Amizade

Pode perguntar. Todos vão confirmar que tenho cara de maluco mas sou de boa paz. Não vendo fiado, não casei, não discuto religião e política, e mulher de amigo é homem. Brigo só pelos meus amigos e pelo Botafogo.

Minha amizade com Aristeu tem muito a ver com o Botafogo. No Grupo Escolar éramos os únicos com a Estrela Solitária na capa do caderno. Demos e levamos muita porrada por conta disso. Amizade firme.

Eu herdei a sapataria do meu avô, Aristeu foi estudar.

Aristeu arrumou um bom emprego, foi subindo na firma, ganhando bem, mas ficou morando aqui.

Num sábado ao meio-dia, véspera de jogo, estávamos todos no bar nos preparando, quando passou na calçada, andando de patins, uma morena vestida de licra.

Alguém disse:

Deus faz, a Natureza conserva.

Outro esclareceu:

É a Beatriz, filha do Humberto.

Eu fiquei pensando como era possível. Ainda ontem era uma menina, hoje, aquele assombro de mulher! E o Humberto e a mulher tão feios… Também pensei no preço daquelas roupinhas e patins e na dureza do Humberto.

Aristeu não disse nada. Estava tão besta que derramou cerveja fora do copo.

Ela percebeu tudo e ficou dando voltas, se exibindo. Todo mundo comendo com o olhar.

Podia ter ficado nisso, mas Aristeu casou com ela. O que ele via nela não precisava explicação. O contrário não sei; não entendo de mulher. Aristeu era magro, alto, desengonçado, com um gogó saliente, nunca tinha arrumado namorada.

Casaram e mudaram. Aristeu comprou um apartamento na Barra, financiado, e um carro zero. Estava ganhando uma boa grana mas trabalhava como um condenado para pagar tudo. Engordou e ficou menos desengonçado. Até o gogó diminuiu.

Mesmo assim, Aristeu continuou vindo todo fim de semana tomar uma cerveja. Quando o Botafogo jogava no domingo, íamos junto. Durante a semana não dava por causa do trabalho. Beatriz só aparecia nos aniversários da mãe e do pai. O Humberto continuava duro, mas Aristeu dava-lhe uma força, escondido da mulher. Beatriz continuava gostosa. Ainda mais.

Quando o primeiro filho nasceu, fui o padrinho. Tive a impressão de que Beatriz não gostou muito, sem classe e meio doido. Bela festa, garçons, muito uísque e canapês. Foi a primeira vez que fui à casa deles. Apartamentaço.

Padrinho tem obrigações e passei a ir lá, levar o moleque para passear, brincar com a bola, que intimidade a gente pega de pequeno. Era tempo do moleque ganhar um irmão, mas eles nada.

Um domingo, Aristeu não compareceu. Estranhei, porque era dia de jogo com o Fluminense, o Bota era favorito e Aristeu tinha muita birra com o Fluminense. Foi até bom, porque perdemos. Roubados, mas perdemos.

Na segunda feira, quando estava fechando a sapataria, Aristeu apareceu. Gravata aberta no pescoço, um bafo de bebida de dois metros. O gogó tremendo.  Beatriz tinha saído de casa. Não queria exibir a dor no botequim e sentamos ali mesmo, nos fundos da sapataria, cercados de caixas.

A gente andava brigando muito. Mais ela comigo. Diz que eu sou chato, medíocre. Medíocre, eu? Dei tudo para ela! Tudo!

As lágrimas corriam. Eu, embaraçado. Pensei em perguntar como iam as coisas de cama, mas tem coisa que não se indaga.

Mulher que larga o marido vai para a casa dos pais. Beatriz não, foi para um flat. Mas, na semana seguinte era o aniversário do Humberto e apareci por lá.

Achei Beatriz meio acabadinha. No meio da noite, puxou-me de lado e despejou um jorro de ódio. De que, não dava muito para entender. Da vida mansa que levava? Da chatura do Aristeu? Mas, esperava o que? O príncipe encantado no cavalo branco? Mas não disse nada, fiquei ouvindo.

O divórcio era uma guerra. Os pretextos eram os de sempre: dinheiro e filho. No fundo, era Aristeu inconformado com a separação.

Acompanhei a guerra de perto. Meu afilhado andava derreado. Aristeu estava um lixo, Beatriz nem tanto. Eu, a única testemunha. Aristeu sumiu do botequim e disse que tinha tirado uma licença de saúde no trabalho.

Andava precisando de um dinheirinho e resolvi fazer uma liquidação. Estava arrumando a vitrine quando Aristeu entrou. Tinha um papel na mão e só faltava babar.

Você ainda tem aquele revólver? A vagabunda! Vagabunda! Com aquela conversa de espaço, tédio, identidade! Me corneando pelas esquinas! Vaca! Mas eu acabo com ela! Mato ela! Descubro quem foi e mato ele também! Depois, me mato!

O papel era uma carta. Dizia que Beatriz tinha-lhe plantado chifres de montão, quando ainda eram casados. Não dizia com quem. Não tinha assinatura. Aristeu também tinha mudado e a carta tinha chegado no apartamento novo. Impressa em papel branco.

Estava na cara que não ia dar o revólver para Aristeu. Se ele quisesse já tinha arrumado um. Mas fiquei muito puto. Fazer isso com meu amigo?! Pai do meu afilhado!

Carta anônima é coisa de viado. Amigo, se é para dar um toque, puxa no canto e dá. Mas eu, num caso desses, não daria. Ninguém está livre disso. Se tivesse alguma intimidade, daria um epa, um aviso, na mulher.

Fomos para o botequim e ficamos bebendo até fechar. Levei o Aristeu para minha casa, para ele não dormir sozinho. Depois, passei na loja e peguei o revólver. Não devolvi a carta.

Na manhã seguinte, pus o revolver e a carta no porta-luvas do carro e fui procurar meu sobrinho Onofre, que entende de computador. Depois, fui até o antigo apartamento de Aristeu e Beatriz. O porteiro me confirmou que Aristeu não tinha vendido nem alugado, só fechado por uns tempos. Continuava indo ali pegar a correspondência.

Dali, fui até o tal flat de Beatriz. Era de manhã, horário de escola. Pus o revolver no cinto, encoberto pela camisa e a carta no bolso. O porteiro me conhecia das vezes que fui pegar o moleque, mas não me viu entrar.

Ficou espantada em me ver – o moleque não estava. Tinha desistido de ser loura. Estava descalça, de short e camiseta. Sem sutiã. De tirar o fôlego! O lugar era pequeno, mas bem arranjadinho. Empregada não tinha.

Sentei na poltrona e deixei o sofá para ela. Aceitei o café. Quando trouxe, percebeu o revolver em baixo da camisa. Ficou pálida e sentou devagarzinho.

Eu fiz que não percebi e perguntei pelos pais dela. Depois, nessa onda de família, contei de meu tio Cândido. Que tinha matado a mulher porque achava que ela tinha passado ele para trás. Achava, porque nunca foi provado. Mas tinha desgraçado os filhos, meus primos. Ela passou a ponta da língua nos lábios. Não tirava o olho da minha cintura. Disse que era um absurdo. Eu concordei. Mas a vida era assim, cheia de absurdo.

Tirei o revolver e coloquei em cima da mesa, entre os dois, cano virado para ela, mão apoiada na coronha. Ela meio que levantou, mandei sentar e ficar quieta. Com a outra mão, estiquei a carta para ela.

Aristeu é meu amigo. Meu irmão. Recebeu essa carta. Lê.

Ela mal olhou o papel.

Diz aí que você dava mais que chuchu em cerca. Quando ainda eram casados.

Confirmou com a cabeça.

Está confirmando o que? Que pôs chifre no Aristeu?

Ela não conseguiu falar, só abanou a cabeça.

Tem namorado?

Novo abano.

Peguei o revólver e afundei o cano entre os seus peitos. Ela foi recuando para dentro do sofá, até que chegou no encosto, a cara branca, os olhos fechados bem apertados.

Foi você quem escreveu a carta.

Sacudiu a cabeça. Eu apertei o cano do revolver até o osso.

Se eu abrir essa bosta de computador e achar essa carta em meus documentos aperto o gatilho…

Apertou ainda mais os olhos e prendeu o fôlego. Eu continuei:

Só você sabe o novo endereço do Aristeu… Vou perguntar pela última vez! Foi você quem escreveu?

Abriu os olhos, toda encolhida. Confirmou com a cabeça.

Pra sacanear o Aristeu?

Pra ver se ele me esquece.

Porque acha que ele não é homem capaz de uma besteira? Só não fez porque eu segurei! Queria te matar e depois se suicidar! É burra mesmo! Não percebe que o Aristeu é apaixonado por você?

Ela arregalou os olhos e abriu um pouco a boca, espantada, sem dizer palavra. Ia levantar mas eu empurrei de volta para o fundo.

Mas eu, eu sou capaz de muita besteira e sou amigo dele. Amigo pra mim é sagrado! E não tem ninguém para me segurar!

Não tirava os olhos do revolver e respirava com dificuldade. Segurei o seu rosto e obriguei a me olhar.

Essa briga faz mal ao meu afilhado, entendeu?

Peguei pelo braço e levantei-a, sem largar o revólver. Mandei ligar o computador e me mostrar a carta. Estava lá.

Escreve outra carta. Igual a que foi para o Aristeu. Endereçada para você. Dizendo que ele te corneava. Aí!

Fez o que mandei. Justiça seja feita, sem choro nem nada.

Agora, telefona para o Aristeu e faz uma cena.

Foi uma boa cena. Leu a carta no telefone. Xingou, chamou  de canalha, mau caráter. Que aquilo confirmava que a coisa mais certa que fez na vida foi largá-lo. Que se arrependia de não tê-lo corneado quando ainda eram casados.

Peguei uma cópia da carta. Não dissemos palavra, mas me levou até a porta.

Domingo último, Aristeu apareceu cedo no botequim. Me levou para um canto e encheu nossos copos.

Mano, como tem gente má! Imagina só, Beatriz também recebeu uma carta igual. Tudo fofoca. Carta anônima é isso aí, não dá para confiar! Agradeço muito você ter me segurado. Podia ter feito alguma bobagem, e aí, como ficava? Já imaginou o remorso? Aliás, depois disso, as coisas com Beatriz melhoraram. A gente tem conversado… Outro dia ela perguntou por você.

Mas já estava na hora de ir para o jogo e não soube o que a Beatriz queria comigo. Gosto de vida em paz, não perguntei. Mas pensei que, se ela e Aristeu continuarem separados, ela não vai mais ser mulher de amigo meu.

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Sangue e Fala

Os Restrepo eram muitos, quase inumeráveis.  Para distinguir-se, como os nomes se repetiam, usavam apelidos. Também, dissera-o Restrepo Pai, os apelidos eram mais sensatos que os nomes : refletiam algo da personalidade, interna ou externa, do apelidado, enquanto o nome era arbitrário, dado que era...

Sangue e Fala

Fabio S. Erber, Para Ana, esperando ter atendido.

Os Restrepo eram muitos, quase inumeráveis.  Para distinguir-se, como os nomes se repetiam, usavam apelidos. Também, dissera-o Restrepo Pai, os apelidos eram mais sensatos que os nomes : refletiam algo da personalidade, interna ou externa, do apelidado, enquanto o nome era arbitrário, dado que era impossível saber, ao levar o bebê à pia batismal, se, mais tarde, teria cara de Anselmo ou Hermengarda. É verdade que, algumas vezes, o apelidado mudava ao longo da vida e o apelido perdia o sentido, até mesmo para o dono. Outras vezes, o apelido apanhava só uma parte do apelidado. Entre outros, havia, entre os Restrepo, Rodrigo o Boi e Hilário o Gago.

Foi Rodrigo o Boi quem mudou a vida de Hilário o Gago. Franzino e impedido de falar, Hilário cresceu no deboche dos primos e tios e, mais disfarçadamente, no desprezo do pai. Cuja língua solta levara-o a uma carreira política na Capital. A mãe de Hilário, decepcionada com aquele primogênito enfezado, em uma família em que a saúde era obrigatória, dedicara-se aos vários irmãos e irmãs que, pontualmente, a cada ano o sucederam, todos, a seu tempo, adequadamente falantes. Aos poucos, todos foram se esquecendo da existência de Hilário, até que, numa tarde de chuva, sem ter nada que fazer, Rodrigo entrou numa das salas e viu o sobrinho idiota frente a um tabuleiro de xadrez. Para seu espanto, era um problema que Hilário estava resolvendo. Por curiosidade, Rodrigo propôs uma partida.

O menino era um jogador maduro. Ponderava cada lance e jogava sem hesitação. Tinha, para cada partida, uma estratégia. Ganhou todas. O prazer que sentia ao ganhar era visível, embora tentasse disfarçar.

Se o físico de Rodrigo justificava o apelido, a inteligência e o afeto iam além. Apiedou-se do sobrinho e, estudante de medicina, fez vários testes com o garoto. Não obteve nenhum resultado que esclarecesse a gagueira. Intrigado, propôs levar o menino para a cidade, para fazer outros exames. O irmão e a cunhada manifestaram gratidão, embora duvidassem se o trabalho pagava a pena.

Na cidade, Hilário descobriu que, contra tudo que lhe haviam dito, era inteligente. Mas a gagueira não cedia. Nada de físico se descobriu e Hilário resistiu a todo tratamento psicológico. Se o preço da cura era abrir-se a estranhos, gago ficaria.

Depois, Hilário descobriu os dinossauros. Solteiro, sem saber como distrair o sobrinho, um domingo Rodrigo o levou ao Museu de História Natural. Ao passarem pela sala da pré-história, Hilário empacou. Abriu a boca e ficou olhando o esqueleto. Voltou dias seguidos. Aprendeu a desenhá-los. Lia tudo o que encontrava sobre o assunto e, para isso, voltou-se para outras línguas.

Ao mesmo tempo que alimentava a paixão do sobrinho, comprando-lhe livros e ouvindo com paciência o seu sofrido entusiasmo, Rodrigo ocultou da família o que ocorria, temeroso que  internassem o sobrinho como louco. Assim, foi o único que não se surpreendeu quando Hilário, tendo concluído os cursos normais, anunciou que ia estudar paleontologia. Aos pais, antes de partir para o exterior, Hilário deu como única explicação o fato de ninguém saber, nem poder saber, que sons emitiam os sáurios .

Em outras línguas, sua gagueira limitava-se a uma dificuldade em dar a partida nas frases. Mas,  na língua natal, especialmente quando se tratasse de afetos, ainda era o Gago. A única exceção eram as conversas com o Boi, que rebatizou, para sempre, de Tio Rodrigo.

Ao longo dos anos foram mantendo, o tio e o sobrinho, uma correspondência regular, cada qual com sua paixão. Enquanto Hilário dedicava-se aos fósseis, Rodrigo cultivava os prazeres da carne. Literalmente: detestava saladas, frutas e outros vegetais, talvez por reação ao apelido. Desprezava o colesterol e as dietas e, a medida que envelhecia, mais justificava o apelido. Também em mulheres apreciava as carnes e casou-se com uma enfermeira de ampla cubagem e temperamento plácido. Coincidiu o casamento com a Grande Partilha, após a morte de Restrepo Pai, e nessa, Rodrigo herdara extensas pastagens. Nelas se dedicou a criar carneiros e a cultivar sua outra paixão : a clínica geral. Construiu um anexo à fazenda para abrigar o consultório, comprou uma ambulância e equipou-os com o que de mais moderno havia. Atendia por quilômetros ao redor, freqüentemente sem nada cobrar. O pai de Hilário, em vão, tentou convencê-lo a entrar para a política.

Na Partilha, Hilário o Gago descobriu que, uma vez mais, fora esquecido. Embora o que tivesse herdado fosse suficiente para suas necessidades, era ínfimo em comparação com o que outros haviam recebido. Quis expressar seu ressentimento doando o legado a instituições de caridade, mas Rodrigo o dissuadiu.

Uma vez por ano, pelo menos, Hilário ia visitar o Tio. Na fazenda tinha um quarto, seu.  Saía de onde estivesse, desertos da Austrália, museus da Europa, e ia passar um mês, conversar, comer carne de carneiro e reabastecer-se de afeto. Com o trabalho confirmara a solidão. Dos membros da profissão recebia estima e consideração pela competência, mas dele, achava, não gostavam. Talvez, porque os visse mais como competidores que como colegas. Pensara ter paixões,  mas a língua e as emoções embaralhavam-se. Algumas vezes ia a prostitutas. Escrevia, com letra miúda, poesias torrenciais, longamente trabalhadas, que arquivava numa caixa de ferro, trancada a cadeado, guardada em baixo da cama, no quarto da fazenda. Consolava-se imaginando tratar-se, apenas, de um desencontro e ia, lentamente, esculpindo na mente o sonho do acerto, que, tinha certeza, estava por vir. Dessa paixão, que se agitava sem rumo, nada transpirava, nem para o Tio, que se preocupava com sua solidão.

A família, Hilário aboliu. Voltaram a ver-se quando a tragédia atingiu o Tio. Veio  como um câncer,  que lhe levou a mulher em poucos meses. Hilário largou tudo e ficou ao seu lado, vendo-o emagrecer sob a dor e o peso da culpa, de não ter percebido a doença a tempo e não poder curá-la. O enterro reuniu a família. Fechado no quarto, Hilário esperou que partissem. Quando terminou, choraram, ele e o tio, juntos, as primeiras lágrimas desde a infância.

Na semana seguinte ao enterro, Hilário recebeu uma carta do Smithsonian propondo-lhe a busca de toxodontes. Mamíferos, parecidos com o hipopótamo, à exceção do focinho, que era semelhante ao do rinoceronte, os toxodontes não tinham grande apelo. Nada comparável aos grandes sáurios com que sempre trabalhara. Mas o projeto tinha uma grande vantagem – a escavação seria perto, para seus padrões de distância, da fazenda. Em dois dias de carro, dirigindo sem parar, dava para ir. Ficou mais dois meses na fazenda, velando o Tio e, quando o viu comer o primeiro carneiro, concluiu que podia partir.

Em outras épocas, os toxodontes viviam à beira de lagoas e rios. A água, porém, secara há muito, e o deserto a substituíra. Apenas na estação de chuvas a água voltava, e com raiva, inundando tudo por três meses, até desaparecer de novo, tragada pelo chão. A revolução que causava no terreno era útil para desenterrar restos há séculos sepultos, mas enquanto durassem as chuvas, era impossível trabalhar. Ressecado pelo sol, frustrado pelos poucos achados, Hilário saudou as chuvas e começou a volta à fazenda.

Ao passar pela cidade para apanhar a correspondência, achou uma carta do tio. Era um ritual que se renovava a cada expedição e, ali, indicava a ressurreição. Mas estranhou o pedido. Na sua letra redonda e grande, Tio Rodrigo pedia-lhe que fosse a Santa Bárbara das Missões e procurasse notícias de um convento de uma obscura ordem, destruído por um incêndio em 1909 ou 1910. Queria também que tentasse saber se uma freira ou noviça chamada Clara Guzmán tinha por lá vivido  e morrido nesse incêndio.

Santa Bárbara acrescentaria pelo menos dois dias de viagem, por estradas que não conhecia, mas que sabia serem ruins. Tentou telefonar para o tio, apesar do PS, que prometia explicações quando chegasse. Quando a telefonista informou-lhe que um cabo havia caído, desistiu.

Santa Bárbara era pior do que imaginava. Levara um dia e meio para chegar ao meio do nada. Pequena, feia, com uma rua principal onde arremedos de edifícios modernos, de oito pisos, haviam substituído as antigas lojas de armarinho e alimentos. Finalmente, achou a Igreja Matriz, cujo tamanho sugeria uma opulência passada insuspeitável. Apesar das dimensões do prédio, havia um ar de pequenez. Talvez, imaginou, fossem os santos mirrados, a modernidade datada dos vitrais. Que fé, indagou-se, isso pode inspirar? O padre não estava e resolveu esperá-lo na sombra do átrio.

Demorou uma hora, mas chegou. Era miúdo e calvo. A batina podia ter sido lavada há algum tempo. Hilário foi recebido sem entusiasmo, mas a irritação com o iminente desperdício da viagem, ou algum dos santos esquecidos, inspiraram-no. Quando disse que se tratava de uma herança, o padre entendeu. Sim, uma herança justificava uma pesquisa, mesmo tanto tempo depois. Sim, havia registros que remontavam à metade do século anterior, quando Santa Bárbara fora um rico empório de algodão, antes que a praga acabasse com tudo, até com a fé das pessoas.

E o livro, velho e coberto de pó, registrava a existência do Convento das Servas do Coração de Maria. Um convento pequeno, composto de uma madre-superiora e de vinte freiras, sem contar as serventes. Destruído completamente num incêndio, na véspera de Natal de 1909. Haviam sobrado apenas as fundações, depois cobertas pelos paralelepípedos. Ficava onde, hoje, são os fundos da Rodoviária. O livro trazia também os nomes das duas madres-superioras que o haviam dirigido e das freiras. Seus nomes seculares e religiosos. Algumas mudavam o nome, mas Clara Guzmán virara apenas Irmã Clara. Talvez relutasse em deixar o mundo. De todo modo, vivera pouco – ao morrer no incêndio tinha vinte anos. Entrara no convento onze meses antes. Não se dizia porque. Fé? Fora a última a entrar. Por via das dúvidas, anotou o nome das outras e respectivas datas de nascimento e entrada. Todas estavam lá havia, pelo menos, três anos e nenhuma tinha menos de quarenta anos. Que teria sentido  aquela menina, no meio delas?  Que cara teria? Para que queria o Tio aquelas informações?

Aquele registro burocrático de uma tragédia, o desperdício de uma vida, incomodou-o tanto que fechou o livro bruscamente, levantando uma nuvem de poeira. Agradeceu ao padre e deixou uma contribuição para as obras de melhoria da Igreja. Pelo bafo do padre, suspeitou que, na verdade, a coleta fosse destinada à compra de vinho. Que talvez fosse santo.

Obsessivo e ocioso, resolveu ir ao jornal. Era um prédio pequeno, do início do século, que, à época, fora azul claro. Orgulhavam-se de sua coleção completa, mesmo que ninguém a utilizasse, exceto o Professor Gastão, que estava escrevendo a história da cidade. Ali achou mais, mas pouco. O incêndio tivera causas inexplicadas. Apesar dos esforços dos valorosos soldados do fogo, fora impossível apagá-lo. As freiras estavam no claustro e os corpos estavam tão queimados que fora impossível distingui-los. O Sr. Bispo viera oficiar a missa do enterro. Entre as mortas, havia duas da cidade. Clara Guzmán era uma delas. Filha de Alfredo e Maria do Pilar, ele negociante de alimentos, ela do lar. Tinha três irmãos, menores. Todos tristíssimos, mas consolados porque se fizera a vontade de Deus e ela estava com os anjos. Rangeu os dentes.

O Sr. Gastão era professor aposentado. Esperava que o registro das glórias passadas de Santa Bárbara servisse de inspiração para os alunos, que só pensavam em sair dali para outros lugares, mais modernos. Hilário concordou que era difícil que fossem mais felizes nesses lugares. Sobre o Convento, o Professor sabia pouco. Queimara no ano do seu nascimento.  Não tinha qualquer valor arquitetônico especial. Lembrava-se apenas de uma coisa : quando era menino, dizia-se que o terreno era mal-assombrado, que os fantasmas das freiras sugavam o sangue de quem passasse por lá à noite. Depois, os paralelepípedos haviam coberto a imaginação .

O registro civil pouco acrescentou. Alfredo Guzmán morrera dez anos depois da filha e a mulher seguira-o cinco anos depois. Encontrou o registro de óbito de um dos irmãos, três anos mais tarde, morto num acidente. Não procurou os demais.

Era o fim da tarde e resolveu ir até o cemitério. Num túmulo horrendo, protegido por um anjo de asas abertas, achou o nome da madre-superiora. Os  outros nomes estavam apagados. Da família Guzmán, não havia rastro.

Cansado, hospedou-se no hotel principal da cidade. Ao preencher a ficha, hesitou ante a “profissão”. Pesquisador ? Necrófilo ? Optou por professor. Passou a limpo suas anotações. Comeu mal e teve pesadelos. Sonhou com o fogo e uma mulher loura que gritava. Ao raiar do sol retomou viagem.

Chegou a uma encruzilhada, onde havia um posto de gasolina. Estava muito cansado e resolveu parar. Sabia que, se fosse pela direita, em uma hora chegaria à fazenda que fora de Pai Restrepo e que, agora, era do tio Emílio, o Conservador. Pela esquerda, levaria mais quatro horas, correndo, para chegar à casa de Tio Rodrigo. Resolveu comer no restaurante do posto.

Trataram-no com a maior deferência. Não porque o conhecessem pessoalmente, mas porque era, sem dúvida, um Restrepo. Com os anos, desenvolvera o físico da família, alto, pesado, o rosto moreno de nariz adunco, testemunhando algum mouro perdido no tempo. No seu caso, o sol e a vida nas escavações haviam-no reforçado e curtido. O menino franzino só ficara dentro dele. Ao olhar-se no espelho do banheiro, descobriu um fio branco na espessa barba preta. Deixou-o ficar, com a esperança que preanunciasse a paz da maturidade.

Dormiu uma hora na própria camionete e seguiu viagem, para a casa do Tio Rodrigo. Sabia que, na outra fazenda, seria bem recebido, mas sentia calafrios ao pensar em voltar. Os primos e ele haviam envelhecido, ninguém o escorraçaria, debochando da gagueira, mas a língua continuava presa e a humilhação também. Havia muitos anos lá que não ia. A última vez fora para a Grande Partilha. Choveu pesado no caminho.

Chegou de madrugada, mas a luz da varanda estava acesa, como sempre. A porta do quarto do Tio estava fechada, sinal de que estava em casa. Conforme os códigos, a do seu quarto estava aberta. Fechou-a e abriu as janelas. Fazia um calor pesado, prenúncio de mais chuva. Despiu-se, verificou se a caixa de metal estava em baixo da cama, com o cadeado fechado e, cumpridos os rituais, foi tomar banho. Era um dos luxos da casa do Tio, a grande banheira de metal  verde, esmaltada por dentro, com patas de leão, especialmente depois dos meses desérticos. Mas, ao deitar-se na água quente, teve uma indefinida e curiosa sensação de outra presença.

Sonhava pouco e mal. Em geral, eram pesadelos pré-históricos, como um que o acompanhara por muitas noites, em que um monstro, formado por um corpo de pterodáctilo e uma cabeça de tiranossauro, arrastava-se pelo chão, tentando levantar vôo, sem conseguir. Naquela noite, porém, o sonho era claro. Havia uma mulher loura, de pé, ao seu lado. Era lindíssima, mas quando ia estender os braços para abraçá-la, não conseguia, porque pesavam como pedras.

Acordou com o sol alto e a sensação do sonho ainda presente. Não encontrou o Tio. Apenas um bilhete, na mesa da grande sala de refeições, em que o Tio se desculpava – tivera que ir ver um doente e voltaria para o almoço. Havia, também, um curioso pedido – que não usasse o consultório. Como não costumava fazê-lo, estranhou. A velha empregada fez-lhe grandes festas, tentou dar-lhe muita comida, mas mostrou-se reticente em dar-lhe informações quanto à saúde do Tio. Para espantar a preocupação, mandou selar um cavalo. No campo, as ovelhas e os peões tinham a cara de sempre. Conhecia quase todos e, finalmente, encontrou quem procurava – Albano, o capataz. Estava com o Tio desde o início, mas era um índio velho e desconfiado, quase monossilábico. Comentou, porém, que o Patrão estava  preocupado e que haviam roubado duas ovelhas, recentemente. A sensação do sonho acompanhou-o, embora tentasse não pensar nela.

Tio Rodrigo esperava-o na varanda, com um abraço apertado. Recuperara o velho peso, mas haviam novas linhas de preocupação em volta dos olhos e uma indefinível excitação.

Os almoços na fazenda eram frugais, em contraponto aos jantares. Presidia-os a regra de evitarem assuntos complexos. Fazia parte do ritual entre os dois o Tio interrogá-lo sobre as escavações; mas, dessa vez, depois de umas poucas perguntas, foi para a visita à Santa Bárbara. Hilário passou-lhe as anotações que fizera e percebeu que a leitura o perturbou. Parou de comer por um tempo – o que era extraordinário – e ficou balançando a cabeça, olhando para o nada. Agradeceu-lhe sumariamente, guardou o papel cuidadosamente no bolso e passou a falar do cotidiano da fazenda, até que Hilário mencionou o roubo das ovelhas.  Já haviam chegado ao café, e o Tio, levantando-se, levou-o até a grande sala de estar. Era um sinal de crise.

A sala era o repositório das antigas glórias da fazenda, onde Tio Rodrigo concentrara os melhores móveis da decoração antiga, depois de modernizar o resto. Lá estavam os ouros e pratas, as porcelanas e, até mesmo, retratos de família. Em um canto, o mais alto da casa, havia duas grandes bergères, das quais, mesmo sentados, dava para ver a longa planície, coalhada de ovelhas. Para lá o Tio refugiava-se, quando necessitava meditar ou para conduzir as negociações mais intrincadas da criação e venda de ovelhas.

Tirou o papel do bolso, desdobrou-o e releu-o. Olhou para o sobrinho e parecia perplexo.

– Essa nossa mania de verificar as coisas… talvez não seja boa. Algumas vezes, acreditar ou desacreditar, sem  mais, é  melhor.

Hilário não comentou, porque sabia     que o Tio era dado àquelas generalizações evasivas, especialmente as que levavam a longas discussões sobre ética e filosofia. Com o tempo, o hábito piorara. Se não aceitasse a provocação, o Tio acabaria por ir ao assunto.

– Há um mês e meio, fui fazer um parto. Partos são o que mais gosto. Foi tranqüilo – a mãe era de bacia larga, o bebê estava em posição e nasceu um belo guri, moreno e cabeludo. Já tinha anoitecido, mas, como estava de bom humor, peguei, para voltar, a estrada velha, dos contrabandistas, que é mais arborizada. Vinha com a janela aberta, para sentir o perfume das plantas. Perto da encruzilhada,  comecei a ouvir algo esquisito. Não era bem ouvir, era mais sentir alguma coisa no ouvido.

          Você lembra da encruzilhada? À direita a gente quebra para a fazenda, à esquerda vai para a fronteira, no meio há uma enorme figueira. Bem na figueira, havia um carro batido. Destroçado. Com a luz dos faróis, vi uma mulher, em pé, do lado do motorista, tentando puxá-lo para fora do carro. E dava uns gritos agudos, quase inaudíveis. 

          Parei, é claro, e fui ajudar. Parecia uma mocinha. Estava muito pálida e tinha o rosto marcado de sangue. Dos olhos até o queixo. Ficou assustada quando me viu, mas, quando lhe disse que era médico, se acalmou. Quis examinar seu rosto, mas não deixou. Que não era nada. Que a ajudasse com o companheiro. Como não vi sinal de cortes, fui tentar tirá-lo do carro. Estava fumegando e tinha medo de que explodisse.

          Finalmente, conseguimos tira-lo. Estava totalmente inconsciente. Colocamos na maca e o levamos para a ambulância. Achei-o até leve, quando percebi que era ela quem estava com o grosso do peso. Fiquei admirado, porque parecia franzina. Lembro-me de que pensei que o amor dá forças às pessoas. Ela não falou,  mas sabia que eram namorados.

          Na ambulância, assustei-me com a palidez dela. Branca como papel, achei que ia desmaiar. O rapaz parecia grave e eu precisava de calma para examiná-lo. Mandei que sentasse no banquinho e abri a geladeira para pegar água.

Fez uma pausa, hesitando antes de continuar.

– Levo sempre umas bolsas de sangue, caso precise duma transfusão. Antes que eu pudesse fazer um gesto, ela pegou a primeira bolsa, rasgou-a com os dentes e tomou-a, toda. Como quem bebe um refrigerante. Aí, deu um suspiro fundo e sorriu. Os caninos eram maiores que o normal.                

          Acho que só aí percebeu o que fizera. A cor do rosto estava voltando ao normal. Pegou minha mão entre as suas e disse : “Por favor, cuide dele. Depois eu explico tudo”.

Hilário quis falar, mas não conseguiu. O Tio olhou-o e suspirou.

–  Você já me disse que sou médico antes de tudo, até de criador de ovelhas. Fui ver o rapaz. Parecia muito grave. Estava vivo, mas sem qualquer reflexo. Expliquei a situação para ela e sugeri que o levássemos a um hospital. Ficou aflitíssima com a idéia.

           “Não não. Não podemos”, me dizia. “Não vou poder ficar perto dele. Não vão deixar. E vão pegá-lo e matá-lo”.

          Contou que o rapaz era traficante de drogas e fizera um grande desvio para fugir com ela. Mas ela achava que os donos da droga já haviam percebido e estavam atrás deles. Quando cheguei, ficou em pânico pensando que fossem eles.

          Cada época tem as histórias românticas que pode.

Rodrigo fez outra pausa.

– Aí, suspeito, fiz uma loucura. Ou uma bobagem.  Até agora não sei. Sempre fui um cidadão cumpridor das leis. Mas que leis valem num caso desses? Passei horas perguntando por que. Pode ter sido pena, ou romantismo, ou curiosidade. Desde que Liz morreu, minha vida tem sido um vazio.

          O fato é que me ofereci  para examiná-lo melhor no consultório. Dali, poderíamos sempre remove-lo para um hospital, no dia seguinte.

          Só que, no dia seguinte, enquanto ela estava dormindo, chegou um carro aqui na fazenda. Dentro, estavam quatro homens. Saltaram todos e, enquanto dois olhavam em volta, com a desculpa de se espreguiçarem, os outros dois, os que estavam sentados na frente, vieram falar comigo.

          Disseram que eram da polícia. Se fossem, preferiria chamar os bandidos. Perguntaram pelo carro e pelo casal. Eu não sabia de nem um nem outro. Pareceram acreditar e foram embora. Depois, Albano me disse que ficaram rodando pela vizinhança.

          No dia seguinte voltaram. Tinham achado o carro. Expliquei que quase ninguém usa aquela estrada – só o pessoal que quer cruzar a fronteira sem passar pelo posto. O casal podia ter andado ou arranjado carona num caminhão. Ninguém podia saber.

          Rondaram mais um dia e, depois, sumiram.

          Mas eu não podia levá-lo para um hospital.

Ficou um tempo quieto, pensando.

– Estou mentindo, Hilário. Ou, pelo menos, me enganando. Eles ficaram porque eu quis. Porque tinha uma enorme curiosidade de conhecer uma vampira.

Levantou-se.

– Ainda estão aqui. No anexo do consultório.

Hilário lembrou-se do bilhete.

– Quer vê-los?

Ao destrancar a porta, Rodrigo virou-se e avisou :

– Não faça barulho. Ela está dormindo.

Na porta da salinha, Hilário teve de sentar-se rapidamente, porque tinha a sensação de que ia cair. Deitado, com um sorriso nos lábios, respirando levemente, estava o Sonho. Engasgou e teve medo de sufocar.

Não sabia quanto tempo depois, levantou-se para vê-la de perto.

Era e não era o Sonho. Era menor, mais franzina. O rosto mais afilado. O cabelo não era bem louro, mas castanho claro, cor de mel. E, ao mesmo tempo, era o Sonho.

Ficou ali, olhando-a,  bestificado.

Quando o Tio o puxou pelo braço, tirou-lhe a mão, irritado. Olhou em volta, mas mal prestou atenção à figura deitada na outra cama. Precisava de ar fresco e saiu quase correndo.

Rodrigo encontrou-o na varanda, andando de um lado para o outro. Não queria e não podia explicar ao Tio o que ocorrera. Gaguejou uma desculpa e fugiu, primeiro para seu quarto e, depois, para o dorso do cavalo. Voltou ao fim da tarde.

Tomou um longo banho e foi encontrar o Tio na varanda. Já estava escurecendo e sua ansiedade subia. O Tio olhou-o longamente, preocupado. Para desconversar, Hilário perguntou :

– Quem mais sabe?

          – Marta sabe que está aqui, cuidando do rapaz. Acho que Albano também sabe, mas ele não comenta. Desconfio que acham que é minha amante.

Hilário sentiu uma pontada no fígado e, logo, vergonha. O Tio, sem perceber, riu.

– Não faz o meu gênero. Muito magrinha!  Mas ninguém sabe que é uma vampira. Nem pode saber!

Pela milésima vez, Hilário disse-se que o Tio estava errado. Que vampiros não existem. Que a moça devia sofrer de alguma doença rara. Lembrou-se de que o Tio não tinha diagnosticado a doença da própria mulher e envergonhou-se. Assustado, pensou que, talvez, o Tio tivesse enlouquecido. Loucos não faltavam na família, o próprio Tio sempre dizia. Mas sentiu alívio que ela estivesse a salvo dos ocupantes do carro e ficou grato ao Tio por protegê-la. Enternecido, comentou :

– Ela parece tão frágil !

          – Frágil ?

Rodrigo contou-lhe o assalto.

– Eram dois pobres-diabos. Haviam sido despedidos da fazenda vizinha por pequenos roubos e precisavam de emprego. Até pensei em dar-lhes uma chance, mas Albano foi contra e, nessas coisas, respeito o que decide.

          Entraram aqui à noite, depois do jantar. Marta havia saído. Estavam armados com faca. Nem revolver tinham. Encontrei-os na sala: tinham uma sacola aberta e estavam guardando as pratarias. Já não sou garoto e fiquei com medo. Mandaram-me sentar na poltrona e ficar quieto. Acho que não sabiam o que fazer comigo.

          Aí ela entrou. Ao ver que era uma mocinha, um deles ficou ao lado da estante, pondo as pratas na sacola e o outro foi para o meio da sala e mandou-a chegar perto. Até disse que ela não precisava ter medo!         

          Sorrindo, ela foi se aproximando. Você vai ver, ela tem um sorriso esquisito. Você já viu um gato tocaiando uma borboleta ?  Como se abaixa e vai de mansinho ? Até dava para ver a cauda dela abanando ! Até que chegou bem perto do sujeito. Sempre sorrindo. Não sei se de propósito, mas o último botão do vestido estava aberto. Ficaram assim, parados, um na frente do outro, ele com a faca na mão, meio sem jeito, e ela olhando-o e sorrindo. Até que, de repente, não sei como foi, ele deu um grito e vi que a faca estava na mão dela e ele segurava o pulso. De onde eu estava, parecia destroncado.

Parou para tomar fôlego.

– Aí começou o horror. Quase em câmara lenta, ela lhe deu um enorme talho no rosto. De cima a baixo. Deu um passo para trás e… lambeu a lâmina!

          Franzina, não é ? Pois, de repente, tive a sensação que fosse enorme! Largou a faca e arreganhou os dentes, sibilando! Os caninos pareciam ter crescido!

          Quando ela cortou a cara do primeiro, ele não pareceu acreditar. Talvez fosse o choque. Mas quando sentiu o sangue correndo, deu um berro. O outro, quando viu aquilo tudo, especialmente a cara dela, largou  faca, sacola, tudo, e saiu correndo. Ela foi atrás. O cabelo solto, parecia não ter peso. O primeiro idiota foi atrás.

          – E você ?

          – Eu fiquei lá, sentado. Petrificado. Não queria ver.

Fez uma longa pausa.

– Ouvir foi o bastante. Primeiro, um grito. Depois, outro, Os dois foram urros – o segundo ainda pior que o primeiro. Depois, o silêncio. Silêncio total. Lá fora não havia um passarinho ou grilo piando. Um silêncio de fim de mundo.

          Não sei quanto tempo fiquei sentado naquela poltrona. Até que ouvi a escada da varanda ranger. E ela entrou, limpando a boca na manga do vestido. Deu-me um sorriso e sentou na poltrona em frente, sem dizer nada. E ficou lá, com ar satisfeito, o olhar perdido para fora.

          Nessa profissão, já vi muitos cadáveres. Fiz internato em pronto-socorro. Mas nunca, juro, nunca vi outros com tamanha expressão de horror no rosto! Os dois tinham a garganta rasgada e sugada. Acho que ela pegou o que saiu primeiro por trás e, aí, virou-se para pegar o segundo.

Fizeram um longo silêncio, o horror entre eles.

– O que… o que você fez com os corpos ?

          – Tinha que me livrar deles. Devia ter chamado a polícia, mas não tive coragem de entregá-la. Já lhe disse, minha ética está muito confusa. Percebo que ela fez… o que fez, para me proteger. Matar alguém, para ela, não é grande drama. Imagino que uma onça não perde o sono depois de matar uma cotia. É um fato natural.

Ficou ponderando aquilo e acrescentou simplesmente, para si mesmo:

– Ela não é humana.

E para o sobrinho :

– Lembra-se da mina velha, abandonada ? Joguei-os lá. Logo, só vão sobrar os esqueletos. Quando os acharem, pensarão que caíram acidentalmente. Pobres coitados !

Fez uma pausa.

– Acho que quem convive com uma onça deve sentir o mesmo. Domesticada, sim, mas imprevisível. Outras vezes, penso que não é bem isso. Que não é uma onça, mas algo diferente. Alguém, algo, que tem um código de ética diferente.

Ficaram ali, parados, olhando as estrelas, cada um perdido em seus pensamentos, até que, sem que Hilário tivesse ouvido qualquer ruído, uma voz feminina deu-lhes boa noite.

Era o Sonho. Acordado, de pé, com um vestido preto, longo, que ia até os pés, abotoado na frente – um misto de vestido e negligê. Tinha, mesmo, um sorriso estranho, de lábios fechados, que lhe dava um ar misterioso, de Mona Lisa. Os cabelos lisos, soltos e repartidos no meio. Pele muito branca, com a tez de juventude. Sem pintura,  o único adorno era um crucifixo de prata no pescoço, preso por uma corrente, também de prata. Os olhos, percebeu, eram grandes e levemente estrábicos.

– Você é Hilário, não é? O Doutor Rodrigo falou muito de você!

Falava baixo, com voz de mocinha bem-educada.

Mudo, Hilário apertou-lhe a mão. Olhava-a, arregalado, mas teve que fechar os olhos quando Tio Rodrigo anunciou, formalmente:

– Hilário Restrepo. Clara Guzmán

Teve vontade de gritar que não! Que era um engano! Clara Guzmán nascera em 1889 e morrera vinte anos depois num incêndio! Ele vira os registros, os jornais, o atestado de óbito! Estava tudo lá, em Santa Bárbara!

Felizmente, os dois outros estavam conversando algo que não ouvia. Até que ela disse para o Tio :

– Vamos ver o que acontece. Um milagre é sempre possível.

Olhando para Hilário, perguntou a Rodrigo, preocupada:

– Ele está zangado porque usei a banheira ?

Rodrigo pigarreou, embaraçado.

– Achei que Você não se incomodaria, se ela usasse a sua banheira.

Hilário sentia a confusão aumentar, mas abanou energicamente a cabeça. Podia usar a banheira, a cama, o que quisesse. Por que não iam jantar, para que pudesse sentar-se e tentar por ordem na cabeça ?

Mas ela insistiu :

– É igual a uma que havia na casa de meus pais.

Qual casa? pensou Hilário.  Não em Santa Bárbara! Mas ela só acrescentou :

– Há muito tempo atrás.

Tinha vontade de sacudir os dois. Há quanto tempo atrás? Onde? Mas Tio Rodrigo apenas sugeriu que fossem jantar.

Ao sentar-se, pensou que era uma sorte que as batidas do coração fossem inaudíveis. Não tinha a mais remota idéia do que estava comendo, nem conseguia ouvir direito o que os outros dois falavam. Ou melhor, ela falava. Comia pouco, só beliscava, mas falava pelos cotovelos. Percebeu que o Tio a tratava quase como se fosse uma criança. Haviam feito um par de tentativas de integrá-lo na conversa, mas respondera tão monossilabicamente que haviam desistido, embora, por vezes, o olhassem perplexos. Quando, na sobremesa, estava conseguindo se aprumar, ela riu de algo que  Rodrigo falou. Jogou a cabeça para trás e riu. Como mulher, não como menina. O equilíbrio foi para o espaço.  Vira, claramente, os caninos.

Desculpou-se depois do café e foi para o quarto. Deitou-se, na esperança que, dormindo, o equilíbrio se re-estabelecesse. Ou melhor, que descobrisse, depois, que tudo fora um sonho. Até mesmo a notícia de uma alucinação seria benvinda. Mas não conseguia dormir e ficou olhando o teto, sentindo o pulsar do sangue.

Até que a porta abriu-se, silenciosamente, e Ela entrou. Não conseguia pensar nela como Clara Guzmán. Assustou-se quando o viu acordado.

– Desculpe! Não queria acordá-lo. Normalmente, não faço barulho. Ia tomar um banho e a porta do banheiro que dá para o corredor está trancada.

Tinha uma toalha na mão.

Hilário levantou-se, confuso. Ainda estava vestido. Ao vê-lo de pé, ela propôs :

– Se está sem sono, por que não vamos passear? Ainda são duas horas, temos muito tempo.

Fora, fazia muito calor. Ela lhe falava do Tio.

– Ele é uma pessoa muito boa. É tão raro encontrar humanos assim! 

Hilário sentiu um desconforto e resolveu, sem saber, enfrentar a situação.

– Por que diz isso ? Você não é humana ?

Ela parou e o olhou, perplexa.

– Bem… pensei que seu Tio tivesse falado a meu respeito.

Encarando-o, sorriu, deixando ver os caninos, pequenos mas ponteagudos.

– Eu sou… diferente.

Recomeçaram a andar, em silêncio, até que Hilário voltou à carga.

– Estive em Santa Bárbara.

Aquilo desconcertou-a.

– Para que?

Mas Hilário não respondeu. Sentiu-se culpado, como de uma inconfidência ou uma indiscrição. Ela parou e encostou-se numa árvore.

– Nunca mais voltei lá. Eles ainda se lembram de mim?

Ele abanou a cabeça. Não conseguia dizer-lhe que, para todos, era uma morta.

– Meus pais já devem ter morrido. Há muito tempo. E meus irmãos?

Ele preferiu o silêncio. Ela sacudiu a cabeça e recomeçou a andar, tirando folhas de um galho.

– E que importa? Foi outra vida.

Saíram da mata e chegaram à beira do riacho que cortava a fazenda. Não havia lua, coberta de nuvens pretas. Estavam sobre uma ponte de madeira, debruçados sobre a murada, olhando o correr da água. Hilário sentia-se culpado e, talvez por isso, enternecido, mas não teve coragem de falar ou tocá-la. Ela estava perdida nas memórias. Subitamente, começou a falar. Tinha perdido o tom de menina.

– Eu era muito novinha. E muito, muito apaixonada. Íamos casar no ano seguinte. Que paixão! .

Sorriu para as águas.

– Meu irmão nos pegou na cama. Era de tarde; achávamos que todos tinham saído. Mas ele estava espionando há muito tempo e sabia. Tanto, que entrou armado. Carlos não teve a menor chance – meu irmão deu-lhe quatro tiros. Quatro! Um pegou-lhe o queixo, outros dois no peito, o último entre os olhos. Com o revolver de Papai. Não lhe deu oportunidade de pedir piedade. Lembro do barulho dos tiros no quarto e dos gritos. Só mais tarde percebi que era eu quem gritava. Meu irmão não disse palavra.

A voz ficara rouca e ela parou.

– Papi era um homem influente e abafaram o caso. Houve um processo, claro, mas era um clássico. Honra lavada em sangue. Eu queria dizer que fora eu quem seduzira Carlos, que ele queria esperar o casamento, mas não me deixaram depor. Para me poupar!

          Com tanto ódio e tanta culpa, acho que enlouqueci por uns tempos. Não conseguia olhar para aquela gente, para minha família, para todos na cidade. Vê-los cumprir as rotinas do dia a dia, como se nada tivesse acontecido.

          E, para eles, eu era um estorvo. Mulher e desonrada. Publicamente. Com a marca de sangue. Ninguém de boa família se casaria comigo.

          O suicídio talvez tivesse sido uma solução. Mas o convento também resolvia.

Recomeçou a andar e Hilário acompanhou-a, silenciosamente.

– Foi no convento que… me iniciei. Que me transformei… no que sou hoje.

Virou-se e encarou-o.

– Em uma vampira.

Hilário sentiu a provocação e sustentou o olhar. Recomeçaram a andar e a voz dela fez-se mais leve.

– A madre-superiora era uma das nossas. E todas as outras freiras também. Isso era errado. A iniciação tem que ser muito limitada. É uma regra básica.

Hilário teve vontade de perguntar-lhe quem fizera a regra e quem zelava pelo seu cumprimento, mas não quis interrompê-la. A racionalidade da regra parecia-lhe evidente.

– Ouve-se falar todo tipo de coisa sobre conventos e, quando a madre começou a se aproximar de mim, fiquei assustada e com nojo. Até que ela me iniciou!

E, nesse momento, em seu pescoço brilharam dois pontos vermelhos.

– Até hoje, quando penso, me arrepio !

Tocou o pescoço.

– Esse é um sinal que damos, para nos identificarmos, uns  para os outros.

Hilário, involuntariamente, olhou em volta. Ela riu.

– Bobo! Não há nenhum dos meus por perto, por quilômetros. E, se houvesse, eu o protegeria.            

Deu-lhe a mão e Hilário sentiu o coração dar um salto. Voltaram de mãos dadas, ela falando. Os pontos vermelhos foram empalidecendo e desapareceram.

– Dei sorte naquele incêndio. Somos muito fortes, mas o fogo nos destrói. Era minha noite de saída e, quando voltei, estava tudo queimando. Com a iniciação, minha depressão tinha passado.  Achei que era hora de começar outra vida. Nunca mais voltei. Até hoje, por sua causa.

A lua, com muito esforço, conseguira furar as nuvens, fazendo brilhar o crucifixo em seu pescoço. Hilário indicou-o.

– É verdade. É dessa época.

          – E não lhe faz… mal ?

Ela riu.

          – Por que faria? Deus está presente em nós também. Quem pode dizer qual é a semelhança de Deus?  Por números ? Se quiséssemos, poderíamos ser tantos quantos vocês. Eu, mesmo se não vou à igreja, rezo todas as manhãs, antes de dormir. Mosteiros, conventos, lugares de retiro, sempre foram abrigos para nós.

          Você não acredita nessas bobagens, que crucifixos nos espantam, que temos medo de alho ? É verdade que muitos acham que o sangue de quem come muito alho tem gosto ruim !

Hilário não se tinha por religioso, mas retirou a mão. Felizmente, estavam de volta à fazenda. No quarto, ouviu-a cantarolar no banheiro. Parecia um hino. Não conseguiu dormir.

Na manhã seguinte, Rodrigo intuiu-lhe a reticência, mas estava ansioso demais para um xadrez emocional e foi direto ao assunto.

– E aí, sobrinho, e a… nossa vampira?

Hilário, que sequer conseguia falar-lhe o nome, sentiu um soco no plexo e escudou-se na gagueira. Rodrigo foi-lhe ao encalço.

– Saíram de noite? Fico satisfeito. Tinha medo de que você não aceitasse.

A Hilário a idéia pareceu absurda, e indagou por que. Rodrigo olhou-o, espantado :

– Hilário, essa moça… Não sei porque digo isso…tem idade para ser, pelo menos, minha mãe, mas penso nela sempre como uma menina. Essa… senhora, já matou não sei quantas pessoas!

Mas, para Hilário, aquela questão parecia remota. Não podia imaginar Clara matando alguém. Para evitar o assunto, perguntou pelas ovelhas desaparecidas.

          – Foram para ela. Ela precisa de sangue fresco. Depois, jibóia por uns tempos. Felizmente, pode passar um bom pedaço sem sangue humano.

Hilário animou-se com a notícia. Talvez, aos poucos, pudesse prescindir de sangue, desintoxicando-se, como um viciado. O Tio abanou a cabeça, desacreditando.

– Eu queria analisar o sangue dela. Tenho certeza que tem uma composição diferente. Mas ela se recusou.

Hilário prometeu-se tentar. Para sua alegria, Rodrigo acrescentou:

– Ela garante que, quando quer, quando não está com raiva, não sofrem. Ficam hipnotizados e a  primeira mordida funciona como uma espécie de anestésico. Vi com as ovelhas e parece isso mesmo. Albano, claro, ficou furioso. Acha que foram roubadas e redobrou a guarda. Não sei como vou fazer para a próxima, mas talvez demore, depois do… assalto.

Estavam entrando no consultório. Depois de contemplá-la, Hilário forçou-se a desviar o olhar, para o homem que estava deitado, cercado de fios e monitores. Era ainda jovem, forte, de estatura mediana. Sem dúvida, bonito, admitiu, com uma pontada. A pele morena havia empalidecido. Além da respiração, não dava qualquer sinal de vida enquanto o Tio o examinava.

– Ao que sei, chama-se Carlos Santos. Ela diz que é a reencarnação do primeiro namorado, explicou Rodrigo. E acrescentou :

          – O fato é que ela tem uma dedicação absoluta. Todos os dias, depois que levanta, lava-o todo, faz-lhe a barba e o fica olhando, até a hora do jantar. Mais tarde, quando volta, fica outro tanto. Fala muito com ele, mas nunca consegui entender o que diz.

Hilário sentiu outra lancetada de ciúme.

– E há alguma chance de recuperação ?

          – Salvo milagres, nenhuma. Ë um coma profundo. Se desligarmos os aparelhos, acaba.

Hilário indagou-se, envergonhado, se o que sentia era, mesmo, alívio.

– Ela sabe ?

          – Já lhe expliquei, várias vezes. Ela diz que milagres ocorrem e que tem tempo. A escala temporal dela é diferente da nossa. Se ocorreu o milagre de reencontrá-lo, outro pode acontecer. E eu, como fico? Já imaginou, eles dois, anos a fio aqui?

Mas os problemas do Tio estavam distantes e Hilário alegrou-se com a garantia da permanência de Clara na fazenda.

– Como ela o encontrou?

          – Depois, vai saber em detalhe. Ela adora falar!  Depois que saiu do convento, ela tinha o que você chamaria ‘um problema de inserção social’. Um ser que dorme de dia e vive de noite, e que tem o hábito de chupar sangue, tem alguns problemas. Durante muito tempo, trabalhou em hospitais, no turno da noite. Ideal, não é ? Me dá um certo incômodo, quando penso nos meus plantões noturnos. Parece que, no último, foi imprudente e começaram a estranhá-la. Aí, resolveu mudar de ares.

          Foi para a capital e, óbvio, caiu na noite. Trabalhou de garçonete, mas não gostou. Tentou cantar, mas não tem voz. Pensou em ser, ou foi mesmo, nisso é meio vaga, prostituta. Mas um sujeito tentou cafetinizá-la e, como você pode imaginar, deu-se mal. Muito mal. Aí, encontrou um …primo, alguém da sua espécie, mais velho e experiente. Deu-lhe abrigo e uma solução profissional : o tráfico de drogas. Dava para operar de noite e, se sumia um de repente, não se faziam muitas perguntas. O primo estava cansado e passou-lhe o ponto.

          Estava nisso havia já algum tempo, quando foi receber uma partida. O portador era o Carlos, aí. Foi o clássico coup-de-foudre romântico. Nele, paixão à primeira vista, e para ela, o reencôntro.

Estavam na varanda e Rodrigo interrompeu-se para dar instruções a um dos empregados. Hilário tentou imaginá-la na noite, mas sua cabeça recusou-se.  Também não conseguia imaginá-la com aquele homem. Por fim, Rodrigo voltou.

– Tenho pena dela. Uma situação impossível. Ele, humano, ela vampira.

Hilário ia protestar, mas, a custo, se conteve. O Tio, pensando que concordava, continuou:

– Além do mais, ela se culpa pelo acidente. Acha que bateram porque o beijou quando estava dirigindo. Uma noite, perguntou-me se era uma maldição, levar os namorados à destruição? O que ia responder ?

Hilário não acreditava em maldições, mas pensou que, ao contrário, fora o destino que a levara à fazenda. A droga, porém, o preocupava. Mas Rodrigo serenou-o :

          –  Ela não usa. Não gosta e não tem efeito. Gostaria de saber porque… Ele não.  Como muitos pequenos traficantes, ele também é usuário.

Perguntei-lhe porque não o…transformou. Respondeu que o amava assim como era, como humano. Se o transformasse, seria diferente. Concluiu que a única solução era saírem dali. Recomeçarem a vida em outro lugar, onde ele pudesse fazer um tratamento e arranjar um emprego honesto. Os valores dela são muito curiosos…  Os planos eram casar e viver juntos. Se pudesse, ter filhos também. Ela acha que não pode ter. É óbvio que não pode! Claro que eu logo propus examiná-la, mas ela não aceitou. Uma pena!

Mas Hilário não estava interessado nos sentimentos do Tio. Outras emoções, mais fundas e menos entendidas, o agitavam. Ansioso, perguntou:

– Ela não pode transformá-lo, agora ?

          – Pelo que entendi, com a transformação, eles ficam do jeito que estavam, fisicamente. Veja o aspecto dela ! Se o transformar agora, fica o mesmo vegetal. E ela não o quer como vampiro, quer como gente !

Hilário sentiu um claro alívio e, logo, vergonha.

Enquanto Rodrigo ia cuidar das ovelhas, Hilário ficou perambulando, sem conseguir sequer ler o jornal, esperando a noite chegar.

Durante o jantar, Clara encarregou-se da conversa, centrada, para pasmo de Hilário, nos acontecimentos da última novela de televisão. Mesmo querendo, não conseguia dialogar.  Assim que terminaram o café ela  se desculpou e foi, rapidamente, para a saleta de vídeo e som. Hilário decidiu acompanhá-la, para espanto do Tio.  Acostumado a dormir cedo e acordar com o dia raiando no deserto, tão logo sentou-se, adormeceu. Acordou, sentindo caibras pelo corpo, na manhã seguinte.

Passou a forçar-se a dormir de dia, para estar desperto à noite. Quando acabavam as novelas, saiam a passear, ou, se estivesse chovendo, ficavam na varanda, conversando. Rodrigo, fiel aos seus hábitos matutinos, não os acompanhava.

Lutando contra a gagueira, Hilário tentou interessá-la nos dinossauros. Queria que entendesse o prazer de reconstruir um animal a partir de alguns ossos.  Que apreciasse as controvérsias sobre sua extinção. Percebeu, porém, que o silêncio com que o ouvia era de simples polidez. Se não fosse gago, desesperava-se, se as palavras não grudassem na garganta, se o pensamento não fosse tão mais rápido que a fala, conseguiria aproximar-se, faria com que  ela visse as coisas a seu modo. Durante o dia, ensaiava discursos que, tinha certeza, a comoveriam, mas, à noite, a seu lado, sentia formado o detestado funil e as palavras embrulhavam-se-lhe na boca. Impotente, tinha pavor de que ela risse de seus esforços e amava-a por nunca interrompê-lo, completando alguma frase.  Um dia, desesperado, pôs-se a falar-lhe em inglês, mas descobriu que ela não entendia qualquer língua estrangeira.

Com os desenhos teve mais sucesso, mas era uma curiosidade efêmera, com a forma e o tamanho dos animais. Mesmo assim, o interesse que mostrou na evolução do cavalo, encheu-lhe o coração de esperança.

Até que a ouviu comentar com o Tio, pensando passar desapercebida:

– Doutor, por que o senhor não o convence a fazer algo de útil? Um homem tão forte e inteligente !

Aquilo caiu-lhe como uma punhalada, apesar do reconforto do elogio.

Foi mais feliz ao contar a respeito dos diversos lugares em que estivera. Tinha muitas fotos e podia falar pouco. Para sua surpresa, Clara passara a vida toda na área que ia de Santa Bárbara à capital. Não tivera curiosidade de ir mais longe. Ao contrário do que Hilário previra, Nova Iorque a interessava muito mais que o Deserto de Gobi. Sua ligação com a terra era menos intensa do que ele imaginara.

Aos poucos, Hilário ia percebendo que Clara, mesmo falando sem parar, não lhe revelava os segredos arcanos que devia ter. Talvez não tivesse nele a mesma confiança que depositava em Rodrigo. Brotou-lhe um ciúme do Tio quase tão forte como o que sentia por Carlos. Talvez a suspeita de Marta quanto à relação dos dois fosse correta… Não conseguia formular a frase “são amantes”, mas escrutinava-os, buscando indícios. O paternalismo de Rodrigo e a gratidão de Clara não o serenavam .

De seu passado, Clara pouco dizia. Falava muito da relação com Carlos e do futuro que teriam quando ele se re-estabelecesse. Hilário sentia uma brasa revolvendo o coração e, uma noite, enfrentou-a, furioso, rosnando em um arranque :

– Você não percebe que isso é uma fantasia ? Tio Rodrigo já não lhe disse que não tem cura ?

Ela pareceu surpresa com sua veemência e os olhos ficaram-lhe um pouco mais estrábicos.

– O que o Doutor Rodrigo disse é que ele não pode curá-lo. Mas Deus pode. Se já fez o milagre de reencontrar-nos, por que vai deixar o trabalho incompleto? Agora é um período de provação, para ver se o amo, mesmo. 

E o que há de errado com fantasias? Você não passa a vida em desertos horríveis, procurando ossos de bichos que não existem? Acha um ossinho e faz um bicho maior que uma casa?

E concluiu :

– Você devia ver mais novelas, Hilário.

Mas, a partir daquela noite, passou a falar menos de Carlos. E mais de novelas.

Para Hilário, as novelas traziam ecos dolorosos de infância, quando a família se reunia em volta ao rádio. Sua incapacidade de seguir os meandros da trama era motivo de deboche. Agora, como no passado, não conseguia interessar-se por aquelas histórias. Mesmo fora das novelas, poucas pessoas o interessavam. Mas, por Clara, esforçava-se. Estavam juntos, naqueles momentos em frente à televisão.

Rodrigo percebia que algo não ia bem, mas não conseguia identificar o problema. Acreditava que, no fundo, o sobrinho o censurava pela aventura e passou a elogiar Clara, o que só fazia aumentar as suspeitas de Hilário. Até que veio o filme de vampiros.

Estavam os três na sala de vídeo, vendo o fim do jornal, quando Clara, em busca da novela, errou de canal e encontrou um velho filme de vampiros. Era um filme em preto e branco e Hilário achou as cenas grotescas. Pensou que ninguém faria um filme daqueles se conhecesse Clara. Ao virar-se para ela, assustou-se. Estava lívida,  olhando fixo para a tela, o controle remoto na mão, o braço ainda erguido, paralisado. Hilário não conseguiu falar. Do outro lado, Rodrigo, delicadamente, tirou-lhe o controle da mão. Mas, antes que o acionasse, ela deu um salto e desligou a TV com um tapa. Virou-se e encarou-os.

– É assim que vocês me vêm? Como um monstro? Por que um monstro?

Hilário quis gritar e correr ao seu encontro, mas a voz e o corpo embaraçaram-se. Rodrigo, porém, levantou o corpanzil da poltrona e foi até Clara, que continuou :

– É verdade que eu mato gente! Mas para comer ou me proteger! Não sou um monstro! Não sou pior que vocês!

Rodrigo, sem falar, abraçou-a. Aos poucos, ela pareceu acalmar-se. Hilário censurava-se pela incapacidade de aproximar-se e admirava e odiava o Tio. Até que ele sugeriu:

– Meninos, porque vocês não pegam o carro e vão até a cidade?

Para alívio de Hilário, Clara deu uma risada.

Levou um susto, quando a viu arrumada. E ficou chocado. A saia era muito curta e o decote sugestivo. Tudo de couro preto, contrastando com a brancura da pele. De salto alto, chegava ao seu queixo. Cabelos presos, pintada, deixara a mocinha para trás. Rodrigo assobiou e ela rodopiou, mostrando ainda mais as pernas bem feitas. Hilário sentiu o coração apertando – um misto de desejo e reprovação.

Saíram na camionete de Hilário. Rodrigo sentou-se na varanda para vê-los partir e, acendendo um charuto, falou alto, para si mesmo.

– Meninos…! Estou mesmo ficando velho! Hilário tem quase quarenta anos e ela … E ainda mais, falando sozinho!

E ficou em silêncio, pensando na ética e nos monstros.

No carro, depois de virar o espelho e conferir a maquiagem, Clara anunciou :

– Vamos a um lugar que conheço. O dono é meu amigo, e é ótimo para dançar!

Estava alegre e, dobrando as pernas em baixo do corpo, passou-lhe o braço. Hilário fazia força para concentrar-se na direção.

Era em um beco, bastante escuro, numa zona que Hilário não conhecia, mas ela o pilotou sem hesitar. O porteiro cumprimentou-a como a uma freguesa antiga. Dentro, era menos escuro e esfumaçado do que Hilário temia. A decoração era convencional – um longo bar, uma pista de dança, mesas aos lados, as paredes com espelhos foscos. O porteiro devia ter feito algum sinal para o dono e ele veio recebê-los na porta. Era diferente de toda imagem que Hilário fazia de um dono de boate. Um homem quase tão alto como ele, corpulento, talvez no início dos sessenta, vestindo um circunspecto terno jaquetão cinza escuro.

– Bem vinda, Madame. Há muito tempo que não vem.

Clara apertou a grande mão com as suas duas e sorriu.

– Boa noite Jonatas. É bom estar de volta.

Indicou Hilário.

– Um amigo, Jonatas. Um bom amigo.

Hilário, feliz, sentiu-se medido por aquele olhar lento, seguido por um aceno de cabeça e a mão estendida.

– Os amigos de Madame são meus amigos. Estejam à vontade.

Levou-os a uma mesa perto da pista.

Hilário não tinha o hábito de dançar, mas felizmente, no início, Clara parecia satisfeita apenas em estar ali, ouvindo a música – o que lhe deu tempo de tomar um uísque duplo. E outro. Assim, quando ela sugeriu que fossem dançar, pôde aceitar sem muito medo.

Queria guiá-la, mas percebeu que o ritmo dela era mais fluído e, depois que ela sussurrou “siga-me”, deixou-se levar. Hilário dançava como lhe haviam ensinado as primas, com moças de família. Levou um choque quando ela colou o corpo ao seu. Assustadíssimo, pressentiu a ereção e quis afastar-se, com medo de ofendê-la, mas ela apenas riu contra seu peito e ajeitou-se mais.

Quando a música ficou rápida, voltaram para a mesa, de mãos dadas. As ondas na cabeça de Hilário eram um maremoto, reverberadas pela alegria de Clara.

Até que o homem sentou-se à mesa. Era um tipo de idade indefinida, magro, com um casaco esporte claro, pelo menos um número maior. Mal falou com Hilário, só para dizer-lhe :

– Com licença, amigo.

Sentou-se e dirigiu-se a Clara :

– E aí, gatinha? De volta?

Clara empalideceu e prendeu o fôlego.

Hilário sabia seu tamanho. E seu sobrenome. Os dois intimidavam. Não ia deixar desgraçado algum perturbar Clara e sua noite com ela. Também aprendera, com os anos, a dizer seu nome sem gaguejar. Levantou-se em toda a sua altura e, por cima do sujeito, estendeu-lhe a mão e anunciou “Hilário Restrepo”, antes que a mão de Clara o detivesse.

Hilário sentiu-se gratificado que ela se preocupasse com ele e pensou que, se o sujeito fosse inconveniente, cuidaria dele em dois segundos. No entanto, o estranho olhou-o, de baixo, e fez apenas menção de levantar-se. Mas apertou-lhe a mão. Era fina e seca.

– Todos me conhecem como O Magro. Muito prazer Senhor … Restepo.

Hilário, ia se sentando, desconcertado, mas não o corrigiu porque a mão de Clara o apertou debaixo da mesa.

– A moça e eu somos velhos amigos, não é verdade, gatinha?

Clara olhou-o fixo e depois sorriu um pouco.

– Claro. Velhos amigos.

A animosidade entre os dois era quase palpável.

– E o Carlos, gatinha, onde está?

          – O filho da puta me largou em Buenos Aires. Sumiu. Tive que voltar para cá. Ainda deve estar por lá. Espero que arrebente!

          – Verdade, gatinha? Que coisa! Vocês pareciam tão juntos!

          Levantou-se.

          – De todo jeito, acho que o Chefe vai querer conversar com você, gatinha. Agora, vocês dois têm, pelo menos, uma coisa em comum – acertar as contas com o Carlos!

Apoiou as duas mãos sobre a mesa e aproximou o rosto de Clara.

– Acho que hoje mesmo. Ele quer, muito, ter notícias do Carlos. Acho que seria bom você esperá-lo aqui, com o Senhor Restepo. Ou, talvez, irmos todos lá. Conversar.

Levantando-se, fez uma mesura a Hilário :

– Boa noite, Sr. Restepo. Desculpe o incômodo.

E foi para o bar.

Clara abraçou Hilário, enfiando o rosto em seu peito. A um observador, parecia uma cena de amor ou, se fosse muito atento e visse os ombros que sacudiam, uma crise de choro. Talvez tenha sido assim que O Magro a tenha interpretado. Só Hilário ouvia o ronco contra seu peito, como o de uma onça, e podia sentir os dedos apertando-lhe os braços como alicates, fazendo evaporar o uísque.

O ronco foi, aos poucos, diminuindo. Clara sacudiu a cabeça e olhou-o, dizendo :

– Você fala pouco, mas consegue falar demais!

Suspirou e, antes que Hilário pudesse se recuperar, chamou o velho garçom.

– Há um telefone público aqui ?

          – Sim senhora, ao lado dos toaletes.

          – Bom. Traga um bloody mary, por favor.

Antes, dissera-lhe que nunca bebia. E a quem queria telefonar?

Sem olhar para ele, Clara levantou-se e foi na direção dos toaletes. Voltou rapidíssimo e murmurou “pronto”. Foi Jonatas quem trouxe a bebida, lento, solene.

– Seu drinque, Madame.

          – Obrigada Jonatas. Aquele senhor que estava antes sentado aqui, também precisa de um drinque. Bem forte.

          – Vou providenciar, Madame.

          – Obrigada Jonatas. Sabia que podia contar com você. Diga, há telefones aqui?

          – Há um telefone público, ao lado dos toaletes, Madame.

          – Esse está com o fio arrancado.

          – Sempre deprecáveis esses atos de vandalismo. Mas há também um telefone no meu escritório, aos fundos do edifício.

– Talvez o senhor que estava aqui possa tomar seu drinque enquanto fala no telefone do seu escritório.

          – Por certo, Madame.

Com uma mesura, o dono da boate afastou-se. Clara respirou fundo e virou-se para Hilário :

– Não olhe para ninguém. Esqueça tudo o que viu e ouviu. Com alguma sorte, vai dar tudo certo. Vamos, dance comigo.

Mas Hilário sentia sua tensão. A magia estava quebrada. Ao dar uma volta, viu O Magro, acompanhado por Jonatas, que saía por uma porta. Continuou dançando.

Pouco depois, Clara puxou-o de volta à mesa. Jonatas estava lá, de pé.  De costas para a pista, fora da visão de todos, espalhou sobre a mesa chaves, carteira de dinheiro, documentos,  papéis. Alguns papelotes de coca e uma navalha. Clara examinou-os em silêncio, um a um. Até que achou uma caixa de fósforos da boate, feita de papelão. No verso estava escrito “Ilário Restepo”. Devolveu o resto a Jonatas. Depois, tomou a mão dele entre as suas e apertou-a com força, sorrindo.

– Obrigada Jonatas

Pela primeira vez, ele lhe deu um sorriso. Depois, recompôs-se.

– Sempre pronto a servi-la, Madame. O que devo fazer com o corpo?

Hilário entendeu e sentiu o gosto de fel na boca.

– Deixa-lo longe daqui, no carro. Precisa de ajuda?

          – Não, obrigado. Pedro é testemunha que ele saiu há pouco daqui.

Fez uma mesura para Hilário.

– Muito prazer, Senhor Restrepo.

E afastou-se.

Clara escondeu o rosto nas mãos e deixou cair os ombros. Hilário não conseguia pensar. Buscou a imagem dos dois no espelho, mas não encontrou. Finalmente, ela levantou a cabeça.

– Pague a conta, Hilário e vamos embora.

Quando iam levantar-se, ela lhe deu a caixa de fósforos, dizendo:

– Pode rasgar. Se O Magro tivesse passado seu nome adiante, ao Chefe, você não viveria uma semana.

Chovia forte quando saíram, mas nenhum dos dois parecia sentir.

No carro, Clara comentou :

– Acho melhor não comentar isso com  seu tio. Vai perturbá-lo muito.

Hilário não respondeu. As idéias começavam a clarear. Pouco se lhe dava o que o Tio sentisse. A morte que causou também não lhe pesava. O que era um traficante? Tinha forjado um outro vínculo, mais forte, com Clara! Ela, afinal, mandou matar um homem por sua causa!

Estendeu a mão e pegou a de Clara, que não reagiu. Tinha os olhos fechados e não os abriu. Quando ele pigarreou, anunciando um comentário, disse, baixo :

– Por favor, Hilário, fique calado. Estou muito, muito cansada. Muito deprimida e encurralada.

Voltaram em silêncio até a fazenda. A chuva  havia parado mas havia um cobertor de umidade. Clara deixou que ele abrisse a porta do carro e apoiou-se em seu braço. No último degrau da varanda, o salto do sapato prendeu no vão entre as tábuas, quebrando-se com um estalo e jogando-a para a frente. Hilário a amparou e ajudou-a a sentar-se. Ela tirou o sapato e ficou olhando-o um bom tempo. Até que começou a chorar, desesperadamente.

Hilário puxou-a contra o peito, sentindo as lágrimas quentes passarem a camisa. E começou a beijar-lhe os cabelos, confortando-a. Até que, sem se dar conta, puxou-lhe o rosto e beijou-a na boca. Clara arregalou os olhos e parou de chorar. Depois, lentamente, fechou-os e deixou-se beijar.

Exultante, Hilário ia explorando-lhe a boca, até achar com a língua a ponta aguda dos caninos e sentir um arrepio passar-lhe pelas costas. Mudando de posição, ela começar a beijar-lhe o rosto, enquanto as mãos entravam-lhe no cabelo e na barba. Fechando os olhos, Hilário foi sentindo a boca de Clara correr-lhe a testa, o rosto e descer para o pescoço. Quando sentiu os lábios na garganta, abriu os olhos e quando os dentes arranharam-lhe a pele, retesou-se, em pânico. Relaxou a seguir, mas era tarde.

Ela estava em pé, à sua frente, ofegante.

– Idiota! Estúpido! Animal! Eu só ia beijá-lo!

Duas lágrimas de sangue correram-lhe pelo rosto. E saiu correndo para dentro da casa, batendo a porta. Hilário ficou na varanda, segurando os sapatos, com a camisa ensopada de lágrimas e a morte na alma.

Em seu quarto, Hilário tirou a caixa de metal de seu esconderijo e passou a limpo todos os seus poemas. Com a mesma precisão de movimentos com que trabalhava no deserto, fez um pacote cuidadoso. Do jardim, retirou uma flor com que arrematou o laço. Aí, foi procurar o Tio. Já era de manhã.

– Queria a chave do consultório emprestada, por favor.

          – Vou lá daqui a meia hora.

          – Se não se incomoda, quero ir sozinho.

Rodrigo hesitou, mas entregou-lhe a chave.

Hilário sentou-se ao lado de Clara e contemplou-a longamente. Sentia a raiva turbilhonando os ouvidos. Deixou o pacote de poemas a seu lado.

Na varanda, Rodrigo perguntou-lhe :

– O que aconteceu? Você está com uma cara! Vocês brigaram?

Hilário estalou, furioso.

– Não. Não! Se quer saber, mesmo, até nos beijamos!

Rodrigo sentiu um aperto no coração. E uma grande culpa. Buscou como dizer ao sobrinho.

– Hilário, meu caro… Veja, você está cometendo um erro terrível. Clara é… diferente. Não pode dar certo…

Hilário encarou-o.

– Tio, você acha que eu devia ir embora.

Rodrigo assentiu, aliviado. De mulheres, sabia, Hilário não tinha muita experiência e percebia, agora, que Clara o tocara fundo. Culpava-se por não tê-lo percebido antes e por ter colocado o sobrinho naquele transe. Mas nada o preparara para a resposta e o ódio com que veio carregada.

– Você diz isso para ficar sozinho com ela! Pois não vou! Fico! Se quiser, terá que me expulsar!

Passaram o resto do dia evitando um ao outro. Na hora do jantar, Clara não subiu. Hilário não teve coragem de ir buscá-la, deixando isso a cargo de Rodrigo.

Ela se desculpou. Está sem fome”, disse o Tio, ao voltar. Ia tentar um movimento de reconciliação com Hilário, mas o olhar do outro dissuadiu-o. Jantaram em silêncio e  separaram-se.

Já era de madrugada quando Hilário sentiu a mão de Clara em seu braço. Estavam na varanda. Ela tinha os seus poemas na mão. Sentiu as pernas tremerem e a antecipação de vitória. Conseguira reforjar os vínculos.

– Você deixou esses poemas para mim ?

A voz era quase um sussurro. Hilário conseguiu apenas acenar com a cabeça.

– Li todos. São muito bonitos.

Fez uma pausa, mas, antes que Hilário pudesse abraçá-la, continuou.

– Mas não os entendo.

Colocou-os nas mãos de Hilário. Com os poemas entre os dois, acrescentou :

– São muito difíceis para a minha cabeça. Mas, se tiver outros, mostre. São muito bonitos.

Afastou-se dois passos, enquanto ele ficava petrificado, com o embrulho desfeito nas mãos. E voltou.

– O que aconteceu ontem. Vamos esquecer? Você tinha bebido e estava emocionado. E eu estava mal. Me sentindo acuada. Problemas em todos os lugares. E eles ainda atrás de Carlos…

          Podemos esquecer, não é verdade? Somos, os dois, adultos. E não vamos criar problemas para o seu tio…

          Combinado?

E estendeu-lhe a mão. Hilário apertou-a, mecanicamente, e ficou olhando-a, enquanto ela se afastava, sem fazer ruído.

Com as lágrimas, Hilário destampou o ódio. Rasgou os poemas, lentamente, folha a folha, com um prazer estranho de sentir dor.

Sem saber onde ia, saiu na chuva e na lama. Quando deu por si, estava no posto de gasolina. Imaginou-se entrando na velha fazenda com um chute na porta, mas logo achou que era absurdo demais. Decidiu, em vez, tomar um porre, ali mesmo. A bebida já ia longa quando, no restaurante, entrou uma mulher. Roliça, loura oxigenada, parecia da vida. A Hilário pareceu, vagamente, desejável. Mais que isso, de uma forma confusa, achou que dormir com ela o vingaria de Clara.

Quase sem falar, subiram ao quarto. Deitado na cama, ainda vestido, com maus modos, mandou que ela se despisse. Não estava preparado para a resposta :

– Gaguinho, é ? Vamos ver se gagueja em baixo também !

Hilário jamais batera em alguém, antes. Ao vê-la estendida no chão, com a boca sangrando, surpreendeu-se com a sua força e com o prazer que sentia. O prazer aumentou com o choro contrito da mulher e seus pedidos abjetos de desculpas. Sem despir-se, Hilário mandou que o  chupasse.. Depois, pagou-lhe o dobro do que tinham combinado e, segurando-a pelo cangote, empurrou-a  fora do quarto, ainda semi-vestida.

Deitado, sentia uma grande satisfação. Percebia, agora, que sempre estivera errado. Que fora sempre bonzinho e nada levara. Acabou dormindo e sonhando com a mulher loura, que lhe abria os braços.

Voltou para a fazenda ao anoitecer do outro dia. Pensara em telefonar, avisando de seu paradeiro, mas desistira. Que se preocupassem! E sentissem sua falta.

Parecia ser o de antigamente, até melhor, menos gago. Ajudava o Tio com as ovelhas e propôs-se organizar os registros do consultório, que Rodrigo tinha preguiça de arrumar. Grato pela reconciliação e pela ajuda, Rodrigo aceitou. Com Clara evitava falar daquela noite, mas apontou-lhe no jornal as notícias da morte do Magro, para reavivar os vínculos e mantê-la presa na fazenda. Fazia-lhe gentilezas. Elogiava-lhe os bordados que fazia nas madrugadas. Passou a dormir com fronhas e lençóis bordados. Ela sorriu satisfeita. Algumas vezes cozinhavam juntos comidas que só ele comia. Estimulava-a a falar de si, dos planos que tinha quando saísse da fazenda. Observava sua relação com Rodrigo. Estudava-a com cuidado, pensando no próximo lance.

Uma noite, estava toda de preto, da boina que escondia os cabelos até os tênis. Deteve-a na varanda.

– Estou com fome, Hilário. Muita fome. E encurralada. Para a cidade não posso ir. Jonatas me avisou que ainda estão procurando Carlos. Pensei em ir para a estrada, pedir uma carona. Mas demora e não quero dormir fora – Carlos precisa do meu cuidado.

Hilário bufou, indicando-lhe a bobagem e perguntou porque não pedia uma ovelha ao tio.

– Não tenho coragem. Já dei muito trabalho.

Hilário cravou mais uma cunha :

– O Tio podia ser mais generoso.

Ela abanou a cabeça.

– Prefiro correr até a próxima fazenda. Sou muito rápida.

Hilário riu. Teria que correr mais de um dia para sair das terras de Rodrigo. Ao ver o seu desalento, aproveitou a oportunidade. Pegou-a pelo braço e levou-a ao carro.

– Eu a levo até a próxima fazenda.

Ela hesitou, mas, depois, submeteu-se.

Quase não se falaram. Quando chegaram à outra fazenda, ele quis acompanhá-la, mas ela não permitiu. Sentado no carro, com medo, Hilário procurava imaginar seus movimentos. Ouviu latidos, que logo viraram ganidos. Depois, um curto balir. Depois, o silêncio. Pouco depois, ela estava de volta. O rosto corado. Tirou a boina, soltando os cabelos. Acomodou-se no carro, e beijou-o no rosto. Ele não resistiu e perguntou.

– Problemas?

– Só um cachorro. Nenhum problema.

Sorriu, satisfeita.

Na volta, madrugada alta, cruzando a planície, Hilário deu outra rodada no parafuso do poder. Reduziu a velocidade e perguntou:

– O que acontece, se o carro enguiçar ?

Ela olhou o descampado em volta e fechou os olhos.

– O sol me faz muito mal. Teria que me proteger em algum lugar.

Encarou-o, preocupada.

– Você quer me assustar?

Ele apenas abanou a cabeça. Queria muito abraçá-la, mas não disse nada até chegarem à fazenda.

Ao mesmo tempo, Hilário cultivava  memórias. Aquela noite, na cidade. Haviam estabelecido um vínculo. Lembrava continuamente o corpo de Clara colado ao seu, sentia na língua a ponta dos caninos. E lutava contra a memória da boca de Clara em sua garganta. Todo sorriso recebido, cada gesto de afeto, o apoiar-se em seu braço num passeio noturno, segurar-lhe a mão entre as dela para enfatizar um ponto, eram cuidadosamente guardados e catalogados. Na estante da memória ganhavam uma ficha detalhada.

Agora que tinha a chave do consultório, passava horas a olhá-la. Ao meio-dia, quando o sono dela era mais profundo, arrumava-lhe os cabelos e, algumas vezes, passava as mãos sobre  seu corpo, explorando-lhe o relevo.  Pelo buraco da fechadura do banheiro vira-a nua, enxugando-se. Mal conseguia dormir.

Outras vezes, olhava Carlos, longamente. Sentia  o ódio ir crescendo e ir ficando frio. Lembrava-se dos primos e sentia ódio de sua impotência. A memória da mulher do posto acalentava-o.

Sabia também que as chuvas e seu tempo na fazenda estavam acabando. Tinha que fazer algo ou voltar para as escavações.

Numa manhã seca, sentado na varanda, o quadro completou-se. Espontaneamente, na retina da alma. Como no deserto, quando visualizara seu primeiro sáurio. Sentira a mesma paixão, uma emoção permeada de certeza. As mãos tremiam mas pensava com clareza. Rodrigo não era, na verdade, um problema. Voltara a pensar nele como Tio Rodrigo. O obstáculo era Carlos, que, mesmo vegetando, interpunha-se entre ele e Clara. Se Carlos não existisse, poderiam viver em paz, os três, ali. Ou, melhor, ele e Clara poderiam ter sua própria casa, como ela queria e ele nunca tivera. Ela, aos poucos, entenderia seu trabalho. Ou mesmo, por ela abandonaria os dinossauros. O que tinha de dinheiro era suficiente e Rodrigo poderia abastecê-los de ovelhas, até que ela se desintoxicasse de tanto sangue. A ciência, a medicina, a psiquiatria tinham muitos recursos.

Ao meio-dia, o calor era extenuante. Quando desligou os aparelhos do consultório, sentia a camisa empapada de suor. Como naquela noite.

Afastou-se rapidamente e foi para o seu quarto. Clara ainda demoraria seis horas para acordar e Tio Rodrigo estava fora, cuidando de um doente. A sensação de triunfo era tão forte que tinha vontade de chorar. Mas controlou-se. Tirou a caixa de metal de baixo da cama e foi joga-la na lixeira. Nunca mais precisaria dela! Deitou-se na cama para aguardar o fim do dia.

Cinco minutos depois, começou. Era um urro, que começava cavo e ia tornando-se cada vez mais agudo, até não se ouvir mais. Mas os cristais romperam-se em toda a casa. Também não adiantava tapar os ouvidos com as mãos e cobrir a cabeça com o travesseiro bordado. Repetiu-se várias vezes, espalhando-se pelas coxilhas. Hilário perdeu a conta de quantas vezes se repetiu.

E fez-se silêncio. Dentro e fora da casa, não havia um som. E, aos poucos, ao longo da tarde, as pessoas foram chegando. Albano. Os peões da fazenda, com suas famílias e animais. Marta. Todos em silêncio, mesmo os bichos. Em vigília. Ao fim da tarde, rolou sobre o gramado uma limusine preta e dela saltaram Jonatas e Pedro, o porteiro. Os dois tinham óculos escuros. Pouco depois, uma grande motocicleta preta também estacionou. Guiava-a um homem, vestido com um blusão negro dos Hell’s Angels. Também usava óculos escuros. Quando tirou o capacete, viu-se que era louro e tinha os cabelos compridos. Cumprimentou Jonatas e Pedro com um aceno de cabeça, mas não disseram palavra. Por último, chegou Rodrigo, a ambulância coberta de barro.

Hilário queria correr para o consultório, mas não conseguia levantar-se da cama. Agarrou-se ao travesseiro, mordendo a fronha bordada.

O consultório estava na penumbra, mas Rodrigo percebia a palidez do rosto dela. Estavam sentados frente a frente, com a mesa entre os dois. Havia um pacote sobre a mesa. Ela pegou a mão de Rodrigo entre as suas:

– Esperei que o senhor chegasse, Doutor.

          – Quer que o examine?

Rodrigo fez menção de levantar-se, mas ela o reteve.

– Não, Doutor, não é necessário. Acabou.

Ficaram ali, sentados, um longo tempo sem dizer nada. Até que ela acrescentou:

– Pensei em vingar-me. Mas, a que serve? Ele não vai voltar.

Rodrigo sentiu os olhos molhando e apertou-lhe as mãos, que pareciam-lhe muito pequenas. Ela pareceu falar com ele e consigo mesma:

– Pode ser que, um dia, o milagre se repetisse. Mas não tenho forças para esperar. Ou fé, não sei.

Levantou a cabeça e encarou-o.

– Não posso  agradecer-lhe o bastante.

Pegou o pacote e colocou-o nas mãos de Rodrigo.

– Era o meu dote. São sete quilos de cocaína pura. No embrulho, está o endereço de Jonatas e um bilhete para ele. Sei que ele está lá fora. Ele pode dispor disso para o senhor, sem maiores problemas. Pode compensá-lo dos prejuízos. Os materiais. Acho que, dos outros, é impossível.

Levantou-se e levou-o até a porta, onde beijou-o no rosto.

Rodrigo juntou-se aos demais do lado de fora. Hilário continuava no quarto.

Quando o sol, finalmente, acabou, o silêncio ficou mais denso. Até que o grito se repetiu, seguido, no fim, por uma explosão rascante, encimada por uma brilhante chama azul, que acabou por confundir-se com a escuridão que entrava. Quando terminou, todos desapareceram como vieram, sem ruído. Ficou apenas  Rodrigo, com o pacote nas mãos, olhando as cinzas que restavam do consultório.

Naquela mesma noite, Hilário desapareceu da fazenda, levando o pacote de cocaína. Reapareceu, muito tempo depois, em Santa Bárbara das Missões. Falava com fluência sobre as vozes dos sáurios pré-históricos. Antes que o internassem,  tentou publicar diversos artigos em que explicava isto, detalhadamente.

Aos Restrepo, que eram muitos, não  causou espanto. Eram tantos, que, na família, qualquer destino era possível.

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A Indústria Petroquímica : Crise, Regulação e Mercado

Fabio S. Erber, In: Sistema BNDES

O tema central deste artigo é a crise da indústria petroquímica brasileira, que estava em curso em 1993 e para a qual ERBER propôs uma política de reestruturação desse subsegmento da indústria química. Ao analisar a crise que se abatia sobre a petroquímica brasileira, Erber identificou cinco fios principais: as condições internacionais da indústria; a evolução do mercado interno; as condições sistêmicas de competitividade; as características estruturais da petroquímica brasileira e o regime de acumulação desta indústria. Em quatro seções apresenta a trama da crise, concentrando sua argumentação na combinação de uma recessão com o desmonte do regime de regulamentação do setor – e os fatores estruturais de natureza setorial e sistêmica que a agravaram. Para entender a proposta de reestruturação desse segmento industrial exposta neste texto, é preciso lembrar as características do complexo petroquímico, entendido como o conjunto de atividades industriais que vai do petróleo à transformação de plásticos, resinas e outros derivados do petróleo. O cerne deste complexo é constituído pelas atividades industriais que, partindo da nafta ou do gás, através de processos sucessivos, produzem insumos que serão posteriormente utilizados em bens finais – a indústria petroquímica. Este artigo centra-se sobre esta indústria. A base técnica da indústria petroquímica é caracterizada pela dominância de processos contínuos, intensivos em capital e sujeitos a margens de tolerância restritas. A cadeia produtiva também obedece a margens restritas, com elos fortemente vinculados. Deve-se também chamar a atenção que as atividades de engenharia nas centrais de matérias primas são mais padronizadas, enquanto a montante da cadeia, as iniciativas de pesquisa e desenvolvimento são mais heterogêneas. Mas, na época em que o artigo foi escrito, todos os elos da cadeia faziam grande esforços de otimização de processos ( por ex. visando reduzir o consumo de energia e de insumos) e havia uma tendência ao crescente uso de instrumentação eletrônica digital. Hoje, há uma exceção, que é o Polo Gás-Químico do Rio de Janeiro que produz por batelada, utilizando o gás, e não a nafta, como matéria prima. Com relação aos três polos – Camaçari, Paulínia e Triunfo– existentes à época em que o artigo foi escrito, Erber chamou a atenção que eram marcados por fortes economias de escala, estáticas e dinâmicas, e por escopo, na produção à montante da cadeia. Economias de verticalização e aglomeração, neste segmento, são igualmente significativas. As escalas econômicas mínimas apresentam tendência crescente, e a indústria tende a expandir-se à frente da demanda. A configuração natural da indústria petroquímica é o oligopólio, e o seu cerne é constituído por empresas petrolíferas que avançaram à jusante da cadeia e por grandes empresas químicas que diversificaram sua produção. Com porte verdadeiramente gigantesco e de atuação mundial, integradas verticalmente e horizontalmente, somam-se outras, de menor porte, que atuam em mercados específicos explorando seja vantagens tecnológicas, seja canais de comercialização. Após estudar as características da petroquímica, Erber descreveu a crise como decorrente da contestação do mercado com sucesso por firmas japonesas e, depois, por empresas baseadas em recursos naturais mais baratos (Arábia Saudita e Venezuela) ou em grandes escalas de produção (Coréia do Sul e Taiwan). Os participantes tradicionais do oligopólio (Estados Unidos e Europa, notadamente Alemanha) adotaram estratégias de reestruturação, entrando em novos mercados notadamente, “Ciências da Vida”), modificando sua distribuição de ativos na indústria e estabelecendo alianças estratégias entre si. A entrada dos últimos produtores ocorreu num período de sobrecapacidade do setor, em face do declínio da atividade econômica internacional, agravando a crise da indústria. O mercado internacional de produtos petroquímicos ficou sobreofertado, induzindo as empresas a praticarem preços de exportação baixos, que frequentemente não cobria os custos totais de produção, mas apenas os custos fixos, caracterizando uma situação de dumping estrutural. Na conclusão, Erber apresenta “Propostas para uma estrutura sustentável”, preocupado com a sobrevivência da indústria petroquímica nacional, em decorrência da destruição do sistema regulatório do segmento, ocorrida com a abertura de economia brasileira. A incidência e o timing das medidas de abertura afetaram direta e imediatamente o mercado, o faturamento e a rentabilidade das empresas, que eram de porte bem menor que suas concorrentes, passando a serem contestados pelas importações, impondo tetos às margens de acumulação dos grupos, que não tinham condições de participar da competição internacional. Assim a reestruturação empresarial passou a constituir um elemento fundamental de enfrentamento da abertura, pois as especificidades brasileiras agravaram substancialmente o desequilíbrio. Do lado da política de abertura, a tradição do uso de barreiras não tarifárias legou uma estrutura institucional pouco preparada, em termos de recursos e instrumentos, para práticas desleais de comércio, que são corriqueiras no mercado petroquímico internacional. Do lado da reestruturação, a complexidade da estrutura brasileira apresentava dificuldades de atingir uma estrutura sustentável, através da política de privatização. As duas questões – abertura e reestruturação - tornaram-se ainda mais complexas e imbricadas pelo monopólio de fornecimento da nafta pela Petrobras, que a torna parte fundamental na definição da competitividade internacional da indústria e na configuração da sua estrutura empresarial. A proposta de Erber para a política petroquímica pode ser, então, resumida em: 1)Rever os ritmos de execução das políticas de abertura e privatização; 2) Implantação, num horizonte finito, de estrutura sustentável a ser negociada entre os vários atores intervenientes; 3) Constituir um foro de negociação entre os agentes governamentais e os grupos empresariais que participavam da indústria petroquímica, visando estabelecer uma estrutura mais competitiva internacionalmente e normas de regulação de preços ( notadamente da nafta) e de divisão de margens sustentáveis ao longo do tempo; 4) Várias formas de financiamento ( crédito, debêntures etc.) visando o fortalecimento tecnológico e empresarial, inclusive exportações; 5) Uso de procedimentos alternativos aos leilões do programa de privatização; 6) Apoio, exigindo como contrapartida a obtenção de índices de desempenho técnico e de custos, que assegurem competitividade internacional dos produtos brasileiros, adequando-os à abertura da economia. Transcorridos vários anos, em 2002, o grupo Odebrecht, numa estratégia mais agressiva, a partir da integração de seis empresas suas e do grupo Mariani (Copene, OPP Química, Trikem, Nitrocarbono, Propet e Polialden) formou a Braskem, sobre seu controle. Após acordos com a Petrobras, a estatal passou a participar da estrutura de capital acionário da Braskem, mas o controle permaneceu com o grupo privado. Sua estratégia passou a ser de internacionalização, buscando fortalecer-se no continente sul-americano, e de avanço na cadeia produtiva em direção a produtos de maior valor agregado (integração à jusante). Em 2023, “a Braskem é uma empresa global com unidades industriais localizadas no Brasil, Estados Unidos, Alemanha e México. Líder na produção de resinas termoplásticas (PE+PP+PVC) nas Américas e 6ª maior petroquímica do mundo. Líder mundial em biopolímeros de PE a partir de matéria-prima renovável e é a maior produtora de PP na América do Norte e líder na produção de PE no México.” “A Braskem é, hoje, a maior produtora de resinas termoplásticas nas Américas e a maior produtora de polipropileno nos Estados Unidos.” “Sua produção é focada nas resinas polietileno (PE), polipropileno (PP) e policloreto de vinila (PVC), além de insumos químicos básicos como eteno, propeno, butadieno, benzeno, tolueno, cloro, soda e solventes, entre outros. Juntos, compõem um dos portfólios mais completos do mercado, ao incluir também o polietileno verde, produzido a partir da cana-de-açúcar, de origem 100% renovável.” (ver textos entre aspas em https://www.braskem.com.br/perfil)

 

 

O tema central deste artigo é a sobrevivência da indústria petroquímica brasileira & posta em questão pela crise atual. A trama desta crise é urdida por cinco fios principais : as condições internacionais da indústria, que pautam o desenvolvimento da sua congênere nacional; a evolução do mercado interno, determinada pelas condições macroeconômicas do país; as condições sistêmicas de competitividade, dadas pelo desenvolvimento da infraestrutura econômica e social e pela política macroeconômica; as características estruturais da petroquímica brasileira e, finalmente, o regime de regulação que preside o desenvolvimento desta indústria.

Toma-se como ponto de partida a desejabilidade de manter no país uma indústria petroquímica forte, cuja estrutura seja sustentável. A trama da crise é apresentada em quatro seções. A primeira apresenta o contexto internacional da indústria petroquímica e suas características estruturais e as três seguintes detalham a crise brasileira: a segunda seção, após um brevíssimo retrospecto do desenvolvimento da indústria nacional, caracteriza empiricamente a crise enquanto as duas seções seguintes, analisam as origens da crise – a combinação de unia recessão com o desmonte do regime de regulação do setor – e os fatores estruturais de natureza setorial e sistêmica que a agravam. Para concluir, a quinta seção apresenta algumas sugestões para o debate sobre como superar a crise.

Finalmente, em um artigo em que o tempo é enfatizado e dedicado a um setor em mutação, cabe precisar o momento em que foi escrito: fevereiro/março de 1993. Pelas razões acima, detalhadas no texto, esta posição temporal incide necessária e inevitavelmente sobre a análise.

 

l) O pano-de-fundo internacional

O complexo petroquímico, entendido como o conjunto de atividades industriais que vai do petróleo à transformação de plásticos, resinas e outros derivados do petróleo constitui um dos pilares da industrialização moderna. O cerne deste complexo é constituído pelas atividades industriais que, partindo da nafta ou do gás, através de processamentos sucessivos, produzem os insumos que serão posteriormente utilizados em bens finais – a indústria petroquímica. Este artigo centra-se sobre esta indústria, tratando os problemas atinentes às duas pontas do complexo – de um lado, a oferta de matéria-prima e, de outro, a transformação dos produtos petroquímicos em bens Mais – somente na sua interseção com a indústria petroquímica estrito senso.

A base técnica da indústria petroquímica é caracterizada pela dominância de processos contínuos, intensivos em capital e sujeitos a margens de tolerância restritas. A cadeia produtiva também obedece a margens restritas, com elos fortemente vinculados. O progresso técnico na indústria é intenso, embora tenha características distintas ao longo da cadeia: a jusante, junto às centrais de matérias primas, os produtos e processos são padronizados e o progresso técnico centra-se em atividades de engenharia. Descendo a cadeia, produtos e processos tomam-se mais heterogêneos e cresce a importância de atividades de pesquisa e desenvolvimento, estrito senso. Os produtos tomam-se mais especializados e substitutos entre si. Em todos os elos da cadeia há grandes esforços de otimização de processos (p.ex. visando reduzir o consumo de energia e de insumos) e há uma tendência ao crescente uso de instrumentação eletrônica digital.

Em consequência, a indústria petroquímica é marcada por fortes economias de escala estáticas e dinâmicas, e por economias de escopo, seja na produção que em atividades de pesquisa e desenvolvimento, comercialização, administração e financiamento. Economias de verticalização e aglomeração são igualmente significativas. As escalas econômicas mínimas apresentam tendência crescente e, assim, a indústria tende a expandir-se descontinuamente, ampliando a capacidade à frente da demanda. Embora o progresso técnico confira à petroquímica uma fronteira de expansão, criando novos usos para seus produtos e mercê da substituição de outros insumos ( p.ex. papel, madeira e metais ), a demanda por seus produtos é fortemente afetada pela evolução da renda pessoal disponível.

Como decorrência das características técnico-econômicas acima descritas, a configuração natural da indústria petroquímica é o oligopólio. O cerne deste oligopólio, desde suas origens, é constituído por empresas petrolíferas que avançaram a jusante da cadeia e por grandes empresas químicas que diversificaram sua produção. A estas empresas, de porte verdadeiramente gigantesco e de atuação mundial, integradas vertical e horizontalmente, somam-se outras, de menor porte, que atuam em mercados específicos, explorando vantagens seja tecnológicas seja de canais de comercialização (l) ( Veja-se Quadro l). Não obstante, a dinâmica da indústria e sua regulação dependem fundamentalmente dos dois primeiros tipos de empresas. Composto originalmente por Minas oriundas dos Estados Unidos e Europa ( notadamente da Alemanha ), a partir dos anos sessenta esse oligopólio, até então muito estável (Hufbauer, 1966 ), foi contestado com sucesso por firmas japonesas e, mais recentemente, por empresas baseadas em recursos naturais baratos ( Arábia Saudita e Venezuela ) ou em grandes escalas de produção (Coréia do Sul e Taiwan ). Ao mesmo tempo, diversos participantes tradicionais do oligopólio adotaram estratégias de reestruturação, modificando sua distribuição de ativos na indústria, reduzindo capacidade produtiva e estabelecendo alianças estratégicas entre si.

Mesmo assim a entrada desses últimos produtores ocorre num período de sobre capacidade do setor face ao declínio da atividade econômica internacional agravando a crise da indústria. O mercado internacional de produtos petroquímicos encontra-se sobre ofertado, induzindo as empresas a praticar preços de exportação baixos, que frequentemente não cobrem os custos totais de produção mas apenas os custos baixos, caracterizando uma situação de dumping estrutural é provável que, no futuro próximo, o processo de reestruturação da indústria prossiga, eliminando produtores marginais.

Embora dominada por firmas globais, esta reestruturação é fortemente influenciada pelo Estado, de forma direta e indireta. Em muitos- países ( França. Itália, Holanda Asia, México e Venezuela ) o Estado participa diretamente da indústria através de empresas total ou parcialmente sob seu controle (2). Mesmo quando não é um produtor, o Estado participa da regulação da indústria, estabelecendo condições de entrada ( inclusive quanto à escala de produção e fonte de tecnologia ), como na Coréia do Sul, e monitorando sua reestruturação mediante insüumentos de coordenação, como o MITI no caso japonês, e de regulação da competição, como a legislação anti-trust e de defesa contra práticas desleais de comércio exterior. De forma mais indireta em todos os países o Estado afeta a competitividade sistêmica das indústrias locais mediante a provisão de infraestrutura econômica e tecnológica e mediante as politicas fiscal, cambial e educacional.

Em outras palavras, pode-se argumentar que as características técnico-econômicas da indústria petroquímica, notadamente sua integração vertical e horizontal e a indivisibilidade de seus investimentos, levam-na a uma trajetória natural em que impõe-se uma certa regulação. Esta foi parCialmente lograda peias firmas dominantes através de mecanismos de mercado. No entanto, o sucesso desta regulação de mercado é limitado pelos próprios mecanismos de mercado, que produzem os ciclos da indústria, levando o Estado a participar do processo de regulação. Por outro lado, o próprio sucesso da regulação via mercado, que impõe barreiras à entrada de novos participantes, estimula o Estado a participar desta regulação, estabelecendo condições para que firmas locais entrem em uma indústria que é considerada estratégica para0 ò desenvolvimento economico.

 

2) A crise da petroquímica brasileira : uma caracterização

Até o fim dos anos oitenta a petroquímica brasileira constituía uma história de aparente sucesso, que satisfazia até instituições insuspeitas de qualquer simpatia com a industrialização substitutiva de importações, como o Banco Mundial (World Bank; 1989 ). Com efeito, ao longo de duas décadas, haviam-se estruturado tres pólos petroquímicos e a indústria seguia uma trajetória de crescimento acelerado, prevendo-se no Programa Petroquímico Nacional (PNP), definido em 1987, a duplicação do poio da Bahia, a ampliação dos polos de São Paulo e do Sul e a instalação de um novo polo no Rio de Janeiro, com um montante de investimentos superior a tudo que já se havia investido anteriormente (Oliveira 1990). A substituição de importações de produtos petroquímicos completara-se, reduzindo o coeficiente importado a cerca de 3% das vendas internas em peso e valor (3), e previa-se a sua extensão aos produtos de química fina, rumo à qual diversificavam-se investimentos de empresas do setor. Ao mesmo tempo, a partir da crise do início dos anos oitenta o setor estabelecera uma presença permanente na pauta de exportações brasileiras.

No campo tecnológico, as empresas haviam passado por um processo de aprendizado de tecnologias de processo e produto. Embora os programas tecnológicos locais tivessem ambições modestas, orientados principalmente para a absorção de tecnologias importadas e otimização de processos e para a adaptação de produtos às condições locais de mercado, os dispêndios das firmas em atividades tecnológicas e a institucionalização dessas atividades tendiam a aumentar. No fim da década, a Petroquisa pretendia implantar um Centro de Pesquisas de maior porte e ambição – embora pequeno em termos internacionais. O processo de aprendizado abarcava também a própria atividade empresarial – oriundos de outros setores, frequentemente de atividades não industriais, os empresários petroquímicos nacionais privados haviam finalmente dominado o seu oficio (Erber e Vermulm, 1992).

Esse desenvolvimento dera-se ao abrigo de um complexo sistema regulatório, que abarcava desde a seleção de projetos e empresários até a operação das firmas, via, p.ex. controle de preços.

Nesse sistema, em que participavam diversas instituições governamentais, destacavam-se a oferta de matéria prima, a preços regulados, pela Petrobrás, a participação acionária de sua subsidiária, a Petroquisa, sócia da maioria das empresas de capital nacional; os financiamentos do BNDES; o controle de importações pela CACEX e pelo INPI; o controle de preços pelo CIP e, finalmente, o CDI como locus de articulação de políticas. A operação desse sistema foi fundamental para reduzir os riscos e os custos dos investimentos privados em petroquímica, atraindo estes empresários para o setor. Combinado com o acelerado crescimento do mercado interno, esse sistema regulatório assegurou sustentabilidade à. indústria petroquímica brasileira durante três décadas. No entanto, já na segunda metade da década de oitenta, esses dois pilares já apresentavam fissuras, a exemplo da dificuldade do sistema regulatório de arbitrar as prioridades no âmbito do PNP e da redução da taxa de crescimento do mercado interno.  Mais ainda, por detrás do aparente sucesso da indústria, jaziam problemas estruturais, a seguir discutidos, resultantes do projeto e do processo de construção do setor. No início dos anos noventa, ao convergirem simultaneamente, crises no mercado interno, e no sistema de regulação, estes problemas estruturais, antes encobertos, afloraram plenamente e a indústria petroquímica brasileira precipitou em uma crise profunda, da qual não há saída visível. A descrição desta crise utiliza os dados do período 1990/91, mas tudo indica que o quadro tenha se agravado em 1992.

Utilizando as informações do Sistema Dinâmico de Informações Estatísticas (SDI) da ABIQUIM, que, em pêso, as vendas internas caem, em 1990, 8% em relação ao ano anterior. Embora tenham apresentado leve recuperação em 1991 (2,6%), permanecem ao mesmo nível de 1988. Em valor, medidas em dólares constantes, as vendas elevam-se em 1990 6,5%, refletindo a subida de preços praticada naquele ano, notadamente no seu início. No entanto, em 1991 os preços não se sustentam e o valor das vendas internas cai a um nível intermédio entre os anos de 1988 e 1989. Assim em 1991 no mercado interno o setor havia regredido três anos, seja em peso que em valor. Entre os grandes grupos de produtos do setor, o movimento acima descrito é mais visível em intermediários para plásticos e termoplásticos, enquanto os orgânicos básicos tendem a manter-se estáveis .

Os investimentos realizados no âmbito do PNP, feitos com base em estimativas otimistas quanto ao crescimento da economia brasileira aumentarão substancialmente a capacidade de produção nacional de vários produtos. Estimativas apresentadas em ABIQUIM (1992) mostram que, em 1994, o mercado brasileiro será capaz de absorver apenas 58% da capacidade de produção de. eteno, 67% de polietileno e 52% de polipropileno.

No entanto, à diferença de uma década antes, o mercado externo não fornece uma válvula de escape. Embora as exportações, em peso, sejam ao fim de 1991 quase 12% superiores a 1988, em valor constante permanecem iguais (Quadro 4) e sua participação nas vendas totais, que aumenta em termos de peso, declina em valor (Quadro 5). Entre os principais grupos de produtos, são os mais padronizados, os orgânicos básicos, que apresentam o melhor desempenho exportador (Quadros 4 e 5). Em consequência, em 1991, as vendas totais do setor são, em peso, inferiores às de 1988 e, em valor constante, próximas do nível de 1989 (Quadro 6), destacando-se a relativa estabilidade da base da cadeia e o comportamento mais irregular dos intermediários e finais.

A mesma tendência transparece a nível de empresas. Embora o faturamento bruto do Sistema Petroquisa como um todo cresça 9.4% em 1990 ( em valores constantes ), a metade das empresas já apresentavam queda de faturamento, notadamente os produtores de elastômeros, termoplásticos e empresas vinculadas ao polo cloroquiniico de Alagoas. Em 1991, essa situação agrava-se e generaliza-se: apenas cinco empresas entre 34 apresentam aumentos de faturamento, em regra muito pequenos, e, para o Sistema como um todo, o faturamento cai 10%, abaixo dos níveis de 1988 (Quadro 7). Trabalhando com uma amostra maior, ABIQUIM (1991) mostra que os dados de balanço de 67 empresas do setor evidenciam uma grave deterioração dos indicadores financeiros e de rentábilidade em 1990. Exceto para as centrais de matérias primas e para as empresas-holding, as margens operacional e líquida tomam-se negativas em 1990, e, mesmo para tais empresas , essas margens diminuem substancialmente. Nesse ano, apenas as centrais apresentam uma rentabilidade positiva sobre o patrimônio.

Nesse período recente as importações apresentam uma forte tendência expansiva : em peso aumentam mais de três vezes entre 1988 e 1991, apresentando um salto em 1990, quando mais do que dobraram em relação ao ano anterior. Em dólares constantes, o aumento é menor, mas mesmo assim significativo, dobrando entre 1991 e 1988 (Quadro· 9). Sua participação nas vendas internas totais aumenta nas mesmas proporções, embora impacte os grupos petroquímicos de forma diferenciada, conforme mostra o Quadro 10. A um nível mais desagregado de análise, nota-se que seis produtos, com importações superiores a USS 10 milhões em 1991, concentram 45% do valor total e 61% do peso das importações (Quadro 11). Após mais de um ano de persistentes reclamos dos produtores nacionais quanto a prática de dumping, o governo instituiu direitos compensatórios provisórios sObre um desses produtos – PVC.

Como era previsível, a crise incide fortemente sobre os investimentos do setor. Defensivamente, as empresas paralisam seus investimentos ou, quando isto não é viável, dado o estágio det implementação, retardam-nos. Assim, a duplicação de Camaçari e o instalação do polo Rio são postergadas sine die, levando ao abandono do PNP.

Igualmente, o novo contexto, especialmente a abertura às importações, leva a inflexões na estratégia de investimentos de alguns grupos, que abandonam a implantação da indústria de química fina no pais.

Da mesma forma, contraem-se os gastos em desenvolvimento tecnológico: a Petroquisa paralisa a implantação do CENTEP e as demais empresas do setor diminuem a intensidade dos seus esforços, chegando em vários casos a desmobilizar as equipes já constituídas, regredindo assim o processo de instituciondização e aprendizado antes desafio. Já em 1990 o Sistema Petroquisa reduz o volume e a intensidade de gastos em P&D em quase 30%, sendo o corte especialmente forte nas centrais e nos produtores de polímeros. Erber e Vermul (1992) mostram o aprofundamento desse processo, com a redução dos esforços tecnológicos ao mínimo indispensavel para a continuidade das vendas.

Finalmente, dentro da estratégia defensiva adotada pelas firmas do setor, cujo objetivo principal é a sobrevivência, a crise conduz a uma redução de emprego, que cai cerca de 6% em 1990 e outros tantos em 1991 (Sandroni, 1992) – o que implica que, dadas as características técnicas do setor, as demissões devem ter abrangido pessoal bastante qualificado.

 

3) Fatores desencadeantes da crise

Os anos noventa apresentam o agravamento da crise macroeconômica do país. Ao mesmo tempo, a política industrial e de comércio exterior e a visão do Governo dos papéis que cabem ao Estado e suas empresas passam por uma inflexão de cunho liberal, que incide diretamente sObre a regulação do setor petroquímico na forma abaixo detalhada. Convergem assim,, de modo interdependente, duas crises internas – econômica e de regulação.

É desnecessário aqui reiterar o quadro da crise econômica do triênio passado. Conforme foi visto acima,, esta crise leva a uma significativa contração da demanda interna por produtos petroquímicos, ampliada, em alguns casos, peja ocupação do mercado por importações. Esta contração não é compensada pelas exportações, diretas e indiretas, em função da crise internacional e das condições excedentárias do mercado petroquímico internacional; antes comentadas. Converrl no entanto, detalhar as modificações do contexto regulatório em que estes fenômenos ocorrentes posto que essas transformações amontam a um verdadeiro choque.

Ao nível do mercado, a abertura às importações é significativa, especialmente à luz de uma proteção prévia na prática inhnita: em 1990 eliminam-se os controles administrativos das importações, adota-se a tarifa como único instrumento de proteção e introduz-se uma nova estrutura tarifária, desdobrada até 1994 ; decide-se acelerar a formação do MERCOSUL para 1995 e mantém-se a taxa de câmbio sobrevalorizada até o último trimestre de 1991. Como pode ser visto no Quadro 13, os níveis de tarifas nominais caem drásticamente: para produtos petroquímicos básicos e intermediários a tarifa reduz-se de 27.8% em 1988 para 7.9% em 1994 e para resinas, fibras artificiais e sintéticas a queda é de 40.2% para 15%. As tarifas efetivas, também cadentes, são porém superiores, finalizando o período em, respectivamente, 15.2% e 20.2%. No entanto, não se alteram a legislação anti dumping e o aparato governamental encarregado de executá-la não ganha porte e celeridade adequados às novas condições.

Conforme visto anteriormente, os efeitos da abertura em termos de quantum importado ainda são restritos e localizados em alguns produtos. No entanto, embora menos mensurável, mais significativo é o seu efeito sObre os preços, posto que os compradores locais passam a pautar-se pelos preços ofertados pelos competidores estrangeiros, deprimidos pelas condições internacionais antes descritas e pelo fato de ser o brasileiro um mercado novo, a ser conquistado. Em consequência, tendem a rebaixar-se o teto dos preços reais dos produtos petroquímicos e a rentabilidade das empresas do setor. Da mesma forma, a abertura incide sObre os planos de investimento do setor, especialmente sObre a diversificação rumo a química fina, cujos clientes potenciais, principalmente firmas multinacionais, preferem importar, especialmente intra-grupo.

Do lado da abertura exportadora o movimento da desregulação tem sentido inverso, sendo abolidos os incentivos fiscais para essas atividades, extinta a Interbrás e mantida a taxa de câmbio sobrevalorizada, fechando assim uma válvula de escape à depressão das condições internas.

No mercado interno, o controle de preços dos produtos petroquímicos é abolido em 1990 e a seguir reestabelecido, para novamente ser cancelado no fim de 1991, desta vez aparentemente de forma definitiva. No entanto, o preço da nafM, que é o principal componente dos custos da cadeia, continua a ser estabelecido administrativamente e sujeito a forte polêmica quanto aos critérios de fixação. No hm de 1991 este critério viria a ser definido – 120% do preço do petróleo “Brent”, contrariando a proposta da indústria que reivindicava um multiplicador menor (110%) , fixado sObre outro tipo de petróleo. O critério estipulado pelo Governo representava um aumento importante nos custos da cadeia petroquímica, comprimindo as margens de rentabilidade do setor. Embora esse critério não tenha sido implementado, tendo a Petrobrás mantido preços abaixo do nível de mercado intemacional ele representa uma espada de Dâmocles sobre a cabeça da indústria, aumentando a incerteza quanto ao seu desenvolvimento.

Embora constituíssem uma ruptura com o passado, as medidas acima descritas eram com ajustes, compatíveis com o sistema regulatório que presidira o desenvolvimento do setor durante as décadas anteriores. O cerne deste sistema seria atingido, porém pela eliminação dos mecanismos de articulação institucional e pela política de privatização.

A extinção do Conselho de Desenvolvimento Industrial em 1990 marca mais que o fim dos incentivos fiscais que este administrava – assinala a abolição dos mecanismos de articulação de políticas entre os vários órgãos que afetam o setor – que não são substituídos por mecanismos alternativos. Ao contrário, a política de privatização, abaixo discutida estabelece uma cisão entre os dois principais responsáveis pelo ancien régime: o BNDES e a Petrobras.

Tendo o Governo conferido prioridade máxima à privatização das empresas estatais e atribuído ao BNDES a função de executor deste programa, seguiu-se a decisão de incluir a petroquímica entre os primeiros setores alvo do Programa Nacional de Desestatização (PND). Posto que a maioria das participações da Petroquisa nas empresas do setor eram minoritárias ( excetuando-se principalmente as centrais do Rio Grande e de São Paulo e a Petroflex, grande produtora de elastômeros ) tratava-se aqui de desestatização estrito senso.

Três alternativas foram originalmente contempladas para a privatização do setor:

a) Venda, isoladamente, das centrais de matérias primas e das participações minoritárias da Petroquisa nas empresas de segunda geração;

b) Privatização da Petroquisa cindida em três ou quatro empresas, aglutinando em torno de cada um das centrais as participações minoritárias da Petroquisa nos respectivos poIos;

c) Privatização da Petroquisa em bloco.

A conveniência de formação de grandes grupos empresariais capazes de competir internacionalmente, fazendo face à abertura às importações, favorecia as duas últimas alternativas. Não obstante, a celeridade que se desejava imprimir à privatização por razões políticas, as dificuldades impostas pelos Acordos de Acionistas e pela presença de sócios estrangeiros (veja-se a seguir), bem como a falta de acOrdo quanto ao modêlo a ser adotado, aparentemente levaram a Comissão Diretora do PND a adotar a primeira alternativa, procedendo porém a privatização por polos. Tendo em vista a menor complexidade do Polo do Sul, este foi escolhido como ponto de partida do processo, devendo-se seguir os polos de São Paulo e da Bahia.

Definido o critério de formação do preço da nafta e tendo decidido que a Petroquisa deveria restringir sua participação à uma pequena parceira da central (15%), retirando-se das empresas de segunda geração, buscou-se formar no polo de Triunfo uma empresa holding que congregasse as empresas de segunda geração, dando origem a uma empresa regional de médio porte. No entanto, essa solução não foi aceita pelas referidas empresas, que argumentan que, embora tivessem interesse em participar da central para garantir o suprimento de matérias primas, com a constituição da holding adquirirem participações em outras empresas a jusante, fora de sua estratégia. Os sócios estrangeiros dessas empresas tinham o segredo tecnológico como razão adicional para evitar fusões de empresas de segunda geração. Optou-se, pois, pela privatização parcelada, em primeiro lugar da central e, a seguir das participações da Petroquisa nas empresas de segunda geração.

Embora a eficácia das decisões encontra-se sub judice, realizou-se no último Governo a privatização do polo Sul, ficando o controle da central pulverizado entre empresas de segunda geração, bancos nacionais e estrangeiros e entidades de previdência privada, aiem da Petroquisa. A venda de parte das ações da Petroquisa ao público não foi conduzida por impedimentos legais. A participação da Petroquisa nas empresas de segunda geração foi adquirida pelos outros sócios dessas empresas. No presente Governo, após um breve interregno em que as regras do PND estiveram em discussão, retomaram-se os leilões, já tendo sido privatizada a principal empresa de segunda geração do polo de São Paulo. No entanto, a privatização da central de São Paulo ainda não está definida, pesando sObre ela complexas questões jurídicas. Tampouco está definida a privatização do pólo do Nordeste.

Do ponto de vista conjuntural, o processo de privatização constituiu um sorvedouro de energia de todos os atores envolvidos no setor e, ao aguçar os conflitos latentes na estrutura empresarial, tomou mais difícil uma ação concertada de resistência à crise. Crítico aqui é c) timing do processo – sua celeridade associada a uma conjuntura de crise do mercado interno, abertura às importações e crise do mercado externo.

O desmantelamento do sistema regulatório que presidiu a implantação e expansão do setor petroquímico no Brasil em um momento de crise, agravou a incerteza inerente a esse momento e reduziu a margem de manobra anti-cíclica. Cabe porém apontar que a rapidez e a facilidade com esse processo de desmonte foi realizado não podem ser atribuídas apenas a fatores exógenos ao setor, como a política de privatização. Ao contrário, sob o sistema anterior jaziam graves conflitos e ineficiências, revelados, por exemplo, na ambição dos investimentos do PNP, em que o sistenia de decisões mostrou-se incapaz de arbitrar; no excesso de capacidade de produção de alguns produtos e na perda de legitimidade da Petroquisa junto aos grupos privados para atuar como regulador do sistema.

Não obstante, chama a atenção a falta de um desenho estratégico para o setor. Dada a importância da petroquímica para o desenvolvimento do país, a omissão acima referida SÓ pode ser interpretada como um ato de fé profunda na eficácia dos mecanismos de mercado para lograr o desenvolvimento.

 

4 ) Fatores estruturais agravantes da crise

A crise anteriormente descrita foi desencadeada pela conjugação de fatores de mercado e de regulação. No entanto, subjacentes a esses fatores de erupção, jaziam outros, de natureza eststtrutura1, que agravaram a crise e tomam mais difícil a sua solução. Para efeito analítico, convém distinguir entre características estruturais de natureza mais estritamente setorial e outras de natureza sistêmica que afetam a petroquímica e outros setores, embora de forma diferenciada.

  1. l ) Fatores de natureza setorial                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        I.Suprimento de matéria prima

A petroquímica brasileira é totalmente dependente da nafta e provavelmente assim permanecerá por bastante tempo, posto que soluções alternativas como o gás da bacia de Campos (RJ), da Argentina ou Bolívia parecem de remota execução. Embora essa dependência não constituía, em si mesma, um obstáculo ao desenvolvimento da indústria, ela evoca três tipos de problemas :

a ) A disponibilidade da nafta

Questiona-se a capacidade da Petrobrás de suprir toda a nafta necessária para o consumo petroquímico caso êste retome seu crescimento, tornando assim necessário importar o produto.

b) O preço da nafta

Há uma longa polêmica quanto ao preço cobrado pela Petrobras pela nafta suprida às centrais de matérias primas petroquímicas, em que se opõem os que afirmam ser esse preço subsidiado e os que negam esse subsídio. Dirimir empiricamente o conflito é dificultado pelas características técnicas da produção da nafta – um entre vários subprodutos do refino do petróleo. Conforme apontado acima a regra estipulada pelo Governo anterior (120% do petróleo Brent) é tão arbitrária como outra qualquer, mas levaria a um aumento de custos para a petroquímica em um momento de crise. Emhora não tenha sido praticado pela Petrobrás, o critério não foi revogado, permanecendo como um foco de incerteza para o setor . A questão é adicionalmente complicada pela compra pela Petrobras de combustíveis gerados pelas centrais de matérias primas ao processarem a naha, para os quais a posição se inverte, reclamando as centrais que o preço pago pela Petrobrás é excessivamente baixo.

c) O monopólio institucional de suprimento

A Petrobras detêm o monopólio do fornecimento da nafta por força de preceito constitucional. Esta condição legal cria obrigações e direitos para a Petrobrás face o setor petroquímico : de um lado, toma a Empresa responsável pelo füncionamento de um setor estratégico da economia, e, de outro, faz com que ela tenha um interesse comercial no abastecimento do setor, sugerindo que explore as vantagens monopólicas. Este conflito entre os lados estatal e empresarial, típico de toda empresa do Estado, era, até recentemente, resolvido pela participação da Petrobras, via Petroquisa ao longo da cadeia petroquímica, compensando o que deixava de ganhar nas refinarias com o que auferia na petroquímica. Cabe notar que a prática de preços de transferência ao longo da cadeia petroquímica é usual no setor, conferindo vantagens a empresas verticalmente integradas. Com efeito, êste é um dos principais determinantes do padrão de integração observado internacionalmente

A privatização, ao conceder à Petrobrás uma participação muito pequena nas centrais e eliminar sua participação nas empresas a jusante, ao mesmo tempo em que mantinha-se o monopólio de suprimento, veio a por em cheque esta solução. No decorrer do processo, foi aventada como uma saída de meio-termo, a manutenção de uma participação significativa da Petroquisa nas centrais de matérias-primas – cerca de 30% do capital. Para a central já privatizado do polo Sul, a participação a ser obtida quando (e se) os obstáculos jurídicos foram removidos será menor ( 15% ), não estando ainda definida para as demais centrais. Em consequência, paira uma grande incerteza sObre um aspecto fundamental! da dinâmica do setor. Cabe aqui notar que o monopólio acima referido limita o alcance da privatização da petroquímica, tomando a Petrobrás necessariamente participante do setor.

 

II. A estrutura empresarial

Os critérios e procedimentos do sistema regulatório que gestou a indústria petroquímica brasileira associados às características de porte e experiência dos grupos empresariais nacionais que entraram nesta indúsüi& produziram uma estrutura empresarial singular no quadro mundial da petroquímica : embora as fábricas sejam frequentemente de porte internacional, as empresas não são. As firmas brasileiras são pequenas, contando apenas com uma ou poucas fábricas, frequentemente mono produtoras, com um faturamento da ordem de USS 100/200 milhões, ínfimo em termos internacionais. Mesmo os maiores grupos têm pequeno porte, não superando o bilhão de dólares. A participação dos grupos empresariais nacionais e estrangeiros na cadeia e em empresas é fragmentada, com baixa sinergia. O contrOle das empresas é compartilhado e os acordos de acionistas permitem vetos sobre decisões estratégicas de efeitos paralizantes e a multiplicidade de sócios estrangeiros, que competem em escala internacional, imita, como vimos acima, o processo de aglutinação. Ou seja uma estrutura empresarial singular na morfologia e na inadequação dinâmica para competir em condições de igualdade com os grupos internacionais.

A estas características empresariais soma-se o excesso de capacidade de produção em relação às possibilidades de vendas internas e externas em vários produtos ( p.ex. eteno, polietilenos, polipropileno), exigindo decisões de remanejamento de produção e eventual fechamento de fábricas menos eficientes. Frequentes nos grandes grupos internacionais, essas decisões, embora dolorosas, são lá facilitadas pela existência de :uitas fábricas no âmbito do grupo. No caso brasileiro, porém o fechamento de uma fabrica pode significar o fechamento de uma empresa, dificultando significativamente a reestruturação competitiva do setor.

No sistema regulatório anterior, a participação da Petrobrás no fomecimento da nafta e, via Petroquisa,, em grande número de empresas petroquímicas, conferia-lhe, em tese, hegemonia no setor. No entanto, esse poder encontrava limites estritos. Ao nível setorial, a natureza estatal da Petrobrás e a difusão da sua participação, associada ao grande número de grupos privados participantes do setor, dificultava decisões de arbitragem que privilegiassem alguns grupos. Ao nível microeconÔmico, sua participação minoritária e as características dos Acordos de Acionistas antes referidas limitavam seu poder. Somava-se a esses fatores o não-consentimento da hegemonia pelos grupos privados, inclusive os sócios da Petroquisa.

A política de privatização colocou em questão a estrutura acima descrita. No entanto, conforme já relatado, persistem grandes incertezas quanto a pontos fundamentais, como seja a participação da Petrobrás no setor petroquímico. Justificável pela ótica empresarial, posto que é próprio de grandes empresas petrolíferas terem um braço petroquímico, esta toma-se indispensável à luz do monopÓlio do suprimento da nafta; antes discutido. Embora êste último aspecto pudesse ser solucionado mediante contratos de longo prazo com clausulas de partição de margens, durante as negociações que ocorreram no início do presente Governo, quando sustou-se o processo de leilões, emergira, conforme já fOi mencionado, uma solução que contava, inclusive, coin forte apoio do setor privado – a manutenção de uma significativa participação da Petroquisa nas centrais de matérias-primas. Permanecia porém o impasse quanto à participação da Pesquisa nas empresas a jusante da cadeia. A retomada dos leilões, alienando-se a posição da Petroquisa na principal empresa de segunda geração do polo de São Paulo, rompeu esse impasse, atendo-se o Programa à sua configuração original de desestatizar o setor. Persiste, momentaneamente, a incerteza quanto ao modêlo a ser adotado para as centrais.

Para os grupos privados do setor, a política de privatização veio a introduzir um forte elemento de incerteza em suas estratégias econômicas e financeiras, sujeitas a uma restrição temporal definida exogenamente, em função do ritmo acelerado do Programa. Em consequência, negociações visando aglutinações e redistribuições de ativos, que necessariamente demandam tempo (4), foram muito limitadas. No presente momento, estando ainda indefinida a modelagem da privatização da central de São Paulo e de todo o polo do Nordeste, emergem principalmente estratégias de concentração horizontal, com os grupos buscando fortalecer-se em segmentos de mercado específicos (p.ex. termoplásticos). Não se divisa a formação de grandes grupos verticalmente integrados, embora esta solução, preferível do ponto de vista da competição internacional, possa vir a emergir, dependendo dos resultados da privatização.

A estrutura empresarial do setor esti pois, indefinida, agravando a crise econômica e financeira e introduzindo um forte componente de incerteza na configuração de políticas anti-cíclicas.

 

III. Capacitação tecnológica

Comentou-se acima o alcance do processo de aprendizado tecnológico da indústria petroquímica nacional; embora inequívoco, esse aprendizado tinha escOpo limitado e mesmo este viu-se drasticamente reduzido com a crise recente, que levou à redução de gastos, desmobilização de equipes e reorientação de atividades para fins mais imediatos ( Erber e Vermulm 1993). Outros estudos apontam o baixo uso de equipamento de automação digital, que é associado ao alcance dos programas tecnológicos das empresas. A crise, ao levar à contração dos investimentos, deve ter retardado a difusão desses equipamentos.

Em consequência% a capacitação tecnológica da indústria petroquímica brasileira tende a atrofiar-se, reduzindo sua capacidade de competir internacionalmente. Na melhor das hipóteses, aumentará a dependência em relação a fontes externas de tecnologia, seja por meio de acordos de licença seja por participações societárias. Embora o uso .da importação de tecnologia possa eventualmente garantir a atualização dos processos produtivos, não se transfere a capacidade de inovar e mesmo de adaptar os processos e produtos às condições locais, atividades que requerem gastos internos e, dada a escala mínima destes, firmas de maior porte que as nacionais.

 

4.2 ) Fatores de natureza sistêmica

A competitividade internacional da indústria petroquímica brasileira é ainda onerada por diversos fatores de natureza sistêmica, Ultimamente ressaltados em documentos do empresariado, (p.ex. ABLQULM 1992), provavelmente estimulado pelo fim dos incentivos fiscais e creditícios que pautaram a instalação da indústria no país. Entre estes fatores destacam-se :

 

I. Carga fiscal

Segundo as conclusões de ABIQUIM (1992) ” o volume dos impostos e a própria estrutura tributária brasileira impõem aos produtores aqui instalados uma carga bem superior à vigente nos EUA, por exemplo. Em ordem de importância, tem-se o imposto de renda, os impostos sobre custo financeiro das vendas a prazo (não existentes no resto do mundo), o PIS e o COFINS (FINSOCIAL), os dois últimos também não existentes no resto do mundo; assim, os impostos sobre o lucro e sobre a produção locais acabam por favorecer a importação, que não incorre em tais custos nos países de origem” ( op. cit. p.69).

 

II. Custos financeiros

É desnecessário reiterar aqui que as taxas de juros cobradas no Brasil são substancialmente superiores às internacionais – o que se aplica coeteris paribus, mesmo às taxas do BNDES, fonte mais barata de crédito de longo prazo. Sendo uma indústria intensiva em capital, a petroquímica é brasileira é bastante onerada em sua competitividade internacional por esse diferencial.

 

III. Encargos sociais sobre a mão de obra

Estimam fontes empresarás que, na indústria química, ” o salário médio no Brasil é baixo, da ordem de USS 5,69/h. Entretanto, dada a atual estrutura de encargos (fiscais e para-fiscais) sobre o fator trabalho, emerge um custo médio elevado, da ordem de USS 12,13/1j similar aos da indústria química americana” (ABIQUIM 1992, p.59). Embora a indústria seja relativamente pouco intensiva em mão-de-obra, a vantagem derivada dos baixos custos deste fator tenderia assim a perder-se.

 

IV. Infraestrutura

Também são notórias as deficiências nacionais em termos de infraestrutura econômica (transporte, portos, energia e comunicações), social (saúde e educação) e técnico-científica, que refletem a crise do Estado brasileiro. Como em todas as indústrias, estas deficiências resultam em maiores custos e menor produtividade da indústria petroquímica nacional em conjunto com suas congêneres internacionais. Dadas as suas características técnicas e locacionais, estando muitas fábricas distantes dos principais mercados nacionais, as deficiências em transporte e portos parecem especialmente relevantes para a petroquímica, embora as limitações da infraestrutura social e técnico-científica também obriguem as empresas do país a internalizar maiores custos que seus competidores externos.                                                                   °

 

5 ) Propostas para uma estrutura sustentável

A análise anterior aponta para a gravidade da crise do setor petroquímico brasileiro – ou seja, para a urgência de soluções. Ao mesmo tempo, indica a incerteza que perpassa o setor, onde características estruturais críticas para sua sobrevivência estão indefinidas. Confiar ao mercado apenas a solução da crise, mantidas as presentes condições, implica em altos riscos para a sobrevivência da indústria petroquímica nacional. Em consequência, é necessário estabelecer um sistema regulatório para o setor que, pelo menos, assegure sua transição rumo a uma configuração mais sustentável.

Pelas razões antes expostas, não se fala de reestabelecer o antigo regime de regulação mas de configurar um novo sistema adaptado às novas condições econômicas e políticas do país. Não obstante, na nova, como na velha, configuração permanecem críticos a combinação de medidas de política e o timing dessas políticas. Em consequência, também são cruciais os mecanismos de articulação entre políticas. Em outras palavras, o Estado brasileiro necessita recuperar a capacidade de formular uma política industrial ( lato senso: englobando as políticas de comércio exterior e tecnológica ) de cunho setorial. Embora o setor apresenta algumas condições favoráveis para tanto, como a sobrevivência de instituições governamentais, como o BNDES e a Petrobrás, fortemente comprometidas com o seu desenvolvimento e conte com um setor empresarial organizado, faltam mecanismos de articulação.

Mais que tudo, porém, falta um desenho claro da configuração a ser alcançada para o setor petroquímico, embora aqui também já se disponha de alguns elementos consensuais, como a necessidade de uma reestruturação empresarial que redunde em grupos de maior porte, capazes de sustentar-se em condições de relativa abertura às importações. Um dos resultados principais das propostas abaixo delineadas seria o de precisar esse desenho.

Os comentários feitos a seguir têm o propósito, reconhecidamente limitado, de estimular o debate em torno desses temas. Partem da definição do raio de manobra disponível no presente e no próximo Muro para sugerir algumas medidas que podem ser tomadas para assegurar a transição.

O contexto internacional provavelmente manter-se-á pouco favorável, seja an termos de mercado seja em termos de competição. Os prognósticos de uma recuperação dos grandes mercados consumidores de produtos petroquímicos não são róseos e, ao contrário, um aumento do protecionismo parece provável. Pelo lado da oferta, a expansão devida à entrada de novos produtores deve manter-se. Em consequência, o mercado deve manter-se fortemente competitivo, inclusive utilizando práticas de dumping, especialmente em mercados novos e marginais como o brasileiro.

Embora desejável, parece pouco crível que o mercado brasileiro venha a retomar o crescimento sustentado a curto prazo. Tampouco parece provável que as condições sistêmicas de competição acima analisadas venham a alterar-se de forma substancial e favorável.

É desejável que esse cenário peque por excessivo pessimismo. No entanto, se éle é plausível, a obtenção de uma estrutura sustentável para a indústria petroquímica não será facilitada por características de contexto, dependendo essencialmente de condições setoriais. As duas ordens de fatores são obviamente interdependentes, fazendo-se momentaneamente a sua cisão por motivos estritamente expositivos, para, a seguir, retomar a trama.

A curto prazo, duas características da estrutura petroquímica parecem demandar tratamento mais urgente : a contestabilidade do mercado brasileiro pelas importações e a conformação de grupos empresariais capazes de enfrentar a competição internacional. Como já foi discutido, as duas características são articuladas, pOsto que a estrutura empresarial vigente dificuitq, pelas suas ineficiências, a competição com as importações e estas impõem tetos às margens de acumulação dos grupos. Assirrl a reestruturação empresarial constitue um elemento fundamental de enfírentamento da abertura.

No entanto, cabe reiterar, a incidência e o timing das medidas de abertura e reestruturação são distintos. As primeiras medidas incidem direta e imediatamente sObre o mercado, o faturamento e a rentabilidade das empresas. As segundas, operando inicialmente sObre a estrutura patrimonial, apenas mediatamente vão incidir sObre os custos. Da mesma form% a implementação das medidas de abertura tem caráter imediato enquanto as medidas de reestruturação requerem um longo tempo de gestação e prazos relativamente longos de realização.

As especificidades brasileiras agravam substancialmente o desequilíbrio acima descrito (S). Do lado da política de abertura; a tradição do uso de barreiras não tarifáüas legou uma estrutura institucional pouco preparada em termos de recursos e instrumentos, para a defesa dos produtores nacionais contra práticas desleais de comércio que, como já foi mencionado, são corriqueiras no mercado petroquímico internacional. Corrigir essas deficiências constitui uma tarefa indispensável para uma economia aberta e, no caso da petroquímicaj urgente. Do lado da política de reestruturação, a complexidade da estrutura brasileira já foi apontada, assim como as dificuldades de lograr uma estrutura sustentável através da atual política de privatização.

As duas questões acima apontadas – abertura e reestruturação – tomam-se ainda mais complexas e imbricadas no caso brasileiro pelo monopólio do fornecimento da nafta pela Petrobrás, que, como vimos, a toma parte fundamental na definição da competitividade internacional da indústria e na configuração da sua estrutura empresarial.

Olhando apenas para a indústria petroquímica, a análise anterior sugere que, para reduzir os desequilíbrios acima expostos e tratar adequadamente a complexidade da reestruturação empresarial do setor, seria conveniente rever os ritmos de execução das políticas de abertura e privatização. No entanto, a mesma análise aponta para o alto grau de inércia da estrutura vigente, derivada da sua história e da sua própria compièxidade, sugerindo que a força transformadora dessas políticas não deva ser desperdiçada por uma revisão que as adie ad infinitum. Em outras palavras, a análise anterior propõe um horizonte finito, estabelecido de forma negociada entre os vários atores intervenientes, para implantar uma estrutura sustentável na petroquímica brasileira.

Ainda dentro dos mesmos limites setoriais, considerando a importância estratégica da petroquímica para o país, pode-se imaginar que a Presidência da República poderia constituir um foro de negociação entre os vários agentes governamentais e os grupos empresariais que participam da indústria petroquímica visando estabelecer uma estrutura mais competitiva internacionalmente e normas de regulação de preços ( notadamente da nátia ) e de divisão de margens sustentáveis ao longo do tempo. Esta negociação poderia incluir várias formas de financiamento ( uédito, debêntures, etc) visando o fortalecimento tecnológico e empresarial, inclusive para exportaçõeS e o uso de procedimentos alternativos aos leilões no Programa de Privatização. Este apoio poderia ser sujeito a obtenção de índices de desempenho técnico e de custos, que assegura a competitividade intemacional dos produtos brasileiros, adequando-os à abertura. Combinada à reestruturação, esta poderia ser menos dolorosa para os casos em que a produção local provasse ser inviável, à semelhança do que ocorre no exterior.

Não é demasiado insistir que o período recente representou um processo de aprendizado intenso para todos os atores envolvidos na petroquímica, ajudando a romper a inércia estrutural. As posições relativas à privatização acima relatadas ilustram esse processo, que permite ter um moderado otimismo quanto à factibilidade setorial das propostas acima esboçadas.

Tampouco é excessivo lembrar que o tipo de proposta acima exposto implica numa concepção de política industrial setorializada, em que os mecanismos gerais de política são adequados, na substância e no tempo, às especificidades dos diversos setores, demandando, pela sua complexidade, instrumentos de articulação institucional.

No entanto, cabe aqui reiterar o limite setorial da análise anterior e, inserindo as propostas em um contexto mais amplo, qualificar sua exequibilidade. Assim, é importante notar que as duas políticas identificadas como estratégicas para o futuro do setor -abertura e reestruturação – não lhe são exclusivas. Ao contrário, aplicam-se a outros setores e fazem parte de um diagnóstico da crise brasileira que identifica na proteção contra as importações e na interveniência do Estado raízes estruturais desta crise.

Este diagnóstico, equivocado ou não, encontra sólido respaldo político, interna e externamente. Propostas de revisão setorial das políticas de abertura e privatização serão duramente atacadas como uma volta ao passado, independentemente do seu conteúdo substantivos e de seus efeitos de longo prazo. Caberá aos defensores de propostas de reestruturação da indústria petroquímica arregimentar forças políticas capazes de resistir e vencer esses inevitáveis ataques. Em consequènci& o destino da petroquímica brasileira será decidido tanto em escritÓrios como na mídia – o que, no fundo, não deve ser motivo de espanto, posto que a economia é sempre política.

 

NOTAS

*) Consultor do INALE. As opiniões aqui expostas são de natureza estritamente pessoal.

l ) Para uma tipologia detalhada das empresas petroquímicas internacionais veja-se Steinbaum e Fernandes ( 1992).

2 ) Para uma descrição detalhada das empresas estatais atuantes na petroquímica mundial veja-se Silva Filho ( 1990).

3 ) Vale a pena recordar que na Alemanha, o processo de formação da IG Farben, fortemente motivado pela necessidade de competir internacionalmente, levou vinte anos, pelo menos. Veja-se a respeito Baumler ( 1963).

4 ) O desequilíbrio entre medidas que visam aumentar a competição e medidas que têm por objetivo ampliar a competitividade da indústria brasileira era intrínseco à política industrial e de comércio exterior adotada no governo passado. Para uma análise mais detalhada veja-se Erber (1992).

 

 

 

 

 

 

A Política Tecnológica da Segunda Metade...

08. FSErber.EAAGuimarães.JTAraújoJrINTRODUÇÃO Este trabalho discute os obstáculos e as opções a serem enfrentados pela política tecnológica brasileira na segunda metade desta década....

Celular

Sentou-se na varanda e acendeu o charuto. Como vira o Velho fazer, aquecendo-o aos poucos.  Ao fim do dia, o Velho costumava fumar um e o escritório enchia-se de fumaça e perfume. Especialmente em dias de bons negócios.

E essa fora uma semana de cão! De segunda a quarta trabalhara como um desgraçado, noite e dia, para acertar a operação. Daisy reclamara porque não parava quieto na cama. Então, levantara para voltar ao computador. Mas, na quinta, estava tudo completo. Fizera e refizera todas as contas da engenharia financeira e tudo batia.

Fora, então, a glória. Seu chefe não estava e o Velho mandou chamá-lo, direto. Fez uma exposição como as que lhe haviam  dito que o Velho gostava. Seca, ao ponto. O Velho sabia tudo do Mercado e detestava que gastassem  seu tempo. Frases como “já via debentures antes de você nascer” eram lendárias na firma.

Ouvira-o, como sempre, com os olhos semi-cerrados e, ao fim, após o interrogatório, comentara :

– Bom. Muito bom.

Isso, por si só, já era o Céu. Elogios do Velho eram mais que raros, especialmente para juniores.

Depois, o Céu abrira-se em par.

–  Essa é uma operação complicada e há outros no mercado atrás dela. Como o Edgar está viajando, você fica diretamente responsável por ela.

Mais portas celestiais se abrindo.

– Estou vendo, aqui, que amanhã você tem que ir a Brasília. Vá. Amanhã, no fim da tarde, vou conversar sobre isso com os acionistas. Pode ser que tenhamos que alterar algumas coisas no fim de semana. Conto com você.

O Velho tirara da gaveta um telefone celular e um carregador. Um dos seus telefones. E pusera-o nas suas mãos. Para falarem no fim de semana.

Todas as emoções vieram juntas. Todo o passado condensado naquele momento. Missas de infância, D’Artagnan admitido entre os Mosqueteiros do Rei, Robin Hood sagrado cavaleiro pelo Rei Ricardo Coração de Leão. Tudo. Lera os clássicos e agora sabia o que  os heróis sentiam.

Revivendo o momento, pensou que fizera por merecer. Começara em um escritório de contabilidade, como auxiliar. Fizera uma faculdade noturna, trabalhando para se sustentar. No escritório aprendera mais. Tudo sobre a malandragem contábil e, mais tarde, fiscal. Safo, sempre fora. O negócio era aplicar a viveza aos negócios.

Um grande cliente o levara do escritório. Já ganhava bem para casar com Daisy, que namorava desde os tempos do Grajaú. Mas queria mais e concluíra que salário só não bastava. Para o que queria, só o Mercado.

Entrara no Mercado, por meio de um amigo que trabalhava com o Velho. Coitado; fora, mais tarde, despedido por transar com uma das secretárias. O Velho fizera sua fortuna inicial em obscuras transações com os militares, mas era um puritano feroz em matéria de sexo e drogas, especialmente quando relacionados com trabalho.

Agora, chegara lá. Morava na Barra, num condomínio moderno, com sauna, piscina e quadras de tênis e squash, com circuito de televisão interno, toda a segurança. Tinha um carro do ano. Nacional, é verdade, mas, quem sabe, para o ano pudesse comprar um Honda como o do vizinho. Certamente podia já ter comprado um celular. Mas receber o do Velho…

O celular fora a glória e mais, a porta para Raquel. Olhou para Daisy, que estava acabando de aprontar as crianças, Maurício Alberto e Patrícia Laura, para irem ao clube. Quando casaram, Daisy era cheinha, boa de apertar. Agora, de tanto malhar, se a mordesse, quebraria os dentes.

Raquel não. Ali tinha carne. Pena que fosse judia. E mais velha. Como era a frase? Cerca velha gosta de mourão novo! E que trepada! Bem diferente da burocrática papai-e-mamãe, Daisy virando para o outro lado para dormir, sem um suspiro. Até andara com dúvidas a seu próprio respeito. Mas Raquel acabara com as dúvidas.

Já se haviam  visto antes, na Bolsa e em reuniões para privatização. Antes, ele achava que era só ele que a tinha visto, pois ela não o reconhecia. Mas, não; depois, ela lhe dissera que se lembrava muito bem dele. Haviam estado juntos em Brasília, na reunião no Banco Central. Com sua cabeleira loura, na mesa cheia de homens, Raquel fazia vista. E falava muito, o que o irritava. Para se mostrar, ela tirara o celular da maleta, igual ao dos homens, e fizera uma ligação. Para comprovar que um dado que ele dissera estava errado. O pior é que estava mesmo. Mas, para não dar o braço a torcer, também sacara do seu celular e fingira telefonar. Para checar e, só então, concordar que o número dela era melhor. Perdera, mas marcara ponto. E os celulares eram do mesmo modelo.

Um dos lobistas no Congresso passara para apanhá-los e foram juntos para um briefing. Na discussão houve um racha, paulistas versus cariocas, e ele e Raquel, os únicos do Rio, haviam fechado posição juntos. Mas ser chamado de “o meu menino aqui” deixara-o muito mordido. No fim, para serenar, o lobista produzira um uísque doze anos, que rendeu bastante.

Com isso tudo, chegaram ao aeroporto em tempo apenas de pegar o último vôo. Vinha de Manaus e estava atrasado, sem previsão. Foram então para o bar e ela pediu um uísque. Ia pedir uma Coca mas decidiu acompanhar.

– Pensei que você fosse pedir um guaraná . Você é tão novinho !

Deixou sem resposta e desviou a conversa para o trabalho. Podia ser novo mas sabia de coisas de que ela nem suspeitava. E esmerou-se no inglês. E falou de operações.

Como imaginava, o interesse dela foi crescendo e crescendo. E foram ficando ali, bebendo e conversando. Até que o alto-falante anunciou que, por razões, como sempre, técnicas, o vôo estava cancelado.

Só restava pernoitar em Brasília e pegar o primeiro da manhã. Ao mesmo tempo, os dois sacaram seus celulares e disseram “tenho que avisar o Rio”. E desataram a rir, com a imensa graça da coincidência.

No táxi já foram de mãos dadas e, sem precisar combinar nada, foram para o mesmo quarto. Ele insistiu em carregar as duas maletas, mas com tanto azar que, ao entrarem no quarto, as duas se abriram, esparramando tudo pelo chão.

Abaixaram-se os dois e encontraram-se no carpete e, depois, na cama e até no banheiro.

Quase perderam o avião. Ela tinha um carro no Galeão, mas ele, para não dar bandeira, preferira voltar de táxi  (a firma pagava). Prometeram ver-se num futuro próximo. Sem compromisso. Como adultos, que sabem das coisas. Mas pretendia repetir. Breve.

Daisy e as crianças estavam prontas. Era uma sorte ter o celular, senão teria que ficar plantado ali. Patrícia Laura ficou encantada e logo pediu um. Maurício Alberto quis ver como funcionava e ele explicou, mas não o deixou testá-lo. Ficara horas carregando.

No clube recusou todos os convites para jogar. A cabeça pesava uma tonelada e o celular era uma ótima desculpa. Estava esperando uma ligação importante. No almoço comeu só uma saladinha, com a desculpa de estar engordando.

Mesmo assim, estava cochilando quando veio o grande momento. O celular tocou. Atendeu com a garganta apertada e, antes que pudesse falar, uma voz máscula, um pouco rouca, anunciou que aquela noite pretendia comer-lhe o cu. E mais várias partes da anatomia. Recuperou o fôlego e, engrossando a voz, anunciou  que havia um engano. Fez-se uma longa pausa e, em vez do esperado pedido de desculpas, ouviu apenas “vaca!”. E desligaram.

Quando Daisy perguntou quem era, respondeu apenas “engano”.

Voltaram do clube e foi tomar um chuveiro frio, para esclarecer as idéias. Quando estava se enxugando ouviu Daisy chamá-lo “Marcos Tenório!”. Quando Daisy usava o nome todo, a encrenca era grande. Meio molhado, abriu a porta e viu-a faiscante, com o celular na mão.

– Marcos Tenório! Esse telefone tocou e, como você estava no banheiro, atendi. Do outro lado havia um sujeito que me disse coisas que nem no Mangue imagino que se falem !

– E ?

– Bati o telefone, claro ! Para que tipo de gente você deu esse número, Marcos Tenório ?

E veio-lhe a resposta. Que não podia dar para Daisy. O Velho, fora do escritório, era um sacana ! Quem diria ! Sempre desconfiara de puritanos !

Tentou aplacá-la, protestando inocência e a ineficiência conhecida da Telefônica, especialmente em áreas high tech, como a telefonia celular.

Ficou vigiando o telefone. Imagine se Patrícia Laura recebe um chamado desses.

O resto do sábado passou incólume. Os amigos do Velho não telefonaram mas tampouco o Velho ligou. O celular ficou no carregador.

No domingo dormiu além da conta e, no café, Maurício Alberto, confidenciou-lhe, ao pé do ouvido, para que as mulheres não soubessem, que haviam passado um trote cabeludo no celular. Passou o resto do domingo com o telefone em baixo do braço, mas ele não tocou.

Quase não dormiu de domingo para segunda, tentando imaginar o que podia ter ocorrido com a operação. Talvez o Velho não tivesse encontrado os acionistas na sexta. Ou eles quisessem pensar durante o fim-de-semana. Ou, horror, o Velho tivesse passado mal. No fim das contas, naquela idade e com aquela vida sexual!

Seria discreto e não mencionaria os telefonemas para ninguém. Seria um segredo dele e do Velho. Uma cumplicidade, além dos negócios. Sentiu quase ternura pelo patrão.

Entrou cedo no escritório, mas já havia um recado do Velho, mandando-o subir. Achou que a secretária na ante-sala estava melhor disposta que de costume e não teve que esperar – dois bons sinais. Não levou papéis – só o celular. A operação tinha toda na cabeça. O Velho estava atrás da mesa, os olhos bem abertos.

– Na quinta-feira, disse-lhe que essa era uma operação complicada e confidencial. E que estava sob sua inteira responsabilidade. Na sexta-feira encontrei-me com os acionistas, que concordaram com a estrutura mas sugeriram algumas modificações. Essas modificações tinham que estar prontas hoje pela manhã, senão a operação não se realizaria.  Você era o único que podia fazer essas mudanças durante o fim de semana. Telefonei-lhe no sábado.

Os olhos apertaram e fez uma longa pausa. A voz tremeu um pouco.

– Atendeu uma simpática senhora. No meu celular. Dona Raquel Levi, que trabalha para um dos nossos competidores. Subiu na vida porque tem cabeça e xota. Fez-lhe grandes elogios. Grandes! Também deu vários palpites sobre a operação. Nossa operação. Alguns, até interessantes.

Estendeu a mão.

– Devolva. Vou mandar entregar para Dona Raquel e pegar o meu. E busque outro emprego. Mas não no Mercado, porque vão me pedir referências.

Os clássicos não o haviam preparado completamente.

O que fariam Robin Hood e D’Artagnan nessa situação ?

 

 

 

 

 

 

 

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A Política Tecnológica da Segunda Metade dos Anos Oitenta

Fabio S. Erber, Eduardo Augusto Guimarães, José Tavares de Araújo Júnior, In: Encontro Nacional da Indústria

Este artigo é bastante interessante por sua abordagem histórica, mas será útil aos formuladores de novas políticas industriais, como por exemplo, a do terceiro mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2023- ), que visa a reindustrialização em novas bases tecnológicas? Acreditamos que a resposta é positiva, pois, não todos, mas muitos dos instrumentos de política disponíveis e a preocupação com a sua implementação permanecem basicamente os mesmos. As mudanças importantes são, naturalmente, de objetivo e ênfase. Cabe enfatizar, contudo, no que diz respeito ao setor manufatureiro, que a política tecnológica deve ser derivada da estratégia que se pretende imprimir à evolução da indústria, o que uma afirmação válida ainda hoje. No período estudado no texto, a análise dos obstáculos e opções enfrentadas pela política tecnológica concentrou-se em dois conjuntos de eventos: a) o crescimento industrial dos anos setenta, e a recessão dos anos oitenta e; b) o aparato institucional destinado ao suporte das atividades de ciência e tecnologia, criado ao longo dos quinze anos anteriores. Na formulação de uma nova política, a preocupação com a evolução histórica deve permanecer, pois cada país tem as suas idiossincrasias, que o diferencia dos demais. Além disso, as políticas industriais e tecnológicas devem estar em consonância com as demais, no sentido de propiciar um desenvolvimento social e econômico de longo prazo. Cabe lembrar aqui que o trabalho “A Política Tecnológica da Segunda Metade dos Anos Oitenta” de Erber, Guimarães e Araújo Jr. (1984) foi apresentado no Encontro Nacional da Indústria, em outubro de 1984. Na primeira parte, mostrou uma breve análise da experiência com políticas tecnológicas dos EUA, Japão, Alemanha Ocidental, França e Reino Unido, e na segunda seção, a do Brasil. Na segunda parte, uma agenda de médio prazo foi proposta, para a segunda metade da década dos anos oitenta, cujo objetivo era de gerar os mecanismos através dos quais a política tecnológica deveria tornar aptos diversos segmentos da economia a responder aos objetivos gerais da política econômica. Neste sentido, o trabalho focaliza: i) as implicações tecnológicas inerentes à provável evolução do setor industrial, inclusive, visando manter a sustentação das exportações, a ampliação da pauta de produção industrial e a retomada do crescimento do mercado interno; ii) as medidas factíveis e suas respectivas modalidades de implementação e; iii) a identificação de deficiências existentes no aparato institucional. No que concerne à política tecnológica, o texto afirma que essa deve ser ainda orientada a criar às condições necessárias à viabilização das trajetórias apontadas, a desenvolver capacitação tecnológica do país, como também a responder as demandas específicas da sociedade e da economia brasileira. A persecução dos objetivos apontados pressupõe reações de duas naturezas por parte do setor manufatureiro. Em alguns casos, requer-se ampla difusão no parque industrial brasileiro, de conhecimentos técnicos existentes no país e no exterior; em outros, além disso, requer-se das empresas industriais o pleno domínio da tecnologia utilizada, de modo a possibilitar a adaptação às especificidades do país e o poder de competição dos agentes produtivos nacionais. Por conseguinte, a política tecnológica deve ser, ao mesmo tempo, uma política de difusão, assim como, de geração e absorção de tecnologia, revestindo-se da necessária flexibilidade.

08. FSErber.EAAGuimarães.JTAraújoJrINTRODUÇÃO

Este trabalho discute os obstáculos e as opções a serem enfrentados pela política tecnológica brasileira na segunda metade desta década. Dois conjuntos de eventos orientam a análise e as sugestões aqui apresentadas. Por um lado, o crescimento industrial dos anos setenta, e a recessão dos anos oitenta, implicaram um processo de mudança estrutural que afetou significativamente o padrão de inserção internacional da economia, a configuração de seu parque industrial, e, consequentemente, redefiniu os termos do velho debate sobre o estilo de desenvolvimento. Por outro, o aparato institucional destinado ao suporte das atividades de ciência e tecnologia, criado no país ao longo dos últimos quinze anos, tornou-se um acervo de inequívoca importância para o encaminhamento das questões nacionais.

A primeira parte do texto reconstitui as principais características da política tecnológica de algumas economias industrializadas no passado recente, visando compará-las com a experiência brasileira. A partir dos dados relativos aos Estados Unidos, Japão, Alemanha Ocidental, França e Reino Unido, discute-se o papel que esses países desempenham na distribuição mundial de recursos de ciência e tecnologia, a concentração setorial do esforço inovativo e a intervenção do Estado nessas atividades. Em seguida, apresenta-se uma breve revisão do caso brasileiro.

A segunda parte propõe uma agenda de médio prazo, cujo tema é abordado sob três perspectivas complementares. Em primeiro lugar, são examinadas as implicações tecnológicas inerentes à provável evolução do setor industrial nos próximos anos, com ênfase nos aspectos relativos à sustentação do desempenho exportador da economia, à ampliação da pauta de produção: industrial, e à retomada do crescimento do mercado interno. Em segundo lugar, procura-se ordenar O elenco de medidas factíveis e suas respectivas modalidades de implementação. Por fim, algumas deficiências do atual aparato institucional são apontadas.

 

PARTE I – A POLÍTICA TECNOLÓGICA DOS ÚLTIMOS QUINZE ANOS

1 – A Experiência Internacional

1.1 – Concentração mundial

A distribuição internacional das atividades em ciência e tecnologia é altamente concentrada, quer se usem medidas de insumo (despesas em P&D, número de cientistas e tecnólogos)ou de resultados (patentes, artigos científicos publicados, inovações realizadas). Esta concentração ocorre não apenas entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos (estes últimos respondem por apenas 3% destes gastos) mas também no âmbito dos primeiros — Estados Unidos, Alemanha, Japão, França e Reino Unido (na ordem de importância) — são responsáveis por quase: 90% dos custos totais em P&D industrial da OECD. Assim, embora outros países centrais tenham eventualmente papel relevante em setores específicos, o padrão de P&D no mundo capitalista & dado, em larga medida, por esses cinco países, sobre os quais se concentra a análise subsequente.

Três características marcam a pesquisa e o desenvolvimento industrial moderno: sua escala, seu conteúdo científico e sua especialização profissional, essas características estão intimamente ligadas ao seu caráter empresarial e configuram um processo de trabalho coletivo, conduzido dentro de cada laboratório ou planta-piloto.

No entanto, o processo de inovação é  um trabalho coletivo também num sentido mais amplo, ao nível da sociedade, Uma parcela substancial das informações utilizadas pelas empresas em suas atividades de P&D provêm de fontes externas e firma, notadamente de laboratórios governamentais e de universidades. Estudos setoriais sobre inovações mostram também a importância da comunicação entre firmas da mesma indústria e entre fornecedores e compradores. A transmissão dessas informações em geral, interpessoal e informal. Em consequência, obtém-se um efeito da sinergia, em que o resultado total é maior que a soma das partes. Essas condições, decorrentes de um longo processo de acumulação de capital e divisão do trabalho nos países centrais, conferem às empresas ali sediadas uma notável vantagem em relação às suas congêneres nos países periféricos.

É importante, porém, notar que, nesse processo coletivo, algumas indústrias desempenham um papel estratégico, atuando como núcleo gerador de inovações e como centro difusor de progresso técnico para os demais setores. o peso relativo dessas indústrias “intensivas em tecnologia” dentro de um sistema industrial nacional afeta de forma decisiva o dinamismo tecnológico e econômico desse sistema, bem como sua inserção internacional. Embora a importação de mercadorias e tecnologia possa, em parte, suprir deficiências da oferta interna de tecnologia, a política dos principais países da OECD orientada para a constituição e desenvolvimento desses setores estratégicos tanto por razões econômicas como militares.

Assim, cerca da metade dos gastos totais de P&D nos países da OECD refere-se à energia nuclear, atividades espaciais e defesa, dividindo-se o restante em partes aproximadamente iguais entre pesquisa e desenvolvimento com finalidade econômica e P&D destinados ao bem-estar público e apoio a universidade e pesquisa básica.

Em termos de P&D industrial, nota-se significativa concentração de gastos em alguns setores, notadamente nas indústrias aeronáutica, química, electro/eletrônica e de maquinaria, que absorvem cerca de dois terços dos gastos nos principais países. Estas indústrias caracterizam-se por fornecer  a base material do complexo militar e por apresentarem maior dinamismo em termos de comércio e investimento internacionais. Assinale-se, por fim, que — embora os Estados Unidos ainda sejam os principais investidores em P&D nos setores “intensivos em P&D”, principalmente em eletro/eletrônica e aeronáutica — os países da Comunidade Econômica Europeia (principalmente França e Alemanha) e, especialmente, o Japão têm apresentado maiores taxas de crescimento dos gastos em P&D nesses setores.

 

1.2 – A Participação do Estado

Embora os Governos dos países capitalistas tenham historicamente desempenhado um papel importante no apoio ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia, observa-se a partir da II Guerra Mundial, uma expansão quantitativa e qualitativa da participação do Estado nessas atividades, que convém detalhar, Enquanto nos Estados Unidos a intervenção governamental nesta área parece ter se pautado principalmente por uma lógica a meme de potência militar, no Japão e Alemanha, obedeceu fundamentalmente a objetivos de poder econômico; a França e o Reino Unido aparecem como casos intermediários. Recentemente, observam-se nos Estados Unidos pressões para que a atuação do Governo seja dirigida a reforçar diretamente a capacidade de competição técnica e comercial das firmas americanas no mercado internacional, principalmente face a seus concorrentes japoneses no setor eletrônico.

O Governo como executor e financiador de P&D: Uma primeira aproximação ao papel desempenhado pelo Estado nos países desenvolvidos pode ser obtida pela análise de sua participação como executor direto de atividades de P&D. Conforme indica o quadro a seguir, referente aos principais países da OECD; é significativo o peso do Governo (exclusive sistema educacional) através de seus institutos de pesquisa e laboratórios, notadamente na França e no Reino Unido. Note-se  que, no setor empresarial, estão incluídas as empresas estatais, o que subestima substancialmente o papel do Estado na execução de P&D naqueles países onde tais empresas são importantes, como é o caso da França e do Reino Unido. O Governo nos países desenvolvidos desempenha um papel de financiador de gastos em PED que excede sua participação direta como executante destas atividades. A direção deste financiamento difere, no entanto. Nos EUA, França e Reino Unido, os gastos concentram-se em objetivos EUA, França e Reino Unido. Os gastos conceptivos de caráter. militar, aos quais estão intimamente ligadas às indústrias de ponta, enquanto na Alemanha e Japão os fundos governamentais são orientados prioritariamente para o “progresso do conhecimento”. Parcela ponderável destes fundos destinam- se a cobrir gastos em pesquisas que serão mais tarde utilizadas pelas indústrias de ponta. A importância do financiamento governamental para P&D varia, também, de acordo com os setores econômicos. Os Governos dos principais países da OECD financiam uma parte substancial dos gastos empresariais exatamente das indústrias intensivas em P&D, exceto a indústria química — chegando, no caso de a indústria aeronáutica cobrir a quase totalidade desses gastos. Por conseguinte, as indústrias tecnologicamente “de ponta” recebem praticamente a totalidade do financiamento governamental para P&D na indústria. É importante ainda notar que a contribuição governamental acima indicada não inclui certos gastos que, embora apareçam nas estatísticas oficiais como sendo de responsabilidade do setor empresarial, são, na verdade, cobertos pelo Governo. O caso japonês merece um reparo especial, pois estatísticas agregadas como as apresentadas nas tabelas anteriores mascaram uma intervenção governamental profunda em projetos de caráter estratégico em setores de ponta. No passado recente, destaca-se, por exemplo, a articulação do Estado com grandes grupos empresariais para alcançar sucesso internacional em produtos eletrônicos estratégicos, como a televisão a cores, componentes semicondutores e equipamentos de processamento de dados.

A seletividade da política de apoio à ciência e tecnologia dos países avançados revela-se também ao analisarem-se as empresas que utilizam os créditos governamentais para P&D: em 1975, nos EUA, 80% dos recursos governamentais para pesquisa e desenvolvimento iam para firmas com mais de 25 mil empregados; na França 90% para as 20 maiores firmas; na Alemanha 65% para empresas com mais de 10 mil empregados e no Reino Unido 97% eram absorbidos por 50 empresas. Embora não se disponha de dados comparáveis para o Japão, sabe-se que nas indústrias de ponta os projetos estratégicos são desenvolvidos em conjunto pelo, Estado e por um grupo restrito de grandes empresas. Por fim, a seletividade setorial e de objetivos reflete-se também no seio do Estado: os aparatos estatais têm uma interferência diferenciada na política tecnológica, de acordo com os objetivos desta. Assim, nos Estados Unidos, destaca-se o papel desempenhado pelo Departamento do Defesa e pela NASA; no Japão, o MITI (Ministério de Comércio Internacional e Indústria) tem o papel principal. Entre esses dois conjuntos restritos de setores – grandes empresas (e seus subcontratantes) e aparatos estatais específicos — forja-se uma solidariedade de interesses— em que o fomento tecnológico é um elo importante — que tende a se reproduzir, reforçando-se pela continuidade ao longo do tempo. A atuação dos Governos dos países industrializados , tal como é captada nas estatísticas de P&D acima citadas, representa apenas uma parcela reduzida do apoio dado pelo Estado ao processo de desenvolvimento científico e tecnológico desses países, sob a forma de diversas medidas de ordem legal e de política econômica e financeira. Embora esse apoio se estenda também às instituições de pesquisa e universidades (por exemplo, através de fundos destinados ao ensino e não à P&D), ele é especialmente importante para as empresas. Dentre as iniciativas não captadas nas estatísticas apresentadas, e ainda no âmbito do apoio financeiro, aponte-se os incentivos fiscais concedidos, pela maior parte dos Governos dos países centrais, às empresas que realizam P&D. Em suas formas mais comuns, tais estímulos consistem em deduções do imposto de renda devido pelas empresas e na depreciação acelerada dos investimentos em P&D, reduzindo assim os custos de realização dessas atividades. No entanto, a eficácia desse instrumento tem sido questionada devido, principalmente, ao fato de o investimento fixo em P&D ser relativamente pequeno e os incentivos não cobrirem os gastos de inovação subsequentes à pesquisa e desenvolvimento, Apoio governamental à apropriação e comercialização dos sucatados de P&D. Deste ponto de vista, a ação governamental contempla inicialmente assegurar o direito de monopólio da inovação, inclusive o direito de obter compensação daqueles ‘que tentam se apropriar de informações sem o devido pagamento. A preservação dos direitos de propriedade sobre o conhecimento apoia-se em sistemas legais nacionais e em acordos internacionais como a Convenção de Paris. Os países centrais não só tem sistemas legais internos e eficientes como tem consistentemente apoiado a internacionalização dos direitos de seus súditos. No tocante ao apoio à utilização dos resultados de P&D, ressalte- se, em primeiro lugar, O apoio de natureza financeira. Os gastos em P&D constituem, normalmente, uma parcela raramente superior: a 50% dos custos totais de inovação industrial. As demais despesas (instalações produtivas, marketing etc.) são frequentemente financiadas pelos Governos dos países avançados, embora não sejam incluídas nas estatísticas de P&D. Parte desses financiamentos são concedidos no contexto de políticas industriais mais amplas — ponto que voltaremos a seguir — mas outra parcela é parte integrante de uma política de inovação tecnológica, especialmente no caso das indústrias de ponta. Por exemplo, no caso de semicondutores e circuitos integrados, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos concedeu importantes financiamentos para as linhas iniciais de produção, que permitiram &s firmas beneficiárias reduzir o tempo e o custo do desenvolvimento comercial desses produtos. Tomando-se como outro exemplo o Reino Unido, na década passada, a parcela referente a P&D representa apenas um quarto do total do apoio financeiro governamental à indústria. Este apoio, embora mantendo as prioridades vistas no financiamento a PAD, passa a incluir outras indústrias intensivas em tecnologia (notadamente química), que se beneficiam pouco do financiamento direto à pesquisa e desenvolvimento.

Nota-se aqui uma característica da intervenção do Estado para o desenvolvimento tecnológico nos países centrais: uma relativa convergência entre a política de fomento  industrial, lato senso, e as medidas destinadas especificamente ao desenvolvimento tecnológico o que, no jargão da política científica e tecnológica, convencionou-se chamar a “convergência entre as políticas explícitas e implícitas de tecnologia”. (Poe tecnologia. políticas explícitas são aquelas que têm o propósito definido e identificado de influenciar as atividades e funções de ciência e tecnologia; políticas implícitas são aquelas que, embora elaboradas com outros propósitos, p.ex. regular importações, afetam aquelas funções e atividades). Análises de reações empresariais à medidas destinadas a fomentar o desenvolvimento industrial e tecnológico mostram que as medidas mais importantes são aquelas relacionadas com o desenvolvimento industrial em sentido amplo. Dentre estas medidas, aponte-se, inicialmente, aquelas que contribuem para minorar a incerteza associada ao processo de pesquisa, desenvolvimento e inovação, especialmente nas indústrias tecnologicamente “de ponta”, um exemplo é a proteção nos mercados nacionais, através da preferência em compras governamentais (os “buy national acts”) e, menos frequentemente, de medidas de controle de importações (como tarifas, cotas e, mais indiretamente, política de câmbio). O caso do Japão constitui, talvez, a melhor evidência do uso dessas medidas, aliadas a uma cuidadosa discriminação setorial de entrada de capitais estrangeiros. Também no caso das indústrias de ponta nos Estados Unidos, diversos estudos mostram o papel crucial desempenhado pelas compras militares e espaciais, no sentido de propiciar a realização das economias de aprendizado e permitir a difusão comercial dos seus produtos, De fato, mesmo quando o Estado não é um comprador direto, influi com frequência sobre a demanda privada, orientando-a para a aquisição de inovações em larga escala, normalmente como parte de políticas de modernização setorial e de competição internacional. Tal foi, por exemplo, o resultado da política de subsídios às linhas de aviação nos Estados Unidos, combinada com a regulamentação de tarifas aéreas e com a depreciação acelerada para aviões, e dos financiamentos subsidiados para compra de máquinas-ferramentas com controle numérico em vários países da OECD. No Reino Unido, implementou-se um sistema de apoio intermediário entre as compras diretas e a mera orientação da demanda acima citada: máquinas-ferramentas com controle numérico são compradas pelo Governo, emprestadas sem ônus a possíveis compradores para teste e, a seguir, vendidas a preços reduzidos. O mercado estatal espacial/militar propiciou ainda importantes efeitos secundários para as indústrias de ponta (como computadores e aeronáutica) em suas aplicações civis. Primeiro, as vendas para o mercado espacial militar permitiram às empresas financiar níveis elevados de P&D em geral e, consequentemente, manter uma liderança tecnológica em outros mercados. Segundo, a demanda espacial/militar conferiu às firmas fornecedoras o domínio de técnicas altamente sofisticadas que, no entanto, tinham frequentemente aplicações civis. Por fim, a demanda espacial/militar teve importantes efeitos-demonstração para a área civil, estimulando a demanda desse segmento da economia. A ação governamental nos países desenvolvidos têm contemplado também viabilizar a presença no mercado externo dos produtos resultantes do esforço doméstico de P&D. A esse respeito, observe-se que! se, por um lado, as indústrias intensivas em tecnologia respondem pela maior parcela das exportações de produtos industriais dos países avançados, de outro, essas exportações são frequentemente indispensáveis ao crescimento de tais indústrias, mesmo tendo em conta a dimensão dos mercados internos desses países. Na intensa competição internacional que caracteriza essas indústrias, dois fatores, são de fundamental importância: a qualidade dos produtos e as condições de financiamento das vendas. Neste contexto, as medidas de proteção nos mercados domésticos, acima discutidas, não se cumprem uma finalidade defensiva em relação a concorrentes estrangeiros, como acarretam um fortalecimento das condições de competição das firmas  locais nos mercados externos, permitindo-lhes utilizar o mercado nacional tanto para atingir escalas de produção mais vantajosas como para comprovar a qualidade dos produtos, adiantando-se aos seus competidores na introdução de inovações no mercado internacional. Possivelmente, o melhor exemplo desta estratégia & dado pela atuação japonesa em produtos eletrônicos. Os Estados dos países avançados têm também apoiado as exportações de suas indústrias mediante esquemas de financiamento especiais, frequentemente coadjuvados por medidas de “a diplomacia comercial”, especialmente no caso dos países subdesenvolvidos. Assinale-se, por fim, que os governos de países desenvolvidos, especialmente os europeus e o Japão, tem adotado políticas que visam alterar a estrutura de algumas indústrias, notadamente nos setores de ponta, de modo a, entre outros efeitos, assegurar-lhes poder de competição no mercado internacional, inclusive em termos de tecnologia. São exemplos de iniciativas neste sentido as fusões de empresa patrocinadas pelos governos da Alemanha e da Inglaterra nas indústrias aeronáutica ‘ e nuclear e pelos governos da Inglaterra e da França na indústria de computação.

 

1.3 – Conclusões

A análise da participação do Estado no processo de desenvolvimento científico e tecnológico dos países capitalistas centrais sugere algumas conclusões: embora o nível de desenvolvimento da acumulação de capital e da divisão de trabalho nessas economias favoreçam O processo de desenvolvimento científico e tecnológico, tais condições favoráveis são não apenas reforçadas pela ação do Estada, como, em parte, criadas pela interferência estatal as medidas de apoio do Estado ao processo de desenvolvimento científico e, especialmente, tecnológico, transcendem o apoio direto às atividades de P&D. No entanto, tais medidas estão, em regra, associadas a outros objetivos que não o desenvolvimento tecnológico em si, entre os quais se destacam o poder militar e o reforço das condições de competição das empresas nacionais tanto no mercado interno como internacionalmente, em termos comerciais e de investimento. O desenvolvimento tecnológico é um meio de atingir tais objetivos mais amplos, especialmente no caso das indústrias de ponta. Nas demais indústrias, o desenvolvimento tecnológico & um subproduto da política econômica geral.

As medidas de apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico estão fortemente concentradas em alguns setores industriais, as chamadas “indústrias de ponta”. Essa concentração se dá tanto em termos do apoio direto às atividades de P&D , como nas medidas de apoio indireto, Para os demais setores, inexistente, na prática, uma “política explicita de inovações”.- O apoio do Estado ao desenvolvimento tecnológico ê altamente seletivo, tanto em termos de setores como de empresas. Com isso, forma-se nas indústrias de ponta uma articulação de interesses entre empresas, instituições de pesquisa e aparatos estatais, que tende a se expandir e a assegurar a continuidade daquele apoio.

– As medidas de apoio direto do Estado ao desenvolvimento científico e tecnológico dos setores de ponta tendem a convergir com outras medidas de política econômica, que representam um apoio indireto a esse desenvolvimento, essas medidas de política tecnológica “implícita” são uma condição necessária para o sucesso da política tecnológica “explícita” e, frequentemente, são dominantes nas decisões empresariais.

2 — O Caso Brasileiro

2.1 – Evolução Histórica

As diversas análises históricas da atuação do Estado na área de ciência e tecnologia no Brasil mostram que só a partir do fim da década de 60, com o Programa Estratégico de Desenvolvimento (PED), define-se, ao nível do Governo Federal, uma política explícita de ciência e tecnologia, Embora anteriormente o Estado interviesse na área científica e tecnológica propiciando a institucionalização de certas atividades cientificas (na área de saúde, por exemplo) e mesmo constituindo instituições de política para ciência e tecnologia (como a criação do Conselho Nacional de Pesquisas em 1951), essa intervenção era fragmentada e descontínua, refletindo conjunturas específicas (febre amarela no Rio, broca em café em São Paulo). Atendidos os interesses imediatos que o suscitaram, o apoio estatal à atividade científica e/ou tecnológica, tornava-se rarefeito e minguavam as instituições e as atividades nelas realizadas. Quando, como no caso da política atômica, as  implicações de uma intervenção estatal eram maiores envolvendo modificações na estrutura de relações internas ou externas, faltou força aos grupos interessados para, mesmo iniciada a intervenção estatal na área, dar-lhe a continuidade e força necessárias. Em outras palavras, os estudos sobre a atividade científica e sobre a dependência tecnológica sugerem que, até recentemente, tanto o padrão de crescimento econômico no Brasil, como as características do seu sistema político e a forma de inserção do país no sistema internacional, não propunham ao Estado razões econômicas e políticas suficientes e necessárias a uma maior intervenção na área da ciência e tecnologia, a não ser em casos específicos de alcance limitado. No período que se inicia em 1968, o desenvolvimento científico e tecnológico passa a ser objeto específico de política. Estabelecem-se mecanismos financeiros especiais para essas atividades, passa-se a controlar a importação de tecnologia e implanta-se uma estrutura institucional para o planejamento, que produz três Planos Básicos para o Desenvolvimento da Ciência e tecnologia (PBDCT) cobrindo, respetivamente, os períodos 1973/1974, 1975/79 e 1980/85. Essas atividades do Governo Federal são espelhadas, em escala menor, ao nível de alguns Governos Estaduais, especialmente em São Paulo. Embora todos os planos de desenvolvimento desde o PED enfatizem a necessidade de criar uma maior capacidade científica e tecnológica no país, além de aumentar a incorporação e conhecimento proveniente do exterior, hã diferenças importantes entre suas prioridades. Enquanto no PED a maior capacitação científica e tecnológica tinha por objetivo o desenvolvimento de tecnologias mais ajustadas à dotação de fatores de produção no país, de modo a assegurar maior absorção de mão-de-obra e criar um mercado de massas para garantir um crescimento auto sustentado, nos demais planos a ênfase recai sobre o aumento da competitividade da indústria brasileira e o fortalecimento da empresa nacional. No período coberto pelo II PND e II PEDCT, o discurso oficial passou inclusive a privilegiar o papel a ser exercido pela ciência e tecnologia no processo de desenvolvimento brasileiro como uma força motora, o conduto, porém excelência da ideia de progresso e modernização. Esta ênfase é substancialmente abrandada no III PBDCT que elege como objetivos prioritários a aplicação da ciência e tecnologia aos problemas energéticos, de desenvolvimento agrícola e desenvolvimento social. A distância entre o discurso oficial e a prática é, como se sabe, grande mas, mesmo assim, mo passado recente, o Brasil reforçou consideravelmente a sua capacidade científica e tecnológica, expressas numa população de pesquisadores ativos de cerca de 30 mil pessoas, em cerca de mil cursos de pós-graduação, onde estudam mais de 40 mil alunos e, por exportações, tanto de tecnologia (equivalentes às importações) e de produtos manufaturados de relativa sofisticação, inclusive de instalações fabris completas. Embora persistam sérias deficiências na estrutura científica e tecnológica brasileira, agravadas com a atual crise, os sucessos alcançados podem em boa medida ser creditados à política científica, e tecnológica explícita do Estado brasileiro.

 

2.2 – Execução e Financiamento das atividades de Ciência e Tecnologia

Os dados disponíveis sugerem que O Brasil gasta entre 0, 4 e 0,6% do PIB em ciência e tecnologia, Esta percentagem é semelhante a de outros países em desenvolvimento como o México, Argentina, Coreia do Sul e India, mas substancialmente inferior à dos países desenvolvidos. Embora os gastos brasileiros em volume (medidos em dólares) não sejam insignificantes em termos internacionais, cabe registrar que tais dispêndios destinam-se inclusive a montar uma estrutura de atividades científicas e tecnológicas, ao passo que os investimentos dos países desenvolvidos incidem sobre uma estrutura já constituída e eficiente. O quadro a seguir apresenta a evolução dos gastos em ciência e tecnologia para O período 1979/82 discriminados por entidades executoras com fontes financiadoras, segundo informações recentes do CNPq. Tais dados, no entanto, representam uma aproximação muito parcial da realidade. Assim, provavelmente subestimam o montante de gastos em tecnologia realizados pelo setor privado e incluem gastos públicos que apenas em sentido, muito amplo são atribuíveis a despesas em ciência e tecnologia (por exemplo, o aumento do capital da Nuclebras responde por 5.2% dos recursos em moeda local do Orçamento da União para Ciência e Tecnologia). O crescimento em valor real destes gastos em 1982 resulta, em proporção difícil de avaliar, da ampliação do tipo de dispêndios considerados como pertencentes ã categoria de ciência e tecnologia e do alargamento da base de informantes. Apesar dessas qualificações, o quadro mostra o papel crucial que o Estado brasileiro tem desempenhado tanto na execução de atividades científicas e tecnológicas no país, como no financiamento por meio dos Governos Federal e, em menor medida, Estaduais e das Empresas Estatais. Estas últimas financiaram com recursos próprios a maior parte (72%) dos seus gastos em ciência e tecnologia no período 1979/82, uma proporção substancialmente maior que o autofinanciamento do setor privado no mesmo período (50%). A outra metade dos gastos realizados pelo setor privado & financiada com recursos do Tesouro Nacional (28%) e por agências financeiras (22%). No passado recente, vem se modificando o peso relativo dos instrumentos financeiros utilizados pelo Estado brasileiro para cobrir os gastos nacionais em ciência e tecnologia, com a queda acentuada do papel desempenhado pelo FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) administrado pela FINEP. Tendo em 1976 atingido um pico de 1,168%, sua participação no Orçamento da União em 1984 (0.24%), foi inferior ao valor observado quando da sua constituição em 1970 (0.343).Em termos reais, o FNDCT reduziu-se a cerca da metade do valor  meta correspondente a 1976. Quanto à distribuição dos dispêndios nacionais em ciência e tecnologia, os dados disponíveis (apenas para o ano de 1983) sugerem que a prioridade atribuída pelo III PBDCT — a agropecuária e energia — vem sendo obedecida: estes dois setores respondem por mais da metade do referido gasto. Se a estes somam-se os recursos destinados a do “desenvolvimento científico e tecnológico” (provavelmente pós-graduação. e pesquisa na universidade) (14%) e as atividades destinadas à’ indústria (11%) atinge-se mais de três quartos do dispêndio total no ano. No entanto, a terceira prioridade do Plano, o desenvolvimento social, parece: ter recebido apenas 3,5% dos recursos. Em termos de gastos em atividades científicas e tecnológicas pelo setor empresarial privado e estatal, estimativas do CNPq para 306 empresas em 1979 sugerem que, entre as empresas privadas, os. gastos concentram-se no setor de material de transportes (um terço do total privado), ‘seguido pelo setor químico (14%) e autopeças (10%), predominando as despesas realizadas por empresas nacionais. Entre as empresas estatais nota-se uma concentração substancial em 10 empresas que respondem por 90 dos gastos de 97 empresas pesquisadas. Tais gastos concentram-se na área agropecuária (46%), geração e distribuição de energia (18%), química (11%) e telecomunicações (10%).2.3 – Política de compras das Empresas Estatais. A exigência de uso da tecnologia do exterior para a aquisição de serviços de engenharia e bens de capital, comum nas empresas estatais brasileiras na década de setenta, tendia a gerar um círculo vicioso em que seus fornecedores, por não terem experiência prévia do prestamento, eram forçados a usar licenciamento e, por usarem licenciamento, não desenvolviam uma capacidade própria de projetamento. Por conseguinte, dentre as medidas implementadas para fazer face aos problemas de balanço de pagamentos e ao peso que as importações de bens de capital haviam assumido na mesma época, incluiu-se a criação nas empresas estatais de Núcleos de “Articulação com a Indústria -NAIS. Estes Núcleos, que respondiam a uma Comissão de Coordenação cuja Secretaria Executiva era a FINEP, tinham por objetivo aumentar o conteúdo local das compras dessas empresas . Em fins de 1978 já haviam sido criados 106 NAIS, número que tem se mantido constante desde aquela data. A atuação dos NAIS’s no sentido de substituir importações de tecnologia e incentivar o desenvolvimento tecnológico autóctone dos fornecedores das empresas estatais varia bastante de setor em setor, à destacando-se os sucessos obtidos nas áreas de telecomunicações, energia elétrica e petróleo. Significativamente estes são os setores onde as empresas estatais vem investindo mais em pesquisa e desenvolvimento próprio e em “contratação de pesquisas extramuros. A eficácia tecnológica dos NAIs tem sido limitada tanto por fatores que fogem ao controle das empresas estatais (como o padrão de financiamento de seus projetos) como pela resistência interna ao uso de tecnologia local. Embora essa resistência se justifique em parte (e seja sempre justificada) por fatores de risco, contêm também elementos políticos e de preconceito que normalmente não são explicitados mas pesam substancialmente. Este viés cultural e político &, por vezes, agravação pela distância dos NAIs em relação aos centros decisórios das empresas estatais. A FINEP, como Secretaria Executiva do CCNAI, vem tentando minorar os problemas acima mencionados, pelo estabelecimento de dois tipos de convênio, de natureza complementar: (1) Acordo de Cooperação Técnica e Financeira com as empresas estatais, através do qual a FINEP coloca recursos para a fabricação pioneira de bens de capital em empresas nacionais selecionadas pelas empresas estatais, buscando inclusive a articulação dos fornecedores de equipamentos com instituições de pesquisa; (2) Acordo de Cooperação Financeira com a FINAME, tendo por objetivo garantir recursos para as empresas nacionais de bens de capital desde a fase de investimento em tecnologia até a comercialização e garantindo também às empresas apoiadas pela FINEP as taxas de juros favorecidas do Programa Especial da FINAME. Mais recentemente, o INPI bajula um ato normativo, cujo intuito é evitar que as empresas estatais, em suas licitações, imponham a seus possíveis fornecedores a obrigação de contratar tecnologia no exterior.

 

2.3 – Política de Compras das Empresas Estatais

A exigência de uso da tecnologia do exterior para a aquisição de serviços de engenharia e bens de capital, comum nas empresas estatais brasileiras na década de setenta, tendia a gerar um círculo vicioso em que seus fornecedores, por não terem experiência prévia do projetamento, eram forçados a usar licenciamento e, por usarem licenciamento, não desenvolviam uma capacidade própria de projetamento. Por conseguinte, dentre as medidas implementadas para fazer face aos problemas de balanço de pagamentos e ao peso que as importações de bens de capital haviam assumido na mesma época, incluiu-se a criação nas empresas estatais de Núcleos de Articulação com a Indústria -NAIS. Estes Núcleos, que respondiam a uma Comissão de Coordenação cuja Secretaria Executiva era a FINEP, tinham por objetivo aumentar o conteúdo local das compras dessas empresas. Em fins de 1978 já haviam sido criados 106 NAIS, número que tem se mantido constante desde aquela data. A atuação dos NAIS’s no sentido de substituir importações de tecnologia e incentivar o desenvolvimento tecnológico autóctone dos fornecedores das empresas estatais varia bastante de setor em setor, à destacando-se os sucessos obtidos nas áreas de telecomunicações, energia elétrica e petróleo. Significativamente estes são os setores onde a empresa estatal vem investindo mais em pesquisa e desenvolvimento próprio e em contratação de pesquisas extramuros

A eficácia tecnológica dos NAIs tem sido limitada tanto por fatores que fogem ao controle das empresas estatais (como o padrão de financiamento de seus projetos) como pela resistência interna ao uso de tecnologia local. Embora essa resistência se justifique em parte (e seja sempre justificada) por fatores de risco, contêm também elementos políticos e de preconceito que normalmente não são explicitados mas pesam substancialmente. Este viês cultural e político, por vezes, agravaram pela distância dos NAIs em relação aos centros decisórios das empresas estatais. A FINEP, como Secretaria Executiva do CCNAI, vem tentando minorar os problemas acima mencionados, pelo estabelecimento de dois tipos de convênio, de natureza complementar: (1) Acordo de Cooperação Técnica e Financeira com as empresas estatais, através do qual a FINEP coloca recursos para a fabricação pioneira de bens de capital em empresas nacionais selecionadas pelas empresas estatais, buscando inclusive a articulação dos fornecedores de equipamentos com instituições de pesquisa; (2) Acordo de Cooperação Financeira com a FINAME, tendo por objetivo garantir recursos para as empresas nacionais de bens de capital desde a fase de investimento em tecnologia até a comercialização e garantindo também às empresas apoiadas pela FINEP as taxas de juros favorecidas do Programa Especial da FINAME. Mais recentemente, o INPI baixou um ato normativo, cujo intuito é evitar que as empresas estatais, em suas licitações, imponham a seus possíveis fornecedores a obrigação de contratar tecnologia no exterior.

 

2.4 – Política da transferência de tecnologia

Desde 1972, com o novo Código de Propriedade Industrial, cabe ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) a apreciação e averbação dos contratos de importação de tecnologia, de uso das patentes e marcas e de serviços técnicos. A atuação desse instituto tem refletido, em primeiro lugar, a preocupação com a situação cambial do país. Assim, o INPI dá prioridade à importação de tecnologias que sirvam à substituição das importações ou à exportação. Ao mesmo tempo, busca e reduzir os gastos decorrentes da importação de tecnologia e do uso da propriedade industrial (patentes e marcas) estrangeira, tanto pela redução dessas importações como pela melhoria das condições de negociação dos empresários nacionais. Neste contexto, o INPI limita a duração e os níveis de pagamento à conta de tecnologia e proíbe cláusulas restrictivas nos contratos (por exemplo, restrições a exportações, importações “atadas” , sigilo apôs o término do contrato). O desenvolvimento tecnológico nacional constitui outra de suas prioridades. Neste sentido, tem procurado incentivar as empresas a ampliarem suas atividades tecnológicas no país e utilizarem a capacidade nacional existente, exigindo, em e certos casos, a realização de investimentos em pesquisa e de raça e tem no desenvolvimento como contrapartida a importação de. tecnologia e º uso de tecnologia nacional quando disponível. Mantêm também do Banco de patentes, que informa às empresas sobre tecnologias não patenteadas no país e, portanto, de livre uso pelas em meio Ta presas locais. Ao mesmo tempo, o INPI vem 1 estreitando « os seu usam laços com os institutos de pesquisa tecnológica e estimulando as empresas a fazerem o mesmo, não se dispõe de uma avaliação detalhada dos resultados das medidas tomadas pelo INPI, algumas de prazo recente. No entanto, informações setoriais, como no caso da indústria de bens de capital, sugerem que alguns desses objetivos, como o de reforço da capacidade de barganha na importação de tecnologia da parte de empresários nacionais, estão sendo atingidos . Do ponto de vista financeiro, os gastos com importação de tecnologia demonstram tendência cadente (US$ 218 milhões em 1983 contra US$ 321 milhões em 19805).

 

2.5 – Incentivos Fiscais

Os incentivos fiscais foram largamente utilizados como instrumento de política econômica para fomentar ampla gama de setores, até o passado recente. No entanto, para as atividades em ciência e tecnologia, o uso desse instrumento de fomento tem sido restrito, No presente, são concedidas isenção do imposto de importação (a empresas estatais, instituições e centros de pesquisa oficiais) e redução até zero da alíquota deste imposto (para empresas privadas) para produtos utilizados em pesquisa que não tenham similar no país. Segundo informações do CNPq, órgão que coordena e administra a concessão desses incentivos, as empresas públicas e privadas são suas maiores beneficiárias, destacando-se em termos setoriais um aumento da demanda provinda das áreas de comunicações, eletrônica e informática. No ano de 1983, os incentivos atingiram o montante de 25 bilhões; equivalentes a cerca de 4% dos gastos locais em ciência e tecnologia.

 

2.6 – Contradições entre a política de ciência e tecnologia e outras políticas

Ao lado das iniciativas acima descritas o Governo brasileiro adotava uma série de políticas que contradizem a orientação da política cientifica e tecnológica. A produção científica do país, por exemplo, foi prejudicada sensivelmente pelo afastamento compulsório do país de inúmeros-cientistas-e-pesquisadores e pelas restrições impostas à atividade interna-de-outros.- Tais medidas não afetam somente os indivíduos atingidos mas provavelmente tiveram importantes “efeitos de encadeamento”, dado o caráter coletivo do trabalho científico e o papel de liderança intelectual que os atingidos, com frequência, exerciam numa comunidade que já não era grande. É na área tecnológica, contudo, onde se constata uma contradição mais flagrante entre a política tecnológica explícita e as demais políticas econômicas executadas ao longo da última década. Enquanto a política tecnológica explícita postulava a busca de uma maior autonomia tecnológica como elemento de reforço da capacidade de competição da empresa nacional, as demais políticas tinham como efeito aumentar a importância da tecnologia vinda do exterior, embutida em bens de capital ou mesmo sob forma de acordos, quer pelo estímulo a entrada de capitais estrangeiros, quer pelo estímulo aos empresários nacionais a usar tecnologia importada como elemento de expansão e competição, entre si e com seus concorrentes estrangeiros. Apenas em alguns setores, notadamente em mini computadores e material aeronáutico, nota-se uma coerência entre a política tecnológica e as demais medidas dirigidas ao setor — notadamente a reserva de mercado para empresas nacionais, o controle de importações e o financiamento para instalação de capacidade de produção, nos mesmos moldes que ocorrem nos países centrais. As contradições observadas entre as políticas implícita e explícita de ciência e tecnologia no Brasil contrastam com a convergência constatada entre ambas nos países centrais. O sentido da política implícita encontra sua explicação no padrão de desenvolvimento, cujas características de crescimento “associado e dependente” são bem conhecidas. Cabem, no entanto, alguns comentários sobre a gênese da política explícita de ciência e tecnologia. Neste sentido, é importante notar que tal política surgiu a partir das iniciativas de um segmento do aparelho estatal — notadamente aquele sediado no Ministério (mais tarde total — notadamente aqui » Secretaria) do Planejamento e agências vinculadas (BNDE e FINEP). A este segmento, articulam-se grupos de interesse cuja constituição estão associada à expansão do sistema de pós-graduação e pesquisa e que tende a pressionar o Estado no sentido de assegurar a continuidade e a ampliação do seu apoio e área cientifica e tecnológica. A esses grupos, vêm se somando as empresas já beneficiadas ou potencialmente beneficiárias dos programas de fomento, especialmente aquelas que atuam em áreas onde a tecnologia é efetivamente um elemento importante de competição e expansão, como na indústria eletrônica. A atuação desses grupos empresariais pode induzir a maior atenção de outros segmentos do aparelho de Estado a questão do desenvolvimento tecnológico do país e propiciar a necessária convergência entre as políticas explicita e implícita de ciência e tecnologia. Mesmo porque à continuidade e expansão do suporte estatal ã área de ciência e tecnologia é condição necessária para que esta se consolide, ganhando massa crítica e escalas mínimas de produção de forma que os investimentos passados venham a ser efetivamente produtivos.

 

PARTE II – Uma Agenda de Médio Prazo

I – Introdução

Conforme enfatizamos na primeira parte deste trabalho, a principal atribuição da política tecnológica é gerar os mecanismos através dos quais os diversos segmentos da economia se tornam tecnicamente aptos a responder aos objetivos gerais da política econômica. Deste ponto de vista, no que diz respeito ao setor manufatureiro, a definição da política tecnológica deve ser derivada da estratégia que se pretende imprimir à evolução do setor industrial, onde duas preocupações centrais estarão presentes nos próximos anos: a retomada do crescimento econômico e a geração de superávits no balanço comercial. São conhecidas as trajetórias que podem ser perseguidas em resposta a tais preocupações: o aumento das exportações; a reativação e expansão do mercado interno; e a extensão devoção e à expo pauta de produção do país. Dado que cada uma destas trajetórias é individualmente insuficiente para assegurar os resultados desejados, compete à política industrial a tarefa de perseguir-las simultaneamente e de forma coordenada. Neste contexto, a política tecnológica deve ser orientada no sentido de criar as condições necessárias à viabilização das trajetórias apontadas. Além disso, a vontade de que a sociedade brasileira venha assumir maior grau de controle sobre os rumos do seu próprio processo de desenvolvimento impõe também o objetivo de aumentar a capacitação tecnológica do país, visando fortalecer o poder de competição da empresa nacional e responder às demandas específicas da sociedade e da economia brasileira. A persecução dos objetivos acima apontados pressupõe “reações de duas naturezas por parte do setor manufatureiro. Em a alguns casos, requer-se a ampla difusão, no âmbito do parque industrial brasileiro, de conhecimentos técnicos existentes no país ou no exterior; em outros, mais do que simplesmente utilizar técnicas disponíveis, requer-se das empresas industriais em mm o quantas a o pleno domínio da tecnologia utilizada, de modo a ensejar sua adaptação as especificidades do país e fortalecimento do poder de “competição “aos agentes produtivos nacionais. Estes dois requerimentos manifestam-se de forma diferenciada, em relação aos diversos setores industriais. Por conseguinte, a política tecnológica deve ser, ao mesmo tempo, uma política de difusão e uma política de geração e absorção de tecnologia, revestindo-se da necessária flexibilidade para enfatizar diferenciadamente cada uma destas faces em distintos setores.

2 – As implicações tecnológicas da estratégia de desenvolvimento industrial

Analisam-se a seguir as implicações tecnológicas das distintas partes que compõem a estratégia de desenvolvimento industrial a ser implementada na segunda metade dos anos oitenta.

 

2.1 – O desempenho exportador da indústria brasileira

Como um instrumento de sustentação do desempenho exportador da economia, a política tecnológica deve atuar sobre as três principais fontes de competitividade internacional da indústria brasileiras) idade tecnológica da capacidade produtiva, das vantagens comparativas específicas no comércio com outras economias em desenvolvimento já os custos relativos de mão-de-obra. Uma consequência relevante do processo de crescimento industrial que marcou o período 1968/1980 é a de que as principais indústrias estabelecidas no país dispõem no momento de uma capacidade produtiva cuja idade tecnológica &, em média, inferior a quinze anos. Para a maioria das indústrias responsáveis pela expansão das exportações de manufaturados nos  últimos dez anos, isto significa operar nas adjacências da fronteira tecnológica internacional. Exemplos notáveis neste sentido são os de celulose, petroquímica, siderurgia e diversos outros versos o segmentos do complexo metal mecânico. Ademais, a experiência adquirida através do esforço de vendas no exterior durante anos consecutivos, conduziu a uma expressiva melhoria dos níveis de eficiência empresarial, em termos de controle de qualidade, escolha de instrumentos adequados de comercialização, maior perceção dos sinais emitidos pelos mercados importadores, formação de equipes qualificadas para atuar na área internacional ,etc. recessão da década dos oitenta parece ter alterado as condições de competitividade em duas direções opostas. De um “lado, a queda dos investimentos, aliada à escassez de divisas, devem ter retardado a adoção de eventuais inovações tecnológicas em algumas indústrias. De outro, existe certa evidência de que as empresas de grande porte tenham sido forçadas pela crise a promover amplas reformas organizacionais, visando aprimorar as rotinas de controle sobre os custos correntes de produção, maior seletividade nas aplicações financeiras, e conferir maior precisão aos objetivos de médio prazo da empresa. A julgar pelos dados de balanço dos últimos dois anos, tais iniciativas produziram resultados compensadores. O impacto final sobre as condições de competitividade advindo desses dois tipos de eventos ainda estão por ser avaliado. contudo, é inequívoco que durante o período de retomada do crescimento competirá à política tecnológica a atribuição de corrigir as disparidades intra industriais de eficiência-provocadas . las pela recessão. Ao lado das condições genéricas acima referidas, importante tratar das vantagens comparativas específicas adquiridas pelo país quanto ao suprimento de produtos manufaturados e serviços de engenharia e assistência técnica a outras economias em desenvolvimento. Tais vantagens são oriundas do fato de que, em toda experiência de industrialização, alguma parcela da oferta de tecnologia é gerada localmente. A magnitude desta parcela varia directamente. com o. tamanho do mercado interno” e o grau de integração vertical alcançado pelo sistema industrial, estabelecido no pais. No caso brasileiro, a componente endógena de progreso técnico consistiu esencialmente, durante os últimos trinta anos, em mudanças adaptativas realizadas a partir de conhecimentos básicos importados dos países industrializados. Uma experiência desta natureza tende a gerar vantagens comparativas específicas quando a fronteira tecnológica internacional de determinados ramos de produção permanece relativamente inalterada. Neste contexto, as firmas brasileiras tornam-se mais habilitadas do que suas congêneres dos países tese industrializados para disputar os mercados daquelas economias com características estruturais sejam mais similares, às nossas NO area mapear eme e do que as do mundo desenvolvido. Entretanto, a manutenção no médio prazo dos atuais níveis de competitividade das firmas brasileiras não depende apenas de sua capacidade de prosseguir o desenvolvimento das técnicas produtivas vigentes, sob uma conjuntura de inércia relativa da fronteira tecnológica internacional, mas também de estarem habilitadas a enfrentar os impactos advindos de inovações que alterem radicalmente a concepção dos atuais processos produtivos. com efeito, quando o ritmo de progresso técnico não é muito intenso, os instrumentos usuais de competição, como redução de custos, diferenciação de produtos, novas estratégias de comercialização, etc., costumam ser suficientes para assegurar O desempenho exportador. Mas o advento de inovações radicais constitui um desafio de outro estilo, posto que -não se trata de uma perturbação conjuntural no ritmo dos negócios mas de uma mudança de caráter definitivo no modus operandi da industria. Neste caso, ao contrário do que acontece com à situação anterior, a pressão que estão sendo exercida sobre as firmas não é a de aumentar o poder de competição, dentro de um contexto em que os padrões de aferição &e desempenho estão razoavelmente definidos, mas de serem capazes de descobrir quais são as novas regras do jogo criadas pelo progresso técnico. Este esforço compreende decisões cujo risco é elevado, e que passam por: avaliar as características de nova estrutura de poder econômico que estiver sendo construída no plano internacional; identificar as estratégias de expansão compatíveis com o novo formato da base técnica do ramo; abandonar linhas de produção anteriormente rentáveis, com O ônus eventual do sucateamento de instalações recém-adquiridas, etc. As observações acima também se aplicam às indústrias onde o baixo custo da mão-de-obra é um fator importante de competitividade internacional, como têxtil e calçados. Por isso, a recente onda de automação nas atividades de confecção, que vem, ocorrendo em algumas economias industrializadas, representa uma ameaça não desprezível às perspetivas de médio prazo de nossas exportações de artigos de vestuário. É verdade que o padrão de competição dessa indústria oferece às firmas que resolverem retardar a adoção de determinadas inovações diversos mecanismos de defesa temporária de posições de mercado, como economias nos custos de comercialização, diferenciação de produtos, segmentação de mercado, etc. Contudo, a eficácia desses mecanismos: É inversamente proporcional à magnitude dos diferenciais de produtividade introduzidos pela mudança tecnológica. assim, caso se acelere a difusão internacional dos métodos automáticos, a indústria brasileira será forçada a enfrentar, O difícil dilema da geração de empregos versus a geração de divisas. As próximas seções deste trabalho procuram situar esta opção num contexto mais amplo.

 

2.2 – A ampliação da pauta de produção industrial

A extensão da pauta de produção ao longo do processo de industrialização se deu, fundamentalmente, através da substituição de importações. Mais do que a redução do coeficiente de importação da economia, foram a diversificação da produção local e os investimentos que lhe deram origem que caracterizaram o processo de substituição de importações. Neste contexto, inicialmente a pauta de importações e suas modificações constituíram indicadores da direção a ser imprimida às sucessivas ondas de investimento que fizeram avançar a constituição do parque industrial do país. Não obstante, o desdobramento do processo de substituição de importações não esteve restrito às indicações propiciadas pela pauta de importação; frequentemente, antecipando-se às importações, o parque produtivo local empreendeu a produção de bens ainda não consumidos de forma significativa no país, seja daqueles cuja demanda emergia como resultado do próprio avanço do processo de industrialização, seja daqueles cuja produção recém aparecia nas economias industrializadas. Deste ponto de vista, é possível distinguir, dentre os investimentos que propiciaram a extensão da pauta de produção do país, aqueles que promoveram a substituição de importações efetivas e aqueles que estiveram associados a importações virtuais, ou apenas emergentes. Ao contrário do observado no passado, quando a substituição de importações efetivas constituiu a principal fonte de dinamismo do processo de expansão industrial, é de se esperar que as respostas a importações virtuais representem, na segunda metade dos anos oitenta, uma contribuição mais significativa ao crescimento. De fato, embora seja previsível um aumento expressivo do volume das importações tradicionais no contexto de uma retomada do processo de crescimento, o avanço já alcançado na constituição do parque industrial e as características da pauta de produtos manufaturados ainda importados limitam as possibilidades de ampliação da pauta de produção do país através da produção local de bens tradicionalmente importados. “Por outro, lado, a resposta ao aparecimento de novos produtos nas economias mais desenvolvidas através da produção local desses bens permite transferir ao setor manufatureiro do país pelo menos parte do dinamismo gerado por aquelas. inovações. Evidentemente, a importância destas substituições antecipadas de importações como fator de crescimento dependerá do ritmo de inovação e progresso técnico daquelas economias. As possibilidades abertas, em particular, pelas inovações no campo da microeletrônica fazem prever, no entanto, um fluxo significativo de novos produtos, capaz de conferir elevado dinamismo a determinados segmentos do setor manufatureiro. Dado que esta extensão da pauta de produção se apelar na reprodução no país. de um percurso externo de inovações, as subsidiárias de empresas estrangeiras aparecem, mais uma Vez, com as. promotoras naturais dessas substituições antecipadas de importações. Estas empresas podem ser induzidas a assumir escola” de papel através da mobilização de instrumentos tradicionais de política industrial, tais como proteção tarifária e incentivos ao investimento. ademais, independentemente de tais instrumentos, a própria competição entre estes produtores estrangeiros e a tentativa de assegurar vantagens sobre seus rivais podem ser suficientes, em alguns casos, para induzi-los a empreender coprodução local. Uma atuação governamental mais efetiva e direta será elos requerida, no entanto, ao se » pretender a participação de produtores nacionais neste processo de extensão da pauta de produção. Face o elevado, conteúdo te tecnológico da maioria dos novos produtos, esta atuação-deverá-privilegiar a capacitação técniproduicio, tsca de empresas nacionais. O grau de capacitação requerida poderão diferir; em alguns casos, a simples transferência de tecnologia. do exterior será suficiente; em outros, os produtores locais deverão assimilar efetivamente o know-how envolvido de modo a se habilitarem a acompanhar, com maior autonomia, os possíveis desdobramentos de tais inovações. Esta maior capacitação tecnológica deverão ser perseguida, em particular, em relação a àquelas; inovações potencialmente mais férteis em inovações secundárias e capazes de impacto mais profundo no nível de eficiência do sistema produtivo. A eficácia de uma ação governamental neste sentido dependerão, no entanto, de se associar a mobilização de instrumentos específicos de política tecnológica a um conjunto de medidas de política industrial capaz de garantir a sobrevivência dos produtores nacionais durante o período de tempo requerido para sua efetiva capacitação. Assinale-se que, dentre os novos produtos passíveis de serem incorporados à pauta de produção do país, deverão incluir-se igualmente bens de consumo e de produção. Em relação a estes últimos, em particular, a ação governamental deverá revestir-se da necessária cautela para que o esforço para viabilizar a extensão da pauta de produção do país e para assegurar a existência de produtores nacionais não tenha como resultado dificultar excessivamente a utilização destes novos produtos no parque produtivo do país, com eventuais prejuízos para seu nível de eficiência. Aponte-se, por fim, que as medidas de estímulo à extensão da pauta de produção do país não devem estar restritas as possibilidades associadas à substituição de importações efetivas e virtuais. Na verdade, a política tecnológica deve ter presente igualmente a necessidade de inovações que venham a responder a demandas específicas da sociedade e da economia brasileira — seja no tocante ã satisfação de necessidades básicas da população, seja com vistas ao aproveitamento de matérias-primas peculiares ao país. Em relação ao atendimento de tais demandas, as possibilidades de recorrer & tecnologia proveniente do exterior são certamente limitadas.

2.3 – A expansão do consumo interno

No que diz respeito ao setor industrial, a reativação e expansão do mercado interno poderão manifestar-se através da recuperação dos níveis de consumo de camadas de rendas médias e altas da população ou através da ampliação do mercado de consumo de massa. Embora as duas alternativas não sejam completamente excludentes, as condições necessárias a avanços significativos em uma destas direções, notadamente aquelas referentes à estrutura de distribuição de renda, se constituem, em certa medida, em obstáculos a progressos no caminho alternativa. Ao contrário da experiência do final dos anos sessenta, não parece possível perseguir agora prioritariamente a primeira alternativa acima apontada. Não obstante, a reativação do consumo das camadas de rendas médias e altas pode ainda constituir um fator de crescimento na segunda metade desta década, cujo impacto, ainda que de propagação limitada no âmbito do setor industrial, seria suficiente para conferir dinamismo a alguns de seus segmentos. Como no passado, essas reativações tenderão a resultar da absorção de padrões de consumo gás economias desenvolvidas, apoiando-se no fluxo de novos produtos originados, naquelas economias. Neste contexto, estaria associada à extensão de pauta de produção local, através da antecipação de produtores estabelecidos no país à importação daqueles bens. Deste ponto de vista, os comentários anteriores referentes à substituição de importações virtuais descrevem adequadamente as implicações e exigências, relativas à política tecnológica, da reativação do consumo dos grupos de maior renda. No tocante à ampliação do mercado de massa, seus requerimentos tecnológicos são contraditórios. De um lado, a necessidade de avançar sucessivamente na direção de estratos de renda mais baixa impõe transformações técnicas que ensejem aumentos de produtividade e reduções de custo e viabilizem preços menores. Em particular, face à elevação dos salários reais que, ê de se esperar, deverá ocorrer nos próximos anos, estas mudanças técnicas voltadas para O aumento da produtividade aparecem como necessárias para evitar que estes ganhos salariais acentuam as pressões inflacionárias. Por outro lado, tais transformações estão associadas, em geral, a menores requisitos de mão-de-obra; as consequências desta tendência são sobretudo significativas no caso dos segmentos produtores de bens de consumo popular, uma vez que estes segmentos respondem por parcela expressiva do emprego industrial. Neste contexto, os requerimentos para a ampliação do mercado a nível de indústrias específicas tendem a apresentar um efeito perverso do ponto de vista da expansão da demanda por bens de consumo da economia como um todo. Não cabe certamente sacrificar o processo de mudança tecnológica e os ganhos de produtividade daí derivados às preocupações quanto à absorção da mão-de-obra. Embora, a curto prazo, o efeito redutor do emprego daquelas mudanças possa ser, pelo menos parcialmente, compensado pela contribuição positiva resultante da expansão do mercado e do aumento de produção, há que reconhecer que; a longo prazo, o problema do emprego no Brasil não poderá ser resolvido com base na indústria de transformação. Não obstante, não cabe também ignorar os efeitos daquele processo do ponto de vista da questão do emprego. Assim, a política tecnológica deve ser articulada, no âmbito da política industrial, a uma política de emprego de modo a eventualmente identificar setores nos quais a manutenção do nível de emprego deva ser enfatizado; a evitar o sacrifício desnecessário de postos de trabalho; e a promover o treinamento e a reabsorção da mão-de-obra dispensada em virtude do processo de mudança tecnológica.

 

3 – Características e principais medidas da política tecnológica

Os comentários anteriores relativos às experiências internacional e brasileira de atuação governamental na área de ciência e tecnologia e às implicações tecnológicas da estratégia de desenvolvimento industrial sugerem as principais características de que se deve revestir a política tecnológica na segunda metade dos anos oitenta. Em primeiro lugar, caberá dar prosseguimento aos esforços feitos nos últimos quinze anos de modo a consolidar e reforçar a infraestrutura científica (notadamente pesquisa e ensino de pós-graduação) e tecnológica (sistemas de treinamento, informação, normalização, metrologia, controle de qualidade e as instituições de pesquisa tecnológica). Estas infraestruturas, de natureza diferenciada embora inter-relacionadas , requerem políticas igualmente diferenciadas. Por outro lado, a consecução dos objetivos de desenvolvimento industrial antes discutidos requerem políticas seletivas destinadas a fomentar a geração de progresso técnico interno e absorção efetiva dos conhecimentos gerados no exterior. Para que isso se dê, necessário que as medidas de política tecnológica propriamente dita (política explicita) estejam articuladas de forma consistente e coerente com as demais medidas política econômica , notadamente a politica industrial. Por fim, a importância do progresso técnico para O futuro da sociedade brasileira e o caráter coletivo do processo de geração e aplicação dos conhecimentos técnicos impõem um amplo escopo à política tecnológica. No entanto, as condições que regem a produção e apropriação de conhecimentos científicos “e técnicos são tais que os estímulos de mercado, isoladamente |, não são suficientes para gerar o resultado socialmente desejável. Cabe, portanto, ao Estado um papel fundamental no projeto acima mencionado, no Brasil como em outros países. No nosso país, a necessidade dessa participação é acentuada pelo subdesenvolvimento histórico da estrutura de produção de ciência e tecnologia e pelo entranhamento da dependência tecnológica no corpo produtivo nacional. Não obstante, se não houver um decidido engajamento do setor empresarial, notadamente O nacional, a intervenção do Estado tenderá a fracassar.

3.1 – Políticas de Redução de Custos das Atividades Tecnológicas

1) Via Instrumentos Creditícios

Esta tem sido a forma mais tradicional de apoio ao desenvolvimento tecnológico industrial. Conforme já foi mencionado, em diversas agências governamentais de financiamento existem linhas de-crédito com esse propósito abrangendo toda a gama de atividades tecnológicas. Essas linhas, no entanto, o precisam ser revitalizadas com recursos e seus procedimentos o operacionais expedita dos., Ao mesmo’ tempo, deveriam ser implementados mecanismos eficazes de coordenação entre agências, visando especialmente programas setoriais, de acordo com a seletividade já mencionada. Cabe notar, porém, que os custos das atividades de pesquisa e desenvolvimento respondem apenas por uma parcela dos custos prévios à introdução de uma inovação (cerca da metade, nos países desenvolvidos). Os demais custos são em regra financiados, no caso brasileiro, por outras instituições ou linhas de crédito que não as de fomento tecnológico. Tal financiamento & geralmente concedido com base em critérios que não privilegiam o desenvolvimento tecnológico total, mas antes frequentemente o desestimulam por conservadorismo excessivo. Assim, esta área constitui um exemplo típico da necessidade de integrarem-se políticas explícitas e implícitas de tecnología. Ao mesmo tempo, esta integração sugere a necessidade de manter os laços entre entidades de crédito e instituições de pesquisa e aí informação tecnológica que asses: soram as decisões de financiamento.

2) Via Incentivos Fiscais Embora largamente utilizados nos países desenvolvidos, os incentivos fiscais à pesquisa e desenvolvimento são reduzidos no Brasil, limitando-se, como vimos anteriormente, a isenção dos impostos de importação e do IPI para produtos sem similar nacional, destinados a atividades de pesquisa e desenvolvimento. Face à crise fiscal brasileira, a concessão de novos incentivos deveria ser precedida de estudos cuidadosos que levem em conta a experiência de outros países. Sua eventual implementação deveria ser provida de salvaguardas que garantam a efetiva aplicação dos recursos das empresas em atividades de P&D.

3) Via Associações de Pesquisa A associação entre empresas para dividir os custos de atividades tecnológicas de interesse comum & frequentemente erram me reta tem a meme observada na Europa e no Japão e começa a se difundir nos. Estados Unidos. É um mecanismo de especial utilidade para pequenas e médias empresas, permitindo-lhes um progresso técnico que, à isoladamente, não alcançariam. Embora iniciativas desse tipo não necessitem da participação do Estado, podendo ser promovidas por entidades patronais de forma independente, o Estado deve fomentá-las de maneira seletiva, utilizando instrumentos financeiros e fiscais e o poder catalítico das compras das empresas estatais, as quais reúnem várias empresas privadas com problemas técnicos frequentemente similares.

 

3.2 – Políticas de Redução de Riscos

1) Via Capital de Risco

O maior obstáculo à inovação tecnológica provém da incerteza quanto a seus resultados, o que implica altos riscos técnicos, econômicos e financeiros. Inexistente, no mercado de capital brasileiro, instituições privadas dispostas a investir capital de risco em empresas inovadoras, notadamente pequenas e médias empresas. Iniciativas neste sentido .por parte de tais instituições, como aquelas que apoiaram o desenvolvimento do setor eletrônico nos Estados Unidos, teriam evidentemente impactos importantes. Ao mesmo tempo, O Estado brasileiro pode participar deste processo através de suas instituições de crédito, buscando inclusive a participação das entidades privadas. Os mecanismos legais para esta atuação já existem (por exemplo na FINEP e no Sistema BNDES) cabendo ativá-los em condições operacionais eficazes e, preferencialmente, no âmbito de programas setoriais seletivos.

2) Via Proteção no Mercado Interno

A produção de tecnologia nacional tem as características de uma “indústria nascente”, marcada por economias de aprendizado ao longo do tempo e produtividade crescente, justificando-se assim sua proteção contra a competição externa, dentro de certos limites dados pela necessidade de aproveitamento do progresso técnico gerado no exterior e pelos custos adicionais eventualmente impostos aos usuários do conhecimento técnico endogenamente gerado. Assim, dentro destes limites, cabe desnível no mercado interno ou quando sua maturação esteja próxima, sob pena de inibir o desenvolvimento tecnológico nacional. Mesmo quando a importação de tecnologia seja necessária, cabe tomar medidas que assegurem que essa tecnologia seja efetivamente absorvida, posto saber-se que o funcionamento espontâneo do mercado faz com que apenas parte dos conhecimentos sejam internalizados, ficando outras partes (p.ex. o “desenho básico” de produtos) sob posse e controle do, detentor original da tecnologia. Este esforço de absorção, obviamente, também deverá ser seletivo, dado que nem todas as tecnologias importadas terão condições de serem absorvidas nem será conveniente que sejam gastos recursos escassos (humanos, materiais e financeiros) para esse fim. Conforme já foi mencionado, o ÍNPI vem atuando dentro da perspectiva acima esboçada, devendo manter-se e reforçar esta política, tanto pelo aperfeiçoamento dos recursos do Instituto como pela consolidação dos seus vínculos com entidades de pesquisa, empresas industriais e de consultoria. Onde a ação do INPI parece necessitar de modificações maiores é no uso do instrumento clássico de proteção à atividade tecnológica, as patentes, cujo processamento poderia ser substancialmente a rara armar? Aperfeiçoado. Dada a sua importância em setores tecnologicamente estratégicos, as compras das empresas estatais constituem um instrumento básico nessa política. A experiência brasileira e de outros países demonstra, no entanto, que não é suficiente proteger as atividades tecnológicas nacionais. Se a proteção meti. em ma temente, mas não mesmo a não se estende aos produtos. e processos em que estas atividades resultam, a, proteção ã tecnologia acima mencionada tende a frustrar-se. Aqui, mais uma vez, encontra-se a necessidade de que ” : integrar a política tecnológica com a política industrial, utilizando instrumentos como a proteção tarifária, preferências nas aquisições estatais, etc. Este tipo de proteção abrangente, a ser administrada de forma seletiva, afigura-se especialmente importante para aqueles produtos e processos para os quais se almeja uma “substituição de importações preventiva”, um dos pilares da estratégia industrial brasileira antes discutida.

3) Via Proteção ao Mercado Externo

As receitas cambiais provindas da venda direta de tecnologia brasileira e de produtos e serviços que incorporam tecnologia gerada internamente tem aumentado de importância. No Brasil, até agora, o sistema de patentes tem sido utilizado principalmente por firmas de origem externa para reservar o mercado brasileiro aos seus produtos e/ou tecnologia. No entanto, na medida em que as firmas brasileiras patenteiam suas inovações no país e utilizem os direitos de prioridade internacional dados pelo sistema internacional de propriedade industrial, este poderão ser utilizado a seu favor no exterior. Para tanto, seria útil o apoio do INPI e do Ministério de Relações Exteriores, bem como dos mecanismos de financiamento às exportações, inclusive financiando os gastos de patenteamento. A essa proteção legal dever-se-iam acrescentar instrumentos que certifiquem a qualidade técnica dos produtos nacionais, a exemplo do que foi feito pela indústria aeronáutica junto a entidade certificadora americana, sem prejuízo de que se montem no Brasil entidades certificadoras de rigor semelhante que, no futuro, sejam reconhecidas como tal no exterior. No entanto, analogamente ao que ocorre no mercado interno, a capacidade tecnológica brasileira não gerará exportações significativas se não forem adotadas medidas de proteção aos produtos em que se incorpora. Entre curtos, mesmos financeiros adequados é essencial para a venda no exterior de sistemas de produtos e processos, como no caso de serviços de consultoria e bens de capital.

 

3.3 – Políticas de Atualização Técnica e. Difusão Tecnológica

As medidas acima discutidas orientam-se prioritariamente para o esforço de inovação tecnológica endógena. Os objetivos do desenvolvimento industrial brasileiro requerem, no entanto, que, ao mesmo tempo, o parque industrial se engaje num esforço contínuo de atualização tecnológica, conforme indicado nas seções anteriores deste trabalho. Surgem nesse contexto. Alguns trade-offs entre importação de tecnologia e geração interna nas atividades tecnológicas em que não são complementares (p.ex. projeto básico de produtos e processos), Os quais terão que ser resolvidos caso a caso, em função do custo e do tempo de maturação das alternativas locais e importadas. Existem, porém, medidas que servem a estimular a atualização tecnológica, quer se utilizem tecnologias nacionais ou importadas. Entre estas destacam-se:

1) Reforço da infraestrutura tecnológica

Entende-se aqui por infraestrutura tecnológica os serviços de informação, controle de qualidade, normalização e treinamento de pessoal especializado. Estes serviços são notoriamente deficientes no Brasil, sendo necessário, como já foi mencionado, reforçá-los substancialmente.

2) Medidas para utilização de equipamentos e processos mais modernos. Como a tecnologia industrial se incorpora em processos e equipamentos, o Estado pode fomentar a sua substituição por “safras” mais modernas mediante o uso de mecanismos fiscais, p.ex. admitindo a depreciação acelerada de ativos fixos em setores selecionados. Adicionalmente, tanto por instrumentos fiscais como creditícios, o Estado pode incentivar o leasing de máquinas mais modernas em setores escolhidos. Finalmente, cabe uma vez mais notar o papel que as empresas estatais podem desempenhar nesse processo, difundindo junto aos seus fornecedores o progresso técnico a que tem acesso tanto no país como no exterior.

 

4 – O aparato institucional da política científica e tecnológica

Conforme foi visto em seção anterior, na última década estruturou-se no Brasil um sistema institucional de formulação e implementação de política científica e tecnológica bastante complexo. A localização desse aparato dentro da máquina do Estado brasileiro parece adequada, especialmente a vinculação do seu órgão central, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) à secretaria de Planejamento da Presidência da República. Esta solução parece mais apropriada às características das atividades cientificas e tecnológicas, que permeiam vários Ministérios, do que a solução, frequentemente aventada, de um Ministério específico de Ciência e Tecnologia que, situado no mesmo plano dos demais Ministérios, faria face a problemas insuperáveis de coordenação e implementação de políticas. No entanto, do ângulo da política institucional de ciência e tecnologia, persistem alguns problemas importantes no sistema nacional, vistos a seguir.

4.1 – Informações

Apesar dos esforços feitos pelo CNPq, as informações disponíveis sobre as atividades científicas e tecnológicas seus executores, financiadores e sua aplicação ainda são muito precárias. A primeira parte deste trabalho sugeriu’ que o crescimento destas atividades no país no passado recente estão provavelmente substancialmente sobrestimado. Em contrapartida, há um grande desconhecimento do que É feito no setor industrial privado, O que limita seriamente a + formulação da política tecnológico. Um dos requisitos importantes ã execução da política tecnológica & a disponibilidade de informações acuradas sobre as diversas modalidades de mudança tecnológica vigentes no interior do sistema, industrial, bem como os respetivos papéis que desempenham no processo de crescimento de firmas e setores. Isto requer a compilação periódica de estatísticas sobre a geração, incorporação e difusão de inovações na «economia, permitindo assim a caracterização da natureza e do ritmo do progresso técnico em curso. Tal como ocorre com os demais indicadores econômicos, o levantamento de tais estatísticas só e factível quando amparado por critérios metodológicos nítidos e consistentes. Além dos levantamentos estatísticos tradicionais sobre a execução e gastos em pesquisa e desenvolvimento, tais como são feitos nos países da OECD e que deveriam ser adequados a as condições nacionais, explicitando-se as diferenças para efeitos &e comparação, uma metodologia que atende às finalidades acima é a da construção de matrizes de fluxos intersectorial de tecnologia, que descrevam as fontes geradoras e áreas. de aplicação das técnicas produtivas em uso na economia. «A partir deste tipo de matriz, e possível estabelecer uma classificação de indústrias segundo o poder de comando que estas exercem sobre a variável tecnológica, Existem indústrias cujo progresso técnico é predominantemente exógeno, no sentido de que são consumidoras de inovações produzidas em outros ramos de economia. O exemplo clássico & da têxtil: desde a revolução industrial o desenvolvimento tecnológico dessa indústria tem se baseado fundamentalmente na incorporação de inovações concebidas por fabricantes de equipamentos ou firmas da indústria química. Ao lado de facilitar o acesso às fontes de tecnologia aos competidores potenciais, isso retira das firmas dessa indústria a capacidade de influir no curso e no ritmo do progresso. Em contraposição, existem indústrias cujo progresso técnico e predominantemente endógeno. Nestas indústrias produtoras de inovações, o poder de comando de algumas empresas sobre a direção e a cadência do progresso técnico consiste no mecanismo primordial de competição.

Outras aplicações imediatas desta metodologia são a de indicar o grau de dependência das diferentes indústrias em relação a tecnologias importadas, o horizonte potencial de difusão de determinadas inovações, e os impactos macroeconômicos advindos de diferentes’ composições dos gastos em pesquisa e desenvolvimento. A Colaboração do setor privado industrial para o levantamento de informações como as acima sugeridas evidentemente, crucial. Esta cooperação trará, no entanto, retornos nível de cada empresa, – não sô através de um maior conhecimento do contexto macroeconômico que circunscreve suas atividades tecnológicas. Como pelos efeitos de uma política científica e tecnológica melhor concebida e executada

 

4.2 — Articulação entre a política científica e tecnológica e as demais políticas

 

N decorrer deste trabalho enfatizou se que a eficácia da política científica e tecnológica industrial depende de sua articulação com as demais medidas de política econômica. Apesar dos esforços feitos para o maior entrosamento do Conselho Científico e Tecnológico do CNPq com outros conselhos de política industrial (ex. Conselho de Desenvolvimento Industrial) e das “Ações Programadas” do CNPq, de âmbito setorial, às deficiências nesta área são enormes e tem frequentemente frustrado os propósitos da política tecnológica especialmente no que toca à indústria.

Cabe ressaltar que, mesmo completando-se a estruturação formal do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia (SNDCT) mediante a (SNDCT) mediante a criação de órgãos setoriais no âmbito de cada Ministério, o problema radica mais fundo — na ausência de uma política industrial com objetivos setoriais e tecnológicos definidos. Somente com essa política, e a convergência das ações dos vários instrumentos da política econômica para alcançar os seus objetivos, será possível lograr a necessária articulação entre as políticas tecnológicas industriais explícitas e implícitas

 

4.3 – Representação dos Interesses Industriais

O Conselho Científico e Tecnológico do CNPq é composto de 31 membros, dos quais 16 são ex-officio (representantes de instituições governamentais e da Academia Brasileira) e 15 são membros individuais. A representação dos interesses industriais é, como se vê, não institucional e limitada

Esse fator limita seguramente a – fi a formulação de uma política científica e tecnológica adequada às necessidades e condições da indústria nacional. Dado o papel que esta deverá desempenhar no Processo de desenvolvimento tecnológico e científico parece legítimo, e útil para todos, que a representação industrial privada na formulação da política tecnológica nacional seja ampliada e institucionalizada.

 

 

...

   
  1. Introdução: PNI e NPI
A Política Nacional de Informática (PNI) brasileira tem seis características principais: - A identificação da eletrônica como area estratégica do ponto de vista econômico, político e militar; - Estar baseada no mercado...

Chutando o pau da barraca

Sentou-se a meu lado. Há sempre um lugar vago a meu lado. Quando o vi entrar, pensei: ali está um cliente. Ficara um  tempo bebendo no fundo do bar, com uma menina que tinha idade para ser sua filha. Ela saiu com ar irritado e ele ficou sozinho, o olhar parado no ar. Depois, veio para o balcão. Sentou-se a  meu lado.

Sem olhar para mim, pediu um uísque. Quando o barman perguntou se queria de primeira ou segunda linha, hesitou. Tomou coragem  e pediu:

– De primeira… Duplo!

Tomou um gole grande e quase engasgou. Era um homem comum. Meia idade, média estatura, um pouco gordo, nem bonito nem feio. A barba de dois dias e as roupas amarrotadas.  Vestia terno e camisa social, mas estava sem gravata. Roupas e sapatos de loja de departamentos. As unhas das mãos estavam roídas. Os olhos com bolsas. Maxilares trancados, a tez avermelhada, a gordura flácida. Suava, apesar do ar  condicionado. Um cliente.

Ainda sem me olhar, falou para o espelho escondido atrás das garrafas:

– Chutei o pau da barraca!

É comum me fazerem confidências.

Depois de outro gole, acrescentou:

– Amanhã faço sessenta anos.

Repetiu, com mais força:

– Chutei o pau da barraca!

Fiquei curiosa em saber qual barraca. Ele se virou para mim, mas logo voltou a olhar para o que via de si atrás das garrafas.

Começou falando de seu trabalho. É normal. Os homens em geral começam com o trabalho, as mulheres com os filhos e o marido.

Sua história era comum, embora ele não soubesse.

– Comecei como entregador. Ainda era um armazém. Depois, virei caixa. Já era um mini-mercado. O português chamava de super-mercado, mas não era. Depois virou. Fui subindo. Fui conferente,  encarregado de estoque, gerente. Nos últimos anos trabalhava na holding.

Ralei. Ralei  como um animal. Acabei o secundário no supletivo noturno. Comecei uma faculdade no noturno, mas não deu. Já estava casado,  a mulher grávida e larguei. Era muito cara, e o tempo não dava.

O salário não era essas coisas, mas nos últimos tempos dava para sustentar a família com um padrão razoável. Família grande, sabe como é, gasta muito.

Fez uma pausa, percorrendo a memória.

– Há dois anos, o velho se aposentou. Comprou uma quinta e voltou para Portugal. Dizem que é enorme. Vinhedos, oliveiras, carneiros… tudo. O desgraçado nem se despediu. Tudo aquilo comprado com  nosso suor!

Fiquei pensando como ia ser comigo. O galego na quinta em Portugal e eu aqui, com minha pensãozinha do INSS. Como ia manter a família?

Com a saída do velho, o genro assumiu. Deve ter casado pelo baú. A filha é feia como o Cão, mas é a única herdeira. Não entende daquilo. O velho era um miserável pão duro, mas entendia. O genro é um babaca.

Depois de um ano, começou um zum-zum que uma cadeia estrangeira ia-nos comprar. Não era boato. Eu mesmo andei mostrando umas contas aos gringos. Eles acharam que o negócio não era tão bom assim e deram uma parada. Fiquei sossegado.

Há seis meses voltaram. Um deles, o testa-de-ferro deles aqui, me disse que o genro abaixara o preço.

Não tenho diploma, mas não sou bobo. Já vi essas coisas antes. Os gringos compram e a primeira coisa que fazem é mandar o pessoal embora. Começando com os mais velhos. Chamam isso de re-engenharia. Põem gente da confiança deles.

Na minha idade, onde ia encontrar outro emprego? Eu e minha família, íamos viver da minha pensão? Depois de passar a vida inteira trabalhando para o português, a filha e o genro? Tomei muito esporro do galego, comi merda e humilhação!

Bateu com o copo no balcão e pediu outro. De segunda linha e com muito gelo.

– Pareço bobo, mas não sou. Boi manso! O velho economizava em tudo, até em controles. O genro é um babaca. Desde que desconfiei para onde iam as coisas comecei a fazer umas químicas com as contas.

Pode ser ilegal, mas é justo! Uma vida inteira trabalhando para eles e tenho o que? Um apartamento no subúrbio e um carro de dois anos! E o galego com a quinta em Portugal! Vinhedos… oliveiras… Meio Portugal com  meu trabalho!

Chutei o pau da barraca e fui embora!

Era só isso? Por causa disso viera ali, sentar-se ao meu lado? Enquanto ele pensava naquela revolução, eu antecipava o que aconteceu. Descobriram logo seus patéticos truques, mas ele já gastara tudo, com bebidas e mulheres… Já vi isso tantas vezes!

Nem sempre a experiência é tudo.

Virou-se para mim e duas lágrimas correram pelo seu rosto.

– Senti muito medo. O tempo todo. Ficava imaginando o que aconteceria se me pegassem. O vexame. O maior medo era da reação da minha família. Pensando o que iriam dizer.

Fez uma pausa, lembrando.

– O tempo todo eu me dizia que estava fazendo aquilo por eles. Que, logo, ia morrer e queria deixá-los garantidos. Meu pai morreu cedo, aos sessenta anos, de coração. Minha pressão é alta, meu colesterol ruim. Umas artérias meio entupidas. O cardiologista diz que não é preciso operar, mas tenho medo…

Encarou-me  e  voltou a olhar o espelho.

– Pensei em dizer que tinha ganho uma indenização. Era um domingo e estávamos todos almoçando juntos. Olhei para eles, para minha mulher,  meus filhos e noras, meus netos, tudo ali, discutindo, de mal com a vida e lembrei do medo que sentia. Aí, foi de repente, senti um estranhamento. Tão forte que pensei que fosse o coração. Mas não, era na cabeça.

Como se não os conhecesse. E uma raiva. Maior do que a sentia do galego. Lembrei dos anos de trabalho, ralando. E me perguntei, para que?

Com o galego, pelo menos era claro. Eu trabalhava e ele me pagava. Mal, é verdade. Mas não tenho muita instrução nem sou muito esperto. E de algumas coisas eu até gostava.

E eles? Aquela gente toda, estranha?

Engasgou. As lágrimas corriam pelo rosto e se refletiam como gotas nas garrafas.

– Nunca fui de pensar muito no porquê, fazia as coisas que tinha que fazer. Meu pai morreu do coração. Tinha uma alfaiataria no Méier, e um dia minha mãe foi embora. Assim, sem mais nem menos. Ele morreu de tristeza. Duvido que minha mulher morra!

Então, chutei o outro pau da barraca. Levantei da mesa e fui embora.

Fez uma longa pausa.

– Andei bastante por aí. Viajei um pouco. Conheci mulheres; mas o tesão na minha idade não é lá essas coisas. E sentia vergonha de pagar. Comi e bebi coisas finas…

Indicou o bar.

– Mas o meu paladar não é fino…

Ficou relembrando, enquanto as lágrimas secavam.

– Não adiantou nada. Continuo tão infeliz como antes.

Voltou a um passado distante.

– Meu pai dizia que a vida é um tecido, feito de muitos fios…

Gostei da imagem. Olhou-me longamente.

– Não dá para refazer a trama, não é?

Confirmei com a cabeça. Ficamos assim, olhando-nos muito tempo. E ele me disse:

– Você é muito atraente, sabe?

Já me disseram isso, mas não foram muitos.

Ele perguntou meu nome e disse-lhe Moira. Ele achou bonito, mas esquisito. Disse-lhe que era grego. Um antigo nome de mulher. Aquela que corta os fios. Tenho uma irmã que fia e outra que tece. Eu sou a que corta, a que acaba a trama.

Minha mãos são compridas, bem cuidadas mas gélidas, não há nada que eu possa fazer. Peguei-o pelo braço e quando estávamos na porta segurei a sua mão. Ele fez uma careta de medo e dor e um gesto para retirá-la, mas eu a retive. Não tenho lembrança de alguém que tenha retirado sua mão da minha. Ele  parou e me olhou longamente, respirando com dificuldade. Perguntou de novo meu nome e eu repeti. A explicação também. Perguntou  minha profissão.

– Sou…uma prestadora de serviços. Uma…agente funerária.

Só então ele me reconheceu.

Doida

Espreguiçou-se. Fora bom. Muito bom. Nunca fora tão bom assim, da primeira vez. Olhou-se no espelho do teto. Satisfeito, notou a barriga lisa, a musculatura do peito, as pernas fortes. Àquela distância não era possível distinguir nitidamente o rosto, mas congratulou-se pela plástica. Ninguém...

Homenagem a Curadora do Site: Dulce Monteiro Filha

Dulce Monteiro Filha é doutora em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994), tendo graduação em Economia pela Faculdade de Economia e Administração da UFRJ (1971). É mestre em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas - SP (1975) e formou-se em Direito pela Universidade Cândido Mendes em 2013. É economista aposentada do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, desde 2010. Vem estudando, desde 1987, o Processo de Desenvolvimento Brasileiro. Estudou também as Experiências Comparadas de Desenvolvimento de vários países no curso de Doutorado, onde apresentou a tese "A aplicação de fundos compulsórios pelo BNDES na formação da estrutura setorial da indústria brasileira: 1952 a 1989", cujas principais conclusões constam do artigo "O BNDES e seus critérios de financiamento industrial", no livro "BNDES- um banco de ideias: 50 anos refletindo o Brasil, do qual foi coorganizadora junto com Rui Modenesi. É coautora do texto "BNDES e o Acordo de Basileia" junto com Luiz Carlos Delorme Prado, In "Regulação Bancária e Dinâmica Financeira" (org. Mendonça,A.R. e Andrade,R.). Organizou, em parceria com Luiz Carlos Prado e Helena M.M. Lastres, o livro " Estratégias de Desenvolvimento, Política Industrial e Inovação: ensaios em memória de Fabio Erber", publicado em fevereiro de 2014, tendo escrito dois artigos. Foi curadora na elaboração do site www.fabioerber.com. É membro da rede Globelics (Global Network for Economics) e do Centro Internacional Celso Furtado.

 

 

No 3o aniversário do Site a família Erber homenageia Dulce Monteiro Filha, profissional e amiga que prontamente atendeu ao nosso pedido para ser a curadora do site.

A ideia primordial do convite foi a certeza de que ela era a pessoa ideal por ser uma expert do pensamento econômico de Fabio Erber. Dulce se autodenomina uma Economista Desenvolvimentista Erberiana.

Dulce Monteiro Filha é doutora em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi orientanda de Fabio Erber. É economista aposentada do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, e foi assessora de Fabio.

Durante o processo de criação do site,  Dulce foi incansável, competente e criativa. Estruturou a Linha do Tempo estabelecendo relações entre a vida profissional e pessoal de Fábio. Dulce facilitou o encontro com profissionais e amigos, cujos depoimentos apresentaram um caleidoscópio com as múltiplas faces do Fábio, enriquecendo de forma original o site.

O trabalho de curadoria resultou em uma pesquisa profunda e inédita. Dulce se empenhou em  escrever os resumos dos artigos publicados e selecionou palavras chaves que são importantes ferramentas de busca de assunto no site.

As pessoas permanecem vivas porque pensamos nelas.  O site é a ferramenta que escolhemos para manter vivo o pensamento do Fabio. Dulce trabalha ativamente com os artigos escritos por ele, porque conhece a importância da recuperação de suas ideias para um novo Brasil.

Dulce publicará um livro em breve com sua pesquisa sobre as questões do desenvolvimento econômico, dando continuidade às ideias de Fabio Erber – BRASIL: políticas Industriais dos governos do Partido dos Trabalhadores (2003 a 2014) – Convenção do Desenvolvimento segundo Fabio Erber.

Homenageamos Dulce como gratidão ao seu profissionalismo, sua generosidade, e disponibilidade.

 

Conheça melhor Dulce Monteiro Filha:

https://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4250875U2&tokenCaptchar=03ANYolqsrjGNM87SvSUfFy_xYSFzf_Szu5SCXqcrypRShawu94CpffuU0CmuB8NbpQI3x6MQl92OR8czpM6ZP2_kWPX2DgjN74MytNTMC1C1mkhTHwk0eq6G6IRIY2NuQE6usnI7pIOi85ZHj-Xr7C3X5wQAWeT26FJs5WnpshhbSjAgcCD_kAQ7aehvL43d3kXH1HTQbdkJfb1n6PTBDPF29DWPR21UxBXppauJNA9ifHYOWro8vj7VDzjceOp_otUPW60lZhE5U-XZAtMhRMytymJuMX7EvxuR0FGgmvIOUil-al_hR9eOOC9JDdcbRvuF6Q-Mcd6r91eVc2LOZfsJP5nNnVx4vKzP3qwDzWyCansVGLcADjSAJ_0NmFPmbAZSom_b9JuhtSv0fwGdQKrkrfwCQQnYRyN9ehkPsjdsF5AfqkE1P6TNw41e5Ei99y7Ffg0U37HtwglPmcrn1gKevtdZhmQgL8oa1CAnazDqc8lWP_2Qjz2cVe0nXLzDqEm5aM60HwMgvExKco7vJTuCmwC8HyDPNfg

Doida

Espreguiçou-se. Fora bom. Muito bom. Nunca fora tão bom assim, da primeira vez. Olhou-se no espelho do teto. Satisfeito, notou a barriga lisa, a musculatura do peito, as pernas fortes. Àquela distância não era possível distinguir nitidamente o rosto, mas congratulou-se pela plástica. Ninguém daria a idade que tinha.

A moça mexeu-se um pouco, aconchegou-se e disse, com a boca colada no seu peito, os olhos fechados:

– Detesto esses espelhos.

Sentiu-se envergonhado, pego em flagrante. Ela acrescentou, com os olhos sempre fechados:

– Tenho muitas cicatrizes.

Ele passou os dedos pela pele das costas e olhou-a no espelho. Apenas as marcas do biquini. A pele lisa. Ela pareceu adivinhar seu pensamento.

– Minhas cicatrizes são por dentro.

Ele assustou-se e ela acrescentou:

– E têm zíper. As cicatrizes. Quando puxam, elas abrem e sangram.

Ele suspirou profundamente e pensou, quase falando.

– Ai meu Deus! Outra doida! Por que  só arrumo doidas?

A respiração dela indicou que voltara a dormir. Sem mexer-se, pelos espelhos, examinou-a. Voltou a olhar-se. Veio-lhe, inesperado, o medo.

E se fosse doida mesmo? Não sabia coisa alguma a respeito dela. Mal o seu nome. Que podia ser falso. Os cabelos eram tingidos.

Lera a história de uma serial killer que arrumava homens em hotéis e os matava. Crimes perfeitos. E com mutilações.  E se ela fosse uma serial killer? Sentiu uma contração nos genitais.

No espelho identificou uma tatuagem na omoplata. O desenho era pequeno e não conseguia percebê-lo. Lentamente, deslocou-se até poder ver. Uma caveirinha, com duas tíbias cruzadas. O medo virou pânico.

Conseguiu controlar-se e, devagar, com todo o cuidado, desvencilhou-se do abraço e levantou-se. Ela murmurou algo  e abraçou o travesseiro.

A bolsa estava no chão, do lado dela. Sem fazer barulho no carpete espesso, apanhou-a.

Trancou-se no banheiro e abriu a bolsa. Era uma bolsa bastante grande. No fundo, preto, com brilhos sinistros, estava o revólver de cano curto. Sentiu a contração no estômago, a boca seca, um estampido nos ouvidos. Olhou-se no espelho e não se reconheceu. O medo era ruidoso.

Pôs uma toalha na pia e colocou o revolver em cima, com cuidado para não fazer barulho. Foi procurando e achou o canivete suíço. Abriu todas as lâminas. Tesourinha, lixa, lâmina pequena. Mas a outra lâmina, a grande, era de bom tamanho. E afiada. Enfiada no pescoço, cortaria a carótida. Um golpe só seria suficiente. Depois, poderia cortar o resto. Ou até antes, ainda vivo, sentindo.

Sentou-se na privada e, aos poucos, controlou-se. Agora sabia com quem estava lidando. A questão era, o que fazer? Guardou o revolver e o canivete na bolsa e, escondendo-a atrás de si, voltou para o quarto. Ela continuava dormindo, de bruços. Colocou a bolsa de volta onde a achara.

Podia vestir-se em silêncio e fugir. Mas ela podia acordar. E não podia sair do motel sem ela. Não ia dar certo.

Podia sair com ela e, na volta, parar numa delegacia de polícia e entregá-la. Mas não vira nenhuma delegacia no caminho. Se desviasse e ela percebesse, podia dar-lhe um tiro ou esfaqueá-lo. Sentiu o pânico voltando.

Ela virou-se na cama, mas não acordou. Continuava abandonada. Inerme. Podia domina-la. Sentar-se em cima dela, prendendo-lhe os braços com os joelhos. Sufoca-la com o travesseiro, até que ela desfalecesse. Sem matá-la. Depois, seria fácil. Podia amarrá-la, amordaçá-la, pagar o motel, colocá-la no carro e entregá-la na delegacia.

Mas o que aconteceria na delegacia? Ela podia negar que fosse uma serial killer. Que provas tinha? Quem acabaria preso seria ele.

A solução era leva-la com uma confissão. Tinha um gravador portátil no carro, que usava para ditar memorandos. Depois que a tivesse amarrado, seria fácil. Havia massagens em partes do corpo que causavam dores terríveis e não deixavam marcas. Isso ele sabia por experiência. Com o olhar identificou as partes. Sentia o suor nas mãos.

Ou, quem sabe, não entregá-la na delegacia? Seria um escândalo. Todos os jornais iriam comentar o caso. Todos. Teria que dar depoimentos, participar do processo. Insuportável. E tinha um viagem marcada para o dia seguinte. E para que? Psicopatas são incuráveis. Ele, a sociedade, estariam melhor  se ela morresse.  Depois de confessar, claro. Seria fácil. Não precisaria usar o revolver, nem o canivete, que sujariam tudo. Era só sufocá-la com o travesseiro. Ela se debateria um pouco…

Dispor do corpo seria fácil. Havia tantos precipícios perto. E nada os ligava. Perfeito.

Sentiu um calor no corpo, irradiado do sexo, e relaxou, fechando os olhos.

Ela deu uma risada. Estava  apoiada nos dois travesseiros. Sentou-se na cama e sacudiu os cabelos, como os cachorros quando saem da água. Pegou a bolsa, foi até ele, fez-lhe uma carícia no rosto com a ponta dos dedos e foi para o banheiro.

Ouviu o barulho da descarga e, depois, o de água correndo. Ela colocou a cabeça para dentro do quarto e disse:

– Vou tomar um banho. Se quiser pode entrar.

Hesitou longamente. E se ela o estivesse esperando, com o revólver na mão? Ou escondida atrás da porta, com o canivete? Ouviu-a chamar seu nome. Talvez ela não desconfiasse de que ele descobrira seu segredo.

Ela estava na banheira, a bolsa ao lado. A banheira cheia, via-lhe o bico dos seios e a mancha escura do púbis. Sentou-se atrás dela e colocou as duas mãos nos ombros. Seria fácil empurrá-la.

Ela esfregou a nuca contra suas mãos. O roçar dos cabelos molhados contra os pulsos provocou-lhe um arrepio.

– Isso, massageie aí. Está tão tenso… E’ o meu trabalho, que é muito estressante. Trabalho na Polícia Federal.

Virou-se e olhou-o. Sem  perceber, ele massageava-lhe os ombros.

– E você, faz o que?

Atrapalhou-se e murmurou.

– Sou um executivo.

Ela riu.

– Hoje em dia todos são. Venha, executivo, execute-me!

E puxou-o para dentro da banheira.

Morto

Quase morreu. Estivera no banho - um longo chuveiro. No banho, dizia sempre, tinha suas melhores idéias Era um lugar protegido. Na verdade, estava furiosa. Também se sentia culpada por estar furiosa. Enfim, era uma mulher liberada, madura e independente e sabia que essas coisas acontecem com todo mundo. Com...

“Avaliação da Política Nacional de Informática”

Fabio S. Erber, In: Relatório “Avaliação da Política Nacional de Informática” (CNPq)

Este relatório elaborado, em novembro de 1989, para o projeto UNICAMP/CNPq “Avaliação da Política Nacional de Informática” nos ensina a história das dificuldades, problemas e comenta sobre as distorções de informações que ocorreram na implantação dessa política. Aponta como sua proposta, transformada no governo Figueiredo na lei nº 7232 de 29 de outubro de 1984, sofreu pressões políticas fortíssimas, inclusive, em 1987, o governo americano retaliou as exportações brasileiras. Na Introdução, Erber conta que, teoricamente, se pensou que a política de informática deveria abranger o “complexo eletrônico integrado”, envolvendo a indústria de equipamento de telecomunicações, cujo capital era estrangeiro, mas tendo a mesma base técnica, que poderia fornecer pessoal às universidades e centros de pesquisa. Ao mesmo tempo, se asseguraria às empresas nacionais, reserva de mercado e tratamento integrado para estas e para serviços do referido complexo. Erber explicita, ainda, que a Política Nacional de Informática (PNI), de outubro de 1984, gerou enormes conflitos internos e internacionais, devido a ambição de suas características. O autor narra que, nas negociações para viabilizá-la, o governo Sarney cedeu às pressões. Os equipamentos de telecomunicações não foram incluídos na política, de modo que não foi possível absorver internamente os conhecimentos técnicos da base tecnológica do complexo de setores escolhidos, notadamente engenharia de projeto, fundamental à inovação. Foi, consequentemente, ampliada a gama de ofertantes internacionais de tecnologia inibindo o desenvolvimento local. Além disso, a Nova Política Industrial terminou com a reserva de mercado. Imputava-se à política de informática um desejo de autarquia tecnológica, de “reinventar a roda”, o que constituiu uma crítica infundada, uma vez que ela passou a apoiar diretamente a importação de tecnologia, tanto na forma de engenharia reversa, como através de contratos formais de licenciamento e de importação de componentes. Contraditoriamente, a Nova Política Industrial (NPI), de junho de 1986, não manteve a distinção entre empresas segundo o seu capital, o que foi referendado pela Constituição de 1988. Para preservar o Plano Nacional de Informática (PNI), o Estado excluiu este setor dos regimes fiscais definidos pela NPI, exceto no que tange aos incentivos à exportação. A NPI assemelhava-se à PNI no que toca à prioridade dada aos setores intensivos em tecnologia, no que se refere aos programas de desenvolvimento tecnológico interno, combinando-os às atividades produtivas de todo um complexo industrial e a formação de recursos humanos que apoiassem atividades industriais. Numa política industrial articulada por programas setoriais, a PNI por sua horizontalidade necessitava de articulação com as políticas de outros setores, que foi muito falha por parte do governo, tendo sido mantidos regimes distintos para indústrias de bens de consumo e de equipamentos de telecomunicações. Portanto, a eletrônica não foi pensada como área estratégica. Na segunda seção, Fabio Erber analisa as principais questões dessas ligações interindustriais, e, complementarmente, na seção 3, distingue as principais articulações deste complexo com o resto do sistema produtivo de uma forma mais geral. Enfatiza que a política teria sido bem-sucedida se tivesse havido a formação de grupos empresariais capazes de explorar as economias de escopo e aprendizado, e que tivessem condições de superar as crescentes barreiras de escala, voltando-se também para o mercado internacional. Acrescenta ainda que a ação destes grupos deveria ter sido articulada a um padrão de intervenção estruturante de parte do Estado, que abrangesse não só o complexo eletrônico mais também os vínculos deste para trás na cadeia produtiva, com a formação de pessoal e a pesquisa científica e tecnológica extramuros do complexo. Da mesma forma, deveriam ser desenvolvidos encadeamentos para frente, com os usuários dos bens e serviços eletrônicos. Observa-se que, como fornecedor de bens e serviços, o complexo deveria ser dividido naqueles produtos que são de uso final, adquiridos por unidades familiares, e aqueles que são comprados como bens de produção pelo setor público ou privado. Com relação aos comprados para os bens de produção, chamou a atenção para o fato de que a eletrônica ensejou aos usuários um novo padrão de produção, caracterizado pela flexibilidade da automação, que permite diversificar as linhas de produção com economias tanto de capital, como de mão de obra, configurando um novo paradigma de produção. A proposta que Fabio Erber defendeu no texto é que o complexo eletrônico, posto que exerce papel de dinamizador do processo de acumulação de capital e de progresso técnico, deve ser internalizado no país, em decorrência do fato de que o processo de difusão de inovações é fortemente afetado pela proximidade econômica e geográfica entre fornecedores e usuários. Durante a sua argumentação defende ainda que o que caracteriza a dependência tecnológica é a baixa relação entre gastos locais e importação, não é a importação de tecnologia, posto que esta é indispensável. Na seção 4, Erber analisou a questão do manejo dos hiatos tecnológicos, e concluiu que qualquer política que fosse adotada teria como consequência hiatos absolutos. Entretanto, lembrou que as críticas à política de Informática são mais consistentes no campo do hiato relativo, quando se compara os preços de produtos similares no mercado brasileiro e americano. Finalmente, a quinta seção volta a defender a necessidade de uma política integrada para o complexo eletrônico, assim como de seletividade de produtos para administrar os hiatos tecnológicos. Sugere que política seja focada em algumas famílias de produtos por seu uso, definidas pela análise de três dimensões básicas: 1) utilização e desenvolvimento de recursos tecnológicos; 2) barreiras econômicas à produção local e; 3) conflitos político-econômicos.

 

 

  1. Introdução: PNI e NPI

A Política Nacional de Informática (PNI) brasileira tem seis características principais:

– A identificação da eletrônica como area estratégica do ponto de vista econômico, político e militar;

– Estar baseada no mercado interno, através de uma substituição de importações “antecipatória”, em que importações são impedidas pela produção local potencial;

– 4% objetivo de desenvolvimento de uma capacidade tecnológica autônoma, através de investimentos locais, sem prescindir do licenciamento de tecnologia externa, nas transcendendo os limites que a lógica deste impõe à transferência de conhecimentos, especialmente na concepção de produtos e processos a diferenciação de tratamento entre empresas nacionalmente controladas e aquelas controladas do exterior, atendendo aos objetivos de autonomia de decisões e, especialmente, de controle tecnológico, pela reserva do mercado brasileiro às empresas sob controle nacional para os produtos que estas sejam capazes de fabricar, deixando os demais produtos preferencialmente às empresas sob controle externo; a busca de um tratamento integrado das várias indústrias e serviços que compõem o “complexo eletrônico”; e ter sido objeto de uma Lei específica, amplamente debatida pela opinião pública e no Congresso, dando-lhe legalidade e legitimidade.

Até recentemente estas características conferiam à PNI uma singularidade dentro da política econômica nacional, embora algumas destas características fossem compartilhadas por outras, políticas traçadas para setores estratégicos do ponto de vista tecnológico e de soberania nacional como o aeronáutico (*).

For configurar um padrão de política industrial distinto, em que o peso dos atores nacionais é muito maior que o usual em setores estratégicos e onde a autonomia tecnológica é privilegiada, a PNI transformou-se num pólo de conflitos tanto internos como internacionais.

Nos últimos anos ocorrem dois movimentos, aparentemente contraditórios: de um lado, tangido pela oposição à PNI, o Executivo fez várias concessões a seus críticos (por exemplo, no que toca ao software) e não implementou a integração de políticas na área eletrônica, mantendo regimes para as indústrias bens de consumo e de equipamentos de telecomunicações distintos dos prefigurados pela Lei de Informática.

Da mesma forma, ao definir um novo regime de incentivos fiscais para a indústria através dos Decretos da Nova Política Industrial (NPI), o Estado não fez qualquer distinção entre empresas segundo o centro do seu capital.

Em contraposição, referendou se na Constituição a diferença entre empresas brasileiras em função do seu controle estar ou não em mãos nacionais, bem como o princípio de que o mercado interno constitui patrimônio nacional podendo seus acessos ser regulamentado para atender objetivos nacionais especialmente nos setores considerados estratégicos.

Por outro lado, o Estado para preservar a PNI excluiu a informática dos regimes Fiscais definidos pela PNI exceto no que tange os incentivos à exportação, dos quais zsa empresas que operam ao abrigo da Lei de Informática podem fazer uso.

A NPI assemelha-se ainda à PNI no que toca à prioridade dada aos setores intensivos em tecnologia, na ênfase dada a programas de desenvolvimento tecnológico interno, inclusive pela combinação deste com a importação de tecnologia e na concepção de uma política industrial articulada por programas setoriais em que se combinem as atividades produtivas de todo um complexo industrial as atividades de desenvolvimento tecnológico e de formação de recursos humanos que apoiam as atividades industriais.

A NPI assemelha-se ainda à PNI no que toca à prioridade dada aos setores intensivos em tecnologia, na ênfase dada a programas de desenvolvimento tecnológico interno, inclusive pela combinação deste com a importação de tecnologia e na concepção de uma política industrial articulada por programas setoriais, em que se combinem as atividades produtivas de todo um complexo industrial às atividades de desenvolvimento tecnológico e de formação de recursos humanos que apoiem as atividades industriais.

Estas contradições refletem tanto os conflitos que são inerentes à PNI como a própria indefinição da sociedade brasileira quanto ao seu padrão de desenvolvimento industrial. No presente momento, em que se conclui o longo processo de transição de um regime autoritário para uma democracia contemporaneamente a pior crise econômica do pós-guerra, há um consenso quanto à necessidade de reverse-se o padrão de desenvolvimento industrial do país.

Dadas as singularidades da PNI, que a fazem emblemática de um padrão distinto e o caráter estratégico da informática, que permeia toda a sociedade, essa revisão passa, necessariamente, pela discussão da PNI e de seus vínculos com outras políticas setoriais.

As seções subsequentes pretendem contribuir a esse debate enfocado principalmente questões relativas a vínculos interindustriais, tanto dentro do complexo econômico (CE) como entre o CE e demais complexos, mantendo dessa maneira, a convergência entre a PNI e a NPI.

Assim, a próxima seção detalha algumas características de CE que são importantes para entender sua dinâmica interna e conexões com os outros complexos, com a natureza da interdependência que une as indústrias que compõe o CE.

As duas seções seguintes concentram-se sobre as relações entre o CE e outros complexos. A seção 3, de uma forma mais geral, distinguindo as principais articulações do CE com o resto do CE em condições como as brasileiras.

Finalmente, a quinta seção propõe uma abordagem para a PNI que permitiria combinar a abrangência decorrente da interdependência entre os componentes do CE com a seletividade importa pela administração do hiato tecnológico.

 

  1. A Economia do CE e a PNI

As indústrias eletrônicas e serviços conexos fornecem bens e serviços destinados, lato senso, ao processamento da informação. Esta característica faz com que seus mercados sejam extremamente diversificados – do entretenimento a automação industrial. O espectro de mercados tende a se ampliar tanto pela criação de novos produtos (Por exemplo, vídeo- texto) como pela substituição de outras formas de processamento de informação (por exemplo eletromecânica) pela eletrônica. Este processo de expansão do uso da eletrônica na sociedade, assemelhado a uma mancha de óleo que se espalha de forma irregular, e reforçado pela redução do custo relativo de vários atributos que caracterizam um produto – desempenho, confiabilidade, durabilidade etc.

Apesar de suprirem mercados que tem dinâmicas muito distintas, as indústrias e serviço eletrônicos tem uma dinâmica interdependente, que é estabelecida pelas características dos produtos que fornecem e pelo uso de uma base cientifica e técnica comum, tanto na concepção com na produção desses bens. Estes vínculos de interdependência dinâmica entre as várias industriais eletrônicas tendem a ser mais fortes que os vínculos que as unem outras indústrias de distinta base técnica, e tem um efeito de sinergia, onde a resultante da interação e maior que a soma das partes.

As indústrias eletrônicas e seus serviços constituem, assim um complexo industrial – o complexo eletrônico (CE). Este complexo tem uma forma especial, o leque, onde o centro e constituído pelas atividades de concepção de produtos (pesquisa e desenvolvimento) e por insumos e componentes de uso comum, notadamente componentes semicondutores e software. Os raios do leque são constituídos pelas diversas cadeias produtivas orientadas para mercados distintos- automação, processamento de dados etc. A convergência entre alguns mercados, que antes eram separados, como a informática e telecomunicação formando a telemática, reforça a referida interdependência entre as várias cadeias.

O tipo de interdependência verificado entre as indústrias eletrônicas faz com que, na sua dinâmica, destaquem-se as economias de escopo, derivadas dos usos dos mesmos recursos para linhas de produção distintas. Por outro lado, o caráter intensivo em tecnologia, fortemente utilizador de mão de obra muito qualificada (especialmente na fase de concepção dos produtos) e o ciclo de vida relativamente curto dos bens e serviços eletrônicos, enfatizam as economias de aprendizado, tem efeitos de sinergia e constituem um importante barreira a entrada do setor.

No passado recente, as barreiras também têm aumentado de altura devido a crescente padronização de alguns produtos e a expansão da automatização dos seus processos de pesquisa e desenvolvimento e de produção, ampliando a importância das economias de escala estáticas tradicionais – o que é interpretado por alguns como um sinal de um relativo “amadurecimento” do CE.

Está combinatória de economias de escopo e escala, estáticas e dinâmicas, tem profundos efeitos sobre a estratégia das empresas que participam do CE. Tradicionalmente, essas economias foram exploradas por meio de integrações horizontais e verticais dentro do mesmo grupo, ou seja, um efeito de aglomeração eletrônica. Mais recentemente, somou-se a conglomeração a cooperação entre grupos, tano ao nível de tecnologia, por meio de licenciamentos cruzados e projetos cooperativos de P&D, como ao nível da produção, por meio de “joint-ventures” e “joint-businsessses”.

Nos países centrais, onde o CE nasce e se desenvolve mais, as características do CE também definiram um padrão de intervenção do Estado especifico, da natureza “estruturante”, onde o Estado plasmou, ao mesmo tempo, as condições de oferta e demanda do CE, atuando de forma abrangente e sustentada no tempo, sobre todas as etapas da cadeia que vai da pesquisa as vendas dos produtos e serviços, utilizando medidas redutoras de custos e, especialmente, de riscos para as empresas nacionais, numa perspectiva ofensiva, de ganhar espaço no mercado internacional. Mesmo onde o CE já se implantou, a intervenção do Estado se mane, assumindo um caráter estruturante para os produtos que constituem a fronteira tecnológica do setor e fomentando ou estruturando a cooperação entre empresas.

As análises da intervenção do Estado no CE normalmente concentram sua atenção sobre a constituição da capacidade cientifica, tecnológica e produtiva do complexo, ou seja, ao nível da oferta de bens e serviços do complexo e de seus encadeamentos com o sistema educacional e de pesquisa. No entanto, convém assinalar que esta intervenção foi simultânea a ação sobre a demanda destes bens e serviços, feito tanto diretamente apelo Estado, através de suas políticas de compras, como indiretamente por meio de medidas que reduziam os riscos e custos do uso destes bens, especialmente para que eles compradores que os empregavam como bens de produção e eram oriundos de uma base técnica não eletrônica – por exemplo, na introdução do controle numérico na indústria de máquina-ferramenta.

Esta dupla intervenção, a que, por isso, chamamos de “estruturante”, dá-se, pois, tanto dentro do CE como nas interfaces deste com outros complexos industriais ou com os consumidores finais, constituindo a política industrial (lato sensu) para o CE e uma parte fundamental (dada a importância da eletrônica para o sistema econômico e social) da política industrial geral.

Finalmente, não é ocioso insistir sobre o caráter internacionalmente do CE – tanto em termos de mercados como de produção, seja na definição de estratégias por parte das empresas como nos Estados nacionais, há uma dimensão internacional, que tem um efeito cumulativo. Assim, a intervenção de um Estado nacional favor das empresas do seu CE nacional, obriga-os demais a intervir, sob pena de prejudicar a posição competitiva de suas empresas nacionais.

Em síntese, a economia tecnológica, industrial e política do CE sugere que este será bem-sucedido se houver a formação de grupos empresariais capazes de explorar as economias de escopo e aprendizado e superar as crescentes barreiras de escala, voltando-se também para o mercado internacional. A ação destes grupos deve estar articulada a um padrão de intervenção estruturante de parte do Estado, que abrange não só o CE como os vínculos destes para trás, como a formação de pessoal e a pesquisa cientifica e tecnológica extramuros do complexo, e os encadeamentos para frente, com os usuários dos bens e serviços eletrônicos.

A luz destas conclusões, a parcialidade da PNI brasileira e patente. A segmentação da política, entre setores e, dentro dos setores, por produtos, implicou que as economias de escopo, aprendizado e escala fossem reduzidas. A relutância em assumir uma postura claramente estruturante, que teria impicado em medidas mais restritivas de ordenamento de oferta, fez com que a formação de grupos capazes de usufruir das economias de escopo e escala fosse retardada, o que foi agravado pela ausência de uma política de exportação adequada as especifidades do setor.

Ainda no âmbito do CE, note-se que o apoio das agencias financiadoras do Estado foi tardio e, frequentemente, hesitante, especialmente no que toca a capital de risco, como bem evidencia a crônica falta de capital da única empresa estatal do complexo, cuja vocação de liderança tecnológica e provedora de externalidades para as demais empresas jamais foi plenamente assumida pela política.

Em termos dos encadeamentos para trás, a constituição de tecido científico e tecnológico sobre o qual repousa o complexo, foi notoriamente precária, limitada por uma política míope de controle dos gastos públicos – o que levou as empresas nacionais a internacionalizar custos e riscos que, em outros países, constituem externalidade para seus congêneres, limitando assim sua competividade internacional.

As relações com os demais complexos industriais, como para frente como para trás, são analisadas em maior detalhe na próxima sessão, mas cabe aqui, enfatizar a parcialidade das políticas de demanda por produtos eletrônicos, tanto os adquiridos diretamente pelo Estado como os dirigidos pelo setor privado.

Na verdade, a PNI utilizou basicamente dois instrumentos: o controle de importações, tanto de produtos acabados como de partes e componentes, e a aprovação de projetos e produtos. Embora incentivos fiscais, créditos de agências governamentais e compras estatais também fossem utilizados, foram-no de forma limitada e descontinuada ao longo do tempo.

Embora poderosos, especialmente pelo conteúdo importado relativamente alto (para padrões brasileiros, conhecidos pela quase-autarquia), estes instrumentos não constituem um arcabouço estruturante para um setor e, muito menos, para o CE, onde sua insuficiência e agravada pela desconexão entre as políticas setoriais.

Esa insuficiência torna-se muito mais grave quando situada num contexto internacional não só as condições do CE brasileiro são muito mais precárias, como a intervenção dos Estados nacionais e, essas sim, de caráter nitidamente estruturante.

 

  1. Política Inter complexos

Para trás, como consumidor de produtos industriais fornecidos por outros complexos industriais, o CE demanda bens de vários complexos, notadamente do complexo eletromecânico, como fiação elétrica e componentes de mecânica fina, e do complexo petroquímico, pelo consumo de plástico e outros derivados sintéticos.

Embora suas compras possam não ser vultuosas, em termos quantitativos, o CE pode exercer um importante efeito sobre seus supridores ao definir requisitos técnicos apurados para os produtos que compra (por exemplo, em ermos de tamanho ou dissipação de energia), obrigando os fornecedores a aperfeiçoar os seus procedimentos de projeto e produção. Como esta capacitação técnica pode ser utilizada para suprimento de outras indústrias, esta articulação para trás do CE tende a gerar externalidades para outros complexos industriais.

No caso brasileiro, o suprimento de insumos não eletrônicos constitui uma das principais causas do custo relativamente alto dos produtos de CE (veja-se abaixo a discussão do hiato tecnológico) e deveria constituir uma das prioridades de uma política industrial que articula o CE aos demais complexos.

Para frente, ao olhar o CE como fornecedor de bens e serviços, convém distinguir entre os bens e serviços que são de uso final, adquiridos por unidades familiares, e aqueles que são comprados como bens de produção pelo setor público ou privado.

A composição e quantidade dos primeiros depende diretamente da política de rendas e apenas medianamente pela política industrial externa ao CE. No entanto, a evolução deste último e, conforma já assinalado, fortemente afetado pela política tecnológica e industrial definida para as indústrias que produzem esses bens de consumo (notadamente áudio e vídeo, mas, crescentemente, microcomputadores também) e, desta forma indireta, os demais complexos industriais são também afetados.

Assim, no caso brasileiro, a baixa integração tecnológica, produtiva e da política entre o setor de bens de consumo sediado na Zona Franca de Manaus e o resto do CE nacional em efeitos negativos que transbordam os já notados para o CE, incidindo sobre o resto do sistema industrial.

No passado recente e no presente, a política de renda do país tem induzido uma produção de bens de consumo eletrônicos que busca a diversificação dos modelos, reforçando a propensão a importar tecnologia e componentes. Caso houvesse uma modificação desta política de rendas, privilegiando uma distribuição mais equitativa de rendimentos, e provável que o consumo destes bens não se alterasse em termos quantitativos (ao contrário, e provável que a densidade de eletrônicos por domicílios aumentasse) mas sua composição, rumo a modelos mais simples, provavelmente seria alterada.

Por mais importante que sejam os efeitos da difusão da eletrônica sobre os padrões de consumo domiciliar (a que devem somar-se os impactos políticos e culturais), do ponto de vista estritamente econômico, o principal impacto do Ceda-se pelo uso de seus produtos e serviços como meios de produção de outros bens e serviços.

Conforme já foi apontado, a rápida difusão dos bens eletrônicos como meios de produção deve-se a uma combinação de fatores: o objeto que transformam – a informação, em todos os seus usos, a diversificação destes bens eletrônicos, adaptáveis a diversos usos, e a drástica redução das relações entre o preço destes bens e suas demais características (desempenho, durabilidade, confiabilidade etc.).

Com o e sabido, a eletrônica ensejou aos seus usuários novo padrão de produção, caraterizado pela flexibilidade da automação, que permite diversificar as linhas de produção com economias tanto de capital como de mão-de-obra, configurando um novo paradigma de produção.

Desta forma, o CE fornece os meios para que os demais setores revolucionam sua base técnica, induzindo um processo de inovação encadeado, em “cascata”, que afeta todo o sistema econômico.

Mais indiretamente, ao definir procedimentos de pesquisa e produção com margens de tolerância muito restritas, o CE estabelece paradigmas para o resto do sistema, como por exemplo, o “grau de pureza eletrônica” na produção.

Para que o CE exerça a contento esses papeis de dinamizador processo de acumulação de capital e de progresso técnico, e necessário que este complexo esteja internalizado no país, posto que o processo de difusão de inovações e fortemente afetado pela proximidade econômica e geográfica entre fornecedores e usuários. Dadas as conhecidas limitações do processo de transferência internacional de tecnologia, e necessário que o CE local tenha uma capacidade tecnológica própria, sem prescindir, obviamente, da importação de tecnologia. Convém aqui reiterar que o que caracteriza a dependência tecnológica não é a importação de tecnologia, posto que é indispensável, mas a baixa relação entre os gastos locais e a importação.

Neste sentido, a PNI tem um sentido verdadeiramente estratégico para o resto do sistema econômico ao garantis a internacionalização de um CE sob controle nacional, sendo de deprecar os pequenos investimentos feitos na montagem do sistema científico e tecnológico externo ao CE e que dá sustento a capacidade de inovação deste último.

A presença de um CE, mesmo dotado de capacidade tecnológica própria, não garante, porém que o processo em cadeia previamente descrito se dê. E necessário também quer que estejam presentes no sistema aqueles setores industriais e serviços que desenvolvem e adaptam as inovações eletrônicas (fazendo na linguagem shumpeteriana “inovações secundarias”) aos seus múltiplos usos.

Entre os setores industriais que fazem este papel de “intermediários” entre os “motores” da inovação, como o CE, e o resto do sistema econômico (Erber, 1988), destacam-se os produtores de bens de capital, lócus clássicos da incorporação e difusão do progresso técnico.

Na segunda metade da década de setenta, o Brasil, deu um salto quantitativo na capacidade de produção de bens de capital baseada na tecnológica não-eletrônica. A trajetória natural dessa indústria nos anos oitenta, que seria a introdução da eletrônica, foi freada pela crise da década, originada por fatores financeiros extra industriais.

A redução do ritmo de investimentos teve como consequência imediata a diminuição da introdução da eletrônica na indústria de bens de capital, que, por estar em seus estágios iniciais, demanda altos gastos em inversão e um grande esforço de aprendizado.

Esta contração da demanda esperada por meios de produção de base eletrônica teve um efeito perverso cumulativo, ao ocorrer quando se implantava a produção local destes bens, contribuindo, pelos aumentos dos custos fixos unitários, a aumentar os preços destes bens e, assim a desestimular mais ainda a sua demanda.

Não obstante, o número de máquinas-ferramenta com controle numérico instalado no país, em 1988, era mais de cinco vezes superior ao do início da década e o número de controladores programáveis vendidos naquele último ano era onze vezes superior ao vendido em 1984 (Laplane 1989 e Sei 1989).

Embora os números acima atestem que o processo de difusão não estancou, tendo prosseguido a ritmos superior ao do crescimento industrial do país, esta difusão ainda e pequena em termos internacionais. A título de exemplo, enquanto no Brasil, em 1987, apenas 4% das máquinas-ferramenta produzidas eram de controle numérico, nos países avançados esse percentual supera, em média, a metade da produção.

Em consequência, uma das prioridades da política industrial deve ser a incorporação da eletrônica pela indústria de bens de capital. Neste sentido, a definição do setor de máquinas-ferramenta como uma das prioridades para a elaboração de um programa setorial integrado, no âmbito da NPI e positivo, como é a constituição pelo BNDES de uma linha específica de apoio a automação industrial. Note-se, porém, que, nos países avançados, o apoio governamental a introdução da eletrônica na indústria de bens de capital abrange um conjunto de medidas mais amplo, que visa reduzir tanto os riscos como os custos dos usuários (Sa, 1989).

Por ter o estado brasileiro, tanto a Administração Central como as Empresas Estatais, assumido os principais ônus da crise financeira, a demanda publica por bens eletrônicos foi especialmente afetada. Em consequência, a PNI foi privada, no campo econômico, de um dos principais instrumentos utilizados nos países avançados para desenvolver seus CEs, inclusive com sentido anticíclico, e, no campo político, de um de seus esteios de legitimidade, que seria a utilização dos bens de serviços do CE para fins sociais, inclusive para a modernização do aparto estatal.

Embora medidas de política industrial, estrito senso, possam aumentar a articulação entre o CE e os demais complexos industriais, esta depende, em boa medida, de condições macroeconômicas que transcendem o âmbito da referida política, entre as quais se destaca a alteração do padrão de financiamento do processo de desenvolvimento industrial e de operação do Estado brasileiro. Como bem ilustra o caso do sistema financeiro, onde a introdução eletrônica foi célere e baseada em soluções tecnológicas locais, quando estas condições são propicias, o CE nacional e capaz de responder adequadamente.

Embora o preço de vários produtos do CE, notadamente de tecnologia nacional com as qualificações devidas ao seu estágio “infantil”, a oferta de bens de produção do CE brasileiro ainda parece de uma relação entre preços e demais atributos excessivamente alta, o que sugere ser conveniente, do ponto de vista da política industrial como um todo, priorizar os esforços de redução de custos nesse segmento do CE.

Dada a interdependência entre os segmentos do CE, esta orientação remete, uma vez mais, para uma política integrada dentro do CE e deste com seus supridores, notadamente os metalmecânicos, que constituem um dos principais obstáculos a redução de preços. Dadas as limitações de tamanho do mercado brasileiro e a escassez de recursos técnicos e produtivos de famílias de produtos a serem desenvolvidas localmente se impor, tema tratado em mais detalhe nas duas seções seguintes.

 

  1. A administração do Hiato Tecnológico

As firmas nacionais de informática já alçaram uma clara capacitação tecnológica em vários domínios tecnológicos. No campo da fabricação, capacitaram-se inicialmente a manufatura os produtos localmente e, agora, vem ampliando sua competência no controle e melhoria de qualidade e nos serviços de manutenção dos equipamentos. Na area de projeto de produtos desenvolveram a capacidade de engenharia reversa e de projetar produtos internamente, tanto em hardware (por exemplo, equipamentos de automação bancária) como em software (por exemplo, o sistema operacional SOX da COBRA).

Não obstante estes resultados positivos, a Política de Informática enfrenta o problema da capacidade de inovação e de acompanhar o desenvolvimento internacional na area, pontos centrais do questionamento da política, e que em obvias implicações para os demais setores motores da inovação.

A política de Informática imputa-se com frequência um curioso desejo de autarquia tecnológica, de “reinventar a roda”. Os fatos, no entanto, invalidam esta crítica. A política, tal como vem sendo posto em prática, tem-se apoiado diretamente sobre a importação de tecnologia, tanto sob a forma de engenharia reversa como através de contratos formais de licenciamento e plena importação de componentes.

Em verdade, a política ampliou a gama de ofertantes internacionais de tecnologia, como pode ser visto comparando as ofertas de licenciamentos nas duas concorrências feitas de para a produção local de microcomputadores, em 1977, no início da política, e em 1983, para superminis. Na segunda, as empresas líderes do setor dispuseram-se s ceder tecnologia a firmas nacionais, ao contrário do que ocorrera na primeira.

A experiencia da indústria brasileira de informática confirma a de outros setores no que toca as relações entre importação de tecnologia e desenvolvimento de uma capacitação tecnológica interna. Assim, a importação de tecnologia serve para desenvolver algumas capacidades, como a de engenharia de fabricação, mas tende as inibir outras, como a engenharia de projeto.

Como as capacidades tecnológicas que tendem a ser inibidas são aquelas indispensáveis pelas inovações, a importação de tecnologia tende a ser perpetuada, a menos que os importadores realizem um investimento autônomo na sua capacitação nas atividades que a importação não desenvolve.

Esse constitui um dos principais objetivos e, ao mesmo tempo, desafios da política brasileira de informática, que se repete nas outras áreas de ponta.

Embora a percentagem do faturamento das empresas brasileiras devotada a atividades tecnológicas na area de informática seja alta (cerca de 10%), o tamanho de muitas destas firmas faz com que o nível absoluto de gastos seja insuficiente para atuar na fronteira internacional, onde o patamar mínimo de gastos se elevando.

Os gastos governamentais brasileiros também não são suficientes para alcançar os dos países avançados e o estoque de recursos de que o País dispõe, especialmente recursos humanos, e claramente insuficiente para inovar numa faixa muito ampla de produtos de alta tecnologia.

Entretanto, para Pais como o Brasil, não é necessário nem factível estar colado as fronteiras internacionais em todos os produtos das áreas de ponta. Tanto nas decisões quanto a o que produzir internamente, com que parâmetros de custo/desempenho, como nas decisões quanto a concentração da capacidade de inovar, as condições do País impõem uma postura seletiva em termos de produtos.

Esta política seletiva implica numa análise mais cuidadosa da problemática do “hiato tecnológico” em condições de relativo subdesenvolvimento.

O hiato tecnológico na oferta de produtos e identificado pelas diferenças entre as relações preço/desempenho prevalecentes nos mercados internacionais e brasileiro. Quando certos produtos são ofertados internacionalmente e não no Brasil, há um hiato “absoluto”. Quando os produtos são ofertados em ambos os mercados, o hiato eventual e “relativo”.

A dinâmica do complexo eletrônico caracteriza-se, conforme já foi mencionado, pela diversidade de produtos e, ao confrontar as ofertas no mercado brasileiro e no exterior, constatam-se inúmeros exemplos de “hiato absoluto”.

Cabe, porém, questionar o significado deste hiato. O conceito de “hiato” contém, implícita, uma noção de “necessidade” universal, que se expressaria através dos parâmetros de custo e desempenho dos produtos. Estes, porém, são definidos pelas empresas com base em critérios internos de competição e acumulação aplicados as condições dos países desenvolvidos. Nem os critérios nem as condições podem ser mecanicamente extrapolados para os países como Brasil. Um conceito mais apropriado de “hiato” implica na identificação detalhada de que necessidades não são atendidas pela oferta brasileira.

Em outras palavras, a identificação de um hiato na oferta e uma decisão política, além de econômica.

Cabe considerar que, mesmo nos países desenvolvidos, nos setores de alta tecnologia observa-se, com frequência, o que se pode chamar da “síndrome da câmara refles”. Com efeito, como se sabe, são incontáveis os compradores de potentíssimas câmeras fotográficas, capazes de tirar fotos nítidas na escuridão ou de um cavalo cruzando a reta final no hipódromo, que usam apenas para fotografar as crianças no jardim, paradas sob céu azul. O mesmo descompasso entre uso (necessidade) e oferta se aplica a outros produtos, como computadores pessoais e, mesmo, em equipamentos profissionais. A crise pela qual passou recentemente a indústria de computadores nos Estados Unidos e atribuída, em boa medida, a essa capacidade ociosa dos equipamentos.

No caso brasileiro, não há evidência disponível que ateste que a Política de Informática tenha deixado necessidades de alta prioridade social ou econômica inatendidas, embora enha, certamente, privado muitos usuários de prazer e prestígio de possuir o “dernier cri” em matéria tecnológica.

O conceito de “hiato” contém ainda, implícita, a hipóteses de disponibilidade de recursos para importar os bens não ofertados localmente. A crise cambial brasileira e de tais dimensões que torna indispensáveis maiores comentários sobre o realismo desta hipótese.

O controle de importações desempenha um papel fundamental na política de informática brasileira. Em primeiro lugar, dada a falta de integração vertical do complexo eletrônico, permite pelo controle de importações das partes, componentes e equipamentos, selecionar que produtos serão produzidos no País. Ao mesmo tempo, permite manter, pelo mesmo canal, os hiatos tecnológicos (absoluto e relativo) sob relativo controle. Em terceiro lugar, tem sido um importante elemento de barganha para elevar as subsidiarias implantadas no País a tanto aumentar suas compras locais de partes e componentes, como de elevar suas exportações intragrupo. Recentemente, a lista de produtos cujos pedidos de importação necessitam ser examinados pela Secretaria Especial de Informática foi reduzida, ao mesmo tempo que os procedimentos de exame estão sendo agilizados.

Potencialmente o controle de importações poderia ainda constituir um importante elemento salvaguarda dos interesses dos consumidores, atuando como elemento de pressão para que as empresas endividam dessem esforços para reduzir as relações de preços/desempenhos de seus produtos. Esta pressão que poderia traduzir-se em medidas de proteção (tarifaria e/ou administrativa) cadentes ao longo do tempo não foi utilizada pela PNI, que se caracterizou por uma proteção sem claros limites temporais.

A restrição de divisas que pesa sobre a economia brasileira, combinada a dados como a dimensão do mercado nacional, recursos disponíveis localmente para implantar o setor etc., implica que qualquer política que fosse adotada, teria como consequência hiatos absolutos. Entretanto, e possível que a composição da oferta onde tais hiatos fossem consignados, fosse distinta caso a política fosse levada a cabo por empresas multinacionais, ou alternativamente, exclusivamente por empresas estatais. Parece, porém, difícil afirmar que as necessidades cobertas por estas estratégias alternativas teriam, a priori, maior validade econômica e social que as atendidas pela atual política.

As críticas a Política de Informática parecem pisar terreno mais firme no campo do hiato relativo. Comparando os preços de produtos similares no mercado brasileiro e americano, constatam-se diferenciais substanciais para produtos como microcomputadores, periféricos, discos e unidades de controle numérico.

No entanto, quando analisamos ao longo do tempo, estes diferenciais tendem a cair, algumas vezes de forma abrupta. No caso de microcomputadores, reduzem-se de quase 200% a zero, no prazo de dois anos. Para as unidades de controle numérico localmente projetadas, caem de 46% a zero em 4 anos. Embora para outros produtos, como periféricos e discos, as reduções sejam menos intensas. Elas todas apontam a presença de economias de escala dinâmicas, um das justificativas clássicas da indústria nascente.

Igualmente significativo e o fato de os diferenciais de preços dos produtos de informática fabricados por subsidiarias de firmas internacionais os preços de produtos eletrônicos, fabricados na Zona Franca de Manaus. Não serem distintos daqueles observados para as firmas nacionais de informática, sugerindo que o problema tem raízes em condições estruturais, como a dimensão do mercado brasileiro, antes que nas características da Política de Informática.

Dois outros fatos apontam na mesma direção. Em primeiro lugar, o custo de equipamentos onde o mercado brasileiro e de porte internacional, como na automação bancária, e comparável e frequentemente, maior que no exterior. Em segundo lugar, estudos detalhados de custos de produtos de informática nacionais indicam que o principal fator que explica as diferenças observadas entre produtos nacionais e estrangeiros e o custo dos insumos e componentes, que, fabricados no País ou importados em pequena escala, oneram o preço do produto final.

Este último fator remete, de um lado, novamente, a importância de conceber a política integradamente para o complexo, mesmo que de forma seletiva ao nível de famílias de produtos. De outro lado, aponta para a já mencionada propensão a importar das filiais de firmas multinacionais, que, embora instaladas no País há várias décadas, passaram a desenvolver fornecedores locais apenas quando a Política restringiu as importações.

E importante, ainda, notar que, neste tipo de análise, estão sendo comparados resultados de uma indústria madura, como a americana, com os de uma indústria infante, como a brasileira. Sabe-se, porém, que as indústrias, em todos os países, levam um longo tempo para amadurecer. Tomando a indústria automobilística como exemplo de uma estratégia distinta, apoiada sobre firmas multinacionais, o seu amadurecimento, expresso pela redução de diferenciais de preços, parece ter sido muito mais lento que o evidenciado pela indústria brasileira de informática.

Embora a defesa dos interesses do consumidor seja um objetivo meritório em todas as circunstâncias, não deixa de ser curioso, politicamente, que muitos do que presentemente atacam a Política de Informática tenham, no passado, justificado os diferenciais de preços constatados em indústrias estabelecidas segundo o padrão ortodoxo, precisamente com os argumentos da indústria infante.

As considerações acima são feitas com um horizonte temporal de prazo longo. Apesar de apropriado a avaliação de políticas, este horizonte frequentemente não e compartilhado por usuários dos produtos. A observação do seu comportamento sugere que tais usuários tem uma “margem de tolerância” em relação ao hiato de oferta existente num dado momento, a qual opera ao longo de um período relativamente curto. Esgotada no tempo esta margem de tolerância, os usuários passam a pressionar para que o hiato seja removido, total ou parcialmente.

O hiato será mais tolerado se houver um compromisso de parte dos produtores de reduzi-lo em prazos definidos e se a política governamental incluir medidas que garantem o cumprimento deste compromisso, tanto por meio de sanções as empresas que não as honrem (por exemplo, cobrança de incentivos fiscais) como pela rápida abertura a competição externa.

Uma das características das áreas de tecnologia de ponta e a sua alta taxa de inovação, que faz com que a gama de produtos e as características destes estejam em movimento contínuo. Os usuários destes produtos andem a estar bem-informados sobre o “estada-da-arte” internacional e o movimento deste afeta a sua posição no “intervalo de tolerância” com o hiato, aumentando as pressões para a rápida redução deste. Estas pressões são potencializadas pela presença de subsidiarias estrangeiras, ofertantes virtuais das novas safras de produtos.

Os dois conceitos acima utilizados – a margem de tolerância dos consumidores com o hiato tecnológico na oferta interna de bens de serviços e a capacidade interna de inovar – podem ser combinados numa matriz, em que as células são compostas por produtos classificados segunda a margem de tolerância e capacidade de inovar, conforme o quadro 1.

A matriz, embora esquemática, fornece indicações para uma estratégia seletiva de desenvolvimento tecnológico. Para os produtos em que a margem de tolerância e alta e a capacidade interna de inovar também e, o desenvolvimento local destes produtos parece aconselhável. Contrariamente, para aqueles produtos em que a margem de tolerância e baixa e, similarmente o e a capacidade interna de inovação, a importação de tecnologia parece a melhor solução. Finalmente, na diagonal da esquerda, em que estão combinadas altas (baixas) tolerâncias com baixas (altas) capacidades de inovar, a melhor solução parece importação de tecnologia acompanhada de um esforço de inovação interno.

 

QUADRO 1 – Administração do Hiato Tecnológico

 

Margem de Tolerância – Capacidade interna de inovar

 

Alta                                 Baixa

Alta                       Desenvolvimento Local          Importação

Des. Local

Baixa                     Importação                                Importação

Desenvolvimento Local

 

A matriz acima descrita pode ser utilizada de forma estática, para classifica os produtos num dado ponto no tempo, ou de forma dinâmica, para definir a distribuição de produtos pelas células da matriz ao longo do tempo, ou, em outras palavras, para definir as prioridades de investimento em desenvolvimento tecnológico por linhas de produtos.

A definição da margem de tolerância, conforme descrito acima, cabe essencialmente aos consumidores. No entanto, o Estado pode, com base em critérios sociais ou pautado por um horizonte de tempo distinto, impor hiatos mais longos que os desejados pelos consumidores, pagando por isso o correspondente custo político.

A decisão sobre a distribuição dos hiatos por produtos – ou seja, a relação que se estabelece entre os perfis de oferta nacional e internacional, com suas obvias implicações em termos de importações, produtividade, satisfação dos consumidores etc., e uma decisão política de maior alcance que acima discutida, dependendo de considerações, como a política de rendas, que vão além do âmbito da política industrial.

A análise anterior sugere que se pode estabelecer critérios para definir esta distribuição de hiatos com base nos encadeamentos do CE com o resto do sistema econômico – por exemplo, a margem de tolerância em bens de consumo de entretenimento pode ser maior que bens de capital.

Esses critérios serviriam também para dar a matriz antes apresentada sua definição dinâmica, de instrumento auxiliar das decisões de investimento.

A política brasileira de informática parece ter atuado de forma semelhante, selecionando as estratégias tecnológicas para produtos ou grupos destes, em função da capacidade interna de prover soluções tecnológicas e das pressões para que os produtos fossem rapidamente ofertados no mercado interno.

Embora o prazo para avaliação dos seus resultados ainda seja curto, os que podem ser observados tendem a validar a PNI. No entanto, essa parece ter sido implementada de uma forma muito pontual, produto a produto, e com limitada capacidade de antecipação de problemas. Para que seja eficaz e evidente pressões insuportáveis, procedimentos mais sistematizados de administração do hiato tecnológico terão que ser estabelecidos.

Paradoxalmente, os próprios conflitos que cercaram apolítica, parecem ter contribuído para que ambas as metas claras de redução do hiato não fossem estabelecidas para os produtos protegidos e, ainda mais, para que sanções não fossem impostas quando do não cumprimento destas metas, prejudicando, em última instancia, a legitimidade da própria política.

Num plano mais amplo, da definição da distribuição dos hiatos por produtos, a PNI defrontou-se com um contexto em que inexistiu uma política industrial e onde a política econômica privilegiou, sem sucesso, o controle da inflação. Esta indefinição contribui fortemente para que a PNI fosse mais influenciada por indicações do mercado do que por considerações do uso social da eletrônica.

 

  1. Política Industrial e Informática – Uma Abordagem por Famílias de Produtos

Nas seções anteriores enfatizou-se, de um lado, a necessidade de uma abordagem integrada para o CE e, de outro, a necessidade de seletividade em ermos de produtos ao administrar-se o hiato tecnológico.

Estes dois princípios, abrangência e seletividade, poderiam ser conciliados operando a política ao nível de famílias de produtos que utilizassem recursos técnicos e produtivos semelhantes, e, ancilar mente, fosse dirigido para mercados com características semelhantes. Desata forma, seriam exploradas as economias de escopo, aprendizado e escala que originam a sinergia do CE, resguardando-se os seus usuários de um hiato tecnológico excessivo.

Nesta perspectiva, as famílias de produtos eletrônicos seriam divididas em três grandes grupos: produtos a serem importados, produtos a serem fabricados no país com tecnologia importada, e produtos a serem fabricados no país com tecnologia local. Como na análise anterior do hiato tecnológico, esta divisão teria tanto um caráter estático, de taxionomia inicial, como um caráter dinâmico, expressando os objetivos da política industrial pela alocação de famílias de produtos a um ou outro grupo no tempo.

Imaginado uma política industrial articulada as prioridades econômicas e sociais do país, uma primeira priorização das famílias de produtos eletrônicos, bastante ampla, poderia ser obtida de seus usos. Assim, a título de exemplo, a ênfase no aperfeiçoamento dos serviços básicos presados a população de baixa renda, como saúde e educação, levar a política industrial a privilegiar produtos eletrônicos distintos daqueles que serão priorizados pelo funcionamento do mercado, mantida a atual política de rendas.

Esta primeira seleção de famílias de produtos deveria, a seguir, ser objeto de um escrutínio mais cuidadoso, embora ainda mais amplo que o nível do projeto, seguindo três dimensões básicas, abaixo detalhadas.

I. Utilização e desenvolvimento de recursos tecnológicos no país.

A utilização e o desenvolvimento de uma capacitação tecnológica são objetivos em boa medida complementares, porque a utilização desenvolve os recursos disponíveis (via “learning by doing”) e os limites que esse aprendizado encontra aponta as prioridades do desenvolvimento, como, por exemplo, na transferência internacional de tecnologia.

O objetivo da política industrial ao longo desta dimensão, e ampliar o uso de recursos científicos e tecnológicos mais complexos, criando, ao mesmo tempo, postos de trabalho mais bem renumerados e melhores condições para que a produção local estreito o hiato tecnológico em relação a fronteira internacional.

No entanto, as considerações de ordem econômica e político-institucional, expressas nas outras dimensões do processo de escolha, podem recomendar, para certas famílias prioritárias de produtos, cautela neste avanço, que pode até ser excluído para as famílias que se julgue devam ser importadas ou fabricadas localmente sob licença.

Nos termos do esquema Antes proposto para a administração do hiato tecnológico, a dimensão “capacidade de inovação local” ali utilizada encontra-se subsumida nesta ordem de considerações.

 

II.Barreiras econômicas a produção local

Conforme já foi assinalado, há uma tendencia internacional a elevação dos gastos mínimos em P&D e produção dos produtos eletrônicos. Esta elevação afeta inclusive as interfaces entre o CE e outros complexos como as máquinas-ferramenta com controle numérico, cuja escala mínima de produção tende a ser superior à das máquinas convencionais e que, por sua vez, demandam, por seu alto custo, um uso intensivo por seus compradores.

Assim, a politica industrial deveria, ao selecionar famílias de produtos eletrônicos, considerar, ao lado da escala mínima de investimentos necessários, o mercado potencial destes produtos, priorizando, em ordem decrescente, no mercado nacional, a ocupação de “espaços vazios” na oferta nacional, preenchendo hiatos absolutos de ofertas e , a seguir, a substituição de importações e, no mercado internacional, na mesma ordem, as exportações independentes e as vinculadas a subcontratação e empreendimentos conjuntos com firmas internacionais.

A política de administração do hiato tecnológico acima discutida incide diretamente sobre esta dimensão, ao definir o “timing” de entrada dos produtos no mercado e a dimensão deste ao longo do tempo, pela manutenção do hiato. Outras políticas, como a de reserva de mercados para firmas nacionais, afetam igualmente esta dimensão, ordenando a competição.

 

III. Conflitos político-econômicos

Conflitos de interesse são invitáveis em qualquer política. Para tomarmos alguns exemplos da análise anterior, a harmonização de políticas setoriais dentro do CE só pode ser feita se alguns interesses forma inferidos, dada a discrepância de objetivos que norteiam as várias políticas.

Da mesma forma, a reserva de mercado para firmas nacionais e naturalmente, conflitiva, ao excluir as firmas multinacionais de um dos mercados de mais rápido crescimento no mundo. Neste caso, porém, ao configurar um padrão distinto de distribuição de benefícios entre os vários setores sociais, aplicável outros complexos industriais, notadamente aqueles onde ainda há “áreas vazias”, não ocupadas por firmas estrangeiras, o conflito transborda os limites do CE e adquire feição internacional.

O conceito de margem de tolerância com o hiato tecnológico, antes discutido, situa os conflitos na interface entre o CE e seus usuários e, indiretamente, entre o CE e seus supridores. O processo de solução deste conflito, ou seja, a administração do hiato tecnológico, e, ao mesmo tempo, técnico-econômico e político, pois a decisão quanto a que hiatos tecnológicos serão tolerados para que produtos e por quanto tempo e permeada por juízos de valor sobre que segmentos da sociedade pagam o custo da industrialização e quais desta se beneficiam.

Ao implementar qualquer política econômica, como a reserva de mercado e a administração do hiato tecnológico, o Estado conta com recursos políticos finitos, que são utilizados na gestão dos conflitos inerentes a estas políticas. Em consequência, e recomendável que a política industrial ao selecionar as famílias prioritárias de produtos eletrônicos, tome em consideração explicita os conflitos que ocasiona, ano com a ilusão de poder evitá-los, mas com o proposito de conferir a esta política, ao mesmo tempo, maior transparência e maior eficácia.

Neste sentido, a inovação da PNI de estabelecer camarás setoriais onde os conflitos dentro da cadeia produtiva e com os consumidores fossem explicitados, reservando ao Conselho de Ministros (CDI) apenas as decisões maiores de política, parece que um procedimento mais eficaz do que o adotado na PNI, onde as decisões são tomadas por uma instancia governamental, caso a caso, e todos os conflitos são remetidos a um Conselho misto (CONIN).

As dificuldades na implementação deste processo de seleção são, a dizer pouco, grandes. A quantificação das variáveis, na maior parte dos casos, e dificultou mesmo inviável, podendo-se apenas trabalhar com escalas do tipo qualitativo (“alta”, “média”, “baixa”) ou com ordens nocionais de grandeza (por exemplo, escala de investimento, tamanho do mercado). Aos obstáculos técnicos soma-se a tradição política brasileira do casuísmo e a consequente dificuldade de transparência de critérios e decisões.

No entanto, exatamente por estas dificuldades, que recolocam em questões as relações entre Estado e sociedade civil e, dentro desta, das relações entre vários grupos, a prática de um planejamento reconhecidamente limitado, mas participativo e transparente, serve a uma função econômica, política e social que vai muito além da política industrial. Neste campo, também, a eletrônica pode vir a constituir-se num paradigma para o resto do sistema.

Política industrial no Brasil: um quadro...

  l) Introdução Não existe política sem teoria, pelo menos implícita, frequentemente feita por algum economista há muito morto, como já advertia Keynes. Um quadro teórico claro e consistente não garante a qualidade da política - posto que pode ser fantasioso - mas, pelo menos torna-a...

Morto

Quase morreu. Estivera no banho – um longo chuveiro. No banho, dizia sempre, tinha suas melhores idéias Era um lugar protegido. Na verdade, estava furiosa. Também se sentia culpada por estar furiosa. Enfim, era uma mulher liberada, madura e independente e sabia que essas coisas acontecem com todo mundo.

Com Marcelo não. Durante a dúzia de anos de casamento fora um relógio, sem nunca atrasar. Um relógio suíço, na infalibilidade e no afeto. Repercorreu a guerra cruenta que levavam e constatou que perdera a última batalha. Marcelo tinha fazendas e o filho fora estudar em Viçosa. Mas a última batalha não era a última.

Passara muito tempo olhando-se no espelho, buscando o que Fuad vira. Não estava mal para quase quarenta anos. Os quadris podiam ser mais finos – devia perder três quilos – mas tudo somado… Era também uma grande profissional.

Olhando os olhos achou o que viu em Fuad. A tristeza do olhar. Não era bonito, mas não fora feio. Envelheceu mal, o atleta envelopado em gordura. Mas ainda atraente. Um turcão. Sempre gostou de homens grandes.

Mas era o olhar. A melancolia que subia quando ele baixava a guarda. Ao ver os resultados dos pesquisadores jovens. Foi um cientista de brilho promissor. Largou a universidade pela firma e a administração apagou o brilho. Mas não o sentimento – era capaz de entender um bom trabalho e de saber que nunca mais faria algo semelhante. E não era um executivo brilhante. Hesitava e liderava mal.

Talvez por isso gostasse dele. Pela sua fraqueza. Marcelo também era um triste. Menos na cama.

Também porque gostava da admiração que via nos seus olhos. Especialmente quando achava que ela não percebia.

Enquanto enxugava os cabelos recapitulou a tarde. O Congresso foi, como esperava, um tédio. E estava chovendo, o que, por alguma razão, a enterneceu. E Fuad ali, depois de apresentar os trabalhos da firma, que apenas pajeava, com aquele olhar nu. Haviam descido para tomar um uísque no bar do hotel e ele, de repente, pegou sua mão. Sabia que era casado e, antes que ele dissesse algo irreparável, concordou.

Para, ali no motel, tudo acabar assim. Em nada. Ele suando, murmurando desculpas e ela, no fundo, furiosa.

Aí, quase morreu.

Saindo, enrolada na toalha, viu-o. Deitado na cama. Nu. Morto.

Os olhos revirados, a boca aberta.

Em nenhum momento duvidou da morte acabada. Nem tentou respiração artificial.

Ficou ali, olhando. A toalha caiu e nem se deu conta. Só via a morte, refletida em todos os espelhos.

Só depois notou a ereção, a notável ereção. Refletida por todos os lados.

A ironia deu-lhe um tapa.

Se tivesse conseguido antes, talvez não tivesse morrido. Voltou correndo para o banheiro e, entre soluços, vomitou convulsivamente a alma.

No quarto, sem olhar, foi direto para a bolsa e acendeu um cigarro. Viu-se no espelho e levou um susto. Não podia ficar assim.

Devia, em algum lugar, ter o número da casa. Surprise, minha senhora! Venha, por favor, recolher o cadáver de seu marido no Motel Caliente. Podia, então, fugir. O carro era dele, mas, mesmo com chuva, acabaria por achar um táxi.

Recolocou o fone no gancho. Sentou-se na cama. Olhando para o rosto de Fuad, evitando mais em baixo.

Não podia fazer isso com ele. A mulher era-lhe indiferente. Fuad nunca se referira a ela com uma palavra de ternura ou amizade – apenas para comentar sua insatisfação com o padrão de vida que levavam. E ele não devia ganhar mal! A firma esfolava, mas pagava bem a perda de juventude. Vira-a apenas uma vez, em uma festa da empresa. Uma perua, carregada de jóias e pintura.

Mas imaginou os comentários. Para sempre Fuad seria lembrado como o que morreu no motel. Morreu trepando. De pau duro. Mal saberiam.

Comendo quem? Aí bateu o pânico. Não podia fugir. Mesmo que passasse pela portaria. Teria antes que pagar, com o seu cheque, com o seu nome impresso. Mesmo que passasse e conseguisse um táxi. Com chuva? Na Niemeyer? A mulher faria um escândalo. Mesmo que não fizesse, acabariam por descrevê-la. E todos, no Departamento, sabiam que foi ao Congresso com Fuad.

Emprego estava muito difícil. Como aquele, então…

Por Fuad e por ela mesma.

Vestiu-se toda. Penteou o cabelo e maquiou-se.

Pegou o telefone e mandou chamar o gerente. Peremptória. Freguesa com problemas.

Foi esperar na antessala, fumando.

O gerente era de meia-idade, baixo, troncudo, careca. Muito preocupado, mas delicado.

Temos um problema, comunicou. Seca. Como se fosse no laboratório. Para se controlar. E, abrindo a porta, fez-lhe ver.

– Moça, a senhora!

Mas o seu olhar cortou outros comentários. Coçou a calva.

-É. Temos um problema.

Disse-lhe logo que ele era casado e que ela não era a mulher dele. O gerente deu um suspiro profundo e voltou a coçar.

Sentaram-se no pé da cama, olhando para Fuad, com seu ponto de exclamação plantado no meio.

Por fim, ela sugeriu:

– Não acho uma boa ideia chamar a família

O gerente concordou com entusiasmo.

Sentiu alívio e vazio, sem saber o que fazer. Que, por uma vez na vida, o outro tomasse decisões.

-Foi coração, não foi?

Concordou e o homenzinho animou-se.

-Então podia ter acontecido aqui ou em outro lugar qualquer.

Seguiu concordando.

-Então, moça, vai ter acontecido.

Estava definitivamente animado.

-Vamos vestir, colocar no carro e deixar em algum lugar perto da casa dele. O coração falhou no caminho de casa.

-..e…

Apontou para Fuad. Para o meio.

-Bom, minha senhora, isso é mais seu departamento que o meu.

Sentiu o calor subindo e, ríspida, mandou-o virar-se. Aí viram-se no espelho e, sem se poderem controlar, quebraram a rir. Mesmo assim, o gerente teve a delicadeza de ir ao banheiro.

Prendeu a respiração, como para um mergulho, mas não teve coragem. Procurou uma toalha, mas estavam no banheiro e teve vergonha do gerente. Pensou em fechar os olhos, mas ficou com medo de errar. Então, com um olho só, o mais míope, pegou-o com firmeza. Para seu alívio, amainou na hora.

Vestiram-no todo. O gerente, percebeu, era um artista. Cuidadoso com os detalhes. Como era o laço da gravata, simples ou duplo? Era melhor deixar afrouxado, porque, na hora, isso era a primeira coisa que alguém fazia. E nos bolsos? A carteira de dinheiro ia no paletó ou na calça? E o talão de cheques?

Temia a descida para a garagem. Sugeriu ao gerente que pedisse ajuda para carregá-lo, mas ele abanou a cabeça.

-Quanto menos gente souber, melhor. Isso é fogo no cerrado em tempo de seca.

Para sua surpresa, jogou-o sobre os ombros e, mesmo bufando e cambaleando um pouco, foi até a garagem. Há muito tempo não via um homem tão forte.

Enquanto ela abria a porta do carro e ajeitavam Fuad no banco do passageiro, ele explicou, com orgulho, que na juventude foi campeão de luta. Não entendeu que tipo de luta, mas não se importou.

O gerente estendeu-lhe a mão, a palma virada para cima e olhou-a firme. Como não entendesse, foi mais claro.

-A conta, moça.

-Vou ter que pagar?

-Em primeiro lugar, a senhora e o moço aí usaram o motel. Em segundo, o que faço com os meus registros? Isso não dá para ser cortesia da casa.

Mesmo sendo chamada de senhora, com toda discrição, sem ter seu nome indagado (o de Fuad ele vira na carteira), ia ter que se revelar. Pagou em cheque.

Fez menção de entrar no carro e recuou. Tampou o rosto, escondendo a ausência de lágrimas.

-Não posso. Não tenho condições de dirigir com ele ao meu lado. E depois, como vão acreditar que ele passou para o banco do passageiro? Eu não tenho força para puxá-lo para o lado do motorista!

A calva voltou a ser coçada. E o gerente decidiu ir junto. Primeiro queria ir seguindo no seu carro, mas ela fincou pé que não ia sozinha com Fuad.

A chuva continuava e foram para a Barra. Ia no banco de trás, apertada de medo. Fantasiava uma blitz da Polícia ou que algum conhecido cruzasse no sentido contrário. O gerente resmungava contra a chuva, em contraponto com os limpadores de para-brisa.

Fuad, felizmente, não morava na praia e acharam uma rua deserta e escura, perto de sua casa, onde estacionar o carro. Juntos, empurrando e puxando, passaram-no para o lado do motorista.

Ele teve que segurá-la para que não corresse.

A água corria-lhe pelos cabelos e entrava pelo corpo. Sentia os pés afundando em poças, mas não conseguia enxergar. Seguia-o. Até que viu um telefone e soube que não podia simplesmente deixá-lo lá, naquele carro escuro, embaixo da chuva.

Olhou-a como louca, quando pediu um cartão. Mas ficou esperando enquanto ela chamava a Polícia e avisava que havia um homem caído num carro. Demoraram a achar um táxi e ele a levou até em casa. No percurso, ele elogiou-lhe a coragem. As lágrimas destamparam

Tomou um banho quente e meteu-se na cama. Nem ligou a televisão, que sempre enchia a casa de som. Sentia-se febril, mas chorar no ombro do gerente tinha-lhe feito bem. Ao despedir-se, ele lhe dera um cartão. Yan de Almeida.

Na manhã seguinte estava gripadíssima, rouca e com febre. Telefonou para o escritório e comunicaram o falecimento de Fuad. O coração. Um enfarte fulminante. No carro, a caminho de casa. O enterro era às cinco, no São João Batista. Colocariam o nome dela no anúncio fúnebre do Departamento.

Passou dois dias de cama. O filho telefonou-lhe de Viçosa e desejou-lhe melhoras, mas não se ofereceu para ir ajudá-la.

No terceiro dia, voltou ao trabalho.

A morte de Fuad ainda era notícia, mas, muito mais, era a especulação de quem iria sucedê-lo na Chefia. Percebeu que era cotada. Comentou o Congresso e a participação de Fuad, sua última contribuição para a empresa.  Tentou concentrar-se no trabalho, mas a gripe ainda restava. Acabou saindo mais cedo.

No quarto dia ficou em casa, mas no quinto e sexto voltou ao trabalho. No sétimo, dia da missa, foi nomeada Chefe.

A missa foi concorrida. A família era grande e o Departamento compareceu em peso. Achou que não teria coragem de cumprimentar a viúva e os filhos. Mas não podia evitar, agora que tinha tomado o lugar do morto.

Sentiu-se tonta quando saiu da fila e pensou estar enlouquecendo quando, ao fundo da igreja, viu a silhueta troncuda do gerente, Yan.

Coçou a cabeça quando a viu aproximar-se e, tomando-a pelo braço, comentou:

-Era meu dia de folga e fiquei curioso de ver o que tinha acontecido. Vi o anúncio no jornal. Bom que deu tudo certo.

Parecia genuinamente preocupado com o estado dela. Físico e mental.

A igreja era perto de sua casa e tinha medo de voltar e ligar a televisão.

Convidou-o para tomar um café e descobriu que tinham várias coisas em comum, como uma paixão por chorinhos…

 

Genética

Suava. O ônibus só parou em frente ao Benjamim Constant e teve que voltar rápido. Desviou a custo de um cego. Já tinha saído de casa atrasado, como não conseguia sair na hora? Início de dezembro e já fazia aquele calor. Ela gostava da Urca, de passear no fim da tarde. Entrou pelo portão do Teatro....