refletindo uma necessidade percebida ( talvez equivocadamente ) pelo autor. Mesmo dentro desse escopo, cabe, desde o início, apontar a falta de uma discussão mais aprofundada da dimensão financeira, que e aqui meramente tangenciada.
1. Políticas de estabilização e distribuição de renda
Todo processo inflacionário, ao alterar os preços relativos da economia, tem fortes efeitos sobre a distribuição de rendas da sociedade, que, por sua vez, alimentam o processo inflacionário, num processo cumulativo e permanentemente desequilibrado. Estes desequilíbrios induzem resistências à políticas de estabilização, tornando ilusórias promessas de “acabar com a inflação de um só golpe”.
Em consequência, toda política de estabilização, implícita ou explicitamente, e uma política de administração da distribuição de rendas, de duração temporal imprevisível. Confiar esse processo de administração apenas aos mecanismos de mercado aumenta muito sua probabilidade de insucesso e alonga substancialmente seu horizonte de tempo, posto que e próprio destes mecanismos o processo de tattonement, pelo qual os agentes econômicos testam, através de tentativas-e-erros, os limites da sua capacidade de aumentar seus preços. Como cada teste, feito de maneira individual, provoca reações dos outros agentes, tanto no seu comportamento atual como nas suas expectativas sobre o futuro, o processo, embora possa apresentar forma convergente, tende a prolongar-se.
Mais eficaz e admitir explicitamente a natureza distributiva do processo de estabilização e somar aos seus instrumentos econômicos os de natureza política, tomando uma política de rendas como base para a estabilização. Por este caminho seria possível integrar as medidas de estabilização a um programa de desenvolvimento, rompendo com o falso dilema do curto/longo prazo. Nesta perspectiva, a estabilização não antecede, mas faz parte de um projeto de desenvolvimento.
A integração acima referida aumenta de importância se o projeto de desenvolvimento tem como uma de suas metas a modificação do perfil de distribuição de rendas da sociedade, obedecendo a critérios de equidade social e soberania nacional.
A administração de expectativas constitui um dos fatores essenciais para o sucesso desse projeto. Promessas irrealistas produzem frustrações que, por sua vez, levam a comportamentos predatórios ou simplesmente defensivos, que alimentam a espiral inflacionária.
Essa administração passa necessariamente por processos de negociação que visam estabelecer comportamentos de natureza cooperativa, que tenham efeitos de sinergia.
Integrando-se num marco mais amplo, a política de estabilização ganha instrumentos de atuação adicionais, que podem ser mobilizados pelo Estado no processo de negociação.
Assim, em um sistema econômico em que uma parte substancial dos bens e serviços e suprida fora dos mecanismos de mercado, em parte pelo Estado, uma política de rendas não se confunde com uma política de rendimentos monetários ou de preços. A política de rendas deve abarcar, desde a sua concepção, pelo menos, o fornecimento dos bens públicos à população.
O argumento pode ser estendido aos bens e serviços de consumo que são transacionados via mercado, bem como aos bens e serviços necessários à sua produção, incluindo na política de estabilização medidas que reduzam a incidência de gargalos produtivos que levem ao desabastecimento e que aumentem a produtividade do sistema.
Em outras palavras, a política de estabilização e, ao mesmo tempo, administração de demanda e de oferta, encontrando neste último campo sua principal interseção com a política industrial, abaixo discutida.
2. A política industrial : seu âmbito e instrumentos
No paradigma fordista, o peso da inovação tecnológica no desenvolvimento industrial e a base científica do processo “inovatório” levaram a uma articulação estreita entre políticas industriais, tecnológicas, científicas e de formação de recursos humanos de alto nível, destinados às atividades de concepção e implementação de novos produtos e processos.
Por outro lado, a escala de produção típica do padrão fordista e o longo tempo de maturação dos investimentos levaram a uma estreita vinculação entre política industrial e política financeira.
O paradigma pós-fordista, dotado de maior flexibilidade, levou a um alargamento da política industrial, pois tende a utilizar de forma mais intensa o conhecimento dos trabalhadores, através de novas técnicas de organização social da produção. Em consequência, os requisitos educacionais dos trabalhadores, muito restritos sob o fordismo, tendem a ampliar-se, incorporando uma nova política de formação de recursos humanos à política industrial.
Assim, entendemos por “política industrial” o conjunto articulado de políticas acima citado. Obviamente, esta definição não exclui que as diversas políticas tenham objetivos distintos da atividade industrial, como o desenvolvimento da pesquisa pura pela política científica ou a transmissão de outros conhecimentos pelas políticas educacionais.
O “setor”, definido como um grupo de empresas que atendem a um mesmo mercado ou que têm a mesma base técnica, constitui a unidade clássica de política industrial. No entanto, em sistemas industriais complexos, como o brasileiro, as interdependências setoriais frequentemente tornam necessário tomar como unidade o “complexo industrial”, grupo de indústrias complementares e articuladas, seja por relações de compra-e-venda de produtos, seja por vínculos de conhecimentos.
Pelas razões acima citadas, a âmbito da política industrial deve ainda abarcar as atividades científicas, tecnológicas e de formação de recursos humanos que dão suporte à dinâmica dos setores e complexos industriais.
Dado que as empresas, de acordo com a origem do seu capital, têm lógicas de comportamento distinto (p.ex. em relação a investimentos em atividades de pesquisa e desenvolvimento) e afetam de forma distinta a sociedade (p.ex. em termos de soberania nacional), e conveniente estabelecer medidas que reflitam essas diferenças, sem, com isso, pecar por xenofobia ou estatofilia. A conveniência de estabelecer tais medidas depende muito do setor em que se inserem as empresas e dos papeis econômicos e políticos que esses setores desempenham.
Da mesma forma, medidas que visam distinguir as empresas segundo o seu tamanho dependem essencialmente do setor em que estas se situam.
As medidas de política industrial têm por objetivo estimular determinados comportamentos dos atores sociais direta ou indiretamente envolvidos com a atividade industrial ou, alternativamente, apor sanções a comportamentos julgados socialmente indesejáveis.
Estas medidas têm um alcance variado. Num extremo, o Estado pode atuar de forma “estruturante”, formando, ao mesmo tempo, oferta e demanda de um setor ou complexo e, em outro, ter funções meramente “normativas”, p.ex. definindo as características de processos e produtos. O primeiro tipo de atuação estatal e característico de setores novos e que, por seus vínculos com os demais e pela sua inserção internacional, desempenham um papel estratégico na dinâmica da economia. O segundo tipo e mais frequente em setores maduros, cuja dinâmica. Interna e Inter setorial, e mais estável.
A incidência das medidas também e distinta, podendo recair seja sobre os custos e benefícios imediatos das atividades, seja sobre a incerteza de resultados futuros. A importância relativa dessas medidas também varia muito de acordo com o setor. Assim, em setores novos, onde a pesquisa e o desenvolvimento sejam muito relevantes, medidas redutoras de incerteza (técnica, econômica e financeira) tendem a ser mais importantes que em setores onde há uma demanda garantida e o principal problema seja a redução de custos.
Em síntese, a política industrial e necessariamente seletiva, seja em termos de atividades, seja por atores sociais e sua seletividade e política, constituindo objeto de negociação entre o Estado e os agentes sociais envolvidos.
3. Prioridades setoriais, estabilidade de preços e crescimento
Um projeto de desenvolvimento que envolva uma redistribuição de rendas em direção a um padrão mais equitativo tende a gerar, num primeiro momento, pressões de demanda sobre os setores industriais produtores de bens-salário. Conforme sugerido acima, essa redistribuição deve envolver também a oferta de serviços básicos, como saúde, educação, transporte e educação.
A estrutura de oferta dos dois grupos de setores e distinta. Enquanto no primeiro grupo a oferta e predominantemente privada e o preço estabelece-se no mercado, no segundo grupo o Estado e o principal responsável pela provisão de serviços, seja diretamente seja sob forma indireta (p.ex. através da concessão de exploração de linhas de transporte público), e fixa os preços a serem cobrados.
Em consequência, nos dois grupos a margem de atuação do Estado e muito distinta. Ao controlar oferta de serviços, o Estado tem muito mais condições de exercer uma política estruturante nesta área que em bens-salário industriais.
3.1. Bens-salário industriais
Neste grupo, há sempre a possibilidade (e a tentação) de exercer a política através de controles de preços, visando um duplo objetivo: controle da inflação e distribuição de rendas. No entanto, dada a organização da oferta, se as políticas via controle de preços não são negociadas e são implementadas de forma a contrariar muito a racionalidade empresarial, tornam-se contra produtivas, levando ao desabastecimento e ao ágio.
A negociação sobre preços envolve sempre, pelo menos, dois problemas: a informação sobre o que se passa ao nível das empresas e do setor em termos de custos e mark-up e a imposição de sanções aos que transgredirem as regras pactuadas. Embora não exista uma solução “ótima” para esses problemas, o Estado brasileiro encontra-se singularmente desaparelhado para trata-los, condição que tende a agravar-se durante este Governo.
O controle de preços e sempre percebido pelas empresas como uma sanção. A aceitação dessa sanção e, obviamente, maior se essa e vista como um fenômeno temporário. A credibilidade dessa temporalidade tende a aumentar se a sanção se insere num projeto de desenvolvimento plausível.
Do ângulo da dinâmica industrial, um projeto de desenvolvimento deve visar o estabelecimento de “círculos virtuosos de acumulação”, estruturados por relações de insumo-produto, investimento em capital fixo e tecnologia, que conferem caráter autossustentado ao desenvolvimento industrial.
Parte importante destes círculos deve estabelecer-se entre os setores produtores de bens-salário (que no Brasil têm um peso na estrutura industrial superior ao que detém nos países avançados), as indústrias de meios de produção e os serviços de apoio tecnológico e de recursos humanos, antes mencionados.
Como os setores produtores de bens-salário tendem a depender fortemente dos demais para a introdução do progresso técnico, a concepção integrada de política industrial, acima exposta, e aqui muito pertinente.
Vista pelo ângulo da estabilidade de preços, essa abordagem reúne várias vantagens:
- responde a um requisito de estabilidade que, no caso brasileiro, parece bastante importante: aumentar a capacidade de resposta produtiva dos setores produtores de bens-salário ao aumento de demanda;
- oferece estímulos (modernização tecnológica e lucros futuros, inclusive no mercado externo ), que servem de contrapartida à eventuais controles de preços;
- estabelece um marco facilmente institucionalizável para a negociação de preços dentro da rede de relações do complexo industrial e serviços conexos;
- define um horizonte de tempo, seja para a recomposição tecnológica e produtiva do complexo seja para controles de preços.
Finalmente, cabe observar que dois obstáculos a essa abordagem encontram-se parcialmente superados: do ponto de vista conceptual, a formulação da política industrial por complexos industriais e serviços de apoio foi amplamente discutida durante a última década e vem ganhando legitimidade e, operacionalmente, alguns programas já foram elaborados nesta linha, embora de forma parcial ( p.ex. para texteis ).
3.2. Serviços básicos
Aos setores fornecedores de serviços básicos, que também requerem uma forte expansão da sua capacidade de atendimento e também dependem de terceiros para seu progresso técnico, impõe-se a mesma abordagem integrada.
O papel desempenhado pelo Estado na oferta desses setores introduz, porem, algumas especificidades importantes. De um lado, facilita a orientação política, mas, de outro, imbrica a problemática setorial com a crise do Estado brasileiro.
Fazendo abstração da crise de legitimidade do Estado, ora prevalente, mas que poderia ser, parcial e temporariamente, superada mediante um novo processo eleitoral, três outros aspectos devem ser destacados:
- a crise financeira do Estado – A modernização desses serviços terá que ser feita com recursos fiscais e parafiscais (Previdência, p.ex.), ou seja, depende do equacionamento das condições financeiras do Estado;
- a crise administrativa do Estado – Os aparatos estatais encarregados dos serviços básicos são os que, provavelmente, contam com as piores condições administrativas. Transformar essas condições, via, p.ex. informatização e novas técnicas de gestão, constitui um requisito essencial para que cumpram com o seu papel em um novo padrão de desenvolvimento. No entanto, as dificuldades nesse campo não são menores que na área financeira;
- a crise da União – A descentralização parece ser uma condição para a eficiência e eficácia da prestação de serviços básicos, assim como para a maior democratização das decisões relativas a esses serviços. No entanto, apesar da orientação mais federalista da atual Constituição, a hegemonia da União manteve-se até agora, inclusive interferindo diretamente em decisões municipais, como o recente aumento de ônibus na cidade de São Paulo.
Os problemas acima citados transcendem o âmbito da política industrial. No entanto, esta pode, através de instrumentos como a informatização e novas técnicas de gestão, fornecer meios importantes para sua solução.
Em conclusão, a prioridade a ser dada aos setores provedores de bens-salário e serviços básicos em função de objetivos de distribuição de renda e as características técnicas desses setores, levam a uma visão integrada de política industrial, em que as atividades supridoras de bens de produção e de serviços de apoio à modernização desses setores são igualmente significativas.
4. Desenvolvimento tecnológico e nacionalidade das empresas
O tratamento dado ao capital estrangeiro constitui uma das decisões estratégicas da política industrial. Conforme já mencionado, a diferenciação entre empresas de acordo com a origem do capital só se justifica em determinados setores e atividades, em que há claras divergências entre a lógica dos vários tipos de empresa e os interesses nacionais.
Uma área de divergências potenciais e a de capacitação tecnológica para inovação. E’ ilusório imaginar que empresas multinacionais venham a desenvolver essa capacidade no Brasil, tendo a alternativa de localizar as atividades de concepção de processos e produtos nos países centrais – mesmo que o Governo Brasileiro conceda incentivos para esse fim. Como se sabe, essa estratégia de firmas multinacionais, perfeitamente justificável sob a ótica microeconômica, tem como efeito induzir o mesmo comportamento em empresas nacionais e alargar o fosso que separa os sistemas produtivo, tecnológico, científico e educacional.
No entanto, o atendimento às demandas derivadas de uma redistribuição de rendas exercerá forte pressão sobre a capacidade de inovação instalada no país, especialmente naquelas atividades onde as especificidades locais tornarem muito difícil a importação de tecnologia.
Dadas as características dos setores de bens-salário e serviços básicos, esta pressão tende a recair sobre as atividades fornecedoras de bens de produção e serviços de apoio a esses setores. Como essas atividades servem a muitos outros setores da economia, a capacidade de inovação que nelas se desenvolva terá múltiplos usuários, diluindo o custo e o risco do seu desenvolvimento.
Assim, nas atividades acima citadas, encontram-se presentes as condições estipuladas pela Constituição em seu artigo 171 para estabelecer diferenças de tratamento entre firmas instaladas no país e firmas brasileiras de capital nacional.
Há diversos mecanismos que podem ser utilizados para estabelecer tais diferenças, que vão desde a reserva de mercado até o tratamento fiscal. No entanto, cabe lembrar que a diferenciação entre capitais traz custos econômicos e políticos não negligenciáveis e que só se justifica se à preferência dada a firmas nacionais corresponderem resultados concretos em termos de investimento, capacitação tecnológica, melhores condições de trabalho, etc.
Em consequência, aqui, como em outros aspectos da política industrial, a negociação dos custos e benefícios da política constitui parte essencial desta.
5. O reaparelhamento do Estado brasileiro
Um novo padrão de desenvolvimento requererá um novo padrão de atuação do Estado e, ao mesmo tempo, produzirá essa transformação. Este constitui o mais difícil e, possivelmente, o mais importante dos “círculos virtuosos” que formam o processo de desenvolvimento.
A política industrial acima esboçada requer um Estado capaz de, movido por objetivos de crescimento, equidade e soberania, articular as ações de vários atores sociais através de negociações específicas. Estas demandam, além de legitimidade e credibilidade políticas, capacidade técnica de planejamento, execução e acompanhamento de medidas de política econômica e social. Finalmente, sem capacidade financeira, propostas de políticas, por mais bem-intencionadas que sejam, tendem a tornar-se meros exercícios retóricos ou frustram expectativas. Nos dois casos, pavimentam o caminho do Inferno.
É desnecessário insistir sobre a distância que separa o atual Estado brasileiro das condições acima delineadas, embora, à luz da prolongada campanha anti-Estado, que continua, convenha enfatizar a vitalidade e o papel progressista que muitos aparatos estatais ainda têm. Sobre esta base, caberá a um novo Governo responder aos desafios de um novo padrão de desenvolvimento e dar início à reconstrução do Estado nacional.
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