Genética
Conto de Fabio Erber
Suava. O ônibus só parou em frente ao Benjamim Constant e teve que voltar rápido. Desviou a custo de um cego. Já tinha saído de casa atrasado, como não conseguia sair na hora? Início de dezembro e já fazia aquele calor. Ela gostava da Urca, de passear no fim da tarde. Entrou pelo portão do Teatro. Não achava o papel nos bolsos. Ninguém no saguão, nem um cartaz para informar. As gotas de suor desciam até à calça.
No Teatro de Arena estavam colocando caixas de som. Parou para saborear o bom augúrio: tinham se conhecido lá, numa festa. Andava assim, dependendo de sinais.
A luz na Arena incomodava mas a sombra no corredor aladrilhado dava fôlego. Chegou no saguão da entrada principal. Um funcionário indicou o andar de cima. Subiu, tinha que ser devagar, tinha que parar de fumar. A capela estava aberta, cheia de flores. Ainda casavam. Achou o papel no bolso da camisa, grudado. Salão Pedro Calmon, como não lembrou?
Já tinha começado. Atrás da mesa alta, emoldurada pelo espaldar da poltrona pomposa, ela parecia pequena. Mas ainda não queria vê-la, precisava de calma. Deixou-se cair na última fila, mas era o único ali, o salão estava meio vazio e foi curvo, até encontrar gente. Ela não o viu – estava apontando uma tabela.
Achou um lugar na ponta, ao lado da janela aberta. Os ventiladores só jogavam o ar quente de um lado para o outro. Via o Teatro. Evitou as lembranças e fechou os olhos, esperando.
Detestava aqueles óculos remendados com esparadrapo mas não tinha jeito. Agora ela estava mostrando uma figura que até ele reconhecia: a dupla espiral do DNA. Tentou lembrar as explicações
Ela parecia a mesma. Fantasia, dez anos passam para todos.
Muita vontade de fumar, de tomar um uísque. Não adiantava ficar ali, esgueirou-se.
No banheiro pequeno e sujo ( a Universidade não mudava, nem os grafites) olhou a cara encovada. Dez anos passam para todos. Tinha cortado o rosto quando fazia a barba braba de quatro dias, agora ardia. As sobrancelhas juntas, os olhos escuros, fundos, o nariz adunco, a boca de lábios finos, a gente não envelhece, se agrava.
Aplausos. A guimba fez um arco luminoso, estrela cadente.
As perguntas eram por escrito. Devolveu o papel à mocinha que circulava. Duas frases. Saudações Universitárias! A genética é implacável ! Se ela não reconhecesse, podia sair e matar-se.
Pilha de papeluchos amarelos. Ela olhava a pergunta e depois repetia-a alto. Seu papel devia ser um dos últimos ou ela o tinha descartado. Pensou em ir embora.
Ela pigarreou e ficou olhando para o alto. Voltou a ler, limpou a garganta e disse que agradecia as saudações enviadas, procurando-o com o olhar. Ele ergueu um pouco a mão. Saiu para fumar.
Ela saiu cercada mas foi encontrá-lo no nicho da janela. As pessoas foram embora e ficaram os dois ali sozinhos.
Os dez anos tinham-lhe dado peso. Mas o oval do rosto continuava perfeito, olhos grandes boca e nariz pequenos. O cabelo estava preso num coque complicado, severo.
A roupa escura bem cortada fez sentir a camisa suada a calça sem pregas o tênis puído. Tirou rápido os óculos.
Ela o beijou no rosto e murmurou quanto tempo. O que queria que fizesse? Dez anos.
Tateando emoções em silêncio. Ele perguntou se tinha tempo para um café, ela acenou que sim. Nunca fora de falar muito.
O café, numa das quinas da Arena, continuava ruim. Ela comentou que ali nada mudava, ele lembrou a quantidade de cerveja que tinham tomado quando se conheceram mas ela não deu seguimento.
Sentaram no Teatro. Estava escurecendo e bateu uma brisa. Seguia a carreira dela, Oxford, Stanford, Oxford de novo. Feliz pelo sucesso. Ela reconheceu o agrado com um pequeno sorriso. Súbito, explodiu, você podia ter escrito, telefonado, ido lá!
Estavam dez anos de volta. Aos últimos meses. Mas ele não queria brigar. Concordou, mas ela não precisava dele. A resposta foi surpresa. Quem disse? Um arrepio sacudiu-a e acrescentou, pelo menos no início.
Ele estava ali por uma suspeita mas ela atalhou perguntando por ele, pela sua vida. Complicado. Enrolou. Falou dos empregos, agora era consultor, frila. Casamentos e separações. Sem filho, felizmente. Se ela visse os óculos com esparadrapo veria o seu sucesso. Se tivesse um filho seria um sentido na vida.
Ela disse que ia melhorar. Ele concordou. Começaram a testar as caixas. O som reverberava no seu estomago.
No saguão as pessoas desciam a escadaria, fim de aula. Convidou-a para jantar, um cheque sem fundos a mais, que diferença fazia? Impossível, tinha um jantar em sua homenagem.
Parados na porta, olhando o transito, ele achou que era a sua última oportunidade. Receber um sinal e, quem sabe, se orientar, tomar outro rumo, algum rumo na vida.
Perguntou se ela tinha casado. A cabeça sacudiu, sem olhar para ele. Mas uma revista a mostrava com um menino, num jardim. Um menino e um cachorro. O rosto do menino estava meio encoberto pelo braço.
Ela encarou-o:
Paul e Tubby. Paul é o menino. Paixão da minha vida!
Ele disfarçou e perguntou a idade. Ela olhou-o longamente e depois disse em voz neutra oito anos, uma produção independente, não se arrependia, melhor coisa que tinha feito na vida. Grande para a idade. Não, não tinha um retrato ali, mãe desnaturada.
Ele não insistiu. O sinal falhou, não veio, a vida era um lixo mesmo. Estava vazio.
Ela olhou o relógio. Tinha que pegar um táxi para Ipanema, queria uma carona? Ele mentiu que morava perto. Beijou-a no rosto e saiu em direção à Urca.
No hotel, ela tirou o retrato de Paul da carteira. O rosto fino, os olhos fundos, o nariz a boca, dez anos já a cara do pai, ele tinha razão, a genética era implacável.
Duende
A Herança Se me olhar no espelho, posso vê-lo. Descontando, claro, meus quilos a mais e cabelos a menos. Um homem naturalmente corpulento, cabelos escuros, olhos pequenos, o nariz grande e adunco. A boca larga, sempre ocupada, desde criança, com balas, cigarros, chicletes, o que...