Carlos Gadelha
Ex- aluno de Fabio | 19.2.2019 | Fiocruz, Rio de Janeiro
Tive a honra e o prazer de ter Fabio Erber como uma das principais referências em minha trajetória acadêmica e no âmbito das políticas públicas. Na verdade, Fabio Erber marcou toda uma geração. Entrei no Instituto de Economia em 1979, e ele já era uma referência quase que incontornável para quem queria tratar do tema da inovação, da política industrial, da política tecnológica, sempre vinculando esses temas ao tema do desenvolvimento. Então, acho que Fabio Erber foi um dos grandes que introduziram a questão da inovação, do desenvolvimento tecnológico, mas no contexto da dependência das trajetórias nacionais do desenvolvimento. Ou seja, ele tinha uma visão contemporânea, baseada em Shumpeter, que depois originou uma escola evolucionista e neoshumpeteriana, mas sem nunca esquecer a sua matriz cepalina de pensar o contexto concreto histórico, social e econômico da inserção do Brasil e da América Latina no esforço do desenvolvimento.
Eu queria marcar alguma coisa para além de uma descrição que já está tão bem relatada no livro coordenado pela professora Dulce Monteiro, pelo Luís Carlos e pela Helena Lastres, alguma parte mais intangível, porque o Fabio foi o meu orientador no Doutorado. A tese foi concluída em 1999, no final dos anos 1990, um período liberal, e, na verdade, para mim, aquilo foi o ápice da minha relação com ele. Debatíamos desenvolvimento em um contexto adverso, mostrando como é nestes momentos que precisamos ainda mais avançar nas reflexões e na construção de propostas de futuro.
Antes de tudo eu via o Fabio Erber como um pensador do desenvolvimento, como um intelectual. Ele tinha uma cultura vastíssima, que englobava desde Literatura e Filosofia até Ciência Política, ou seja, ele tinha uma virtude, hoje tão rara, de ser um economista político para valer. Ele era da vertente da economia política onde as questões das instituições, do Estado, e da formação social brasileira e da própria cultura eram fundamentais. Ele era muito erudito! Pensei nele como orientador por sua visão muito mais ampla do que a pobre visão dos economistas. O Fabio Erber tinha essa marca.
Outra coisa muito importante: o Fabio tinha várias tiradas e frases que ele trazia da Filosofia, de Nietzsche, no meio de uma conversa. E tem uma coisa que eu acho muito especial no meio de uma orientação… A orientação era sempre no Jardim Botânico, na casa dele, e era sempre uma delícia. Eu me lembro de uma vez em que a gente estava debatendo um assunto sobre desenvolvimento. Quando eu olhei, o Fabio Erber estava, assim, embaixo da estante, procurando um livro, jogado no chão, porque ele queria me mostrar um livro e estava querendo se lembrar da referência. A Ana entrava de vez em quando na sala, ele já chamava pra conversa… Ele falava das filhas passeando nas trilhas no Jardim Botânico… Ao mesmo tempo, era rigoroso…
Ele era um verdadeiro intelectual, não precisava formalismo nenhum porque a sofisticação estava na alma dele. Quando ia encontrar meu orientador, era como se eu estivesse indo para um lugar meio diferente, uma coisa meio fora do dia a dia. Eu estava indo para um templo. Um templo de orientação. O templo de um intelectual me dando aquele tempo de uma interação. Ele tinha uma afabilidade imensa. Quando aceitou me orientar, ele aceitou uma certa relação de proximidade, cumplicidade e mesmo de amizade. Aquele professor, aquele ícone, jogado no chão, no meio de um monte de livros para achar uma referência para me emprestar o livro.
Há uma outra marca que hoje nos faz tanta falta. O Fabio Erber respeitava a diversidade. Estamos em um momento do País em que cada um, a própria intelectualidade brasileira está muito concentrada nos seus campos cognitivos fechados. Dentro do desenvolvimento tem o novo desenvolvimentista, os desenvolvimentistas sociais, ou seja, um não conversa com o outro, um sataniza o outro… O Fabio era diverso, ele respeitava e lia os autores das mais diversas tendências, e isso era muito interessante. Ele tinha a literatura do Sistema Nacional de Inovação, autores como o Zisman, que faziam críticas ao Sistema Nacional de Inovação; o pessoal do Novo-Institucionalismo, que muitas vezes tinha um referencial neoclássico, ele estudava e dialogava> Ou seja, ele recusava ser colocado em uma caixinha fechada que hoje aprisiona tanto o pensamento dos economistas. Hoje não estamos fazendo muito jus a estes intelectuais que olhavam a diversidade com respeito, e não com uma desqualificação preliminar do debate e troca de ideias.
Ele te deixava confortável para pensar e provocava a diversidade, não deixava que eu entrasse em lugares comuns. E provocava com muito humor, eu ficava meio envergonhado, porque ele colocava as contradições do pensamento, trazia autores que não eram da mesma escola, ele não nos deixava ficar na igrejinha do pensamento, sem poder avançar. Ele compartilhava um curso com o Castro no Instituto de Economia, eles eram muito ligados. Ele também era muito amigo do professor José Cassiolato, ou seja, participávamos de uma mesma turma. Mas até por um certo respeito formal excessivo do então jovem Carlos Gadelha, nos aproximamos mesmo no momento da orientação.
Algumas questões são muito marcantes na trajetória dele e na trajetória acadêmica que ele trouxe para mim. A primeira questão é a de trazer a inovação com uma visão muito mais ampla do que apenas técnica – a inovação como um processo social e que lidava com interesses. A parte da minha tese de que ele mais gostou foi um parágrafo, ou dois, em que eu usei um pouco a noção do Peter Evans, de Embedded Autonomy, em que eu falei que o mais difícil para uma política industrial e de inovação era a ruptura com a base social que te prendia ao passado. Quando eu falei isso, ele quase falou “eureca!”. A inovação não como técnica, mas como um processo social que envolve interesses, e que quebrar os interesses do passado é o principal entrave para se avançar para o futuro em uma sociedade tão desigual, arcaica e conservadora como é a sociedade brasileira, em que somos inseridos no sistema global de clara luta por hegemonia – no caso da relação particular do Brasil com os Estados Unidos. Isso era sempre problematizado.
O Fabio Erber foi o primeiro autor que apontou que na área das telecomunicações, da eletrônica e da informática iria haver uma convergência do que ele chamava “complexo eletrônico”. Ele foi um precursor ao pensar o campo das tecnologias da informação, da informática e da eletrônica. Anos depois, vim a utilizar este mesmo insight para o campo da saúde, quando formulei a ideia do complexo econômico-industrial da saúde. Ou seja, nós temos uma série de tecnologias que parecem divergentes, mas elas compartilham um ambiente social, um ambiente institucional, um ambiente de interesse e um ambiente técnico interdependente, que é o que caracteriza o sistema. Não vi nenhum autor que fez isso antes dele – e acho que ele não teve o devido reconhecimento por isso. Isso foi em uma aula, ele era muito generoso! Em um texto, ele fala da convergência tecnológica, mas acho que ele mesmo não se dava conta da sacada que estava tendo e que depois virou arrebatadora. Hoje você pega um aparelho celular e a convergência está toda lá dentro. Ali é telefone, computador, eletrônica, telecomunicações. O Fabio apontou isso lá atrás no início dos anos oitenta. Eu me lembro que isso começou com aqueles Textos para Discussão do Instituto de Economia – que depois deve ter virado artigo. Ele apontou esse processo sistêmico na indústria de informática antes do modismo, preservando a característica de estrutura produtiva de dependência, da dificuldade que se tem para avançar no desenvolvimento.
O outro ponto a destacar, que mostra a diversidade do Fabio Erber, é sua visão da convenção para o desenvolvimento. Acho que são, talvez, os últimos trabalhos. Eu vou dizer: “a fixação dele”, na fase final da vida, era a convenção. Existe um processo social maior do que a técnica, um processo cultural, social, político, institucional, maior do que a técnica. Houve momentos desenvolvimentistas claramente autoritários, militares, e ele apontava aquilo precocemente. Ele falava: “Em algum momento, ao longo dos anos oitenta, houve uma ruptura da convenção do desenvolvimento no Brasil”. E quando ele fala da convenção, não é só a convenção cultural. Ele falou o seguinte: havia um arranjo político, institucional, social, era quase um pacto possível na sociedade brasileira em prol do desenvolvimento. Nós podíamos discordar sobre equidade, sobre a questão regional, até sobre democracia, mas havia uma convenção, uma convergência em torno da ideia sobre o desenvolvimento. E quando estabelecem essa ideia da convenção, uma certa rotina do desenvolvimento, uma certa institucionalidade do desenvolvimento, é que se consegue fazer projetos nacionais. Projeto nacional não é um papel escrito, é uma convenção enraizada na sociedade.
E foi isso que a gente perdeu desde os anos 1980, e até hoje nós, progressistas, do pensamento de esquerda, não conseguimos reconstruir. Seu desprendimento permitia a ele ver que, independentemente dos modelos de desenvolvimento mais ou menos autoritários, mais ou menos inclusivos, havia uma convenção que se rompeu a partir dos movimentos dos Estados Unidos – Paul Volcker em 1979, do fim do Milagre Brasileiro e depois do II PND. É como se ele falasse: “Ali se rompeu a convenção”. Mesmo no campo progressista, não conseguimos recriar uma convenção política, social e institucional em torno de uma trajetória do desenvolvimento.
Fabio Erber trabalhou as questões da política de inovação, da política tecnológica ligada ao desenvolvimento; de uma visão sistêmica – de como ele tratou a questão do complexo eletrônico – a partir de uma convergência cognitiva, em que a pauta era uma abordagem sistêmica -, e a de sua visão para um pacto social pelo desenvolvimento. Essas questões e temas dão luzes decisivas dos pilares que a gente precisa reconstruir para voltar a se desenvolver.
O Brasil parece que não aproveitou alguns momentos históricos, fazendo mais do mesmo. Ficamos um pouco entorpecidos pela questão das oportunidades das commodities, mas não conseguimos recolocar uma nova convenção do desenvolvimento que aliasse o desenvolvimento à superação da dependência. Um dos seus textos clássicos, “Technological dependence and learning revisited”, ele enfatizou a questão do aprendizado e da inovação no contexto da dependência. A nova convenção, que nós não conseguimos tornar hegemônica, política e socialmente, era uma convenção que aliasse a inovação produtiva, a inovação e a democracia e a inclusão social. O grande desafio era como reconstruir uma convenção, mas que não fosse a mesma que pautou o desenvolvimento brasileiro dos anos 1980, que emergisse uma convenção do desenvolvimento que incluísse o aspecto social e a sustentabilidade ambiental como inerentes em uma nova convenção do desenvolvimento.
Fabio Erber traz uma agenda na sua trajetória. Vamos ler os textos recentes, mas não vamos esquecer os clássicos. Fabio Erber é um dos grandes pensadores brasileiros do desenvolvimento, utilizando uma literatura diversa, que envolve desde a tradição cepalina, da tradição schumpeteriana, da tradição marxista e keneysiana, até mesmo a incorporação de escolas de outras vertentes, como a escola institucionalista. As pistas que ele dá relacionadas à tecnologia, à inovação, à política de desenvolvimento, à visão sistêmica e à necessidade de um pacto político e institucional na forma de uma convenção pelo desenvolvimento, são, no fundo, a agenda do presente, a agenda na qual devemos nos se debruçar para poder voltar a repensar um projeto de desenvolvimento para esse país.
Aquela figura afável, fácil de lidar, sem nenhum tipo dos vícios e das formalidades tão bobas que, muitas vezes, permeiam a área acadêmica, aquela pessoa com liberdade de pensamento, talvez tenha nos deixado uma agenda que não foi importante apenas para pensarmos o passado, é uma agenda decisiva para pensarmos o nosso futuro.
Estamos em um momento de retrocesso. Estou aqui com quase 60 anos sendo iluminado pelo Fabio Erber. Espero que faça jus pelo menos um pouquinho a isso, mas temos que ter fôlego, para depois de tanta luta, tanto trabalho, tanto envolvimento nas políticas públicas, refazer tudo de novo.
Do período em que ele foi meu orientador, me lembro do Fabio com as duas filhas e o filho dele. Era um ambiente muito cultural, onde nos sentávamos em uma varanda na casa dele, havia muitas plantas, os filhos entravam. Não era aquele padrão de pai e filho, de o filho entrar querendo se provar, querendo ser julgado pelo pai. Eu sentia que ele era amigo dos filhos e da mulher dele, não havia uma relação formal de pai e filho ou uma relação onde um detém o conhecimento e o outro é um aprendiz. Isso permeava uma visão intelectual do mundo de um economista com uma visão das artes, uma visão da juventude, uma visão que Incluia o teatro, a música…. Muitas citações que ele usava vinham do teatro, citações de Pirandelo…. Era algo assim que mostrava um pouco a visão de mundo que ele tinha, que não se pode reduzir à nossa triste ciência, à ciência econômica, a planilhas e, sim, ampliar ao estudo do campo para a própria sociedade e para a humanidade como elementos decisivos de nossa perspectiva do desenvolvimento.
Fabio Erber falava do mito de Sísifo, que sempre lutava para chegar ao alto de uma montanha, carregando um peso nas suas costas, e quando ele estava chegando, ele voltava para o início da montanha, as pedras rolavam e ele voltava para o início da montanha. Ele terminava sua citação do Sísifo dizendo: “O Camus falava: Sísifo era feliz”. Para mim isso é marcante, ou seja, não lutar e se render é que traz a infelicidade. Lutar pelo desenvolvimento, mesmo com dificuldade e retrocesso nos dá energia e nos torna feliz. Eu acho que essa felicidade é ultra importante. Ele não via os momentos de dificuldade como momentos de depressão. O Fabio não era nada deprimido. Ele provocava, mas ele colocava essa perspectiva: a luta do desenvolvimento é difícil, muitas vezes achamos que é inglória, mas ela é a única que pode nos trazer felicidades como economistas comprometidos com uma sociedade melhor. Ele marcava isso citando não um Prêmio Nobel de Economia, mas um escritor – Albert Camus.
Isso me marca muito a partir da relação com a família dele. Com Ana, esposa dele, com as duas filhas e com o filho, onde eu tive o privilégio de poder desfrutar um pouquinho. Há um pouco da digital até deste privilégio que tive na minha trajetória: eu trabalhei o regional, trabalhei o cultural, trabalho no campo da saúde. Saúde é qualidade de vida, saúde não é medicamento, é muito mais. Imputo, em grande parte, essa visão mais humanista, que acho que consegui desenvolver um pouquinho, ao legado que o Fabio Erber me deixou mesmo sem saber.
Alvaro Carlos
Quando terminei o 4° ano do então Ginásio, no Colégio Santo Inácio, fiz concurso para o Colégio Naval. Cursei os dois anos do Científico comprimido da instituição militar, passei automaticamente para a Escola Naval, cursei mais um ano e pedi baixa. Como o MEC não reconhecia o Científico...