Celular

Sentou-se na varanda e acendeu o charuto. Como vira o Velho fazer, aquecendo-o aos poucos.  Ao fim do dia, o Velho costumava fumar um e o escritório enchia-se de fumaça e perfume. Especialmente em dias de bons negócios.

E essa fora uma semana de cão! De segunda a quarta trabalhara como um desgraçado, noite e dia, para acertar a operação. Daisy reclamara porque não parava quieto na cama. Então, levantara para voltar ao computador. Mas, na quinta, estava tudo completo. Fizera e refizera todas as contas da engenharia financeira e tudo batia.

Fora, então, a glória. Seu chefe não estava e o Velho mandou chamá-lo, direto. Fez uma exposição como as que lhe haviam  dito que o Velho gostava. Seca, ao ponto. O Velho sabia tudo do Mercado e detestava que gastassem  seu tempo. Frases como “já via debentures antes de você nascer” eram lendárias na firma.

Ouvira-o, como sempre, com os olhos semi-cerrados e, ao fim, após o interrogatório, comentara :

– Bom. Muito bom.

Isso, por si só, já era o Céu. Elogios do Velho eram mais que raros, especialmente para juniores.

Depois, o Céu abrira-se em par.

–  Essa é uma operação complicada e há outros no mercado atrás dela. Como o Edgar está viajando, você fica diretamente responsável por ela.

Mais portas celestiais se abrindo.

– Estou vendo, aqui, que amanhã você tem que ir a Brasília. Vá. Amanhã, no fim da tarde, vou conversar sobre isso com os acionistas. Pode ser que tenhamos que alterar algumas coisas no fim de semana. Conto com você.

O Velho tirara da gaveta um telefone celular e um carregador. Um dos seus telefones. E pusera-o nas suas mãos. Para falarem no fim de semana.

Todas as emoções vieram juntas. Todo o passado condensado naquele momento. Missas de infância, D’Artagnan admitido entre os Mosqueteiros do Rei, Robin Hood sagrado cavaleiro pelo Rei Ricardo Coração de Leão. Tudo. Lera os clássicos e agora sabia o que  os heróis sentiam.

Revivendo o momento, pensou que fizera por merecer. Começara em um escritório de contabilidade, como auxiliar. Fizera uma faculdade noturna, trabalhando para se sustentar. No escritório aprendera mais. Tudo sobre a malandragem contábil e, mais tarde, fiscal. Safo, sempre fora. O negócio era aplicar a viveza aos negócios.

Um grande cliente o levara do escritório. Já ganhava bem para casar com Daisy, que namorava desde os tempos do Grajaú. Mas queria mais e concluíra que salário só não bastava. Para o que queria, só o Mercado.

Entrara no Mercado, por meio de um amigo que trabalhava com o Velho. Coitado; fora, mais tarde, despedido por transar com uma das secretárias. O Velho fizera sua fortuna inicial em obscuras transações com os militares, mas era um puritano feroz em matéria de sexo e drogas, especialmente quando relacionados com trabalho.

Agora, chegara lá. Morava na Barra, num condomínio moderno, com sauna, piscina e quadras de tênis e squash, com circuito de televisão interno, toda a segurança. Tinha um carro do ano. Nacional, é verdade, mas, quem sabe, para o ano pudesse comprar um Honda como o do vizinho. Certamente podia já ter comprado um celular. Mas receber o do Velho…

O celular fora a glória e mais, a porta para Raquel. Olhou para Daisy, que estava acabando de aprontar as crianças, Maurício Alberto e Patrícia Laura, para irem ao clube. Quando casaram, Daisy era cheinha, boa de apertar. Agora, de tanto malhar, se a mordesse, quebraria os dentes.

Raquel não. Ali tinha carne. Pena que fosse judia. E mais velha. Como era a frase? Cerca velha gosta de mourão novo! E que trepada! Bem diferente da burocrática papai-e-mamãe, Daisy virando para o outro lado para dormir, sem um suspiro. Até andara com dúvidas a seu próprio respeito. Mas Raquel acabara com as dúvidas.

Já se haviam  visto antes, na Bolsa e em reuniões para privatização. Antes, ele achava que era só ele que a tinha visto, pois ela não o reconhecia. Mas, não; depois, ela lhe dissera que se lembrava muito bem dele. Haviam estado juntos em Brasília, na reunião no Banco Central. Com sua cabeleira loura, na mesa cheia de homens, Raquel fazia vista. E falava muito, o que o irritava. Para se mostrar, ela tirara o celular da maleta, igual ao dos homens, e fizera uma ligação. Para comprovar que um dado que ele dissera estava errado. O pior é que estava mesmo. Mas, para não dar o braço a torcer, também sacara do seu celular e fingira telefonar. Para checar e, só então, concordar que o número dela era melhor. Perdera, mas marcara ponto. E os celulares eram do mesmo modelo.

Um dos lobistas no Congresso passara para apanhá-los e foram juntos para um briefing. Na discussão houve um racha, paulistas versus cariocas, e ele e Raquel, os únicos do Rio, haviam fechado posição juntos. Mas ser chamado de “o meu menino aqui” deixara-o muito mordido. No fim, para serenar, o lobista produzira um uísque doze anos, que rendeu bastante.

Com isso tudo, chegaram ao aeroporto em tempo apenas de pegar o último vôo. Vinha de Manaus e estava atrasado, sem previsão. Foram então para o bar e ela pediu um uísque. Ia pedir uma Coca mas decidiu acompanhar.

– Pensei que você fosse pedir um guaraná . Você é tão novinho !

Deixou sem resposta e desviou a conversa para o trabalho. Podia ser novo mas sabia de coisas de que ela nem suspeitava. E esmerou-se no inglês. E falou de operações.

Como imaginava, o interesse dela foi crescendo e crescendo. E foram ficando ali, bebendo e conversando. Até que o alto-falante anunciou que, por razões, como sempre, técnicas, o vôo estava cancelado.

Só restava pernoitar em Brasília e pegar o primeiro da manhã. Ao mesmo tempo, os dois sacaram seus celulares e disseram “tenho que avisar o Rio”. E desataram a rir, com a imensa graça da coincidência.

No táxi já foram de mãos dadas e, sem precisar combinar nada, foram para o mesmo quarto. Ele insistiu em carregar as duas maletas, mas com tanto azar que, ao entrarem no quarto, as duas se abriram, esparramando tudo pelo chão.

Abaixaram-se os dois e encontraram-se no carpete e, depois, na cama e até no banheiro.

Quase perderam o avião. Ela tinha um carro no Galeão, mas ele, para não dar bandeira, preferira voltar de táxi  (a firma pagava). Prometeram ver-se num futuro próximo. Sem compromisso. Como adultos, que sabem das coisas. Mas pretendia repetir. Breve.

Daisy e as crianças estavam prontas. Era uma sorte ter o celular, senão teria que ficar plantado ali. Patrícia Laura ficou encantada e logo pediu um. Maurício Alberto quis ver como funcionava e ele explicou, mas não o deixou testá-lo. Ficara horas carregando.

No clube recusou todos os convites para jogar. A cabeça pesava uma tonelada e o celular era uma ótima desculpa. Estava esperando uma ligação importante. No almoço comeu só uma saladinha, com a desculpa de estar engordando.

Mesmo assim, estava cochilando quando veio o grande momento. O celular tocou. Atendeu com a garganta apertada e, antes que pudesse falar, uma voz máscula, um pouco rouca, anunciou que aquela noite pretendia comer-lhe o cu. E mais várias partes da anatomia. Recuperou o fôlego e, engrossando a voz, anunciou  que havia um engano. Fez-se uma longa pausa e, em vez do esperado pedido de desculpas, ouviu apenas “vaca!”. E desligaram.

Quando Daisy perguntou quem era, respondeu apenas “engano”.

Voltaram do clube e foi tomar um chuveiro frio, para esclarecer as idéias. Quando estava se enxugando ouviu Daisy chamá-lo “Marcos Tenório!”. Quando Daisy usava o nome todo, a encrenca era grande. Meio molhado, abriu a porta e viu-a faiscante, com o celular na mão.

– Marcos Tenório! Esse telefone tocou e, como você estava no banheiro, atendi. Do outro lado havia um sujeito que me disse coisas que nem no Mangue imagino que se falem !

– E ?

– Bati o telefone, claro ! Para que tipo de gente você deu esse número, Marcos Tenório ?

E veio-lhe a resposta. Que não podia dar para Daisy. O Velho, fora do escritório, era um sacana ! Quem diria ! Sempre desconfiara de puritanos !

Tentou aplacá-la, protestando inocência e a ineficiência conhecida da Telefônica, especialmente em áreas high tech, como a telefonia celular.

Ficou vigiando o telefone. Imagine se Patrícia Laura recebe um chamado desses.

O resto do sábado passou incólume. Os amigos do Velho não telefonaram mas tampouco o Velho ligou. O celular ficou no carregador.

No domingo dormiu além da conta e, no café, Maurício Alberto, confidenciou-lhe, ao pé do ouvido, para que as mulheres não soubessem, que haviam passado um trote cabeludo no celular. Passou o resto do domingo com o telefone em baixo do braço, mas ele não tocou.

Quase não dormiu de domingo para segunda, tentando imaginar o que podia ter ocorrido com a operação. Talvez o Velho não tivesse encontrado os acionistas na sexta. Ou eles quisessem pensar durante o fim-de-semana. Ou, horror, o Velho tivesse passado mal. No fim das contas, naquela idade e com aquela vida sexual!

Seria discreto e não mencionaria os telefonemas para ninguém. Seria um segredo dele e do Velho. Uma cumplicidade, além dos negócios. Sentiu quase ternura pelo patrão.

Entrou cedo no escritório, mas já havia um recado do Velho, mandando-o subir. Achou que a secretária na ante-sala estava melhor disposta que de costume e não teve que esperar – dois bons sinais. Não levou papéis – só o celular. A operação tinha toda na cabeça. O Velho estava atrás da mesa, os olhos bem abertos.

– Na quinta-feira, disse-lhe que essa era uma operação complicada e confidencial. E que estava sob sua inteira responsabilidade. Na sexta-feira encontrei-me com os acionistas, que concordaram com a estrutura mas sugeriram algumas modificações. Essas modificações tinham que estar prontas hoje pela manhã, senão a operação não se realizaria.  Você era o único que podia fazer essas mudanças durante o fim de semana. Telefonei-lhe no sábado.

Os olhos apertaram e fez uma longa pausa. A voz tremeu um pouco.

– Atendeu uma simpática senhora. No meu celular. Dona Raquel Levi, que trabalha para um dos nossos competidores. Subiu na vida porque tem cabeça e xota. Fez-lhe grandes elogios. Grandes! Também deu vários palpites sobre a operação. Nossa operação. Alguns, até interessantes.

Estendeu a mão.

– Devolva. Vou mandar entregar para Dona Raquel e pegar o meu. E busque outro emprego. Mas não no Mercado, porque vão me pedir referências.

Os clássicos não o haviam preparado completamente.

O que fariam Robin Hood e D’Artagnan nessa situação ?