Chutando o pau da barraca

Sentou-se a meu lado. Há sempre um lugar vago a meu lado. Quando o vi entrar, pensei: ali está um cliente. Ficara um  tempo bebendo no fundo do bar, com uma menina que tinha idade para ser sua filha. Ela saiu com ar irritado e ele ficou sozinho, o olhar parado no ar. Depois, veio para o balcão. Sentou-se a  meu lado.

Sem olhar para mim, pediu um uísque. Quando o barman perguntou se queria de primeira ou segunda linha, hesitou. Tomou coragem  e pediu:

– De primeira… Duplo!

Tomou um gole grande e quase engasgou. Era um homem comum. Meia idade, média estatura, um pouco gordo, nem bonito nem feio. A barba de dois dias e as roupas amarrotadas.  Vestia terno e camisa social, mas estava sem gravata. Roupas e sapatos de loja de departamentos. As unhas das mãos estavam roídas. Os olhos com bolsas. Maxilares trancados, a tez avermelhada, a gordura flácida. Suava, apesar do ar  condicionado. Um cliente.

Ainda sem me olhar, falou para o espelho escondido atrás das garrafas:

– Chutei o pau da barraca!

É comum me fazerem confidências.

Depois de outro gole, acrescentou:

– Amanhã faço sessenta anos.

Repetiu, com mais força:

– Chutei o pau da barraca!

Fiquei curiosa em saber qual barraca. Ele se virou para mim, mas logo voltou a olhar para o que via de si atrás das garrafas.

Começou falando de seu trabalho. É normal. Os homens em geral começam com o trabalho, as mulheres com os filhos e o marido.

Sua história era comum, embora ele não soubesse.

– Comecei como entregador. Ainda era um armazém. Depois, virei caixa. Já era um mini-mercado. O português chamava de super-mercado, mas não era. Depois virou. Fui subindo. Fui conferente,  encarregado de estoque, gerente. Nos últimos anos trabalhava na holding.

Ralei. Ralei  como um animal. Acabei o secundário no supletivo noturno. Comecei uma faculdade no noturno, mas não deu. Já estava casado,  a mulher grávida e larguei. Era muito cara, e o tempo não dava.

O salário não era essas coisas, mas nos últimos tempos dava para sustentar a família com um padrão razoável. Família grande, sabe como é, gasta muito.

Fez uma pausa, percorrendo a memória.

– Há dois anos, o velho se aposentou. Comprou uma quinta e voltou para Portugal. Dizem que é enorme. Vinhedos, oliveiras, carneiros… tudo. O desgraçado nem se despediu. Tudo aquilo comprado com  nosso suor!

Fiquei pensando como ia ser comigo. O galego na quinta em Portugal e eu aqui, com minha pensãozinha do INSS. Como ia manter a família?

Com a saída do velho, o genro assumiu. Deve ter casado pelo baú. A filha é feia como o Cão, mas é a única herdeira. Não entende daquilo. O velho era um miserável pão duro, mas entendia. O genro é um babaca.

Depois de um ano, começou um zum-zum que uma cadeia estrangeira ia-nos comprar. Não era boato. Eu mesmo andei mostrando umas contas aos gringos. Eles acharam que o negócio não era tão bom assim e deram uma parada. Fiquei sossegado.

Há seis meses voltaram. Um deles, o testa-de-ferro deles aqui, me disse que o genro abaixara o preço.

Não tenho diploma, mas não sou bobo. Já vi essas coisas antes. Os gringos compram e a primeira coisa que fazem é mandar o pessoal embora. Começando com os mais velhos. Chamam isso de re-engenharia. Põem gente da confiança deles.

Na minha idade, onde ia encontrar outro emprego? Eu e minha família, íamos viver da minha pensão? Depois de passar a vida inteira trabalhando para o português, a filha e o genro? Tomei muito esporro do galego, comi merda e humilhação!

Bateu com o copo no balcão e pediu outro. De segunda linha e com muito gelo.

– Pareço bobo, mas não sou. Boi manso! O velho economizava em tudo, até em controles. O genro é um babaca. Desde que desconfiei para onde iam as coisas comecei a fazer umas químicas com as contas.

Pode ser ilegal, mas é justo! Uma vida inteira trabalhando para eles e tenho o que? Um apartamento no subúrbio e um carro de dois anos! E o galego com a quinta em Portugal! Vinhedos… oliveiras… Meio Portugal com  meu trabalho!

Chutei o pau da barraca e fui embora!

Era só isso? Por causa disso viera ali, sentar-se ao meu lado? Enquanto ele pensava naquela revolução, eu antecipava o que aconteceu. Descobriram logo seus patéticos truques, mas ele já gastara tudo, com bebidas e mulheres… Já vi isso tantas vezes!

Nem sempre a experiência é tudo.

Virou-se para mim e duas lágrimas correram pelo seu rosto.

– Senti muito medo. O tempo todo. Ficava imaginando o que aconteceria se me pegassem. O vexame. O maior medo era da reação da minha família. Pensando o que iriam dizer.

Fez uma pausa, lembrando.

– O tempo todo eu me dizia que estava fazendo aquilo por eles. Que, logo, ia morrer e queria deixá-los garantidos. Meu pai morreu cedo, aos sessenta anos, de coração. Minha pressão é alta, meu colesterol ruim. Umas artérias meio entupidas. O cardiologista diz que não é preciso operar, mas tenho medo…

Encarou-me  e  voltou a olhar o espelho.

– Pensei em dizer que tinha ganho uma indenização. Era um domingo e estávamos todos almoçando juntos. Olhei para eles, para minha mulher,  meus filhos e noras, meus netos, tudo ali, discutindo, de mal com a vida e lembrei do medo que sentia. Aí, foi de repente, senti um estranhamento. Tão forte que pensei que fosse o coração. Mas não, era na cabeça.

Como se não os conhecesse. E uma raiva. Maior do que a sentia do galego. Lembrei dos anos de trabalho, ralando. E me perguntei, para que?

Com o galego, pelo menos era claro. Eu trabalhava e ele me pagava. Mal, é verdade. Mas não tenho muita instrução nem sou muito esperto. E de algumas coisas eu até gostava.

E eles? Aquela gente toda, estranha?

Engasgou. As lágrimas corriam pelo rosto e se refletiam como gotas nas garrafas.

– Nunca fui de pensar muito no porquê, fazia as coisas que tinha que fazer. Meu pai morreu do coração. Tinha uma alfaiataria no Méier, e um dia minha mãe foi embora. Assim, sem mais nem menos. Ele morreu de tristeza. Duvido que minha mulher morra!

Então, chutei o outro pau da barraca. Levantei da mesa e fui embora.

Fez uma longa pausa.

– Andei bastante por aí. Viajei um pouco. Conheci mulheres; mas o tesão na minha idade não é lá essas coisas. E sentia vergonha de pagar. Comi e bebi coisas finas…

Indicou o bar.

– Mas o meu paladar não é fino…

Ficou relembrando, enquanto as lágrimas secavam.

– Não adiantou nada. Continuo tão infeliz como antes.

Voltou a um passado distante.

– Meu pai dizia que a vida é um tecido, feito de muitos fios…

Gostei da imagem. Olhou-me longamente.

– Não dá para refazer a trama, não é?

Confirmei com a cabeça. Ficamos assim, olhando-nos muito tempo. E ele me disse:

– Você é muito atraente, sabe?

Já me disseram isso, mas não foram muitos.

Ele perguntou meu nome e disse-lhe Moira. Ele achou bonito, mas esquisito. Disse-lhe que era grego. Um antigo nome de mulher. Aquela que corta os fios. Tenho uma irmã que fia e outra que tece. Eu sou a que corta, a que acaba a trama.

Minha mãos são compridas, bem cuidadas mas gélidas, não há nada que eu possa fazer. Peguei-o pelo braço e quando estávamos na porta segurei a sua mão. Ele fez uma careta de medo e dor e um gesto para retirá-la, mas eu a retive. Não tenho lembrança de alguém que tenha retirado sua mão da minha. Ele  parou e me olhou longamente, respirando com dificuldade. Perguntou de novo meu nome e eu repeti. A explicação também. Perguntou  minha profissão.

– Sou…uma prestadora de serviços. Uma…agente funerária.

Só então ele me reconheceu.