Doida
Espreguiçou-se. Fora bom. Muito bom. Nunca fora tão bom assim, da primeira vez. Olhou-se no espelho do teto. Satisfeito, notou a barriga lisa, a musculatura do peito, as pernas fortes. Àquela distância não era possível distinguir nitidamente o rosto, mas congratulou-se pela plástica. Ninguém daria a idade que tinha.
A moça mexeu-se um pouco, aconchegou-se e disse, com a boca colada no seu peito, os olhos fechados:
– Detesto esses espelhos.
Sentiu-se envergonhado, pego em flagrante. Ela acrescentou, com os olhos sempre fechados:
– Tenho muitas cicatrizes.
Ele passou os dedos pela pele das costas e olhou-a no espelho. Apenas as marcas do biquini. A pele lisa. Ela pareceu adivinhar seu pensamento.
– Minhas cicatrizes são por dentro.
Ele assustou-se e ela acrescentou:
– E têm zíper. As cicatrizes. Quando puxam, elas abrem e sangram.
Ele suspirou profundamente e pensou, quase falando.
– Ai meu Deus! Outra doida! Por que só arrumo doidas?
A respiração dela indicou que voltara a dormir. Sem mexer-se, pelos espelhos, examinou-a. Voltou a olhar-se. Veio-lhe, inesperado, o medo.
E se fosse doida mesmo? Não sabia coisa alguma a respeito dela. Mal o seu nome. Que podia ser falso. Os cabelos eram tingidos.
Lera a história de uma serial killer que arrumava homens em hotéis e os matava. Crimes perfeitos. E com mutilações. E se ela fosse uma serial killer? Sentiu uma contração nos genitais.
No espelho identificou uma tatuagem na omoplata. O desenho era pequeno e não conseguia percebê-lo. Lentamente, deslocou-se até poder ver. Uma caveirinha, com duas tíbias cruzadas. O medo virou pânico.
Conseguiu controlar-se e, devagar, com todo o cuidado, desvencilhou-se do abraço e levantou-se. Ela murmurou algo e abraçou o travesseiro.
A bolsa estava no chão, do lado dela. Sem fazer barulho no carpete espesso, apanhou-a.
Trancou-se no banheiro e abriu a bolsa. Era uma bolsa bastante grande. No fundo, preto, com brilhos sinistros, estava o revólver de cano curto. Sentiu a contração no estômago, a boca seca, um estampido nos ouvidos. Olhou-se no espelho e não se reconheceu. O medo era ruidoso.
Pôs uma toalha na pia e colocou o revolver em cima, com cuidado para não fazer barulho. Foi procurando e achou o canivete suíço. Abriu todas as lâminas. Tesourinha, lixa, lâmina pequena. Mas a outra lâmina, a grande, era de bom tamanho. E afiada. Enfiada no pescoço, cortaria a carótida. Um golpe só seria suficiente. Depois, poderia cortar o resto. Ou até antes, ainda vivo, sentindo.
Sentou-se na privada e, aos poucos, controlou-se. Agora sabia com quem estava lidando. A questão era, o que fazer? Guardou o revolver e o canivete na bolsa e, escondendo-a atrás de si, voltou para o quarto. Ela continuava dormindo, de bruços. Colocou a bolsa de volta onde a achara.
Podia vestir-se em silêncio e fugir. Mas ela podia acordar. E não podia sair do motel sem ela. Não ia dar certo.
Podia sair com ela e, na volta, parar numa delegacia de polícia e entregá-la. Mas não vira nenhuma delegacia no caminho. Se desviasse e ela percebesse, podia dar-lhe um tiro ou esfaqueá-lo. Sentiu o pânico voltando.
Ela virou-se na cama, mas não acordou. Continuava abandonada. Inerme. Podia domina-la. Sentar-se em cima dela, prendendo-lhe os braços com os joelhos. Sufoca-la com o travesseiro, até que ela desfalecesse. Sem matá-la. Depois, seria fácil. Podia amarrá-la, amordaçá-la, pagar o motel, colocá-la no carro e entregá-la na delegacia.
Mas o que aconteceria na delegacia? Ela podia negar que fosse uma serial killer. Que provas tinha? Quem acabaria preso seria ele.
A solução era leva-la com uma confissão. Tinha um gravador portátil no carro, que usava para ditar memorandos. Depois que a tivesse amarrado, seria fácil. Havia massagens em partes do corpo que causavam dores terríveis e não deixavam marcas. Isso ele sabia por experiência. Com o olhar identificou as partes. Sentia o suor nas mãos.
Ou, quem sabe, não entregá-la na delegacia? Seria um escândalo. Todos os jornais iriam comentar o caso. Todos. Teria que dar depoimentos, participar do processo. Insuportável. E tinha um viagem marcada para o dia seguinte. E para que? Psicopatas são incuráveis. Ele, a sociedade, estariam melhor se ela morresse. Depois de confessar, claro. Seria fácil. Não precisaria usar o revolver, nem o canivete, que sujariam tudo. Era só sufocá-la com o travesseiro. Ela se debateria um pouco…
Dispor do corpo seria fácil. Havia tantos precipícios perto. E nada os ligava. Perfeito.
Sentiu um calor no corpo, irradiado do sexo, e relaxou, fechando os olhos.
Ela deu uma risada. Estava apoiada nos dois travesseiros. Sentou-se na cama e sacudiu os cabelos, como os cachorros quando saem da água. Pegou a bolsa, foi até ele, fez-lhe uma carícia no rosto com a ponta dos dedos e foi para o banheiro.
Ouviu o barulho da descarga e, depois, o de água correndo. Ela colocou a cabeça para dentro do quarto e disse:
– Vou tomar um banho. Se quiser pode entrar.
Hesitou longamente. E se ela o estivesse esperando, com o revólver na mão? Ou escondida atrás da porta, com o canivete? Ouviu-a chamar seu nome. Talvez ela não desconfiasse de que ele descobrira seu segredo.
Ela estava na banheira, a bolsa ao lado. A banheira cheia, via-lhe o bico dos seios e a mancha escura do púbis. Sentou-se atrás dela e colocou as duas mãos nos ombros. Seria fácil empurrá-la.
Ela esfregou a nuca contra suas mãos. O roçar dos cabelos molhados contra os pulsos provocou-lhe um arrepio.
– Isso, massageie aí. Está tão tenso… E’ o meu trabalho, que é muito estressante. Trabalho na Polícia Federal.
Virou-se e olhou-o. Sem perceber, ele massageava-lhe os ombros.
– E você, faz o que?
Atrapalhou-se e murmurou.
– Sou um executivo.
Ela riu.
– Hoje em dia todos são. Venha, executivo, execute-me!
E puxou-o para dentro da banheira.
Morto
Quase morreu. Estivera no banho - um longo chuveiro. No banho, dizia sempre, tinha suas melhores idéias Era um lugar protegido. Na verdade, estava furiosa. Também se sentia culpada por estar furiosa. Enfim, era uma mulher liberada, madura e independente e sabia que essas coisas acontecem com todo mundo. Com...