O retorno da política industrial

Fabio S. Erber, Exposto no Fórum do Ministro Reis Veloso realizado no BNDES e publicado por A.D.Leite, J.P.Reis Velloso (Org). O Novo Governo e os Desafios do Desenvolvimento: José Olympio, 2002, v.1, p.-.

O tema “política industrial” evoca divisões profundas entre os economistas. Durante a década dos 90, a própria expressão tornou-se um tabu, tendo sido banida da retórica dominante (quando indispensáveis, usavam-se eufemismos como “política de competitividade”). No entanto, no atual debate pré-eleitoral, conduzido no meio de uma profunda crise do padrão de desenvolvimento adotado durante os anos noventa, o tema e a expressão voltaram a ter legitimidade, embora usados para designar políticas e objetivos distintos. Este artigo pretende contribuir ao debate através de cinco seções analíticas, além desta introdução e das conclusões. Na segunda seção é caracterizada a especificidade da “política industrial” (PI, para abreviar) em relação às demais políticas e sua relação com objetivos de desenvolvimento. À luz da literatura recente, este pequeno exercício me parece conveniente seja para delimitar as expectativas quanto ao alcance da PI seja para evitarmos a percepção de que existe uma e apenas uma política industrial. Keynes já advertia que, por detrás do “pragmatismo”, haviam teorias econômicas (frequentemente de economistas mortos). A terceira seção recupera, sucintamente, a projeção do debate teórico sobre a política industrial através de três “agendas” teóricas (liberal radical, evolucionista e liberal reformista) cuja influência se faz presente no debate atual sobre a PI. A política industrial é um meio de alcançar determinados objetivos, que são definidos, em parte, à luz da teoria sobre o processo de desenvolvimento, discutidas na terceira seção. A quarta seção analisa o padrão de desenvolvimento pretendido para o Brasil desde os anos noventa, discutindo o papel da PI nesse padrão. O fracasso desse tipo de desenvolvimento e as consequentes restrições macro que incidem sobre a economia brasileira trouxeram a PI de volta à legitimidade e forjaram um novo consenso quanto ao objetivo que essa política deve ter: aliviar a restrição externa. Enfocando essa restrição sob um ângulo evolucionista e usando os elementos característicos da PI vistos na seção II, debate-se o prazo no qual poderão ser alcançados resultados significativos, sugerindo a elaboração de duas agendas de PI. Por fim, questiona-se se aliviar a restrição externa deve ser o único objetivo da PI, mostrando como ela pode ser um instrumento para alcançar outros objetivos de desenvolvimento como a redução da desigualdade. A instrumentação de uma política depende, obviamente, de seus objetivos e de seu âmbito. Baseada nas seções anteriores, a quinta seção discute alguns aspectos instrumentais de futuras PIs, tratando principalmente dos princípios que deveriam nortear essa instrumentação. A última seção resume as principais conclusões do artigo.

1. Política Industrial e outras políticas

A PI1 é aqui tratada como a ação do Estado que visa, explicitamente, alterar o comportamento de empresas industriais. Duas características  estão acima enfatizadas, visando circunscrever o âmbito da PI. Em primeiro lugar, o objeto da política, que são apenas as empresas industriais. Em segundo, a intencionalidade da política. Excluem-se, desta forma, medidas de política que são dirigidas a diversos setores, mesmo que entre estes se inclua a indústria. Assim, políticas macro-econômicas ou de constituição  de infra-estrutura não fazem parte da PI. É óbvio que essas políticas afetam o desenvolvimento industrial, mas elas são concebidas com propósitos diversos. Neste sentido, constituem uma política industrial implícita2.

Se concebemos uma empresa como um conjunto de ativos estruturado por rotinas e direcionado por estratégias, a PI tem como objetivo modificar a composição dos ativos (através do portfolio de gastos da empresa)  e alterar suas rotinas e estratégias num dado sentido. No entanto, é possível que as políticas implícitas tenham um sentido distinto. Conflitos deste tipo são freqüentes, a exemplo de quando a PI visa ampliar os investimentos em projetos de longo prazo de maturação e forte incerteza e a política monetária direciona os investimentos para aplicações financeiras. Nestes casos, forma-se um campo de forças em que as políticas  implícitas tendem a ser dominantes. A cena brasileira das duas últimas décadas é pródiga de exemplos desse tipo de situação, cujo caso-limite é dado pela prevalência de inflação alta e crônica, quando as condições macro inviabilizam qualquer PI3.

Em outras palavras, a eficácia da PI depende da sua convergência com as políticas industriais implícitas nas demais políticas, notadamente as de natureza macro-econômica. Embora a PI possa ser utilizada como elemento compensatório das políticas macro, seu alcance para tanto é limitado. A convergência entre os dois tipos de política é dificultada ainda pelas diferenças no seu timing. Os hiatos que medeiam entre a apresentação aos atores de medidas de PI e seu efeito sobre as decisões destes tendem a ser maiores do que os vigentes para as políticas macro e os resultados das decisões decorrentes da PI (por exemplo, constituição de ativos fixos) mais irreversíveis. Ou seja, a convergência precisa ser sustentável dinamicamente. Quando convergem, porém, políticas macro e PI obtém um poderoso efeito de sinergia, ilustrado pelo conhecido exemplo dos efeitos fiscais positivos decorrentes de uma política industrial expansiva.

A convergência entre políticas industriais explícitas e implícitas depende das condições macro-econômicas que o país enfrenta no momento em que as políticas são decididas – muitas das quais estão fora do seu controle, como as condições da economia internacional – e dos objetivos de desenvolvimento que o Estado pretende alcançar. Este último ponto é especialmente relevante em períodos de transição como o vigente. Como os objetivos tendem a ser múltiplos, podem coexistir várias PIs, ponto a que voltaremos a seguir.

A diversidade de PIs é também uma imposição técnico-econômica: os setores e cadeias produtivas apresentam características distintas, que impõem seu tratamento diferenciado. Mesmo as políticas mais “horizontais”, como as políticas macro, têm rebatimentos setoriais  distintos. Freqüentemente, o Estado faz políticas “verticais” da mesma forma que Messieur Jourdain falava em prosa – sem saber que o faz. Igualmente, a heterogeneidade das empresas, em termos de tamanho e origem do capital, introduz diferenças importantes na sua lógica de transformação de portfólios – o que implica em PIs diferenciadas. Finalmente, a especificidade dos ativos que compõem a empresa também implica em diferenciação de PIs – compare-se, por exemplo, uma PI que vise apenas aumentar a capacidade de produção de um bem com outra que pretenda, adicionalmente, constituir a capacidade de inovação do mesmo bem.

2. Vale a pena ter uma PI?

A teoria econômica4 apresenta três respostas distintas a essa pergunta. Como a configuração de políticas é influenciada pela visão teórica dos tomadores de decisão, vale a pena revê-las, mesmo que sucintamente.

2.1. A visão liberal radical

A primeira resposta, dada a partir de uma agenda liberal radical é francamente negativa. Em sua versão mais moderna, esta perspectiva repousa sobre um tripé:

  • (i) o programa de pesquisas novo-clássico (especialmente o axioma de expectativas racionais e seu corolário da ineficácia das políticas públicas),
  • (ii) a teoria política das coalizões e da escolha pública (uma “invasão” da teoria política pelo individualismo metodológico e pelos supostos maximizadores da economia neo-clássica), que enfatiza a  “apropriação” do Estado por interesses particulares e pela própria burocracia, gerando “rendas não-produtivas” e
  • (iii) a “nova economia institucional”, que destaca a importância de instituições de mercado e market-friendly para o desenvolvimento.

A visão do “fim da História”, pela qual as sociedades convergiriam rumo a um padrão dado pela economia de mercado e pela democracia liberal, dá um sentido teleológico a esta perspectiva e o decálogo do Consenso de Washington (estendido ao países africanos sob o nome de “structural adjustmente programs”) definiu os lineamentos de política a serem seguidos.

Dada esta perspectiva, a PI serviria apenas a beneficiar interesses particulares ao (alto) custo de distorcer o mercado, prejudicando o desenvolvimento. A expansão industrial resultaria de aumentos de produtividade derivados de uma distribuição de recursos mais eficiente, definida por vantagens comparativas estáticas, e, a prazo mais longo, da incorporação de “safras” mais modernas de bens de produção e de investimentos em “capital humano” via educação.  Embora possam existir falhas de mercado, a intervenção do Estado causa problemas ainda maiores, devendo ser evitada, exceto para estabelecer fundamentos macroeconômicos “corretos e sólidos” e um quadro institucional favorável ao mercado.

Na América Latina, esta visão demonizou o antigo padrão de desenvolvimento e, ao fazê-lo, reeditou sob nova forma uma das suas lacunas principais: o desenvolvimentismo preocupava-se exclusivamente com a estrutura produtiva – a estrutura institucional, supunha-se, iria se adequando devidamente; na visão liberal radical as “reformas estruturais” (uma expressão cara aos desenvolvimentistas d’antanho) estavam dirigidas para a estrutura institucional, supondo-se que a estrutura produtiva se adaptaria positivamente aos ditames do mercado. Inversões conceituais e retóricas deste tipo não são incomuns, especialmente em visões míticas do desenvolvimento, que, convictas que detém a Verdade, são constitucionalmente radicais.

2.2. A visão evolucionista

A segunda resposta, provinda do programa de pesquisas evolucionista, é francamente favorável à existência de uma PI. Nesta perspectiva, o desenvolvimento resulta da co-evolução das estruturas institucional e produtiva. Quanto à primeira, destaca que o mercado é apenas uma das formas institucionais desenvolvidas ao longo da história pelas sociedades capitalistas para organizar suas relações econômicas e, quanto à segunda, enfatiza a importância das inovações (técnicas e organizacionais) para alavancar o desenvolvimento, que, longe de tender ao equilíbrio, é um processo de natureza cumulativa, sujeito a rupturas. A diferenciação de agentes econômicos, de setores e de trajetórias nacionais contrapõe-se à visão uniformizadora do liberalismo, assim como o acento sobre o caráter coletivo das ações econômicas (expresso, por exemplo, nas relações dentro das cadeias produtivas e na constituição de redes) contrapõe-se ao individualismo metodológico.

Ao Estado cabem, dentro desta perspectiva, papéis da maior relevância, seja como agente estruturante das novas forças produtivas seja como propulsor da sua difusão através da sociedade.  As vantagens comparativas internacionais, crescentemente dependentes das inovações, são construídas,  através da ação conjunta dos Estados com empresas. Em suma, coalizões estratégicas entre o Estado, empresas e outros segmentos da sociedade civil, como o sistema científico, constituem um elemento importante do desenvolvimento.

Tanto o Estado como as empresas vivem em condições de incerteza, que não é passível de eliminação pelo acréscimo de informações. A incerteza, somada a importância atribuída à diversidade e à cooperação, impõe limites à intervenção do Estado, excluindo esquemas de planejamento rígido. Ao contrário, a flexibilidade e a adequação da intervenção a condições específicas são atributos privilegiados.

Os novos paradigmas tecnológicos que imprimem dinamismo ao sistema partem de um conjunto restrito de setores e são difundidos pelo resto do sistema pelos setores fabricantes de meios de produção, que atuam como intermediários no processo de difusão do progresso técnico. Os ativos com que uma empresa tem que contar para ser competitiva são fortemente condicionados pela sua inserção setorial.   Em conseqüência a agenda de desenvolvimento industrial tem um forte conteúdo setorial, atendendo à diferenciação de papéis que os setores desempenham5. No entanto, ao enfatizar a constituição de uma capacidade de inovação local e as relações entre produtores e usuários de inovações recuperam-se aspectos sistêmicos do processo de desenvolvimento industrial e alarga-se o leque de atores sociais e instituições envolvidos (incluindo, por exemplo, a comunidade científica). Apesar disto, a perspectiva evolucionista continua predominantemente micro e mesoeconômica (ao nível de setores, cadeias produtivas e redes institucionais), faltando-lhe uma perspectiva de dinâmica macroeconômica de curto prazo.

Esta lacuna deve-se, provavelmente, à sua origem schumpeteriana, que tende a ater-se ao “lado real” da economia. Um tratamento “monetário” (no sentido keynesiano) da economia evolucionista daria uma ênfase à estrutura financeira análoga à importância atribuída  às estruturas produtiva e institucional e permitiria ver melhor o papel desempenhado pelas políticas macroeconômicas na definição das estratégias de investimento seguidas pelas empresas industriais6 e, portanto, avançar no entendimento das relações entre estas políticas e a PI.

2.3. A visão liberal reformista

Finalmente, a terceira resposta é “depende das falhas do mercado provocadas pelo próprio ou pelo Estado”. Distingue-se da agenda evolucionista por aderir ao programa de pesquisas liberal e dos radicais deste programa, vistos acima, pela refutação do axioma de que as falhas geradas pelo Estado são sempre piores do que as falhas oriundas do próprio mercado. Suas propostas de PI aproximam-se de um ou outro programa dependendo do peso relativo que atribuam às falhas do mercado e do Estado.

Convém lembrar que, segundo a teoria do bem-estar, na presença de várias falhas de mercado, a eliminação de apenas uma (ou algumas) destas falhas não conduz necessariamente a uma situação melhor do que a original e que a situação paretiana só se restabelece pela eliminação de todas as imperfeições. Se a última condição é impossível, os critérios paretianos não são inequívocos quanto a qual imperfeição deve-se tentar eliminar (Nath, 1969).

Ou seja, a teoria do bem-estar não valida a visão radical do peso relativo das imperfeições e abre espaço para intervenções do Estado para sanar imperfeições originadas do mercado. No entanto, a teoria não oferece um guia seguro para priorizar as imperfeições a serem atacadas.

Na prática, a prioridade sempre dependeu de condições econômicas e políticas específicas. Assim, não é acidental que o debate dos anos 50 sobre a industrialização da periferia do mundo capitalista tenha enfatizado os problemas de indivisibilidades e ausência de mercados de capitais no plano interno e as imperfeições do mercado internacional de bens primários e manufaturados. Da mesma forma, situações de industrialização mais avançada levam a enfocar as falhas de mercado que afetam o processo de capacitação tecnológica das empresas.

Mesmo dentro de um contexto histórico específico, variam as opiniões quanto às imperfeições a serem atacadas e quanto à abrangência e intensidade da intervenção estatal. A esse respeito, é ilustrativo comparar a análise do Banco Mundial (World Bank, 1993) com a de Lall (1994) sobre o “Milagre Asiático”: enquanto o Banco enfatiza a intervenção do Estado para sanar falhas de coordenação entre os agentes econômicos e falhas no mercado de fatores (notadamente em educação), Lall destaca as falhas relativas ao processo de capacitação tecnológica das empresas e a intervenção seletiva ao nível de setores e empresas.

Em última instância, a decisão de quais falhas são mais importantes e, portanto, a decisão quanto às prioridades e características da intervenção estatal dependem dos objetivos perseguidos pelo Estado. Como os Estados têm múltiplos objetivos – por exemplo, reestruturar indústrias ameaçadas pela competição internacional e, simultaneamente, avançar em setores industriais que tenham grande dinamismo internacional – e os mercados apresentam imperfeições distintas, a PI orientada pelas falhas de mercado é necessariamente seletiva e diferenciada.

Na falta de uma teoria que hierarquize as falhas a serem atacadas ou, alternativamente, que estabeleça prioridades setoriais, a PI orientada pelas falhas de mercado tende a assumir um caráter ad hoc e/ou a ser definida por critérios exógenos ao corpo teórico que a rege – o que explica sua rejeição pelos liberais radicais, que nela vêm a janela para a busca de “rendas não-produtivas”. A salvação, no âmbito do programa de pesquisas adotado, é essencialmente operacional: a intervenção do Estado deverá ser sempre temporária e cadente, transparente e condicionada à realização de objetivos específicos, até que o mercado funcione “adequadamente”.

As divisões entre economistas mencionadas na Introdução estão muito vinculadas à sua opção por uma das três agendas teórico-práticas acima descritas7, que, por sua vez, refletem “visões de mundo” distintas. Minha simpatia, é dever declará-lo, está com os evolucionistas.

3. A volta da PI no Brasil: causas e objetivos

3.1. O processo de volta

Lograda uma relativa estabilidade de preços com o Plano Real, abria-se a possibilidade de estabelecer uma PI no Brasil. No entanto, a visão de desenvolvimento que prevaleceu à época excluiu essa alternativa.

Segundo aquela visão, pautada pela agenda liberal radical acima descrita, dois “círculos virtuosos”, entrelaçados, levariam ao desenvolvimento, sem o auxílio de  uma PI. O primeiro círculo dizia respeito à globalização, caracterizada como o crescimento do comércio e investimento internacionais em níveis superiores ao da produção. Promovendo a abertura comercial, de investimentos e financeira, o país participaria deste processo, potencializado pela política de câmbio valorizado. A abertura comercial (reforçada pelo processo de integração regional) traria importações de bens de produção modernos, que levaria a um aumento de produtividade, permitindo, no futuro,um aumento das exportações. O mesmo efeito seria alcançado pelo aumento dos investimentos diretos estrangeiros (IDE). As duas aberturas estavam articuladas, posto que supunha-se que as empresas internacionais teriam maior propensão a importar e a exportar. As empresas locais seriam pressionadas a modernizar-se pela competição com as importações, processo facilitado pela entrada de bens de produção. O previsível déficit em transações correntes seria coberto pelo investimento direto e pelos capitais financeiros (objeto da terceira abertura), cuja entrada era estimulada por uma política monetária de juros altos. No segundo círculo virtuoso, a estabilidade de preços (garantida pela abertura) daria aos empresários um horizonte de longo prazo e um mercado ampliado pelo fim do imposto inflacionário, ensejando investimentos que aumentariam o produto e as exportações. A estes estímulos viriam a somar-se o aumento da competição, trazido pelas importações, pela entrada de capitais estrangeiros e pela privatização, além do reforço das instituições de defesa da concorrência e dos consumidores.

Nesta visão de desenvolvimento, em que a tripla abertura compatibilizaria estabilidade e crescimento, tendo por pano de fundo as reformas institucionais preconizadas pelo Consenso de Washington, uma PI seria não só dispensável como contraproducente, posto que tenderia a interferir com os mecanismos de mercado que regeriam a consecução dos círculos virtuosos. É sintomático que o mais ambicioso programa setorial encetado no período – o regime automotriz – tenha sido orientado para a atração de investimentos estrangeiros sem sequer propor aos entrantes e “incumbentes” uma “visão” do futuro da indústria que sanasse as falhas de coordenação, conforme defendia o insuspeito Banco Mundial. A fé no investimento externo e nos mecanismos de mercado era tanta que sua entrada não foi negociada, como fez, por exemplo, a China, maior receptor mundial de IDE. As demais intervenções setoriais (têxteis, brinquedos, etc) tiveram caráter ad hoc, sem qualquer visão estrutural do setor e, muito menos, da indústria como um todo. Tendo por fim proteger os referidos setores da competição internacional, estavam, presumivelmente, pautadas por uma visão de falhas de mercado. Embora coexistissem na equipe econômica liberais dos dois tipos acima descritos8, os radicais foram claramente hegemônicos.

Durante o segundo mandato do Presidente Cardoso o modelo de crescimento não mudou, mas as energias da equipe econômica estiveram dedicadas principalmente a administrar o legado macro do primeiro período: a dupla restrição, externa e fiscal (articuladas através da política monetária e seus efeitos sobre a dívida pública),  num quadro internacional de crescente turbulência. Apesar das mudanças ocorridas na equipe, manteve-se a oposição a uma PI que fosse além de medidas defensivas, motivadas agora principalmente pela herança do processo de privatização, como a reestruturação acionária dos setores siderúrgico, petroquímico e de papel e celulose. Embora tenham sido anunciados programas de estímulo à exportação com metas muito ambiciosas, sua implementação foi muito limitada. Carente de força política e de instrumentos de política econômica, o MDIC logrou principalmente avançar no conhecimento dos setores industriais, através dos Fóruns de Competitividade.

Existem várias respostas para explicar porque o modelo de crescimento não funcionou. No plano micro, falhou a premissa de que o IDE, a quem cabia o papel motor dos círculos virtuosos, seria fortemente exportador – seja porque o investimento foi fortemente direcionado para non-tradables (telecomunicações, energia) seja porque seu objetivo principal foi o mercado brasileiro, ampliado pelo MERCOSUL. Embora, de uma forma geral, as firmas industriais tenham modernizado suas instalações e aumentado sua produtividade, sua capacidade de inovação tecnológica (que requer ativos distintos daqueles necessários para produzir com eficiência) pouco se desenvolveu, assim como a capacidade  de vendas no mercado internacional continua muito limitada. No plano macro, a premissa de que o mercado internacional de capitais continuaria disposto a financiar economias “emergentes” tampouco se mostrou verdadeira e, no plano interno, a estabilização de preços não conduziu a uma estabilidade macro que ensejasse o crescimento sustentado – ao contrário, o padrão foi de stop and go, com mais stop do que go, fazendo com que a taxa de crescimento do período Cardoso seja similar à da “década perdida”, com um aumento substancial do nível de desemprego. No plano mesoeconômico, a análise da estrutura de produção e de comércio internacional do Brasil aponta para a fraqueza dos setores motores e  transmissores de inovações e, conseqüentemente, para uma pauta de exportações de baixo dinamismo internacional e importações que apresentam forte elasticidade em relação ao crescimento interno – impasse estrutural a que voltaremos a seguir.

A PI ressurge das cinzas desse fracasso. A julgar pelo aparente consenso entre os candidatos à Presidência e pelas opiniões divulgadas pela mídia, as posições liberais mais radicais estão no ocaso: haverá uma PI no próximo Governo.

Admitindo que esta conjectura proceda, cabe indagar a que objetivos servirá esta nova PI e quais suas características.

3.2. Para onde ir?

A pressão generalizada para aumentar a taxa de crescimento e a herança macro do presente Governo sugerem um primeiro objetivo para uma nova PI: o alívio da restrição externa. A ampliação do superávit do balanço comercial permitiria reduzir a dependência da entrada de capitais para equilibrar o balanço de pagamentos, reduzindo o ritmo de desvalorização do real e possibilitando reduzir a taxa de juros, beneficiando (pelas duas vias) as contas públicas. Para tanto, a PI deverá visar, simultaneamente, o aumento das exportações e a substituição de importações. Esta última é sempre qualificada como devendo ser “competitiva”, de modo a não despertar suspeitas de que se pretende voltar ao deprecado desenvolvimentismo.

Note-se que este é o objetivo que suscita consenso quanto à necessidade de uma PI, atestando o peso da restrição externa. Também não é ocioso notar que o consenso surge após três anos e meio de operação de um regime de câmbio flutuante, em que este sofreu forte desvalorização: embora os efeitos da desvalorização tenham tido o sinal previsto pela teoria, aumentando as exportações e reduzindo as importações, a magnitude da mudança é insuficiente para produzir um superávit comercial que alivie substantivamente a restrição externa. O consenso indica que poucos ainda acreditam que mecanismos horizontais de política macro são suficientes. Em outras palavras, reconhece-se agora que a PI tem que ter um forte conteúdo setorial, tal como reivindicado pelos evolucionistas.

O avanço de posições identificadas com o evolucionismo é evidenciado ainda por vários diagnósticos da balança comercial brasileira que usam o conteúdo tecnológico das importações e exportações para identificar problemas e sugerir soluções (por exemplo, Além et al., 2002; Erber, 2001; IEDI, 2001 e 2002).  Estas análises são concordes em apontar a perda de posição competitiva da indústria brasileira no mercado internacional. Esta perda é associada ao conteúdo tecnológico das exportações, que, por sua vez, reflete a estrutura produtiva nacional. Assim, embora durante a década de noventa tenha havido um aumento da participação de produtos de maior intensidade tecnológica nas pautas de produção e exportações nacionais, estas pautas ainda são  dominadas por produtos de média e baixa intensidade tecnológica. Em contraste, na pauta de importações  prevalecem produtos de média e alta intensidade. Como a elasticidade da demanda é, grosso modo, proporcional à intensidade tecnológica, a disparidade entre as pautas de exportações e importações brasileiras implica que, dada a mesma taxa de crescimento no Brasil e no mundo, as importações do país tendem a crescer mais do que as exportações. A demanda por altas taxas de crescimento no Brasil implica em uma tendência a déficits na balança comercial industrial. A problemática levantada por Prebisch há mais de meio século ressurge atualizada.

Este diagnóstico propõe uma estratégia: aumentar o conteúdo tecnológico da estrutura produtiva brasileira para, simultaneamente, reduzir importações e aumentar exportações. Esta conclusão óbvia encerra alguns problemas não triviais, que convém apontar para não despertar expectativas irrealistas.

Em primeiro lugar, retomando um ponto já discutido na seção II, há a questão do timing das medidas e seus resultados. Suponhamos, pelo momento, que a política já tenha sido definida em termos de objetos (setores e cadeias produtivas, atores, etc) e instrumentos (crédito, incentivos fiscais, capital de risco, etc) –  pontos a que voltaremos a seguir – e concentremo-nos nos resultados.

É plausível supor que a desvalorização do câmbio já tenha produzido a expansão “fácil” do saldo comercial, ampliando as exportações e contraindo importações, resultado reforçado pelo baixo crescimento de 2001 e do ano em curso. Ou seja, daqui para frente, conseguir de forma sustentada um superávit significativo na balança comercial requer alterações na capacitação tecnológica da indústria já implantada e a instalação de novos setores, mais dinâmicos do ponto de vista de saldo comercial, que também são mais intensivos em tecnologia. O cenário internacional também não favorece a obtenção de um saldo positivo sustentado, nem tampouco a ampliação dos fluxos de capital.

A transformação da capacitação tecnológica da indústria  requer a ampliação dos setores motores da inovação (eletrônica, biotecnologia e novos materiais) e dos setores difusores (notadamente bens de capital) e o aumento da competência de inovação nos demais setores. Supondo que tudo dê certo, os resultados na balança comercial só se farão sentir no médio prazo. Dada a premência de reduzir a dependência de capitais externos, parecer recomendável que, sem abandonar a agenda de médio prazo, elabore-se uma agenda de curto prazo, que busque maximizar as atuais competências para exportação. Centrada na operação da capacitação existente, esta é, essencialmente, uma agenda de remoção de gargalos – administrativos, financeiros, de protecionismo externo, etc – mais que uma agenda de PI9.

A questão do timing incide também sobre a escolha de setores. Como a maior parte das importações industriais brasileiras é composta de bens de produção, é necessário operar a PI por cadeias produtivas. Se o objetivo é obter resultados positivos na balança comercial o mais rápido possível, o critério mais imediato é o de escolher as cadeias que apresentam maiores déficits, ponderando importações e exportações pelas respectivas taxas de crescimento da demanda interna e internacional.  Prima facie, os complexos químico e eletrônico seriam prioritários.  A esta listagem, poderiam ser acrescentadas duas outras. A primeira,  voltada prioritariamente para o aumento de exportações, seria composta de setores onde a penetração de importações no consumo aparente do setor e da cadeia a montante seja baixa, mas tenham um bom potencial de agregar valor às exportações através de melhorias técnicas e de canais de comercialização, a exemplo do beneficiamento de produtos naturais e calçados. A segunda, composta de fornecedores de setores non-tradables, estaria dirigida à substituição de importações, principalmente de bens de capital.

O objetivo de ampliar a capacitação tecnológica em tempo curto torna recomendável  o uso do conceito de “sistema setorial de inovações”, em que busca-se coordenar a cadeia produtiva com seus fornecedores de conhecimentos. Com este mecanismo de identificação de gargalos e necessidades de investimento pode-se reduzir o tempo de maturação dos programas e aumentar a cooperação entre os agentes envolvidos, com efeitos de sinergia.

Corre-se, porém, com esta PI tangida pela urgência, dois riscos graves: o primeiro, de negligenciar setores que  ainda têm pouca presença na pauta comercial brasileira mas têm forte potencial de crescimento interno e externo e grandes efeitos de encadeamento tecnológico, a exemplo de produtos de biotecnologia e, o segundo,  de concentrar as atenções sobre a capacidade de produzir no país bens de maior intensidade tecnológica. Uma estrutura produtiva na qual os produtos mais intensivos em tecnologia tenham peso significativo mas que careça de capacidade de inovar é fragilizada pela rápida obsolescência desses produtos e pela dependência de fontes externas de inovação.

A perspectiva evolucionista sugere que deveríamos aproveitar a oportunidade aberta pela crise e tentar fomentar esses produtos de alto potencial e mudar o padrão de capacitação, incorporando à estrutura produtiva a capacidade de inovar. Do ponto de vista dinâmico, esta última asseguraria à estrutura produtiva a sustentabilidade da sua contribuição ao crescimento acelerado, seja no plano internacional, seja no suprimento do mercado interno.

Se o objetivo da PI abarcar, conforme sugerido, a transformação da capacitação tecnológica do indústria, de produzir a inovar, o uso dos sistemas setoriais de inovação é ainda mais importante, acrescido, agora, de uma função prospectiva.

Finalmente, o objetivo de reduzir a restrição externa tem, além de implicações setoriais, conseqüências em termos de atores sociais. Produtores de bens tradable serão objeto privilegiado desta PI. A inclusão de capacidade empresarial para o investimento em tecnologia, produção e comércio internacional entre os atributos desejados tende a favorecer empresas de maior porte e o processo de aglomeração entre empresas, especialmente nos setores onde as economias de escala são mais significativas. Uma vez mais, a premência de resultados pode ser um fator discriminante adicional, especialmente no desenvolvimento de novos setores, como é o caso de circuitos integrados. Caso venha a se optar, pelas razões acima, por firmas internacionais, a negociação com estas empresas deveria incluir a maior internalização possível da cadeia de suprimentos e de atividades tecnológicas que produzam externalidades.

O padrão de capacitação tecnológica que se observa na indústria brasileira – competência na produção e baixa capacidade de inovação – é histórico. Se for alterado no futuro próximo, a restrição externa terá cumprido, uma vez mais, o papel de alavanca das transformações estruturais da economia brasileira. No entanto, cabe a dúvida: suponhamos que esta transformação tenha lugar e que a restrição externa seja aliviada, permitindo maior crescimento, isto basta? Em outras palavras, os objetivos do desenvolvimento (ao qual a PI se subordina, conforme discutido acima) são: aumentar a taxa de crescimento,a qualidade/preço dos produtos ofertados, a oferta de empregos (especialmente os de maior qualificação) e a margem de soberania nacional?

Um desenvolvimentista dos velhos tempos responderia inequivocamente “sim” – a alteração das forças produtivas era a essência do desenvolvimento. No entanto, o longo período desenvolvimentista legou-nos, ao lado de forças produtivas renovadas, um padrão de desigualdade sem par. Tampouco as reformas dos anos oitenta e noventa lograram alterar este padrão. O “momento de transição” postulado pelos organizadores deste livro abre o espaço para incluir a redução da desigualdade como objetivo do desenvolvimento e da PI.

A PI pode servir a reduzir a desigualdade em, pelo menos, dois aspectos. O primeiro é atuar nas funções que a indústria cumpre como aprovisionador dos serviços sociais básicos, cuja carência é um dos principais problemas da população de baixa renda: saneamento básico, saúde, educação, habitação e transporte público. Parte significativa dos produtos industriais utilizados nestes serviços tem baixo conteúdo importado e, portanto, a ampliação destes serviços não incide fortemente sobre a restrição externa, embora dependa do alívio da restrição fiscal. Um programa de capacitação tecnológica voltado para estes produtos poderia reduzir o seu custo e, portanto, seu ônus fiscal.  No entanto, parece provável que o aumento de eficácia desses serviços envolva o uso crescente de bens e serviços de maior intensidade tecnológica, a exemplo da informatização de escolas públicas, visando reduzir o “abismo digital” e aumentar a empregabilidade dos educandos. Neste sentido, as duas PIs, voltadas para a redução da restrição externa e da desigualdade, convergem.

Uma vez mais, a exploração das particularidades de interdependência existentes na cadeia que vai dos fornecedores de conhecimento até o suprimento dos serviços ao consumidor (ou seja, um “sistema setorial de inovação”) permitiria diminuir prazos e custos, reduzindo o ônus fiscal desse tipo de programa.

Um segundo aspecto da desigualdade que pode ser reduzido por uma PI é o regional. No passado recente logrou-se uma relativa descentralização de atividades produtivas via incentivos fiscais. No entanto,  as restrições fiscais existentes limitam tanto o uso deste mecanismo como a margem de transferência da União para Estados e Municípios, estimulando a busca de novas formas de fomentar o crescimento econômico local.  Parte dos arranjos produtivos regionais tem escopo internacional (a exemplo dos pólos calçadistas e automobilístico) e estariam, portanto, incluídos no âmbito de uma PI voltada para a restrição externa. Outros arranjos, porém, têm um alcance mais restrito, embora relevante do ponto de vista local. Para este segundo tipo de arranjo poderiam ser desenhadas PIs específicas, definidas ao nível local, desenvolvendo as redes de cooperação existentes pela eliminação dos gargalos ao investimento e à capacitação técnica, administrativa e de vendas. Tal abordagem por pólos teria a vantagem de combinar três dimensões da PI:  setorial, regional e tamanho de empresa, posto que parte substancial deste tipo de arranjo produtivo local é constituído por pequenas e médias empresas10.

Para concluir, cabe enfatizar que a orientação da PI para a redução da desigualdade não se opõe  à PI para a aliviar a restrição externa. Em alguns aspectos, conforme apontado acima, as várias políticas são convergentes. Em outros, correriam em paralelo, embora usando metodologias semelhantes, que ensejam processos de “fertilização cruzada”. Em verdade, esta multiplicidade de PIs reflete apenas a diversidade de problemas que uma nova trajetória de desenvolvimento terá que abordar.

4. Instrumentos

Foge ao âmbito deste ensaio um detalhamento dos instrumentos de política a serem usados. No entanto, alguns comentários a respeito das suas características podem resultar úteis a precisar as propostas.

4.1. Redução de riscos e custos

Ao nível da empresa, os instrumentos de PI podem se divididos entre os que reduzem custos ou os diferem ao longo do tempo e os que reduzem riscos do investimento. Entre os primeiros estão, por exemplo, os incentivos fiscais e o crédito e entre os segundos, a proteção contra as importações, políticas de compras pelo Estado e o aporte de capital de risco.

Embora, obviamente, o “mix” de instrumentos varie caso a caso, parece provável que a intenção de induzir transformações estruturais em termos de composição setorial e capacitação tecnológica da indústria implique num uso mais intenso de instrumentos redutores de risco.

As reformas dos anos noventa reduziram o escopo de alguns dos tradicionais instrumentos redutores de risco, como a proteção contra as importações e as compras estatais. Seu uso, no atual quadro internacional, demandará maior engenho e capacidade de negociação, inclusive com empresas internacionais. Nesse sentido, milita a favor da nova PI a tendência observada nos países da OCDE de contrabalançar a liberalização comercial com políticas de apoio aos setores mais intensivos em tecnologia, inclusive das atividades científicas e tecnológicas que lhes dão suporte (Além, 1999; Erber e Cassiolato, 1997). Ao mesmo tempo, os objetivos da nova PI impõem cautela redobrada nas negociações de integração com áreas mais desenvolvidas como a ALCA e a UE, que implicam no risco de restringir severamente as possibilidades de transformação estrutural acima discutidas.

O aporte de capital de risco pelas agências de desenvolvimento do Estado, como BNDES e FINEP, deverá ser um importante instrumento da nova PI. Admitindo que a política macro, coadjuvada pela PI, leve a uma redução da remuneração relativa dos títulos públicos, diminuindo a “financeirização” do mercado de ativos, é de se esperar que as instituições privadas do mercado financeiro e de capitais venham, motu próprio, a aportar recursos de risco às empresas industriais, estabelecendo a necessária conexão entre sistema financeiro e produtivo privados   que caracteriza economias capitalistas complexas11. No entanto, numa fase de transição, o Governo deveria estudar o uso mecanismos fiscais e de política monetária (por exemplo, taxa de redesconto e depósitos compulsórios) para  direcionar os fundos do sistema privado para fins da PI, inclusive em parceria com as agencias de desenvolvimento.

Quanto aos instrumentos redutores de custos, aplica-se ao crédito o mesmo que foi acima discutido para o capital de risco. O consenso em relação à necessidade de uma reforma fiscal é forte e é de se desejar que o quadro político permita superar os diversos obstáculos que até agora impediram sua realização. Neste âmbito, cabe à PI reivindicar o estímulo seletivo aos investimentos em capacidade de produção e capacitação tecnológica.

Finalmente, ainda ao nível da empresa, é pertinente reconhecer a legitimidade da crítica liberal à concessão de benefícios sem reciprocidade. Estas terão que fazer parte explícita e transparente de todas as medidas tomadas no âmbito da PI, mesmo que expressas sob forma contingente. Da mesma forma, a natureza temporária e cadente dos benefícios é apropriada.

4.2. Políticas por sistemas setoriais de inovação

Embora empresas individuais sejam, em última instância, o objeto da PI,  a abordagem proposta para a nova política, por “sistemas setoriais de inovação”, em que estão combinadas as cadeias produtivas e as fontes de conhecimento necessárias para o seu desenvolvimento, implica em que o principal objeto da política sejam as cadeias produtivas. Desta forma, o grosso dos recursos alocados à PI será destinado aos programas setoriais e às empresas que deles participam. O atendimento “de balcão”, pulverizado entre várias empresas, teria caráter residual dentro da PI, embora mecanismos que atendem demandas pontuais, como a FINAME, fossem preservados. Esta orientação teria uma tripla vantagem: mobilizaria uma ‘massa crítica’ de recursos públicos, daria maior eficácia ao seu uso e estimularia as empresas a constituir e participar de programas setoriais, ampliando o escopo para a cooperação e geração de externalidades.

A flexibilidade é um atributo essencial da abordagem aqui proposta.  Flexibilidade na adequação de instrumentos aos objetivos setoriais e no plano regional. A descentralização da PI, especialmente as PIs orientadas para a redução da desigualdade provavelmente seria facilitada se fossem feitos programas de preparação das burocracias dos Estados e Municípios, à semelhança do realizado pelo BNDES com o propósito de adequar os últimos à Lei de Responsabilidade Fiscal.

A multiplicidade de objetivos e PIs e a própria abordagem por sistemas implica em inovações institucionais. Enquanto o sistema “de balcão” incentiva as instituições públicas a operarem de forma individualizada a abordagem proposta estimula sua cooperação. Para tanto, será necessário estabelecer mecanismos de coordenação entre as várias entidades públicas, em dois níveis, pelo menos: o dos programas setoriais/regionais e da PI como um todo. O Estado brasileiro já experimentou algumas formas institucionais que podem servir de ponto de partida para esse fim: a gerência por projetos do Ministério de Planejamento e o Conselho Monetário Nacional (em sua forma atual). A experiência indica, porém, que qualquer forma institucional corre o risco de ser uma casca vazia se os detentores de poder não lhe derem substância – nenhuma PI será eficaz se o Ministério da Fazenda não a validar. Por sua vez, o Ministro da Fazenda não aplicará parte do seu capital político numa nova política, como a PI aqui sugerida, se as forças políticas que se expressam através do Presidente da República e do Congresso e na sociedade civil não fizerem pressão nesse sentido. No fundo, a existência de uma PI e suas características são, como o próprio nome indica, decisões políticas.

5. Conclusões

Argumentou-se aqui que o retorno da política industrial à agenda nacional não é fruto do acaso – ao contrário, reflete o fracasso de um projeto de desenvolvimento perseguido durante mais de uma década. O momento presente, mais que uma transição política, oferece a possibilidade de mudar esse projeto.

Formou-se, recentemente, um primeiro consenso quanto a alguns objetivos que a nova PI deverá buscar: aumentar as exportações e reduzir as importações, visando aliviar a restrição externa e, indiretamente, a restrição fiscal, que pesam sobre a macro brasileira. Também parece haver um consenso sobre a necessidade de dar conteúdo setorial e coletivo a estes objetivos, enfocando os setores segundo o ângulo da cadeia produtiva. Há também um consenso sobre a prioridade a ser dada à incorporação de novos setores (notadamente nas cadeias eletrônica e  química) à matriz produtiva, assim como ao aperfeiçoamento generalizado da capacidade tecnológica e de vendas no exterior.

Finalmente, testemunhando o legado positivo da reforma liberal, há um concordância quanto à natureza transitória, cadente e transparente do apoio estatal às empresas, sujeito sempre à realização de objetivos previamente acordados.

O consenso, parece-me, pára aí. Não é pouco, considerando o passado recente, mas sugiro que deve-se ir além.

Em primeiro lugar, argumento que essa nova estrutura só é dinamicamente sustentável se desenvolvermos uma capacidade de inovação interna, rompendo uma condição histórica do nosso subdesenvolvimento – sermos, no máximo, capazes de produzir. Para tanto, a Pi deveria agregar à cadeia produtiva as fontes de conhecimento (operando por sistemas setoriais  de inovação) com uma visão prospectiva e privilegiar mecanismos de política que reduzam riscos e favoreçam a ação coletiva.

Em segundo lugar, sugiro que os objetivos do desenvolvimento não se esgotam no desenvolvimento de “novas forças produtivas”, por melhores que sejam seus resultados. A redução da desigualdade é um objetivo prioritário, que merece tratamento específico, além dos efeitos decorrentes do crescimento. PIs podem servir a esse objetivo segundo, pelo menos, dois ângulos: suprir os serviços sociais básicos e reduzir as disparidades regionais.

A política industrial tem, por certo, outros objetivos relevantes, alguns tangenciados apenas no texto (como o alívio das restrições fiscais) e outros que minha vã filosofia não percebe. Exatamente por levantar esta temática – os objetivos do desenvolvimento – o debate sobre a política industrial é agora especialmente oportuno.