Inovação e desenvolvimento: a força e permanência das contribuições de Erber
Helena M. M. Lastres, José Cassiolato, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.
The text examines some of Fabio Erber’s central contributions to Latin-American thought on development, technology and policy – the importance of endogenizing technical progress, the systemic nature and the local specificities of the innovation process, etc. and the role of the State in these processes. This recalls Erber’s discussion on the function of explicit and implicit policies; aspects of macro, meso and micro innovation; technological and economic relations of Latin-American countries with the most advanced countries and transnational corporations located there; the capacity of local companies to acquire technological know-how; and the limitations of using foreign technology as a focus and the main mechanism for local capacity-building. The text argues that Erber’s ideas, besides representing a pioneering contribution to understanding the circumstances that restricted the creation of production and innovative capacity in Latin-American economies over the last century, are still extremely useful in understanding the limits of current policies, dilemmas and opportunities for Brazilian development.
1. Introdução
As noções de que o desenvolvimento econômico e social resulta de mudanças qualitativas e de que nessas transformações a endogeneização da capacidade de promover inovações tem um papel central incluem-se entre as principais contribuições da abordagem estruturalista latino-americana. Surgidas no debate que teve lugar ao fim da Segunda Guerra Mundial, essas noções se intensificaram com o reconhecimento dos limites do processo de substituição de importações nos anos 1960, entre outros aprendizados práticos e teóricos, sofrendo aperfeiçoamentos que as revigoram até os dias de hoje. A sua prevalência é reconhecida, pois, apesar de inúmeras tentativas de promover capacitações científico-tecnológicas, as estruturas produtivas dos países latino-americanos, incluindo o Brasil, continuam a apresentar fragilidades na montagem de uma estrutura inovativa autóctone e dinâmica. Fabio Erber foi tanto um dos pioneiros como um dos expoentes nesse debate. Produziu, especialmente nos anos 1970 e 1980, contribuições clássicas que ainda se mostram atuais e valiosíssimas para se compreenderem os processos de desenvolvimento tecnológico na região, seus problemas e limitações e os impasses que dificultam e restringem uma efetiva incorporação virtuosa do progresso técnico nas economias latino-americanas.
Interagimos com Fabio Erber em diferentes circunstâncias e situações. O papel da tecnologia nos processos de desenvolvimento, a importância das políticas públicas e privadas e o papel dos diferentes atores, nacionais e estrangeiros, no desenvolvimento de países como o Brasil foram objetos de inúmeras conversas e discussões. Com Cassiolato, durante 1977-1978, na Universidade de Sussex, Inglaterra, tanto durante as atividades formais da universidade quanto em longas caminhadas nas colinas de Falmer, Brighton; durante 1980-1981, no Instituto de Economia da UFRJ; e, posteriormente, quando ambos participaram da constituição da nova institucionalidade governamental, que resultou na criação do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), no qual ambos ocuparam cargos, entre 1985 e 1988 – Erber como secretário executivo adjunto e Cassiolato como secretário de planejamento. Lastres, nessa época, chefiava o Núcleo de Novos Materiais, também ligado ao novo MCT, que tinha como ministro Renato Archer, e vice-ministro, Luciano Coutinho. Uma nova rodada de interação ocorreu nos anos 1990, quando nos reencontramos no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Este texto pretende discutir algumas das contribuições centrais de Fabio Erber ao pensamento latino-americano sobre desenvolvimento, tecnologia e políticas. Objetiva-se extrair elementos considerados válidos e capazes de ampliar o entendimento da questão do desenvolvimento produtivo e tecnológico, assim como suas implicações para a política. Tais contribuições dizem respeito à importância da endogeneização do progresso técnico, do caráter sistêmico e das especificidades locais do processo de inovação e do papel do Estado nesses processos.
Em primeiro lugar, visa-se resgatar a discussão que Erber realiza sobre as necessárias e inevitáveis relações econômicas e tecnológicas dos países latino-americanos com os países mais avançados e com as corporações transnacionais lá sediadas. Em segundo lugar, e de forma articulada, sobre os condicionantes do aprendizado tecnológico por parte de empresas locais e as limitações da utilização de tecnologia estrangeira como foco e mecanismo principal dos processos de capacitação local. Em terceiro, a forma como Erber analisa o papel das políticas explícitas e implícitas e os aspectos macro, meso e microeconômicos da inovação.
O artigo argumenta que essas ideias representaram uma contribuição significativa à compreensão dos condicionantes que restringiram a endogeneização do progresso técnico por parte das economias latino-americanas nos anos 1970 e 1980, ao contrário do sucesso alcançado por diferentes economias asiáticas, como o Japão e a Coreia do Sul. Ao retomar as características fundamentais da situação brasileira na segunda década do milênio, percebe-se que essa contribuição permanece extremamente útil para se compreenderem os limites das políticas de inovação, os dilemas e as oportunidades do desenvolvimento tecnológico.
Do ponto de vista conceitual, o texto vale-se da abordagem de sistemas de inovação como elemento central do processo de desenvolvimento econômico e social. Essa abordagem, conforme utilizada pela RedeSist, articula a abordagem neoschumpeteriana com o estruturalismo latino-americano, em especial no que se refere à centralidade do progresso técnico nos processos de desenvolvimento.1
O estudo está organizado da seguinte maneira. Na segunda seção, discutimos a questão da endogeneização do progresso técnico. Na terceira, os condicionantes e limites do aprendizado por parte de atores econômicos e sociais na América Latina são objeto de análise. Na quarta seção, debatemos a importância de atividades portadoras do progresso técnico e o caráter sistêmico do desenvolvimento tecnológico e da inovação. O papel dos diferentes atores empresariais no sistema nacional de inovação é analisado na quinta seção; já a importância das políticas públicas e o papel do Estado são discutidos na sexta. Nas conclusões, é enfatizada a relevância das ideias de Fabio Erber no contexto atual da globalização dominada pelas finanças.
2. Desenvolvimento e Endogeneização do Progresso Técnico
As principais contribuições de Fabio Erber produzidas a partir do início dos anos 1970 enfatizaram a necessidade de endogeneização do progresso técnico como fator fundamental do processo de desenvolvimento brasileiro. Elas constituíram parte importante do debate sobre a insuficiência da industrialização na qualidade de elemento transformador das estruturas econômicas e sociais do país. Erber apontava que o modelo de industrialização adotado, com base na substituição de importações, mostrava-se incapaz de resolver os sérios problemas brasileiros de desigualdade, em especial de incorporar a população brasileira de baixa renda. Na mesma linha do economista Celso Furtado, Erber sustentava que a importação de tecnologia era reforçadora de problemas, na medida em que as tecnologias trazidas – intensivas em capital – haviam sido desenvolvidas para países com diferentes condições e dotações de fatores [Erber (1972)].
Um dos pontos centrais do pensamento estruturalista latino-americano é que as mudanças na economia ocorrem por meio de descontinuidades (geralmente de caráter tecnológico) que afetam, e também são afetadas, pela estrutura econômica, social, política e institucional de cada nação.
Nessa perspectiva, o desenvolvimento é considerado processo único, não linear e não sequencial. É, portanto, muito criticada a hipótese de alcançar o desenvolvimento por meio de processos de catch-up a partir da importação, reprodução e adaptação de técnicas supostamente superiores de desenvolvimento para outros contextos históricos.2
A mobilização do progresso técnico e a capacidade de tornar endógenos os processos de inovação são consideradas as principais determinantes da dinâmica de acumulação capitalista e de seu desenvolvimento. Os avanços (produtivos, tecnológicos, organizacionais, institucionais etc.) resultantes de processos inovativos são tidos, assim, como fatores básicos na formação dos padrões de transformação da economia, bem como de seu desenvolvimento de longo prazo.
As nações que, historicamente, se colocaram à frente do processo inovativo tenderam a ser mais dinâmicas e competitivas, obtendo melhor desempenho econômico e maior poder geopolítico. Dessa forma, foram se estabelecendo as linhas divisórias entre os que estão capacitados a promover ou participar ativamente da dinâmica da inovação e de desenvolvimento e aqueles que foram, ou tendem a ser, deslocados e marginalizados. Freeman (1988), o decano dos autores da corrente neoschumpeteriana, afirma que o hiato temporal entre inovadores e imitadores está positivamente relacionado à sustentação do fluxo de inovações pelos inovadores e à fragilidade das condições necessárias para inovar nos países imitadores. As “assimetrias tecnológicas” agem, ao mesmo tempo, como uma barreira ao acesso às novas tecnologias e como um novo incentivo à inovação para aqueles (empresas, organizações ou países) que estão liderando o processo tecnológico.
Furtado (1983) apontava que, uma vez estabelecido o padrão de apropriação do produto social, o comportamento dos agentes dominantes – organizações e países que controlam posições estratégicas – passa a ser guiado pelo propósito de conservar os privilégios alçados e de que desfrutam. Dessa forma, compreendia a subordinação da inovação aos processos de acumulação e competição capitalista, visando perpetuar e intensificar a reprodução de assimetrias internacionais econômicas, tecnológicas e de acesso ao conhecimento e ao aprendizado.
A visão que Fabio Erber enfatizava, já em seus trabalhos dos anos 1970, tinha como ponto fundamental essa mesma noção de que a orientação dada ao desenvolvimento tecnológico relaciona-se às especificidades e interesses das nações que lideraram esse processo. Essa percepção ressalta a descontextualização e inadequação dessas técnicas ao conjunto de recursos produtivos disponível nos países menos desenvolvidos, entre outras limitações [Erber (1972; 1977)].
Na esteira de outros autores latino-americanos, como Octavio Rodríguez e Celso Furtado, e como apontado por Prado (2011), Erber correlacionou a importação de padrões de consumo no Brasil à importação de tecnologias estrangeiras, impossibilitando o desenvolvimento de tecnologias adequadas às condições brasileiras. Em tal contexto, as empresas de propriedade local tiveram um papel subordinado tendendo a utilizar, de forma defensiva, o licenciamento de tecnologias estrangeiras para poder competir com as filiais de empresas transnacionais.
Em texto que tinha como objetivo principal realizar uma comparação das experiências de desenvolvimento tecnológico e suas políticas no Brasil e em países capitalistas centrais, Erber enfatizava a importância de avançar o entendimento das novas formas de competitividade, assim como do papel do progresso técnico, das empresas transnacionais e seus oligopólios:
foi só após a II Guerra Mundial que os economistas passaram a dar mais atenção às condições que proporcionam o progresso técnico, abandonando a visão do desenvolvimento tecnológico como um fenômeno exógeno à esfera econômica. Subjacente a esse novo interesse estava não apenas a intensificação do ritmo de inovações, como o reconhecimento da expansão dos mercados organizados de forma oligopólica, onde a constituição de barreiras à entrada e a competição com base na diferenciação de produtos eram fortemente influenciadas pelo progresso técnico. Especialmente importante nesse contexto foi o reconhecimento de que um ator passara a desempenhar papel de importância crescente no cenário mundial: as firmas multinacionais [Erber (1980, p. 10)].
3. Assimetrias de acesso ao conhecimento e ao aprendizado
Fabio Erber discute, de forma pioneira e em diversas ocasiões, os condicionantes e limites do aprendizado por parte de atores econômicos e sociais na América Latina. Particularmente relevantes são duas de suas contribuições: a tese de doutorado sobre desenvolvimento tecnológico no caso de bens de capital no Brasil [Erber (1977)] e um texto onde ele comenta e critica as literaturas da dependência latino-americana e a de inspiração neoclássica sobre aprendizagem [Erber (1983)]. Erber aponta como os diversos tipos de assimetria – particularmente as de poder econômico e político – limitam o aprendizado local e as possibilidades de implementar estratégias de desenvolvimento autóctone. Ressalta especialmente as limitações de pôr em prática os conhecimentos adquiridos por meio de licenciamento de tecnologias externas.
Nesses trabalhos, Erber já sugere que as assimetrias tecnológicas são apenas um dos elementos de assimetrias mais amplas e complexas, as quais implicam a impossibilidade de acessar, compreender, absorver, dominar, usar e difundir conhecimentos. Reforça as percepções de que, na grande maioria dos casos, mesmo quando o acesso à nova tecnologia torna-se possível, esta não é adequada à realidade dos países periféricos e de que estes não dispõem de conhecimentos suficientes para fazer uso adequado dessa tecnologia. Isso porque as necessárias capacidades produtivas e inovativas nem sempre estão disponíveis ou suficientemente desenvolvidas. Assim é que, ao discutir as características e impactos das transformações associadas ao desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicações (TIC), aponta a ampliação da separação entre Norte e Sul e a criação de novas formas de divisão do desenvolvimento muito mais sérias do que a tão discutida divisão digital. Arocena e Sutz (2003 e 2005) avançam essa conclusão, argumentando que as novas formas de divisão do conhecimento passam a constituir o aspecto maior da problemática do subdesenvolvimento.
De fato, a importância do conhecimento, assim como da forma e dos condicionantes que cercam seus processos de difusão, aprendizado e acumulação, é destacada por diversos autores latino-americanos explícita ou implicitamente. Furtado (2003, p. 89), por exemplo, aponta que:
o avanço da ciência experimental (e do progresso técnico) é facilitado pela secularização do saber e pela difusão dos conhecimentos que acompanham a ascensão da burguesia, atuando como um mecanismo multiplicador, abrindo o caminho à revolução tecnológica.
Já em 1949, o economista Raúl Prebisch destacava que os problemas da produtividade e do desenvolvimento nos países periféricos também estão relacionados à questão da capacitação e que esta se relaciona intimamente à própria evolução do desenvolvimento tecnológico, constituindo um dos contrastes do grau muito desigual de desenvolvimento. Já nos países industrializados, as aptidões desenvolveram-se progressivamente, à medida que foi evoluindo a técnica produtiva.
Tavares (1972, p. 50), ao analisar o processo de industrialização por substituição de importações, enfatizou que:
os países subdesenvolvidos importam uma tecnologia que foi concebida pelas economias líderes de acordo com as suas constelações de recursos totalmente diversas das nossas. A necessidade de importar essa tecnologia estaria dada pela impossibilidade de criarmos técnicas novas mais adequadas às nossas condições peculiares.
Dessa forma, o núcleo industrial pode se desenvolver, em um país periférico, utilizando inovações tecnológicas que permitem aproximar-se da estrutura de custos e preços dos países exportadores de manufaturas, mas que não permitem uma rápida transformação da estrutura econômica, pela absorção do setor de subsistência. Processo este que resulta em lenta modificação da produtividade, da estrutura ocupacional e de desenvolvimento do país [Furtado (1961)].
Nesse sentido, é possível industrializar e crescer sem romper com a estrutura de dependência e dominação que perpetuariam o subdesenvolvimento [Furtado (1961; 1974)]. Isso ocorre porque é possível que as economias subdesenvolvidas atinjam um alto grau de diversidade e complexidade produtiva, sem desfazer os laços da dependência tecnológica (e dos conhecimentos necessários a sua geração, difusão e uso) e econômica dos grandes centros. Diante desse quadro, identificou-se o mais importante desafio para os países latino-americanos, o qual é ainda muito pertinente nos dias atuais: nosso desenvolvimento orienta-se mais propriamente por processos de imitação do que por uma reflexão sobre as carências e potencialidades internas. Fajnzylber (1990) resume essa questão da seguinte maneira:
o traço central do processo de desenvolvimento latino-americano é a incorporação insuficiente de progresso técnico – sua contribuição escassa de um pensamento original, baseado na realidade, para definir o leque de decisões que a transformação econômica e social pressupõe. O conjunto-vazio,3 do desenvolvimento econômico e social latino-americano, estaria diretamente vinculado ao que se poderia chamar de incapacidade de abrir a “caixa-preta” do progresso técnico [Fajnzylber (1990, p. 22)].
Essas condições ampliam as condições assimétricas de desenvolvimento econômico e social existentes entre países do centro e de periferia, as quais são reforçadas pelas diferenças em geração, aquisição e uso de conhecimentos, contribuindo para erigir fossos cada vez mais rígidos entre economias avançadas e periféricas [Lastres, Cassiolato e Arroio (2005)].
4. O Caráter Sistêmico do Desenvolvimento Tecnológico e da Inovação
A importância da inovação e do progresso técnico pode, portanto, ser mais bem apreciada por intermédio de uma visão ampla, contextualizada e sistêmica do desenvolvimento do capitalismo, principalmente em escala mundial. Furtado é reconhecido como autor que em muito destacou a necessidade de compreender os fenômenos relacionados ao avanço tecnológico por meio de tal perspectiva. Furtado explicita que as manifestações mais significativas do progresso técnico4 somente podem ser captadas plenamente por meio de uma visão global do sistema nacional, que inclua a percepção das relações desse sistema com o ambiente que o controla e influencia [Furtado (1961; 1968)].
Em linha semelhante, a visão neoschumpeteriana entende a inovação como um processo sistêmico, gerado e sustentado por relações interfirmas e por uma complexa rede de relações interinstitucionais dependente de seus ambientes sociopolítico-institucionais. Portanto, o impulso ao desenvolvimento, produzido pela introdução e difusão de novas tecnologias, é considerado resultado de trajetórias que são cumulativas e construídas historicamente, de acordo com as especificidades inerentes a um determinado país, região e atividade produtiva.5
Como objeto principal das preocupações de Fabio Erber quanto ao tipo de desenvolvimento produtivo necessário aos processos de mudança estrutural, apontam-se os estudos por ele realizados nos anos 1970 e 1980 sobre as atividades de bens de capital e de eletrônica. A sua tese de doutorado é uma detalhada e complexa pesquisa sobre bens de capital como atividade central na dinâmica industrial, na medida em que ela apresenta ligações técnicas e econômicas com todo o restante de atividades produtivas [Erber (1977)]. Posteriormente, em uma série de trabalhos sobre as atividades de bens de capital, ele concluiu que o entorno sistêmico dessas atividades gera grande influência na competitividade dos produtores [Erber (1992; 2001); Vermulm e Erber (2002)].
Discutindo a falta dessa perspectiva mais ampla e estratégica da política industrial e tecnológica brasileira, em especial no que se referia às TICs, ele assinalou que décadas de estudos sobre desenvolvimento mostram que as diversas atividades industriais desempenham papéis diferentes na dinâmica industrial e tecnológica, em função de seus encadeamentos produtivos, tecnológicos e de investimentos, que fazem com que um grupo restrito dessas atividades atue como motor do desenvolvimento [Erber (1992)]. Essa função motriz é cumprida por atividades com alta intensida de tecnológica e capacidade de irradiação para outros setores, como notadamente o caso do complexo eletrônico. Erber utilizava constantemente a frase “computer chips não são equivalentes a potato chips” para indicar a importância relativa da criação de capacitações nas diferentes atividades produtivas. Porém, também enfatizava que, no entanto, no caso brasileiro, não apenas inexistia qualquer hierarquia no tratamento dos diferentes setores e atividades produtivas, como também não havia política especial definida para o complexo eletrônico [Erber e Cassiolato (1997)].
Nesse caso, também a perspectiva sistêmica da inovação aparece de forma destacada, ao serem notadas as
interdependências nas cadeias produtivas e tecnológicas […] [e que] a ação sobre este conjunto de interdependências remete para as políticas de articulação industrial e de estímulo a segmentos particulares que se apresentam como elos importantes da matriz produtiva [Erber (1992, p. 31)].
A ideia básica de sistemas de inovação é que o desempenho inovativo depende não apenas do desempenho de empresas e organizações de ensino e pesquisa, mas também de como elas interagem entre si e com vários outros atores e como as instituições, incluindo as políticas, afetam o desenvolvimento dos sistemas. Entende-se, desse modo, que os processos de inovação que têm lugar no nível da firma são, em geral, gerados e sustentados por suas relações com outras organizações, reforçando que a inovação consiste em fenômeno sistêmico e interativo.
Outro corolário direto de tal entendimento é que, por exemplo, o setor financeiro e as políticas macroeconômicas mais amplas passam a ser objeto de preocupação e ação. Adicionalmente ao entendimento da natureza sistêmica da inovação, destaca-se a relevância da análise das dimensões micro, meso e macroeconômicas, assim como das características das esferas produtiva, financeira, social, institucional e política. A forma como são criadas e evoluem as capacitações produtivas e inovativas em qualquer país passou então a ser compreendida como função do modo de inserção dos diferentes países na economia e geopolítica mundial e de como se articulam essas diferentes dimensões e esferas.
As implicações de política da visão sistêmica aparecem claramente quando Erber aponta que as situações de atraso vigentes nos países subdesenvolvidos se caracterizam pela ausência de elos centrais na estrutura produtiva e institucional, fazendo-se necessária a ação estruturante do Estado para induzir – ou mesmo assumir a responsabilidade, via empresas estatais – de competências na matriz produtiva e inovativa, envolvendo uma ruptura radical das rotinas preexistentes [Erber (1992)].
5. O Papel dos diferentes atores: Empresas Transnacionais e Empresas Locais
O processo de industrialização brasileira, a partir de meados dos anos 1950, é tido como exemplo típico de substituição de importações conduzida pelo Estado com forte participação de capital e tecnologia estrangeiros. O papel do Estado não se restringiu a suas funções fiscais e monetárias tradicionais e à prestação de bens públicos. Um papel mais ambicioso foi concebido, incluindo suporte, definição, articulação e financiamento de grandes blocos de investimento, criação de infraestrutura e produção direta de insumos necessários para a industrialização.
Tavares e Serra (1973) notam que o investimento público teve importante papel de apoio ao setor privado, em particular ao capital estrangeiro. Consideram que o elemento principal que garantiu o dinamismo econômico do período foi o alto grau de “solidariedade orgânica” entre o Estado e as corporações multinacionais, o que garantiu a formação de externalidades e o suprimento de insumos básicos de baixo custo visando sustentar a expansão das multinacionais nos mercados interno e externo. Foi delegado às empresas transnacionais (ETN), entre outros, o papel de canalizar a tecnologia moderna para a economia, cabendo às empresas de capital local um papel subsidiário. Esse papel central das subsidiárias das ETNs no sistema brasileiro de inovação implicaria a transferência de tecnologia de suas matrizes, e as empresas de capital local utilizariam o licenciamento de tecnologias para também participar dos projetos de substituição de importações.
Seguindo a mesma linha crítica, Erber, nos anos 1980, também mostrava os limites desse tipo de estratégia. Discutindo as limitações para o aprendizado local, advindas das tecnologias trazidas por essas empresas, destaca:
the limited learning […] in the case of foreign subsidiaries, where the parent company had to transfer a manufacturing and detailed design capability but not the others. The Latin American literature suggests that this strategy was not only due to scale-economies in the production of technology but also to the extraordinary profits they reaped through technology-related intra-firm transactions [Erber (1983, p. 15)].
A conclusão de Erber (1983, p.15) é que a transferência de tecnologia a partir dos países centrais é estruturalmente limitada no lado do fornecedor da tecnologia (as empresas multinacionais), tendo em vista suas estratégias globais.6 Mas Erber avança ainda mais quando acrescenta que a dependência de tecnologias estrangeiras – originalmente desenvolvidas para atender a problemas de outras sociedades – limita, também de forma estrutural, a acumulação de capacitações voltadas ao aprendizado por parte das empresas controladas pelo capital local.
[…] (no Brasil) não existem distinções entre capitais segundo sua origem. No entanto, há uma extensa literatura que mostra que as atividades de P&D de firmas transnacionais tendem a ser centralizadas, normalmente junto ao seu país de origem. A tendência ao uso de tecnologia importada tende a propagar-se, entre os fornecedores e competidores destas empresas. Ignorar a diferença e não negociar a implantação dessas atividades na região implica em aceitar um padrão de programas tecnológicos orientado para atividades de adaptação de tecnologias importadas, mantendo baixo o “teto” destes programas [Erber (1999, p. 15-16)].
Utilizando evidência empírica de estudos realizados ao longo dos anos 1970 sobre tecnologia e inovação em empresas brasileiras de capital nacional,7 Erber aponta a baixa capacitação das empresas locais e sua pequena interação com as universidades e institutos públicos de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Sua conclusão é que:
industrial entrepreneurs […] were […] “satisfied” with a low level of local technological activities and a strong reliance on imported technology […] and […] such “satisfaction” can be understood in the light of the pattern of development followed in Brazil since the mid-fifties […] which reduced the importance […] (of) […] a policy of more technological self-reliance [Erber (1980, p. 422)].
Erber sugere algumas razões para que tais empresas tivessem inibidas suas estratégias de desenvolvimento tecnológico local. Em primeiro lugar, a desigual concorrência de tecnologias estrangeiras, a qual elevaria o risco e o custo das tentativas de desenvolvimento local, tendo em vista a política de abertura ao capital estrangeiro. Em segundo lugar, particularmente válido para as indústrias de bens de capital e insumos básicos, havia uma pressão dos clientes, em sua maioria empresas subsidiárias de multinacionais, que frequentemente condicionavam as compras ao uso e licenciamento de tecnologias estrangeiras. Uma terceira razão seria as estruturas de mercado nas quais as empresas locais operavam, que permitiam às empresas repassar aos consumidores o custo das tecnologias importadas. Em quarto lugar, o limitado tamanho do mercado local seria supostamente insuficiente para amortizar os custos do desenvolvimento autóctone. Outra razão seria o horizonte temporal de curto prazo com o qual operavam os empresários locais, em razão da fragilidade da estratégia e do planejamento governamental de longo prazo.
Essas razões se associavam à instabilidade, à vulnerabilidade, à hiperinflação e aos demais desafios colocados pelo quadro macroeconômico e contribuíam para conformar políticas implícitas [Herrera (1975)] e regimes malignos [Coutinho (2003)] que em muito limitavam as possibilidades de sucesso de políticas públicas e privadas para o desenvolvimento produtivo e em especial inovativo. A inércia e a placidez do empresariado brasileiro diante de tais desestímulos levava Erber – com suas ponderações certeiras e ácida ironia – a descrever tal postura como de happy dependency.
6. O Papel do Estado
As políticas de Estado desempenham papel-chave para o desenvolvimento das nações, principalmente na indução do desenvolvimento de seus sistemas de produção e inovação. Em primeiro lugar, objetiva-se assegurar as condições básicas de um quadro político e macroeconômico favorável à conformação de regime benigno e capaz de estimular o desenvolvimento produtivo e inovativo [Coutinho (2003)].8
Em segundo, a articulação de uma estratégia convencionada de desenvolvimento capaz de ser implementada [Erber (2011)]. Além disso, destacam-se também os objetivos de fortalecer os vínculos produtivos, os processos de aprendizado e de criação e acumulação de capacitações produtivas e inovativas.
Na visão neoschumpeteriana, essas políticas são ainda mais necessárias em épocas consideradas de mudanças radicais, como aquelas associadas ao advento e à difusão de novos paradigmas técnico-econômicos. Autores como Freeman e Perez consideram que durante o estágio inicial de um novo paradigma tecnológico abre-se uma série de oportunidades e desafios para as nações (principalmente as nações periféricas), as quais não se encontram tão comprometidas com o padrão que está sendo superado.
Essas oportunidades serão maiores quanto maiores forem a descontinuidade do processo tecnológico e o tempo de adaptação das empresas líderes e instituições das nações centrais, que apresentam maiores graus de comprometimento com os padrões anteriores, fato que tende a gerar um maior nível de inércia às mudanças radicais.
Com base nisso, é que diversos autores sublinharam: (i) a importância de políticas buscando adaptar e reorientar os sistemas produtivos e de inovação aos novos cenários; (ii) que a adaptação da economia tenderá a se transformar em um processo lento e doloroso. Em tais ocasiões, o papel de políticas públicas estimulando a promoção e renovação do processo cumulativo de aprendizado é particularmente destacado.9 Nos países periféricos a importância dessas políticas públicas é exponencialmente aumentada. Nesse caso, sugere-se que as políticas e instrumentos sejam continuamente ajustados e reformulados à medida que as tecnologias evoluem, evitando a retração ou destruição do escasso potencial produtivo e inovativo dessas nações. Essas políticas também devem considerar a necessidade de limitar ou prevenir consequências sociais indesejáveis [Freeman (2004)], buscando, centralmente e antes de tudo, promover o desenvolvimento inclusivo, coeso e sustentável das diferentes regiões e países a que se destinam [Cassiolato e Lastres (1999)].10
A absorção do progresso técnico deveria ser realizada por investimentos nos setores mais dinâmicos e difusores do progresso técnico, setores que teriam a liderança no processo de evolução tecnológica e, dessa forma, seria possível inserir maior dinamismo nas economias periféricas. Em razão das dificuldades previsíveis de acumulação de capital e poupança, esses investimentos deveriam ser feitos majoritariamente pelo Estado de forma direta ou indireta. A industrialização dos países periféricos somente seria possível com o apoio de políticas de planejamento estatal, que Celso Furtado sistematizou e implementou com grande competência.
Fiori (2001) nota que os principais teóricos do estruturalismo latino–americano clássico,11 entre os quais, Furtado, defendiam a presença do Estado no apoio à pesquisa científica e tecnológica, à educação superior e à criação de instituições de fomento e no financiamento tanto à produção industrial quanto à capacitação científica e tecnológica:
Para o estruturalismo existia a importância do papel do Estado na construção de um sistema econômico integrado e capaz de auto-reproduzir-se, de forma relativamente endógena, graças a uma integração virtuosa entre agricultura e a indústria, ao incentivo estatal ao desenvolvimento tecnológico e à criação de um sistema econômico nacional que priorize o crescimento das forças produtivas (p. 43).
Conforme argumentado, por exemplo, por Erber e Cassiolato (1997), mesmo durante o auge do neoliberalismo, os Estados jamais deixaram de intervir fortemente para fomentar o desenvolvimento produtivo e tecnológico e a expansão de setores estratégicos para a dinâmica estrutural, mesmo que essas políticas fossem camufladas por imperativos estratégico-militares. Tais políticas, que se caracterizam pela complexidade, visam ao desenvolvimento de atividades consideradas estratégicas para o crescimento econômico e à consolidação das bases regionais e locais para o desenvolvimento tecnológico.
As políticas centradas na promoção de sistemas de inovação e nas relações entre empresas e demais atores diferem das políticas baseadas nas antigas visões dicotômicas e linear da inovação. Quanto à forma, destaca-se a tendência de as políticas focalizarem conjuntos de atores e seus ambientes, visando potencializar, disseminar e tornar mais eficazes seus resultados. Os diferentes contextos, sistemas cognitivos e regulatórios e formas de articulação, cooperação e de aprendizado interativo entre agentes são reconhecidos como fundamentais em geração, aquisição, uso e difusão de conhecimentos, particularmente daqueles tácitos.
Alguns países vêm adotando estratégias que explicitamente visam à mobilização de sistemas de inovação [Cassiolato (1999)].12 Outros países, mesmo que não explicitando essa visão sistêmica, vêm na prática envolvendo atores e mobilizando elementos similares.13 Erber foi um dos primeiros autores brasileiros a salientar a importância da política de inovação no Brasil:
A análise da participação do Estado no processo de desenvolvimento científico e tecnológico dos países capitalistas centrais sugere três conclusões: 1. Embora o nível de desenvolvimento da acumulação de capital e da divisão de trabalho nas economias centrais favoreça o processo de desenvolvimento científico e tecnológico, essas condições favoráveis são em parte reforçadas pela ação do Estado mas, também, em parte criadas pela interferência estatal; 2. As medidas de apoio do Estado ao processo de desenvolvimento científico e tecnológico (especialmente este último) transcendem o apoio às atividades de P&D. Tais medidas, no entanto, são com frequência tomadas com outros objetivos que não o desenvolvimento tecnológico em si: garantir o suprimento interno de certos produtos, reforçar as condições de competição internacional, etc. Nesses casos o desenvolvimento tecnológico é um meio de atingir tais objetivos mais amplos, especialmente no caso das indústrias de ponta; 3. As medidas de apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico estão fortemente concentradas em alguns setores industriais, as chamadas indústrias de ponta, especialmente aquelas ligadas às atividades militares e espaciais [Erber (1980, p. 29)].
A ação de política é necessária ainda em países como o Brasil, tendo em vista dois fatores principais. Primeiro, porque
as situações de atraso vigentes nos países subdesenvolvidos se caracterizam pela ausência de elos centrais na estrutura produtiva e institucional, (o) que requer uma ação estruturante do Estado para induzir – ou mesmo assumir a responsabilidade direta via empresas estatais – a montagem de determinados setores na matriz produtiva, envolvendo uma ruptura radical das rotinas preexistentes [Erber (1992, p. 16-17)].
Em segundo lugar, e à semelhança dos países avançados, mostra-se necessário criar capacitações naquelas atividades essenciais para a existência da produção industrial. Erber enfatiza as atividades vinculadas à indústria de bens de capital [Erber (1977)] e do complexo eletrônico [Erber (1985)].
Erber sugere que no Brasil tal tipo de política poderia mobilizar muitas oportunidades se fosse mais priorizado. No entanto, já em 1984, discutindo a política de compras de empresas estatais, ele aponta que elas não se preocupavam com as inovações locais dos fornecedores: “Companies were only hired to replicate technologies developed by Cenpes or foreign companies” [Erber (1981, p. 12)]. Em um dos seus textos clássicos dos anos 1980, ele aponta que essa atitude era comum entre as empresas estatais brasileiras durante o período da industrialização baseada em substituição de importações, que demandava que seus fornecedores utilizassem tecnologias já testadas internacionalmente. Para ele, tal requisito
tenderia a gerar um círculo vicioso no qual seus fornecedores, tendo em vista não ter experiência prévia no ‘design’, eram forçados a utilizar o licenciamento e, por usar o licenciamento, não podiam desenvolver sua própria capacidade de projeto [Erber, Guimarães e Araujo Jr. (1984, p. 24)].
Em trabalho produzido em 1999, Erber analisa a política tecnológica e de inovação implementada na América Latina na última década do milênio passado, ressaltando que um dos principais objetivos das políticas científicas e tecnológicas dos países da região passou a ser o aumento da participação privada no financiamento e na execução de atividades de ciência e tecnologia (C&T) sob a percepção de que a empresa privada deva ser o motor do desenvolvimento tecnológico. Ele aponta que:
em verdade, este não é um objetivo novo – o Estado desenvolvimentista também o perseguiu com afinco. Seu fracasso sugere que existem causas estruturais para tanto. Entre estas destacam-se a composição da estrutura produtiva, em que os setores intensivos em tecnologia têm pequeno peso; a dominância da importação de tecnologia, fruto da gravitação de empresas internacionais e do tamanho reduzido das empresas nacionais; a configuração incompleta do mercado de capitais, onde faltam mecanismos de risco e a reduzida competição entre as empresas. Os reformistas dos anos noventa ignoraram a primeira, agravaram a segunda, não resolveram a terceira e concentraram-se na última causa [Erber (1999, p. 8-9)].
Tal constatação reforça mais uma vez a ideia, há muito estabelecida na América Latina, que as políticas implícitas são muito mais relevantes para as estratégias tecnológicas e de inovação empresariais do que as políticas especialmente desenhadas para a tecnologia e a inovação. Erber reiterava aqui o argumento que as políticas implícitas no Brasil não só não contribuem para a promoção do desenvolvimento tecnológico por parte das empresas, mas, ainda mais importante, tendem a inibi-lo e limitá-lo [Erber (1983)].
As conclusões que Erber deriva de sua análise são extremamente importantes e de uma relevância atemporal. O problema do desenvolvimento tecnológico nacional não pode ser resolvido apenas por um aumento das capacitações científicas e tecnológicas, nem pela política explícita de piência e tecnologia, que hoje em dia inclui também a de inovação [Erber (1983)]. Ele sempre destacava que os determinantes do fraco desempenho tecnológico relacionam-se às:
considerações políticas e econômicas que guiam as ações das empresas e do Estado no que se refere às capacitações tecnológicas locais […] e ao papel das políticas explícitas de C&T […] (que) ao não convergirem com outras políticas, como a de capital estrangeiro, têm sua eficácia extremamente limitada [Erber (1983, p. 17-18)].
No Brasil, os diversos mecanismos de apoio à ciência, tecnologia e inovação desenhados têm sido ainda pouco utilizados pelo setor produtivo, o que tem levado alguns analistas a assinalar a existência de um “paradoxo da inovação”. Este resultaria do pressuposto de que as medidas de apoio ao desenvolvimento tecnológico no Brasil, apesar de bem desenhadas, não são bem-sucedidas especialmente em razão da falta de receptividade pelo setor produtivo. Como a impecável análise de Erber indica, o fracasso da política demonstra que, na falta de uma articulação com as políticas implícitas, esta tenderá a ser ineficaz ou nula.
7. À guisa de Conclusão: a atualidade das ideias de FabioErber em um mundo marcado pela globalização financeira
A implementação de políticas explícitas voltadas à inovação no Brasil já ocorre há anos, e alguns dos instrumentos, assim como algumas das formas de orientação das políticas, são bem antigos. Aqui se incluem desde o modelo de catch-up com os padrões de investimento privado em P&D, perseguido pela política nacional desde os anos 1970, até os apoios à articulação universidade-indústria, os quais já eram implementados pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) àquela época, atualmente Agência Brasileira de Inovação. Adicionam-se os estímulos para que empresas transnacionais intensifiquem seus esforços de P&D no país e internalizem suas estratégias de inovação. A lógica para essa ênfase reside maiormente na ideia de que a globalização leva as empresas transnacionais a descentralizarem suas atividades tecnológicas e o Brasil deve se aproveitar dessa situação. Sem dúvida, em um mundo interligado, é inegável que qualquer país deva se aproveitar das condições positivas trazidas pelo investimento estrangeiro.
Os questionamentos quanto ao sucesso de tais políticas necessariamente remetem a questões levantadas por Fabio Erber já nos anos 1970 e 1980: qual é o papel dessas empresas na estratégia brasileira e no sistema nacional de inovação? Que tipo de desenvolvimento tecnológico elas se dispõem, de fato, a realizar fora de seu país de origem? Como a estratégia local das subsidiárias se insere em sua estratégia global? Que estratégias e políticas domésticas vêm sendo implementadas para garantir a ampliação e o enraizamento de capacitações produtivas e inovativas no país? Como são avaliados os resultados alcançados?14
A resposta a essas perguntas vincula-se a outra questão mais ampla, tendo em vista o avanço do processo de financeirização, que caracteriza a economia e a sociedade global nos últimos trinta anos: quais são as principais transformações experimentadas pelas empresas transnacionais que realizam atividades produtivas e inovativas? Aqui, um primeiro ponto refere-se ao atual papel das empresas transnacionais na economia. De acordo com a United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), na década de 1990 havia 37 mil ETNs operando no mundo com 175 mil subsidiárias fora de seus países de origem. No fim de 2007, elas já eram 79 mil com um total de 790 mil filiais estrangeiras. UNCTAD (2011) estima que as ETNs em todo o mundo, tanto no país-sede quanto no exterior, geraram um valor adicionado de aproximadamente US$ 16 trilhões em 2010, representando mais de um quarto do PIB global.
Um segundo ponto relaciona-se à intensa reestruturação global das atividades produtivas que essas empresas promoveram, nos últimos trinta anos, redirecionando os fluxos globais de produção, investimento e comércio – processo que foi facilitado pela difusão do paradigma da microeletrônica e permitido pela onda de liberalização e desregulamentação. Autores como Aglietta e Rebérioux (2005) indicam que tais alterações estão associadas a transformações na organização do capitalismo em termos gerais e ao processo de financeirização da economia. Como as ETNs são em sua maioria sociedades de capital aberto, seu movimento de financeirização tem levado a uma crescente busca da valorização das ações, com impactos negativos nas atividades produtivas e tecnológicas.
Chesnais e Sauviat (2003) apontam que as instituições financeiras adquiriram um poder sem precedentes e ganharam o controle sobre as ETNs não financeiras, moldando seu padrão de investimento (incluindo P&D). De acordo com Vitali, Glattfelder e Battiston (2011), em 2011, 737 grandes empresas transnacionais detinham 80% do controle dos ativos das 43.060 maiores empresas mundiais. Esses autores adicionam que o controle dessas megaempresas se encontra nas mãos de um pequeno núcleo, aproximadamente uma centena de instituições financeiras. Grandes ETNs industriais tornaram-se, na realidade, centros financeiros com atividades industriais.
Por exemplo, em 2007, a divisão mais importante da General Electric relativa a receitas foi a GE Capital, seu braço financeiro (US$ 67 bilhões de um total de US$ 180 bilhões). A GE Capital foi responsável por 55% dos lucros totais da empresa e, se fosse um banco, seria um dos maiores dos Estados Unidos [Cassiolato et al. 2013]. O resultado é uma prioridade aos resultados de curto prazo em detrimento “de atividades de longo prazo, como pesquisa e desenvolvimento, renovação de fábricas e equipamentos, capacitação técnica da força de trabalho e cultivo de relações duradouras com os fornecedores” [Guttmann (2008, p. 13)].
As ETNs passaram a adquirir novos ativos científicos e tecnológicos de outras maneiras que não o desenvolvimento interno de P&D e a acumulação endógeno-corporativa de conhecimento [Chesnais e Sauviat (2003)]. As fusões e aquisições se tornaram uma maneira rápida e barata de se apropriar de possíveis desenvolvimentos tecnológicos gerados por empresas incipientes, que por sua escala têm pouco poder de mercado e limitado acesso a financiamento, o que acaba levando-as a ceder às pressões das grandes ETNs. Essa estratégia é muito menos custosa em relação a tempo e recursos, permitindo, ainda, uma maior distribuição de dividendos. Como parte dessa nova estratégia, os gastos internos em P&D para as grandes empresas transnacionais tornam-se muito menos importantes que as despesas nos demais ativos intangíveis direcionados à inovação.
Levando em conta o poder que exercem no comércio e na produção internacional e as complexas conexões pelas quais organizam indústrias e mercados globais, as ETNs representam uma centralização de ativos financeiros e uma “modalidade organizacional do capital financeiro” [Serfati (2010, p. 144)]. Sua principal vantagem competitiva reside na capacidade de construir um espaço integrado global, com operações financeiras e industriais realizadas de forma combinada com inúmeras filiais (produção, P&D, financeira etc.), coordenadas sob o controle de um escritório central que gerencia recursos e capacidades com o objetivo de dar coerência e eficiência ao processo de valorização do capital.
A inserção e o papel das ETNs nos países periféricos, em especial quanto ao desenvolvimento tecnológico local, são, portanto, afetados pela dinâmica da financeirização. Se nos países centrais ainda persistem os laboratórios e centros de pesquisa, nos países periféricos os esforços tecnológicos são quase exclusivamente adaptativos. Tais países são vistos como plataformas produtivas mais baratas e bons mercados para produtos já existentes. Novas tecnologias permitem que o processo produtivo seja fragmentado e espalhado ao redor do globo, a depender das condições favoráveis que cada país oferece. Amsden (2001) é uma das autoras que mostra que os investimentos de ETNs em países periféricos são modestos em montante e de baixa complexidade, quase nunca relativos a atividades de fronteira tecnológica.
Estudos detalhados sobre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul [Cassiolato et al. (2013); Reddy (2011)] sugerem que, mesmo nesses países, as atividades de P&D, realizadas por empresas transnacionais, são ainda marginais. Mesmo no caso da China, existem evidências de que as atividades tecnológicas das subsidiárias das ETNs são de intensidade relativamente baixa. Sun (2010) apresenta uma análise detalhada das atividades de P&D das subsidiárias de ETNs e conclui que a maior parte de P&D de empresas estrangeiras na China é de natureza adaptativa e de valor absoluto reduzido e que
o governo chinês e as empresas locais não devem esperar benefícios significativos das atividades tecnológicas das subsidiárias de empresas transnacionais na China. Alternativamente devem focar na construção de capacitações tecnológicas endógenas: a maioria das empresas estrangeiras só vai investir em P&D quando sentirem a concorrência de empresas domésticas (p. 360).
No Brasil, a dinâmica dos investimentos em desenvolvimento tecnológico segue necessariamente essa tendência global de transição de estratégia. Esperava-se que a abertura dos anos 1990 fosse motivar esforços inovativos e tecnológicos de firmas estrangeiras, contribuir para uma mudança estrutural e para reduzir o déficit comercial por meio do aumento das exportações. No entanto, os novos investimentos foram em grande parte market seeking, voltados para a exploração das oportunidades oferecidas pelo mercado interno (incluindo o Mercosul), e concentraram-se na aquisição de empresas locais, tendo se realizado muito pouco investimento novo. Assim, as transformações por que passam economia e sociedade globais a partir da crescente financeirização recolocam na agenda do desenvolvimento elementos já presentes nos debates realizados nos anos 1960 e 1970.
O ponto central que é mencionado por Erber quanto a essa questão reafirma a necessidade de inserir e articular a política de ciência, tecnologia e inovação na estratégia mais ampla de desenvolvimento. Um primeiro passo por ele apontado é efetuar uma demarcação clara entre padrão de desenvolvimento e padrão de industrialização [Erber (1992)]. Essa sua colocação é avançada em seus trabalhos mais recentes sobre convenções de desenvolvimento [Erber (2011)]. Ele explicita que, associada ao padrão de desenvolvimento, coloca-se uma política nacional, cuja implementação depende da existência de uma coalizão de forças sociais e condições políticas, institucionais e administrativas. À necessidade de uma política nacional de desenvolvimento, sem a qual a de inovação se torna inócua, somam-se outras, quanto à forma – sistêmica – e ao foco – priorizando atividades de caráter estruturante que ele denomina “motores da inovação”, os bens de capital, o complexo eletrônico, as TICs, as biotecnologias etc.:
Do ponto de vista estrutural, é prioritário dar prosseguimento ao processo de implantação dos setores motores de inovação, tanto pelo papel que estes representam na dinâmica industrial moderna como pela sua precariedade no País. (Mais ainda) […] é desejável obter uma capacidade de inovação, devido aos seus efeitos econômicos, sociais e políticos. Ao mesmo tempo, maiores são as dificuldades para lograr essa capacidade, pela própria rapidez do progresso técnico, sua complexidade cognitiva, escalas crescentes de gastos mínimos e pelas restrições existentes à transferência internacional de conhecimentos, decorrentes tanto da operação do mercado de tecnologia como da estratégia de firmas internacionais [Erber (1992, p. 30-31)].
Erber prossegue apontando o elemento central em sua tese:
estabelece-se, a esse propósito, uma distinção crucial entre firmas sob controle nacional e estrangeiro, posto que é parte da lógica destas últimas utilizar as técnicas desenvolvidas nos países avançados, induzindo o mesmo comportamento em seus competidores nacionais. É ilusório imaginar que firmas multinacionais venham a desenvolver uma capacidade de inovação no País, mesmo que o Governo lhes conceda incentivos para tal, seja atuando isoladamente, seja em joint-ventures com firmas nacionais [Erber (1992, p. 31)].
Em seus últimos trabalhos, em que aprofunda sua análise sobre desenvolvimento, Erber introduz o conceito de convenções de desenvolvimento, que “embora sejam sempre apresentadas como projetos nacionais que levam ao bem comum, refletem, na verdade a distribuição de poder econômico e político prevalecente na sociedade, num determinado período” [Erber (2011, p. 36)]. Para ele, a percepção do governo do Ex-Presidente Lula quanto à necessidade de uma mudança significativa na estratégia de desenvolvimento brasileiro “mais inclusiva do ponto de vista econômico e social, foi interpretada, no âmbito do Governo, de forma diferenciada, gerando duas convenções distintas” [Erber (2011, p. 37)].
Para uma dessas convenções mencionadas por Erber, a institucionalista restrita, de corte neoclássico e que tem uma visão de sociedade competitiva e meritocrática, “cuja eficiência seria garantida pelo funcionamento do mercado” [Erber (2011, p. 38)], a inovação, apesar de ser “vista como o motor do desenvolvimento, tem na abertura internacional um importante papel no seu estímulo através da importação de tecnologias mais produtivas” [Erber (2011, p. 39)].
Apesar de reconhecer a importância do Estado para o fomento da inovação, os adeptos dessa convenção têm “uma clara preferência pelo modelo principal agente, no qual o Governo fixa as diretrizes de política e os agentes executam tais diretrizes e prestam contas (ao governo) por sua execução” (p. 39).
A segunda das convenções, segundo Erber, é por ele chamada de neodesenvolvimentista, com clara inspiração keynesiana. Seus proponentes, por um lado, aceitam a política macroeconômica da convenção institucionalista restrita, mas, por outro, apontam a necessidade de um papel do Estado muito mais ativo. No caso dos investimentos em inovação, é proposta uma série de mecanismos tais como incentivos fiscais, crédito subsidiado e subvenções. Sua conclusão é que:
a convivência entre as duas convenções se estabelece sob a hegemonia da convenção institucional restrita, assegurada pelo controle do tripé de políticas macroeconômicas […] A combinação entre as duas convenções atende a uma ampla gama de interesses, que a torna muito forte [Erber (2011, p. 51-52)].
É importante notar a discussão proposta por Fabio Erber sobre o suposto consenso a respeito da importância da inovação tecnológica, tanto na academia quanto em círculos governamentais, o qual contribuiu para tornar o tema um prestigioso símbolo de modernidade:
se os conceitos tivessem analogias urbanas, a inovação poderia ser assemelhada a uma dessas praças em forma de estrela, como a De Gaulle em Paris e a Raul Soares em Belo Horizonte, as quais aportam avenidas vindas de diversos lugares, juntam-se e, a seguir, continuam seu percurso rumo a destinações divergentes [Erber (2009, p. 3)].
Diferentes concepções sobre inovação (as quatro avenidas, na analogia de Erber) levam a percepções sobre o papel dos atores do processo inovativo e proposições de política que são não só divergentes, mas, algumas vezes, antagônicas. Esta caracterização e as demais contribuições de Erber acima apontadas em muito ajudam a explicar por que a utilização ainda insuficiente por parte do setor privado dos inúmeros instrumentos de política de inovação, disponibilizados nos últimos 15 anos, longe de paradoxal, constitui-se em inevitável consequência de convenções de desenvolvimento questionáveis e visões, pelo menos parcialmente, equivocadas sobre a inovação. Acima de tudo, suas contribuições deixam clara a importância de entender em profundidade as transformações nas formas de geração e difusão das tecnologias, o papel dos diferentes atores e os espaços e limite das políticas públicas e privadas.
As contribuições de Erber a esse debate continuam válidas e merecem constituir objeto de reflexão maior, por parte tanto dos estudiosos do tema quanto dos planejadores, tomadores de decisão e implementadores de política. Cabe finalmente destacar que Fabio Erber propunha uma agenda positiva em uma nova convenção de desenvolvimento. No centro dessa agenda encontram-se sua constante ênfase à necessidade de aumentar o conteúdo tecnológico dos sistemas produtivos existentes e de mudar a estrutura industrial pela promoção das atividades motoras e transmissoras da inovação, como eletrônica e bens de capital. Se este último objetivo parece ainda distante, o primeiro tem se mostrado possível de ser atingido, na medida em que políticas de inclusão, emprego e renda e aumento de capacitações têm descortinado oportunidades para a criação e consolidação de diversos arranjos produtivos e inovativos locais no território nacional. Nestes podem se encontrar exemplos com força capaz de contribuir para uma agenda coesa e sustentável de desenvolvimento, tão necessária para o país.
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Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber, 2014
Um economista do desenvolvimento
Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber, 2014
Prefácio
Algumas lembranças de Fabio Erber
"INGEGNERI!", "ECONOMISTE!"
Era assim, com entonação irreverente e carinhosa, que nos saudávamos todas as vezes que nos encontramos nos últimos trinta anos, até mesmo em ocasiões de ambiente mais formal.ver também Algumas lembranças de Fabio Erber