Convenções do Desenvolvimento no Brasil Contemporâneo

Fabio S. Erber, CEPAL – Escritório no Brasil/IPEA, 2010. (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 13). 46p.

O objeto do ensaio é o processo de desenvolvimento brasileiro contemporâneo. O ponto de partida é a distinção tradicional entre crescimento e desenvolvimento: o segundo implica transformações estruturais, o primeiro consiste, essencialmente, em “mais do mesmo”. Pelas suas características, o processo de desenvolvimento traz aos atores sociais uma incerteza substantiva, que não pode ser eliminada pela busca de mais informações e implica problemas de coordenação entre os atores. Na próxima seção, discute-se, sucintamente, o conceito de convenção, a sua utilização na seleção de problemas e soluções e a disputa pela hegemonia entre convenções competitivas. A segunda seção aponta as incertezas que cercam atualmente a teorização internacional do desenvolvimento, em contraste com as certezas da convenção neoliberal dos anos 1990. O caso recente brasileiro é tratado na quarta seção, em quatro breves partes. Na primeira, é analisada a incerteza vigente à posse do presidente Lula e o reclamo por uma nova “convenção de desenvolvimento”. Nas duas partes seguintes, apresentam-se as duas convenções que se formaram, apoiadas em forças políticas diferentes, denominadas, por razões explicadas no texto, de “institucionalista restrita” e “neodesenvolvimentista”. Argumenta-se que, na disputa pela hegemonia, a primeira, que privilegia a estabilidade de preços, foi dominante ao longo do período 2003-2008. A quarta parte discute a reação do governo brasileiro à crise internacional e como isso afetou a correlação de forças entre as duas convenções.

0.      Apresentação

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mantêm atividades conjuntas desde 1971, abrangendo vários aspectos do estudo do desenvolvimento econômico e social do Brasil, da América Latina e do Caribe. A partir de 2010, os Textos para Discussão Cepal– Ipea passaram a constituir instrumento de divulgação dos trabalhos realizados entre as duas instituições.

Os textos divulgados por meio desta série são parte do Programa de Trabalho acordado anualmente entre a Cepal e o Ipea. Foram publicados aqui os trabalhos considerados, após análise pelas diretorias de ambas as instituições, de maior relevância e qualidade, cujos resultados merecem divulgação mais ampla.

O Escritório da Cepal no Brasil e o Ipea acreditam que, ao difundir os resultados de suas atividades conjuntas, estão contribuindo para socializar o conhecimento nas diversas áreas cobertas por seus respectivos mandatos. Os textos publicados foram produzidos por técnicos das instituições, autores convidados e consultores externos, cujas recomendações de política não refletem necessariamente as posições institucionais da Cepal ou do Ipea.

1. Introdução

O objetivo deste trabalho1 é discutir as concepções de desenvolvimento que se encontram em disputa no Brasil contemporâneo. Parte do conhecido dito de Keynes que por detrás dos “homens práticos” estão as ideias de economistas, frequentemente mortos há muito tempo. Ou seja, a teoria econômica é importante para a política econômica. No entanto, como advertia Schumpeter, há quase um século, devemos nos precaver contra o “erro intelectualista” – as “ideias dos economistas” têm raízes no estudo da filosofia e nos problemas práticos que têm de enfrentar (SCHUMPETER, 1954).2 Mesmo a “economia pura”, concebida como uma “caixa de ferramentas”, é socialmente inserida – “o trabalho analítico principia com material extraído da nossa visão das coisas, e esta visão é, por definição, ideológica” (SCHUMPETER, 1964, p. 70) e a profissão de economista “desenvolve atitudes relativas às questões políticas e sociais que são similares também por outras razões além das científicas” (SCHUMPETER, 1964, p. 75, grifos do original). Schumpeter (1964) aponta ainda para o papel que as teorias e o instrumental econômico desempenham na constituição de ideologias, notadamente dos “sistemas de economia política”, como o liberalismo e o socialismo, em que amplo conjunto de políticas econômicas era unificado por uma visão normativa.

Em síntese, parte-se do princípio epistemológico de que a economia é ontologicamente política – daí parte do título do ensaio. Um dos seus propósitos é contribuir para a discussão dos interesses econômicos que estão subjacentes às teorias sobre os objetivos e os procedimentos recomendados para o desenvolvimento brasileiro. Ou seja, move-se na contramão da corrente que vê os conflitos como sendo de ordem técnica e busca, assim, politizar o debate.

O objeto do ensaio é o processo de desenvolvimento brasileiro contemporâneo. Tomamos como ponto de partida a distinção tradicional entre crescimento e desenvolvimento: o segundo implica transformações estruturais, o primeiro consiste, essencialmente, em “mais do mesmo”. Pelas suas características, o processo de desenvolvimento traz aos atores sociais uma incerteza substantiva, que não pode ser eliminada pela busca de mais informações e implica problemas de coordenação entre os atores.

Para lidar com os problemas de incerteza e coordenação, as sociedades utilizam instituições – as “regras do jogo”. Nos planos cognitivo e comportamental, essas regras estão estruturadas por convenções. Formalmente, temos uma convenção se, dada uma população P, observamos um comportamento C que tem as seguintes características: i) C é compartilhado por todos os membros de P; ii) cada membro de P acredita que todos os demais seguirão C; e iii) tal crença dá aos membros de P razões suficientes para adotar C (ORLÉAN, 2004).

Na próxima seção, discute-se, sucintamente, o conceito de convenção, a sua utilização na seleção de problemas e soluções e a disputa pela hegemonia entre convenções competitivas.  A segunda seção aponta as incertezas que cercam atualmente a teorização internacional do desenvolvimento, em contraste com as certezas da convenção neoliberal dos anos 1990.

O caso recente brasileiro é tratado na quarta seção, em quatro breves partes. Na primeira, é analisada a incerteza vigente à posse do presidente Lula e o reclamo por uma nova “convenção de desenvolvimento”. Nas duas partes seguintes, apresentam-se as duas convenções que se formaram, apoiadas em forças políticas diferentes, denominadas, por razões explicadas no texto, de “institucionalista restrita” e “neodesenvolvimentista”. Argumenta-se que, na disputa pela hegemonia, a primeira, que privilegia a estabilidade de preços, foi dominante ao longo do período 2003-2008. A quarta parte discute a reação do governo brasileiro à crise internacional e como isso afetou a correlação de forças entre as duas convenções. A última seção contenta-se em resumir as conclusões do ensaio.

1.2 O conceito de convenção de desenvolvimento

Tomemos como ponto de partida uma distinção tradicional entre crescimento e desenvolvimento: o primeiro consiste, essencialmente, em “mais do mesmo”, o segundo implica transformações estruturais. Estas transformações fazem que os atores enfrentem uma incerteza substantiva, que não pode ser eliminada pela busca de mais informações.

Tal incerteza reduz a possibilidade de coordenação das ações dos atores, especialmente das suas estratégias. A sinergia e as externalidades que surgem por meio da ação conjunta são reduzidas, a mudança tornase mais lenta e errática.

Instituições provêm a sociedade com meios para lidar com os problemas de incerteza e coordenação – “regras do jogo”, na definição de North (1990), amplamente aceitas por institucionalistas de todos os matizes. Tais regras sobre a problemática social derivam de metáforas que são de conhecimento e aceitação gerais e que geram outras metáforas, complementares (SCHÖN, 1988) ou, como argumentam Denzau e North (2004), de “modelos mentais compartilhados”.

Tais metáforas servem para definir os problemas, descrevendo o que está errado com a situação presente de tal forma a estabelecer a direção para sua transformação futura. Para cumprir adequadamente seus papéis de redução de incerteza e aumento de coordenação, tais regras especificam agendas positivas e negativas – uma hierarquia de problemas que devem ser enfrentados (por exemplo, controle da inflação, distribuição de renda), soluções para esses problemas que são aceitáveis (por exemplo, metas de inflação) ou não (por exemplo, controles administrativos de preços), organizações encarregadas (o Banco Central do Brasil – Bacen), assim como regras e regulamentos (Regras de Basileia). Ou seja, estabelecem uma ordem para a transformação.

O poder dessas regras é substancialmente aumentado se elas obtêm coerência por meio de uma metáfora histórica – uma história, uma teoria que explica como o presente surgiu a partir do passado e, especialmente, como o futuro será se as regras forem seguidas. Em síntese, uma teleologia.

Esse conjunto de regras, as agendas, positiva e negativa, que gera e a teleologia subjacente constituem uma convenção – uma “representação coletiva” (JODELET, 1989), que estrutura as expectativas e o comportamento individual, tal como definido na introdução.

Uma convenção de desenvolvimento, seguindo a definição deste, anteriormente comentada, trata das transformações estruturais que devem ser introduzidas na sociedade, estabelecendo o que há de “errado” no presente, fruto do passado, qual o futuro desejável, quais estruturas devem ser mudadas e as agenda de mudança, positiva e negativa. Conforme já apontado, uma convenção é um dispositivo cognitivo compartilhado por uma população P, que segue um comportamento C, adotado por todos os membros de P, na suposição de que todos os membros de P o compartilharão. Uma convenção surge da interação entre atores sociais, mas é externa a esses atores e não pode ser reduzida à sua cognição individual – ou seja, é um fenômeno emergente, em que o todo não é redutível às partes (DE WOLF; HOLVOET, 2005).

A força de uma convenção é proporcional ao tamanho de P e ao poder político e econômico dos seus membros. Tal força proporciona benefícios aos que aderem à convenção e sanciona os que dela se afastam. Em consequência, P contém não apenas “crentes”, como “oportunistas”, movidos apenas por razões utilitárias (CHOI, 1993).

A legitimidade das convenções depende da fé depositada por seus aderentes no seu conteúdo cognitivo e, acima de tudo, da adequação de seus resultados às expectativas dos membros da população P.

O conteúdo cognitivo de uma convenção de desenvolvimento3 é composto de conhecimentos codificados e conhecimentos tácitos, estruturados por um “núcleo duro”, de natureza axiomática, que organiza o conhecimento, e por um “cinturão protetor”, que operacionaliza esse conhecimento e o adapta a condições específicas.

Os conhecimentos codificados – teorias econômicas, sociais e políticas – são elaborados no âmbito da academia internacional. A partir dessa “versão erudita” (SÁ EARP, 2000), normalmente expressa por afirmativas contingentes – “admitindo que os agentes econômicos têm expectativas racionais”… –, são elaboradas versões mais simplificadas e normativas, por meio de outras instituições, como as organizações internacionais – veja-se, por exemplo, o papel do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) –, a mídia e a própria academia (por meio de manuais), que se expressam por indicadores empíricos (por exemplo, os de “boa governança” do Banco Mundial) e receituários de política, como o decálogo do Consenso de Washington.  A integração internacional da academia e das demais organizações difunde esse conhecimento codificado nas sociedades específicas. Vale notar que a retórica atualmente adotada nas versões eruditas em que “teoria” tornou-se sinônimo de “modelos formais”, sujeitos a um tratamento matemático sofisticado, torna restrito o público que as entende e confere-lhes um caráter sagrado.

O conhecimento tácito refere-se às percepções sobre como a sociedade é e como deveria ser, compartilhadas pelos membros da população P, não codificadas em linguagem científica, que resultam da experiência dos atores e que são transmitidas, na mesma geração e entre gerações, por meio de vários mecanismos culturais e educacionais. Os provérbios constituem uma dessas formas de transmissão e expressam, de forma eloquente, a percepção sobre a sociedade. Por exemplo, no caso brasileiro, “manda quem pode, obedece quem tem juízo” é bem ilustrativo do autoritarismo que permeia nossa sociedade. Outra manifestação importante do conhecimento tácito são os mitos, cujo papel na configuração das teleologias que compõem as convenções de desenvolvimento é discutido em Furtado (1974), ao apontar a especificidade dos países subdesenvolvidos (o Mito do Progresso), e em Erber (2002), que analisa o papel do Mito da Terra Prometida na conformação da teleologia da convenção de desenvolvimento neoliberal.

Os conhecimentos codificados tendem a se traduzir em regras formais de conduta, frequentemente expressas na forma de leis, ou seja, regras dotadas de um poder coator externo – o Estado, ao passo que os conhecimentos tácitos são normalmente expressos por regras informais, em que a força de coação reside na aprovação do grupo.

Embora os conhecimentos codificados tenham, forçosamente, de ser adaptados às condições locais para se transformarem em regras de conduta, é nos conhecimentos tácitos e na interação entre os dois tipos de conhecimento que a especificidade local mais se manifesta, inclusive pela ineficácia das regras formais – as leis que “não pegam” –, posto que os conhecimentos tácitos reflitam a vivência dos atores quanto à sociedade em que operam.

Os conhecimentos tácitos e as regras informais de conduta são importantes na concepção e na implementação das convenções de desenvolvimento, mas atemo-nos aqui, por razões de tempo e espaço, aos conhecimentos codificados, discutindo, na próxima seção, o atual “estado das artes” internacional sobre desenvolvimento, dado que este influi sobre o debate brasileiro, objeto deste artigo.

Uma convenção de desenvolvimento não se limita a um dispositivo cognitivo – para ser eficaz ela tende a se espraiar em outras instituições/regras, como leis e regulamentos e a inserir-se em organizações, como as burocracias públicas e privadas e a academia. Nesse sentido, de geração de outras organizações e regras, trata-se de uma instituição constitucional. Esse processo de difusão cumulativa assume características de auto-organização (DE WOLF; HOLVOET, 2005), formando um sistema adaptativo em que a estrutura é mantida sem que seja necessário um controle externo.  Em consequência, a convenção passa a ser vista como algo natural e externo aos seus aderentes.

Conforme já apontado, a legitimidade de uma convenção depende da congruência dos seus resultados com as expectativas da população P. Se P é um grupo relevante dentro da estrutura de poder da sociedade, a legitimidade da ordem social da qual a convenção de desenvolvimento faz parte é reforçada. Em outras palavras, uma convenção de desenvolvimento desempenha importante papel na manutenção da ordem social.

No entanto, a natureza cumulativa do processo de constituição e difusão de uma convenção de desenvolvimento torna-a dependente em relação à trajetória que vinha sendo seguida (path-dependent). Assim, se surgem problemas distintos daqueles que a convenção identificou como prioritários e que demandam soluções não compatíveis com o núcleo duro da convenção, esta entra em crise e tende a ser substituída por outra convenção. Os episódios da dívida externa na América Latina ou da derrocada do socialismo na Europa Oriental e a substituição do desenvolvimentismo e do socialismo pelo neoliberalismo ilustram bem esse processo.

As convenções de desenvolvimento constituem, pois, dispositivos de identificação e solução de problemas. Embora sejam sempre apresentadas como “projetos nacionais” que levam ao “bem comum”, refletem, na verdade, a distribuição de poder econômico e político prevalecente na sociedade em determinado período. Como o processo de desenvolvimento envolve mudanças estruturais, uma convenção eficaz deve oferecer escopo a grupos emergentes, que não pertencem ao bloco de poder que governa aquela sociedade, especialmente quando o regime político é democrático. No entanto, em sociedades complexas, em que existem diversos interesses conflitantes, nenhuma convenção de desenvolvimento consegue acomodar a todos. Assim, existem sempre diversas convenções de desenvolvimento que competem pela hegemonia.

Embora uma convenção que foi hegemônica durante um período possa deixar de sê-la em função de um episódio súbito (como o duplo choque dos preços de petróleo e juros, sofrido pelo desenvolvimentismo no fim dos anos 1970), ou da evolução de problemas com os quais a convenção não consegue lidar (como no caso dos países socialistas), a perda de hegemonia não implica seu desaparecimento – os grupos sociais a que servia de representação continuam presentes e ela está inserida em múltiplas instituições, cuja mudança é lenta. Assim, embora derrotada, ela segue competindo pela hegemonia, adequando-se à nova problemática.

O caso brasileiro ilustra bem a competição entre convenções. Mesmo quando o nacional desenvolvimentismo foi hegemônico, os liberais não deixaram de apresentar uma convenção alternativa, conforme estudado em detalhe por Bielschowsky (1988). Da mesma forma, são conhecidos os conflitos entre neodesenvolvimentistas e neoliberais, durante a hegemonia do liberalismo no período Cardoso, mesmo no seio do governo (SALLUM JR., 2000; PRADO, 2005). Conforme detalhado a seguir, essa competição encontra-se, exacerbada, no governo Lula.

Antes, porém, de discutir o atual debate brasileiro, é conveniente apresentar, sucintamente, a indefinição do estado das artes, que, no mínimo, amplia a margem de discordância interna.

2. A incerteza internacional

A convenção de desenvolvimento neoliberal, que varreu qual um tsunami o mundo durante os anos 1990, encontra-se em crise. Esta incide tanto sobre os seus pilares teóricos quanto sobre sua tradução prática.

Do ponto de vista teórico, a convenção neoliberal apoiava-se em um tripé analítico, constituído pela macroeconomia derivada da microeconomia fundada sobre expectativas racionais e mercados em equilíbrio, pela teoria política da escolha pública, que acoimava qualquer intervenção estatal como estimuladora de investimentos improdutivos, visando à obtenção de rendas (rent seeking) e pela visão neoclássica das instituições que privilegiava os direitos de propriedade e a fluidez dos mercados como mecanismos propulsores da inovação e do crescimento. Capeava este tripé a teleologia do “fim da história”, que apontava para a tendência de todos os países a convergirem rumo a sociedades em que a economia era regida pelo mercado e a política pelos mecanismos da democracia representativa. Subjacente ao tripé estava o individualismo metodológico.

Essa combinação levava a focar a estratégia de desenvolvimento nas transformações da estrutura institucional. “Adotar as instituições corretas” tornou-se o mantra do desenvolvimento a ser aplicado urbi et orbe. As instituições “corretas” eram as do mercado e cabia aos países que haviam incorrido no pecado original do desenvolvimentismo reduzir e controlar a intervenção do Estado e abrir suas economias ao mundo, em termos comerciais, financeiros e de investimento. A seguir, seriam necessárias outras reformas institucionais, de “segunda geração” e de “gerações” subsequentes, mas, com fé e perseverança, virtudes teológicas chegar-se-ia, enfim, à Terra Prometida da sociedade pós-histórica.

No entanto, os dias em que Fukuyama (1989) anunciava o “fim da história”4 e o padrinho do Consenso de Washington5 dizia ser este o “Consenso Universal” que “resumia o núcleo de sabedoria comum adotado por todos os economistas sérios”, ensejando, assim, ampla coalizão de forças políticas a favor das reformas (WILLIAMSON, 1993, p. 1.334), ficaram para trás.

O seu fim foi determinado por causas concretas – as sucessivas crises internacionais dos anos 1990, que mostraram o risco de confiar muito no caráter benfazejo do capitalismo internacional, o fracasso de casos exemplares de aderência ao Consenso, como a Argentina, especialmente quando comparado com o sucesso de caminhos heterodoxos, seguidos por países como a China e a Índia e, especialmente, as baixas taxas de crescimento obtidas nos países em desenvolvimento. Com efeito, o crescimento do produto per capita nesses países durante a vigência da convenção neoliberal foi menos da metade do que alcançaram durante os anos 1960 e 1970, quando seguiram a convenção desenvolvimentista (CHANG, 2007).

A realidade impôs-se também no campo teórico. Reconheceu-se que os agentes econômicos não têm pleno conhecimento do mundo e que formam suas expectativas por meio de um processo de aprendizado; que os mercados, notadamente o de tecnologia, mola propulsora do desenvolvimento, são imperfeitos; que nem toda intervenção estatal redunda em “rendas improdutivas” e, finalmente, que as instituições estão inseridas em contextos específicos, definidos historicamente, e que, portanto, mesmo que sejam formalmente iguais, operam distintamente.

Assim, foram-se as “listas de lavanderia” de reformas institucionais destinadas a transformar Zâmbia na Suécia da noite para o dia. Reformas abruptas e radicais (big bangs) perderam seu charme. A história está de volta por meio do reconhecimento da diversidade das trajetórias nacionais de desenvolvimento – uma das marcas do antigo desenvolvimentismo – e da importância da cumulatividade e da dependência em relação ao passado. A economia política também voltou – veja-se, por exemplo, a acusação feita por Stiglitz (2002) de que as políticas de “ajuda” do FMI aos países endividados durante a década de 1990 atendiam, em verdade, aos interesses do capital financeiro internacional. Até a política industrial – verdadeiro palavrão para os bem-pensantes durante os anos 1990 – foi resgatada por nada menos que o Banco Mundial (WORLD BANK, 2007).

No entanto, a economia política da convenção liberal – notadamente, o fim do “socialismo real” na Europa, a crise do Estado de Bem-Estar nos países desenvolvidos e, especialmente, a hegemonia do capital financeiro sobre os demais (a “financeirização” do capitalismo) – não desapareceu apesar da recente crise, conforme será discutido a seguir.

Nesse quadro, ainda não se divisa uma nova convenção de desenvolvimento – a cautela, quase um agnosticismo, prevalece na esfera internacional. Exemplar, nesse sentido, é o recente relatório da Comissão Spence, cujo nome deriva do seu presidente, o prêmio Nobel Michael Spence,6 voltado para o crescimento sustentável e socialmente inclusivo, sob o patrocínio do Banco Mundial, de uma fundação internacional e de governos de diversos países desenvolvidos. A comissão foi composta por “19 líderes”, a maioria vindos dos países em desenvolvimento, mas incluindo dois Prêmios Nobel em economia (Robert Solow e Michael Spence), e realizou, ao longo de dois anos, 12 reuniões de trabalho, para as quais contribuíram “mais de 300 notáveis acadêmicos” (SPENCE COMMISSION, 2008). Insumo intelectual ortodoxo não foi, pois, o que faltou.

A comissão baseia suas recomendações sobre a análise de 13 países7 que tiveram “crescimento alto e sustentado” no período do pós-guerra – uma lista que abrange de Botswana e Malta até a China e o Brasil.8 Note-se que a lista, apesar da sua heterogeneidade, não inclui aderentes à convenção neoliberal, com a possível exceção de Hong Kong. Ou seja, a nova ortodoxia confere respeitabilidade às estratégias “desviantes”, um artifício retórico semelhante ao executado pelo Banco Mundial no início dos anos 1990 ao analisar o caso dos países do sudeste asiático (WORLD BANK, 2007).

As conclusões da comissão não chegam a surpreender. Os 13 países teriam em comum cinco pontos:

  1. Exploraram plenamente a economia mundial.
  2. Mantiveram estabilidade econômica.
  3. Obtiveram altas taxas de poupança e investimento.
  4. Deixaram os mercados alocarem recursos.
  5. Tiveram governos comprometidos, críveis e competentes.

Embora as conclusões pouco se adicionem a listas semelhantes, o que mais chama atenção são as qualificações apostas a todas as recomendações. Estas vão do geral ao particular. Tomamos apenas dois exemplos, remetendo o leitor interessado ao texto do relatório.

Ao tratar de política econômica, após reconhecer que as recomendações anteriores de simplesmente “estabilizar, privatizar e liberalizar” constituem uma “afirmativa extremamente incompleta”, a comissão conclui que “nosso modelo das economias em desenvolvimento é muito primitivo neste momento para predefinir com sabedoria o que os governos deveriam fazer” (SPENCE COMMISSION, p. 30) e, a seguir, antes de especificar os “ingredientes de política para estratégias de crescimento”, a comissão adverte que “da mesma forma que não podemos dizer que essa lista é suficiente, não podemos dizer com segurança que todos os ingredientes são necessários” (SPENCE COMMISSION, p. 33).

De forma análoga, ao discutir o problema de estabilidade macroeconômica, a comissão realça que “economistas e formuladores de política […] discordam a respeito da definição precisa de estabilidade e a respeito da melhor maneira para preservá-la” (SPENCE COMMISSION, p. 53) e, após discutir as políticas monetária e fiscal, adverte que as regras atinentes a essas políticas “podem tornar-se contra-produtivas se forem aplicadas muito estritamente e por tempo demasiado”, concluindo que as ditas regras devem preservar um elemento de “ambiguidade criativa” (SPENCE COMMISSION, p. 54).

Cautela semelhante transparece na análise de Ben Bernanke (2007), certamente insuspeito de heterodoxia. Após declarar que a estabilidade de preços “é uma coisa boa em si”, e que, a longo prazo, a inflação baixa promove crescimento, eficiência e estabilidade, que, por sua vez, apoiam o nível máximo de emprego sustentável, ele admite que “medir a relação de longo prazo entre crescimento ou produtividade e inflação é difícil” e acaba propondo um consenso negativo, que políticas inflacionárias não promovem o crescimento do emprego a longo prazo (BERNANKE, 2007 p. 2). Posteriormente, após analisar como o Federal Reserve Board prevê a inflação futura, conclui que “em resumo, apesar de todos os avanços que foram feitos em modelagem e análise estatística, na prática, a previsão continua a envolver tanto arte como ciência” (BERNANKE, p. 6).

A recente crise internacional introduziu novos elementos de incerteza no pensamento sobre o desenvolvimento.

Na interpretação ortodoxa, a crise atual tem raízes no “otimismo, gerado por longo período de alto crescimento e baixas taxas de juros reais e volatilidade, junto com falhas de política” (IMF, 2009, p. xix). Essas falhas estariam concentradas na regulação financeira, que não estava equipada para lidar com a concentração de risco e incentivos distorcidos subjacentes ao boom de inovação financeira e nas políticas macroeconômicas, que não levaram em conta o acúmulo de riscos sistêmicos no sistema financeiro e nos mercados de habitação (IMF, 2009).

Assim, recomenda-se aos governos que ampliem o perímetro da regulação do sistema financeiro, cobrindo todas as instituições que sejam sistemicamente relevantes. Os bancos centrais deveriam adotar uma visão macroeconômica mais ampla, dando atenção à estabilidade financeira, além da estabilidade de preços, incluindo o movimento dos preços dos ativos e o crescimento do risco sistêmico do sistema financeiro. Embora reconheça a importância da intervenção do Estado, notadamente da política fiscal, para lidar, a curto prazo, com a crise, essa intervenção é vista como geradora de “distorções” (CLAESSENS, 2009) e deveria ser removida o quanto antes.

Nessa visão, os desequilíbrios mundiais teriam pouca relevância no desencadeamento da crise, cabendo a todos os países evitar o protecionismo, seja nos termos explícitos das políticas comerciais, seja, implicitamente, pela proteção dada a indústrias e empresas nacionais.

Em síntese, removendo imperfeições observadas nos mercados e, notadamente, nas políticas macroeconômicas, o sistema voltaria à “normalidade”.

Outras análises apontam, porém, para desequilíbrios de natureza estrutural, tanto no âmbito de países líderes – a baixa taxa de poupança nos Estados Unidos e o baixo consumo doméstico na China – (BLANCHARD, 2009), quanto no âmbito dos fluxos financeiros internacionais (JOHNSON, 2009). Em termos mais agregados, a crise refletiria a “financeirização” do capitalismo e a hegemonia do capital financeiro sobre o produtivo (CHESNAIS, 2005).

Os dados recentes sobre o desempenho econômico dos países avançados têm propiciado a interpretação de que “o pior” da crise já passou e, a partir de 2010, haveria uma retomada do crescimento. Há muitas dúvidas quanto à rapidez dessa retomada, expressas, sinteticamente, se ela teria o formato de V, rápida, portanto, ou de U, sendo, pois, precedida de um período de estagnação. Os mais precavidos advertem que existem indícios de formação de novas bolhas especulativas – por exemplo, nos mercados de commodities –, que podem levar o sistema a uma configuração de W, com novas crises.

A menos que essa última configuração se verifique, o âmbito das reformas tende a se manter restrito. Conforme identifica Helleiner (2008), existem dois diagnósticos dominantes no debate internacional sobre modificação da regulação do sistema financeiro internacional. O primeiro aponta que os reguladores perderam o passo em relação ao sistema financeiro internacional e o segundo argumenta que o atual sistema tem um viés pró-cíclico, porque está baseado no mercado para avaliar ativos e riscos. Ambos conduzem a medidas incrementais de ajuste, semelhantes às que já vinham sendo debatidas no âmbito do G-7 antes da crise. O controle de capitais, muito debatido após a crise de 1997-1998, aparece, hoje, com ênfase reduzida. Ou seja, o sistema financeiro internacional vem resistindo, discreta, mas eficazmente, às propostas mais radicais de (re)regulação. Stiglitz (2009) já apelidou o plano do atual governo americano para lidar com os bancos de “um substituto inferior (ersatz) de capitalismo”, um jogo de ganha, ganha, perde – os bancos ganham, os investidores ganham e os contribuintes perdem. Em outras palavras, a economia política da financeirização mostra a sua força.

Aos países em desenvolvimento, a crise atual reiterou, com maior ênfase que as anteriores, os riscos inerentes à recomendação da Comissão Spence, antes citada, de “explorar plenamente a economia mundial”, notadamente os riscos da integração financeira internacional. Ao mesmo tempo, a atuação conjunta dos bancos centrais dos países desenvolvidos mostrou a importância da ação coletiva e de mecanismos formais e informais de coordenação.

No auge da crise, a importância de alguns desses países, notadamente os superavitários em divisas e os que têm maiores mercados internos, reunidos no G-20, foi reconhecida pelos países mais avançados. Não obstante, a continuidade do processo de descentralização mundial das decisões econômicas e financeiras ainda não está clara e, provavelmente, dependerá muito do formato da recuperação (se em V, U ou W) dos países do G-7.

Em síntese, a convenção neoliberal e os interesses que nela encontram sua representação social tentam adequar-se à crise e às suas implicações. Embora a crise tenha posto fim à fé na capacidade de autorregulação dos mercados e nos efeitos benéficos desta regulação e o Estado tenha voltado ao centro da cena para, como deus ex machina, resgatar o mercado dos seus desatinos, há forte corrente que prevê e auspicia uma volta à “normalidade” pré-crise, corrigida institucionalmente para evitar a reincidência. No entanto, é possível que estejamos diante de um fenômeno de histerese, no qual não é possível retornar a uma antiga trajetória depois que ela foi modificada por um evento significativo como a recente crise.

Na ausência de uma convenção de desenvolvimento forte no plano internacional, os diversos países terão, mais do que nunca, de buscar suas convenções internamente. “Crise”, conforme o conhecido clichê (um conhecimento comum), aponta para “problemas” e “oportunidades”.

3 As convenções de desenvolvimento no governo Lula

3.1   A incerteza e o discurso de posse: A necessidade de uma nova convenção de desenvolvimento

Todo começo de governo é incerto, mas, no início do primeiro mandato do presidente Lula, a incerteza era extraordinária. Embora durante a campanha eleitoral de 2002 o candidato Lula tivesse abandonado a retórica radical de “ruptura com o modelo neoliberal” em favor de uma “transição lúcida”, assegurando, na Carta aos Brasileiros, “o respeito aos contratos”, pairavam sobre seu futuro governo as dúvidas decorrentes do seu passado, em que figurava inclusive a profissão de fé no socialismo (por mais indefinido que este fosse), o preconceito social contra um ex-operário e a insistência dos seus oponentes, secundada pela mídia, sobre sua falta de preparo intelectual para o exercício da Presidência. Somava-se a essas dúvidas a brusca deterioração da economia no segundo semestre de 2002, quando a ação conjunta de vários atores econômicos, temerosos quanto aos resultados das eleições e visando a estabelecer condições de barganha vantajosas, produziu brusca elevação da taxa de inflação, desvalorização da taxa de câmbio e redução da taxa de crescimento. Para completar, as cores do quadro internacional eram sombrias: ainda se faziam sentir os efeitos das crises da Argentina e das empresas de energia e tecnologia de informação e os atentados de 11 de setembro de 2001 tornavam iminente nova guerra no Golfo.

Respondendo à incerteza, o discurso de posse de Lula no Congresso reiterou sua convicção de que o antigo modelo estava esgotado e que “mudança” era a palavra-chave, mesmo que esta devesse ser gradual, perseguida com paciência e perseverança. Para tanto, eram necessários um “projeto nacional de desenvolvimento”, apoiado em um “planejamento estratégico”.

Tal projeto seria dirigido principalmente para as necessidades dos pobres – empregos, educação, saúde e, especialmente, alimentação. Para atingir esses objetivos, Lula enfatizou a necessidade de estabilidade macroeconômica, principalmente a administração responsável das finanças públicas. O crescimento resultaria de um aumento das poupanças e dos investimentos, com foco no mercado interno, principalmente nas pequenas e médias empresas, infraestrutura e capacidade tecnológica. Uma ampla gama de reformas institucionais era prevista, nos campos fiscal, previdenciário, agrário, da legislação trabalhista e político. Para realizar esse ambicioso programa, seria necessário um novo “pacto social”, unindo trabalho e capital produtivo, para gerar uma “energia solidária”.

Pode-se interpretar tal discurso como o reconhecimento da necessidade de uma nova “convenção de desenvolvimento”, ratificada pelo fracasso do projeto liberal dos governos anteriores, expresso nas taxas de baixo crescimento e alto desemprego.9 Conforme apontado anteriormente, àquela época, o projeto liberal encontrava-se na defensiva, inclusive no plano internacional. O apelo a um “pacto social amplo” também era consistente com o “presidencialismo de coalizão”, que caracteriza o sistema político brasileiro e que obriga o presidente a realizar coalizões com forças que não sustentaram a sua candidatura e que têm objetivos programáticos – quando os têm – distintos.

Na verdade, a necessidade de uma nova convenção, de natureza mais inclusiva do ponto de vista econômico e social, foi interpretada de forma diferenciada, gerando duas convenções distintas, tratadas a seguir, a partir de documentos programáticos governamentais.10

Antes, porém, cabe registrar uma ironia da história. Ao governo Cardoso, que apostou todas as suas fichas no comportamento favorável do mercado externo, coube um período de grande conturbação desse mercado – da crise mexicana à argentina, passando pela nossa. Ao contrário, o governo Lula, que iniciou sob o consenso de restrições externas, foi beneficiado, a partir de meados de 2003, por enorme expansão do comércio e da liquidez internacionais, concentrado o primeiro em commodities primárias e produtos semielaborados, em que o Brasil conta com inequívocas vantagens comparativas. O fantasma da restrição externa só viria a se manifestar no fim de 2007, despertado, do lado interno, pelo galopante aumento das importações e, do lado externo, pela crise do sistema financeiro internacional, que, iniciada no segmento de hipotecas dos Estados Unidos, ampliou-se a partir de setembro de 2008.

3.2 A Convenção Institucionalista Restrita

O cerne da convenção institucionalista, tal como apresentada pelo Ministério da Fazenda e pelo Banco Central, é o estabelecimento de normas e organizações que garantam o correto funcionamento dos mercados, de forma que estes cumpram suas funções de alocar recursos do modo mais produtivo, gerando poupanças, investimento e, em consequência, crescimento econômico. Quanto mais eficientes forem os mercados em termos presentes e futuros, maior será a probabilidade de crescimento. Para tanto, são essenciais a garantia dos direitos de propriedade e a redução dos custos de transação, que, por sua vez, demandam instituições estatais eficientes. Os mercados têm dimensão internacional e, portanto, a abertura da economia, em termos comerciais, financeiros e de investimento é essencial para o desenvolvimento.

A inovação, tecnológica e institucional, é vista como o motor do desenvolvimento e a abertura internacional desempenha importante papel no seu estímulo, notadamente para os países de industrialização retardatária, que se beneficiam da importação de tecnologias mais produtivas, incorporadas ou não em bens de capital e insumos.

Como o mercado de conhecimentos é inerentemente imperfeito, a intervenção do Estado é, nesse campo, necessária, assim como em atividades em que há “monopólios naturais”.

Dada a conhecida carência brasileira em inovação e infraestrutura, o Estado deveria ter papel ativo no seu fomento. Para esta última havia, no Ministério da Fazenda, clara preferência pelo modelo principal–agente, no qual o governo (o principal) fixa as diretrizes de política e a agência (o agente), apoiada em regras estáveis e transparentes de gestão, executa tais diretrizes e presta contas ao principal por sua execução. Esse modelo – destinado a evitar as ineficiências do suprimento direto de serviços por instituições estatais e, ao mesmo tempo, a reduzir os riscos de “captura” das agências pelos seus regulados – havia sido adotado no Brasil nos setores privatizados (com variados graus de sucesso) e, conforme discutido em mais detalhe a seguir, para execução do regime de metas inflacionárias pelo Banco Central.

A adesão do governo Lula a esse modelo organizacional foi muito parcial. As relações governo–agências setoriais tem sido marcada por fortes conflitos. A exceção corre pelo caso do Banco Central que manteve sua independência operacional.

Reconhecida a prioridade a ser dada a uma distribuição de renda mais equitativa, inclusive para os objetivos de maior crescimento, recomendava-se não só o investimento em capital humano por meio da educação, como políticas “focalizadas” nos “pobres”.  A “focalização”, que seguia o cânone estabelecido por instituições internacionais como o Banco Mundial, encontrava apoio no diagnóstico de que os gastos sociais feitos pelo Estado brasileiro eram significativos – o problema estava na sua ineficácia, posto que parte substancial desses gastos estaria dirigida aos “não pobres”. A solução, pois, era a “focalização” nos “pobres” por meio de mecanismos institucionais eficientes e eficazes, mesmo que tal orientação estivesse em oposição ao “universalismo” das políticas públicas defendido pelo Partido dos Trabalhadores (PT). O Bolsa Família viria a concretizar a focalização.

A estabilidade de preços e a expectativa dos atores econômicos de que esta é duradoura constituem parte indispensável dessa convenção, posto que afetem não apenas as transações correntes como os contratos futuros e, portanto, a poupança e o investimento. Ao mesmo tempo, afeta positivamente a equidade, posto que os “pobres” tendem a ser mais afetados pela alta inflação.

O cânone atual condiciona a estabilidade ao estabelecimento de regras formais que disciplinem o comportamento do governo e dos agentes privados. Tais regras se expressam por meio de metas, fiscais e de inflação, que permitem à sociedade monitorar o desempenho do governo. Implícita está a crença na tendência do governo em incorrer em um “viés inflacionário”, mas os agentes privados também necessitam ser disciplinados, cabendo à política monetária do Banco Central o papel essencial na “ancoragem” das expectativas, por meio de metas inflacionárias, e à flexibilidade da taxa de câmbio a correta adequação da economia às condições internacionais.

Ao iniciar o primeiro mandato do presidente Lula, o Ministério da Fazenda (2003) anunciou que “o novo governo tem como primeiro compromisso da política econômica a resolução dos graves problemas fiscais que caracterizam nossa história econômica, ou seja, a promoção de um ajuste definitivo das contas públicas” (p. 8, ênfase do documento). No mesmo sentido de estabilização, deveria ser dada prioridade à reforma da Previdência, conferida autonomia legal ao Banco Central e reforçados os direitos de credores, o que, em tese, conduziria a uma redução dos prêmios de risco e, portanto, à redução da taxa de juros.

“Reforma fiscal” é um bordão de todo ministro da Fazenda a partir da agonia do Estado desenvolvimentista nos anos 1980 e constitui um tema que, enunciado em termos gerais, evoca consenso, mas que, quando se busca implementá-lo, esbarra em interesses incontornáveis e irreconciliáveis, à semelhança das reformas administrativa e política. À falta de poder político, o governo Lula seguiu as linhas de menor resistência, aumentando a carga tributária, sem deixar de enviar ao Congresso a ritual proposta de reforma, que se encontra “em discussão”. Por sua vez, feita uma pequena reforma na Previdência, o tema foi abandonado.

Quanto às reformas dirigidas ao sistema monetário e financeiro, o Banco Central não ganhou sua independência legal, mas seu presidente foi alçado ao status ministerial e a organização reteve sua capacidade de estabelecer objetivos e sua forte autonomia operacional para implementá-los. Os direitos dos credores foram reforçados (por exemplo, via Lei de Falências e instituição da alienação fiduciária para créditos habitacionais), mas os efeitos da sua maior segurança sobre as taxas de juros são difíceis de discernir.

O silêncio é tão eloquente como a fala. Embora privilegiasse a eficiência institucional, o documento da Fazenda omitia-se quanto a reformas institucionais de caráter estrutural, como a reforma administrativa do Estado e a reforma política, apesar dos inequívocos efeitos destas sobre a eficiência dos mercados e do próprio Estado. A trajetória histórica manifestava seu peso.

Do ponto de vista cognitivo, as reformas institucionais propostas eram derivadas da convenção liberal antes descrita e faziam parte da “segunda geração” de reformas do Consenso de Washington (RODRIK, 2004). Ou seja, podiam ser interpretadas como a continuidade do processo de reformas liberais iniciadas na década de 1990. Não obstante, apontavam para problemas estruturais, como a reforma fiscal e o equacionamento financeiro da Previdência. A solução desses problemas não necessita ser feita segundo as propostas liberais – soluções alternativas podem ser encontradas, desde que a importância dos problemas seja reconhecida e as diversas alternativas debatidas e resolvidas politicamente. A minimização do debate e o adiamento das soluções apontam para uma preferência pelo curto prazo e, provavelmente, para as dificuldades inerentes à governança no “presidencialismo de coalizão”. A mesma conjectura aplica-se às reformas omitidas.

Concebida de forma restrita e implementada parcialmente, a agenda institucionalista acabou por restringir sua prioridade à estabilização de preços, deixando o Banco Central no epicentro da política macroeconômica. Essa configuração não é nova – remonta aos anos 1980, durante os anos de agonia do desenvolvimentismo, em que o principal instrumento para impedir a eclosão da hiperinflação foi a alta taxa de juros paga por títulos da dívida pública, transformados em quase moeda. A centralidade do Bacen foi mantida no governo Collor, seja sob a gestão de Ibrahim Eris, seja quando Marcílio Marques Moreira ocupou o Ministério da Economia e utilizou a taxa de juros para conter a demanda, indexar a economia e atrair capitais estrangeiros, condições que favoreceram a posterior implementação do Plano Real. Durante o primeiro governo Cardoso, o poder do Bacen foi ainda maior, tendo imposto, sob a égide da estabilização de preços, a ancoragem cambial, a despeito da oposição de parte da equipe econômica. Apesar de ter conduzido o país à anunciada crise de 1999, o Bacen ressurgiu das cinzas sob o regime de metas de inflação, com poderes ampliados.

As metas de inflação, na institucionalidade brasileira, são definidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). As atas do conselho, que poderiam indicar quais os critérios usados para sua definição, não são divulgadas, mas pode-se supor que, à semelhança do Federal Reserve Board, envolvam “ciência e arte”. Dado o traumático passado inflacionário brasileiro e os efeitos deletérios da inflação sobre os rendimentos das camadas mais pobres da população, que compõem o grosso do eleitorado, há compreensível relutância política de parte do governo em mostrar-se leniente com a inflação, o que torna a definição de metas dependente da sua evolução anterior. Finalmente, sabe-se que, na avaliação de executivos do Banco Central (BEVILAQUA et al., 2007), a estabilidade de preços está por eles associada a uma taxa de inflação inferior a 5% anuais.

Como se sabe, no regime de metas de inflação em que o Banco Central tem, nominalmente, apenas autonomia operacional, o banco recebe as metas de uma autoridade e tem a incumbência de executá-las, seguindo normas de transparência e de prestação de contas – um arranjo institucional do tipo principal–agente. No caso brasileiro, a separação entre fixação e execução (principal e agente) de metas é muito parcial, posto que o presidente do Banco Central tem assento no Conselho Monetário Nacional, ao lado dos ministros da Fazenda e do Planejamento, e sua opinião, lá, pesa e muito.

Cabe, ainda, insistir sobre dois pontos. Primeiro, o centro da meta inflacionária e a banda de variação são o resultado de uma decisão discricionária, “política”, como se pode dizer. A dependência em relação à trajetória passada não impede que, face a mudanças bruscas de cenário ou a objetivos eventualmente conflitantes com a manutenção do centro da banda, este ou os seus limites sejam alargados pelo CMN. Na verdade, o próprio Bacen pode fazê-lo, como já o fez em janeiro de 2003, quando “ajustou” o centro da meta em função da crise do segundo semestre do ano anterior, e em setembro de 2004 a título de acomodação à inércia inflacionária (BEVILAQUA et al., 2007). Em segundo lugar, como testemunha o insuspeito Bernanke (ver anteriormente), por mais sofisticados que sejam os modelos de previsão, há uma necessária dose de discrição nessas previsões.

Conforme explicado por alguns de seus executivos, o Bacen

[…] guia suas decisões de política [para atingir as metas] por suas próprias previsões de inflação e dos respectivos balanços de riscos. As expectativas de inflação do mercado são insumos importantes nos modelos de previsão do Bacen […] e são influenciadas pelo comportamento passado da inflação, as metas de inflação, o desenvolvimento da taxa de câmbio e do preço das commodities, a atividade econômica e o posicionamento da política monetária (BEVILAQUA et al., 2007, p. 5).

Embora acreditem que o peso do passado na definição de expectativas tenha diminuído, atestando o sucesso da política de metas, constatam que:

[…] muitas vezes, as expectativas apresentaram reações excessivas a eventos correntes, especialmente a surpresas inflacionárias. Assim, o Bacen frequentemente teve de agir de modo que impedisse que desenvolvimentos negativos de curto prazo contaminassem as perspectivas de médio prazo. Nesse sentido, “o processo de desinflação tem sido, e ainda é, um processo de domar as expectativas inflacionárias” (BEVILAQUA et al., 2007, p. 5, ênfase adicionada).

Ao longo desse processo de disciplinar o mercado, “os custos de curto prazo, em termos de atividade econômica perdida, devem ser vistos como um investimento em estabilidade” (BEVILAQUA et al., 2007, p. 13).

Como se sabe, nesse processo de livrar os atores econômicos do peso do passado e de domar as expectativas inflacionárias, o Bacen vem praticando taxas de juros que, apesar de oscilarem, estão sempre entre as mais altas do mundo. Ao fazê-lo, condiciona as outras duas pontas do tripé de políticas macro. Do lado cambial, a entrada de capitais estrangeiros, atraída pelo diferencial de juros, valoriza o real e contém o preço de bens e serviços comercializáveis internacionalmente. O uso de swaps cambiais reversos – em que as instituições financeiras ficam passivas em dólar e ativas em Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic)/Certificados de Depósito Interbancário (CDI) e o Banco Central fica na posição inversa – adicionou importantes aliados à política de manter a Selic elevada e a taxa de câmbio valorizada estável. Do lado fiscal, obriga a política a estabelecer suas metas em termos primários, comprimindo gastos, notadamente de investimento, de forma que liberasse recursos para o pagamento de juros sobre a dívida pública – não incluídos no resultado primário.

Argumenta-se com frequência que a estabilidade de preços tem a natureza de um bem público, no sentido de que ninguém pode ser excluído de seus benefícios. No entanto, a política anteriormente resumida tem distintos perdedores e ganhadores.

Entre os perdedores, os devedores encimam a lista. Entre estes, destaca-se o Estado, que pagou, em média, cerca de 7% do produto interno bruto (PIB) ao ano à conta de juros no período 2003-2008, aproximadamente dez vezes o gasto no programa Bolsa Família. Dado que a tributação no Brasil é notoriamente regressiva, resulta uma maciça transferência de renda dos pobres para os ricos.

Há também perdedores no setor privado – todos os que necessitam utilizar mecanismos de crédito, dos consumidores que desejam adquirir ativos familiares a empresas que precisam financiar o seu capital de giro e investimentos.

Em consequência, a demanda final de bens de consumo é contida, com reflexos sobre toda a cadeia produtiva e os investimentos. O curto prazo da política monetária e o poder discricionário do Bacen aumentam a incerteza e o alto rendimento, grande liquidez e baixo risco das aplicações financeiras elevam a taxa mínima de retorno (hurdle rate) dos investimentos produtivos. Assim, o portfólio de investimentos produtivos das empresas tende a se concentrar em projetos de curto prazo e baixo risco.

As aplicações dos grandes gestores de recursos financeiros, como os fundos de pensão, sofrem o mesmo viés, e o sistema financeiro é encorajado a concentrar suas operações em títulos públicos, em detrimento da concessão de crédito. Esta tende a priorizar operações de curto prazo e baixo risco. Em consequência, o sistema privado de financiamento torna-se pouco funcional para as transformações estruturais típicas do desenvolvimento, deixando este papel a cargo dos bancos públicos, notadamente o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e Caixa Econômica Federal (CEF).

Atividades cruciais para o desenvolvimento, como a inovação, notadamente projetos mais criativos, são desestimuladas, a taxa de crescimento do emprego diminui e o crescimento e a igualdade também.  O “investimento em estabilidade” tem altos custos.

Do outro lado da lista, entre os ganhadores destaca-se, primum inter pares, o sistema financeiro. O balanço consolidado dos bancos brasileiros mostra que o volume de lucros líquidos triplicou entre 2003 e 2007 e que a sua taxa de lucro passou de 14,8% em 2003 para 22,9% em 2007 (VALOR ECONÔMICO, 2008). No entanto, o sistema financeiro não está só. Investidores institucionais como fundos de pensão, companhias de seguro, empresas com alta geração de caixa (por exemplo, empresas industriais produtoras de bens intermediários, produtores e vendedores de commodities agrícolas, atacadistas, cadeias de lojas de bens de consumo) também se beneficiam, assim como os domicílios mais ricos, notadamente os que pertencem ao 1% superior da pirâmide de distribuição de renda e recebem cerca de 13% da renda total do país. Os dados de Bruno (2007) sobre a participação dos “rentistas” na renda nacional indicam que as empresas não financeiras e os indivíduos receberam, na média, cerca de 80% das rendas financeiras durante o período 1995-2005.

A valorização do câmbio é irmã siamesa dos altos juros. Os exportadores e os produtores locais de bens comercializáveis são os principais prejudicados pela valorização. No entanto, entre os primeiros, os que exportam commodities, seja produtos primários, seja semielaborados, foram, a partir de 2003, parcialmente compensados pelo aumento dos preços no mercado internacional e, sendo grandes geradores de caixa, pelos altos juros locais. Em contrapartida, os importadores de bens e serviços beneficiam-se muito com a valorização do câmbio, de tal forma que, apesar das condições favoráveis para as exportações brasileiras, o saldo em transações correntes, medido como participação no PIB, que havia chegado a quase 2% em 2004, foi praticamente nulo em 2007 e negativo (1,8%) em 2008. Vistas pelo ângulo da conta de capitais, as duas irmãs atuam no sentido de favorecer as empresas que têm condições de aceder ao crédito externo e a todos a quem convém remeter recursos para o exterior, seja para investimentos – principalmente os produtores de commodities –, seja a título de juros, lucros e dividendos, cujo montante passou de US$ 18,6 bilhões em 2003 para US$ 37,3 bilhões em meados de 2008. Entre os beneficiários, conta-se o Tesouro, que eliminou sua dívida externa, passando a ser credor líquido. Finalmente, conforme já apontado, as instituições financeiras que fazem contratos de swap reverso são beneficiadas pelas duas irmãs.

Existe, pois, ampla e poderosa constelação de interesses, estruturada ao longo do tempo em torno à combinatória altos juros/câmbio valorizado, que estabeleceu uma convenção que estes elementos são essenciais para o desenvolvimento do país.

Argumentos como o “pecado original” da moratória de 1987, a “incerteza jurídica” dos credores e o crédito “não livre” ou o déficit público são oferecidos como justificativa. Fatos como as taxas de juros muito mais baixas que as brasileiras em países que também entraram em moratória, como o México, a concessão de “grau de investimento” por agências internacionais de avaliação de risco, que deveria ter redimido o pecado, o reforço das garantias dos credores, já mencionado, a falta de disposição do sistema financeiro privado para o crédito agrícola e de longo prazo e o bom desempenho fiscal do governo são convenientemente omitidos. Provavelmente, pouco importam – o que conta é a manutenção da convenção.

Essa coalizão de interesses tem poderosos instrumentos para consolidar e difundir sua convenção de desenvolvimento. O mais explícito está nas mãos do sistema financeiro, como demonstrado na crise do segundo semestre de 2002, que tão efetivamente domou as expectativas do governo entrante. Mas há outros instrumentos, mais sutis, como o financiamento de campanhas políticas,11 as relações com os membros do Congresso, os “anéis burocrático-empresariais” de que, no passado, falava Cardoso, o sociólogo, e as relações com a mídia, que difunde a convenção de estabilidade.

O Banco Central é um membro necessário dessa coalizão – é a instituição que concebe e executa a política monetária, com os efeitos já apontados sobre a política cambial e fiscal – sem que isto implique, necessariamente, “captura” no sentido da “escolha pública”. Para o estabelecimento da coalizão e da convenção que lhe serve de representação social, basta que o Banco Central e os membros privados derivem benefícios conjuntos da mesma política – no caso, o prestígio de cumprir as metas e os lucros derivados dos altos juros e do câmbio valorizado.

Além de objetivos comuns, diversos mecanismos reforçam a coesão dessa coalizão e a força da convenção a ela vinculada.

A atual estrutura do sistema financeiro brasileiro foi muito influenciada pela crise bancária de 1995 e pela privatização dos bancos estaduais, processos em que o Banco Central teve papel decisivo, participando da gênese ou do desenvolvimento de grandes grupos.12 A mesma crise levou ao aprofundamento das atividades de supervisão do sistema financeiro exercidas pelo Banco Central (por exemplo, a aplicação das Regras de Basileia), estreitando os laços entre as partes. Como toda agência reguladora, o Banco Central tem de manter contato estreito e contínuo, formal e informal, com os atores regulados, formando uma percepção comum dos problemas e das soluções. A forma como a política monetária é implementada aumenta essa integração: as estimativas de inflação feitas pelo sistema financeiro constituem importante insumo para as estimativas do Banco Central – apesar do viés favorável ao aumento de juros implícito nas estimativas privadas –, e as reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom) em que a taxa de juros básica é definida têm periodicidade fixa e, portanto, são precedidas de incontáveis manifestações de representantes do sistema financeiro sobre a decisão do comitê. Finalmente, o horizonte com que as metas são estabelecidas pelo Conselho Monetário – um ano e meio adiante – facilita a convergência entre o Bacen e o sistema financeiro.

No plano cognitivo, a convenção se expressa na crença, partilhada pelos membros da coalizão que a sustenta, na eficácia e na legitimidade do mercado como a principal instituição encarregada de organizar e conduzir a economia e a sociedade por meio de uma distribuição eficiente no uso de recursos. Tal crença valida o uso da força da coalizão para ampliar a gama de relações sociais regidas pelo mercado – a exemplo da saúde, da previdência e da educação – e vetar projetos e políticas que possam reduzir o poder do mercado em favor de outras instituições. Implícita nestas duas agendas – positiva e negativa – está a tese neoliberal de que, mesmo que o mercado não se coadune ao ideal concorrencial, as falhas introduzidas no processo de alocação eficiente de recursos pela ação de outras instituições, notadamente o Estado, são ainda maiores. Nesse sentido, a crise não resolvida do Estado desenvolvimentista manifesta-se nos aspectos político, fiscal e administrativo, cujas reformas seguem pendentes, apesar de serem amplamente reconhecidas como necessárias, joga a favor da convenção.

Um viés conservador une ainda mais o Banco Central e os interesses privados – o primeiro quer manter a estabilidade de preços, o segundo, o rentável status quo, consolidado ao longo dos anos. Ambos se opõem a mudanças estruturais que alterem a distribuição de riqueza e renda e preços relativos, aumentando o risco de inflação. Em consequência, a coalizão usa seu poder não apenas para promover políticas que a beneficiem, mas também para obstar políticas que alterem o status quo. Convenções de desenvolvimento que levem a mudanças estruturais destes parâmetros estão excluídas – um bom exemplo de manutenção de trajetória.

Denominamos, inicialmente, a convenção anteriormente descrita como sendo institucionalmente “restrita”. No entanto, conforme a análise aponta anteriormente, o adjetivo pode também ser aplicado à gama de mudanças estruturais que tal convenção propugna. Se desenvolvimento é mudança estrutural, trata-se, na melhor das hipóteses de um “desenvolvimento restrito”.

3.3 A Convenção Neodesenvolvimentista

Coexistindo com a convenção já descrita, mas a ela subordinada, há outra que podemos chamar de “neodesenvolvimentista”. Proposta inicialmente no Plano Plurianual de Aplicações (PPA) 2003-2007, ampliada pela Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (Pitce) e pela tentativa de estabelecer parcerias público-privadas, em 2003, encontra sua forma atual no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) 2007-2010 e na recente Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP).

A convenção repousa sobre cinco pilares, que justificam a denominação dada:

1. Investimento em infraestrutura – principalmente energia, logística e saneamento – a ser feito majoritariamente por empresas estatais e privadas, com o financiamento do BNDES e, em menor grau, diretamente pelo Estado. A descoberta de grandes jazidas de petróleo em águas muito profundas (o pré-sal) abre a perspectiva de enormes investimentos nessa área e, a seguir, da remoção da restrição de divisas pela exportação de petróleo e seus derivados. Para tanto, porém, será necessário equacionar adequadamente as condições institucionais que regerão a exploração desta área13 e o esquema de financiamento para os referidos investimentos, que, na sua maior parte, serão realizados após a conclusão do PAC atual.

2. Investimento residencial incentivado pelo crédito, público e privado, amparado por maiores garantias, como a alienação fiduciária.

3. O círculo virtuoso entre, de um lado, o aumento de consumo das famílias, derivado dos aumentos do salário-mínimo, das transferências do Bolsa Família, da expansão do emprego formal (explicado em boa parte por medidas institucionais como o tratamento tributário simplificado para pequenas empresas e maior fiscalização) e do crédito (explicado pela alta rentabilidade dessas operações) e, do outro lado, o aumento do investimento em capital fixo e inovação, incentivado pela desoneração fiscal e pelo crédito dos bancos públicos.

4.  Investimento em inovação, amparado por incentivos fiscais, crédito subsidiado e subvenções.

5. Política externa independente, que privilegia as relações com outros países em desenvolvimento (seja da América Latina, seja do grupo Brasil, Rússia, Índia e China – Bric) e busca afirmar o papel do Brasil como protagonista do processo de mudanças na arquitetura institucional mundial.

O Estado volta a assumir papel de liderança no processo de desenvolvimento, recuperando, inclusive, o protagonismo das empresas estatais e dos bancos públicos, perdido durante o período liberal.

Nos dois primeiros pilares e no último, é clara uma atualização da antiga proposta desenvolvimentista. Restabelece-se a tradicional coalizão entre empreiteiras da construção pesada e leve, fornecedores de insumos e equipamentos e seus empregados com o governo. O terceiro pilar vai além: almeja não só o consumo de massas e seu investimento derivado, sob inspiração keynesiana, mas também sanar a grande deficiência do antigo padrão desenvolvimentista: a restrita inclusão econômica, apontada por keynesianos como Furtado (1961) como óbice principal à sustentabilidade do desenvolvimentismo.

A capacidade local de inovação, buscada pelo desenvolvimentismo dos anos 1970, é, hoje, objeto de um consenso que abarca todas as correntes de pensamento, contando com forte apoio do Banco Mundial. No entanto, a Pitce de 2003 tinha forte componente heterodoxo em sua agenda positiva ao estabelecer claras prioridades setoriais e tecnológicas,14 estabelecidas em função dos seus encadeamentos tecnológicos e do seu peso na balança comercial. Essa heterodoxia foi substancialmente atenuada, em favor de políticas “horizontais”, de natureza mais canônica, possivelmente por causa da redução da restrição externa. Também, à diferença do que ocorria no período desenvolvimentista, na agenda atual não se distinguem os detentores da capacidade de inovação pela origem do seu capital e há inequívoco entusiasmo com a importação de tecnologia. Enquanto no período anterior havia a preocupação, movida por objetivos de soberania econômica nacional, de privilegiar a capacitação tecnológica sob controle nacional, esta prioridade deixou de existir.

Cabe destacar que, à diferença da antiga convenção desenvolvimentista e da convenção neoliberal, o governo Lula colocou no topo da sua agenda desenvolvimentista a redução da pobreza por meio dos mecanismos apontados no que é descrito anteriormente como o terceiro pilar desta agenda. A percepção de que os “pobres” tendem a ser os mais prejudicados em períodos de alta inflação estabelece uma ponte entre a convenção neodesenvolvimentista e a convenção institucional restrita já descrita.

No entanto, essa ponte não implica a necessária adoção das metas de inflação e das políticas monetária e cambial praticadas pelo Bacen. Outras configurações de política macro podem conduzir à manutenção da estabilidade de preços. A análise dessas configurações alternativas foge ao escopo deste ensaio, mas cabe reiterar o peso econômico e político da coalizão de interesses que se expressa por meio da convenção de desenvolvimento restrito, cuja agenda positiva postula que a atual configuração de políticas é a mais “eficiente” do ponto de vista técnico, apagando com a retórica tecnocrática e com o debate político.

Por mais que se possa criticar os programas de transferência por oferecerem poucas “portas de saída” aos seus beneficiários, a prioridade dada aos “pobres” constitui modificação crucial na agenda de desenvolvimento que, dado o seu manifesto impacto político, parece pouco provável que seja infletida no futuro. Ao mesmo tempo, a forma como a prioridade foi implementada, de outorga de um benefício pelo Estado, é consistente com a trajetória de um Estado paternalista que remonta ao varguismo15 e tem como efeito colateral a perda de importância das organizações da sociedade civil, notadamente as que representam os “pobres”.

Assim, a convenção desenvolvimentista do governo Lula também reunia um conjunto de relevantes interesses, econômicos e políticos.

Se implementado o PAC conforme previsto, estimava o governo que a taxa de investimento passaria de 16,4% do PIB, em 2006, para 21%, em 2010, e a taxa de crescimento do PIB seria mantida estável ao longo do período 2008-2010, em 5% ao ano (a.a.). Sem dúvida uma melhora em relação ao período 1998-2003, quando o PIB cresceu a uma média de 1,6% e mesmo em relação ao primeiro mandato do presidente Lula, quando, em média, o crescimento foi de 3,4% a.a. e a taxa de investimento foi 15,9% do PIB, mas longe ainda dos níveis alcançados pelo desenvolvimentismo brasileiro ou, atualmente, pelas nações asiáticas.

Admitida uma taxa de crescimento populacional de 1,5% ao ano, a taxa de crescimento prevista levaria à duplicação da renda per capita em 20 anos, o que não pode ser descrito como um objetivo muito ambicioso.  No entanto, tal taxa era compatível com as estimativas de crescimento potencial do Banco Central.

O programa partia da premissa de um cenário internacional e de evolução macroeconômica do país favorável. A inflação seria 4,1%, em 2007, e se estabilizaria em 4,5% a.a. no período 2008-2010. A taxa básica de juros declinaria lentamente, atingindo 10,1% em 2010, e o superávit fiscal primário permaneceria estável em 4,25% do PIB durante todo o período.

À época de sua elaboração, tais premissas eram plausíveis: a demanda internacional por produtos brasileiros continuava forte, compensando, em parte, a valorização do real, a crise do sistema financeiro internacional ainda não se fizera plenamente manifesta. No plano interno, o superávit primário mantinha-se nas metas previstas, e o Banco Central reduzira gradualmente a taxa de juros básica a partir de setembro de 2005, um ano após elevá-la bruscamente.

Havia outras razões para o otimismo, decorrentes da melhoria dos problemas herdados do passado. Em primeiro lugar, a taxa de investimento apresentava evolução favorável. Em 2006, havia voltado ao nível de 2002 (16,4% do PIB) e apresentava tendência crescente. Essencial para as obras de infraestrutura, o investimento público, que caíra a um nível mínimo em 2003 (0,3% do PIB), aumentara para 0,64% em 2006, prevendo-se que chegaria a 1,2% em 2009. Previa-se também que os investimentos da Petrobras, um dos pilares do PAC, que haviam caído de 0,81% do PIB, em 2003, para 0,76%, em 2006, voltariam a se elevar.16

Em segundo lugar, a redução da remuneração dos títulos do Tesouro, junto a medidas institucionais que reduziam o risco de crédito (como o crédito consignado para pessoas físicas e a alienação fiduciária para o crédito habitacional), estimularam o sistema financeiro a ampliar sua oferta de crédito que, em 2006, representava pouco mais de 30% do PIB. Associada ao aumento da massa salarial, a expansão do crédito levou a forte aumento do consumo familiar. Como a remuneração dessas operações caíra menos que a Selic, a expansão do crédito aumentava a rentabilidade do sistema financeiro.

Os dois fatores anteriormente apontados – ampliação da taxa de investimento e ampliação do crédito e da rentabilidade do sistema financeiro – não cumpriam apenas a função de implementar o PAC, asseguravam também a compatibilidade entre a  convenção desenvolvimentista e a convenção institucionalista restrita.

As convenções de desenvolvimento no governo Lula

Para o Bacen, o aumento da capacidade de oferta é essencial para um cenário “benigno” para a inflação futura, evitando que a demanda exerça pressões sobre o nível de preços. Embora o estudo de Bevilaqua et al. (2007) mostre que o hiato de produto tem pouca influência sobre as expectativas de inflação a serem domadas, a avaliação de que esta pressão de demanda poderia vir a ocorrer, reduzindo o “hiato do produto”, foi um dos principais determinantes da elevação da taxa de juros em setembro de 2004 (alta que durou um ano), visando a reduzir o crescimento do PIB, que vinha evoluindo a taxas de cerca de 6% nos trimestres anteriores (BEVILAQUA et al., 2007). Como resultado, a taxa de crescimento do PIB caiu de 5,7%, em 2004, para 3,2%, em 2005.

Conforme aponta Barbosa (2009), os estudos do Bacen sobre hiato de produto utilizam expectativas “voltadas para trás”, o que, em um contexto de aceleração do crescimento, induz a uma postura conservadora sobre o potencial de expansão da economia. Dado o poder do Bacen de afetar o crescimento, bem ilustrado pelo episódio de 2004-2005, a ampliação da taxa de investimento torna-se essencial não apenas no plano “real” como no simbólico, reduzindo a probabilidade de interrupções no processo de crescimento impostas pelo banco. Como mostra Modenesi (2008), para todo o período de aplicação do regime de metas de inflação, o Banco Central é rápido na elevação das taxas de juros e lento na sua redução.

Para o sistema financeiro, o aumento de rentabilidade trazido pela expansão do crédito era, obviamente, bem-vindo.

A compatibilidade entre as duas convenções teve curta duração.

A forte expansão na oferta de bens de capital era interpretada pelo governo como evidência da formação do círculo virtuoso entre consumo e investimento e equilíbrio entre demanda e capacidade de oferta, atenuando pressões inflacionárias.

No entanto, o círculo virtuoso de consumo–crédito–investimento parecia ter-se estabelecido principalmente no setor de construção, recuperando parte da defasagem na participação da construção na formação bruta de capital17 e na ínfima participação do crédito para construção (menos de 2% do PIB), refletida em um déficit habitacional estimado em 8 milhões de moradias.

Para os demais setores, em que pese o inequívoco aumento de investimentos, os mapeamentos feitos pelo BNDES para os períodos 2007-2010 e 2008-2011 (TORRES FILHO; PUGA, 2007; PUGA; BORÇA JR., 2007), mostravam o forte peso que a expansão da infraestrutura, notadamente em energia, tem nesse processo e que os investimentos no setor industrial continuavam concentrados em setores intensivos em capital e recursos naturais (petróleo e gás, mineração, siderurgia, papel e celulose, petroquímica), orientados principalmente para exportação e substituição de importações. Em que pese a expansão da demanda, os investimentos em bens de consumo – notadamente dos setores automobilístico, eletrônico e fármacos – respondiam por 12% do total. Dados da produção nacional de bens de capital, desagregados por uso e por setores (IEDI, 2008) apontavam na mesma direção – a expansão era mais forte em bens destinados à agricultura, à energia elétrica e ao transporte – notadamente vagões ferroviários, usados pelas indústrias extrativas. Quadro semelhante era mostrado pelas importações de bens de capital, em que, além dos já citados anteriormente, também se destacam os bens do complexo eletrônico (informática, comunicações e automação).

A maior parte dos investimentos em infraestrutura estava sendo, segundo os documentos governamentais de acompanhamento do PAC, realizada segundo o cronograma previsto, embora a imprensa registrasse vozes discordantes. Inequivocamente, existem problemas de compatibilidade entre o nível e, especialmente, o ritmo dos investimentos previstos no programa e outros objetivos de desenvolvimento, como a preservação do meio ambiente. Neste, como em tantos outros aspectos da problemática brasileira, aparecem as dificuldades institucionais inerentes ao nosso Estado, seja em termos de objetivos, seja em termos de adequação administrativa.

Na visão do Bacen, ao fim de 2007, o cenário para a inflação futura ainda era “benigno”, mas o Relatório de Inflação de dezembro daquele ano registrava sua preocupação com a pressão exercida pela demanda sobre a oferta e com o estreitamento do “hiato de produto”.

Os problemas foram substancialmente agravados pela evolução da situação internacional.

Recentemente, o ex-presidente do FED (Reserva Federal dos Estados Unidos da América – em inglês oficialmente Federal Reserve System), Allan Greenspan, ao depor no Congresso americano, descreveu a atual crise internacional como um tsunami. A metáfora é mais adequada que a da “bolha”, posto que o tsunami vem do fundo do oceano, causado por modificações sísmicas. No caso, o terreno sobre o qual repousava a enorme massa de capital financeiro em circulação pelo mundo. O deslocamento teve início no período 2004-2006, quando, após manter taxas de juros muito baixas, o FED elevou-as drasticamente (de 1% para 5,35%). Com essa elevação, o mercado de hipotecas de alto risco (subprime) entrou em crise, reconhecida pelo atual presidente do FED, Ben Bernanke, em meados de 2007. Ao longo de 2007, a crise estendeu-se ao resto do sistema financeiro e provocou um forte movimento especulativo nos preços das commodities, que subiram drasticamente.

Nesse quadro de turbulência internacional, um aumento da inflação seria provável. Com efeito, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA), que serve de baliza ao Banco Central, medido no intervalo de 12 meses, passou de 4,56% em janeiro de 2008 para 4,61% em fevereiro e 4,73% em março, superando a meta de 4,5%, mas dentro da margem de variação estabelecida pelo CMN, de mais ou menos 2%.

É legítimo duvidar se a taxa de juros, que incide principalmente sobre a demanda, é instrumento eficaz para debelar pressões de custos, de origem externa, sem que isso implique contração muito forte do nível de atividade. Em outros países, notava o Bacen, verificava-se o “caráter refratário do processo inflacionário, mesmo diante da desaceleração global” (Ata da Reunião no 134, § 57, do Copom. Disponível em: <http:// www.bcb.gov.br/?COPOM134>).

Embora vários analistas sugerissem que a elevação de preços observada no primeiro trimestre de 2008 fosse atribuível ao aumento nos preços internacionais das commodities, o Bacen preferiu interpretá-la como sendo causada pela pressão da demanda interna sobre a capacidade produtiva e, estimando que havia forte risco de a inflação ficar acima do centro da meta, deu início, em abril, a um novo – e forte – ciclo de elevação da taxa básica de juros, que passou de 11,25% ao ano em março para 13,75% em setembro, mantida em outubro. Outras medidas, como a redução dos prazos de financiamento, que seriam eficazes para conter uma demanda movida a crédito, mas que teriam prejudicado o setor financeiro, não foram tomadas.

O silêncio obsequioso do CMN, principal do qual o Bacen é agente, mostra bem a força da convenção de estabilização vigente no país.

3.4 A Crise e os seus desdobramentos

A partir de setembro de 2008, como se sabe, a crise internacional assumiu dimensões sistêmicas, comparadas por muitos aos eventos de 1929. O tsunami estendeu-se pelo mundo, afogando no seu percurso a tese do “descolamento” dos países em desenvolvimento.

Até então, a crise internacional – que eclodira um ano antes – havia repercutido no Brasil principalmente por meio da elevação dos preços das commodities e da saída de capitais, lucros e dividendos, visando, em boa parte, a cobrir perdas sofridas pelos investidores nos países centrais,18 derrubando as cotações da Bolsa de Valores e fechando um canal de capitalização de empresas que vinha tendo utilização crescente, dado o alto custo do crédito.19 No entanto, a taxa de câmbio mantinha-se estável e valorizada.

O governo reagiu, inicialmente, como outros que o precederam, reduzindo o tsunami a uma “marola”. Assim, como no passado fomos “diferentes” do México em 1982 e 1994, da Ásia em 1997, da Rússia em 1998 e da Argentina em 2001, agora éramos “diferentes” dos países desenvolvidos: nossos “fundamentos” são mais sólidos.20 No entanto, como em 1973, o Brasil mostrou, mais uma vez, que não é uma “ilha de tranquilidade” no encapelado mar internacional. A crise manifestou-se, imediatamente, por uma elevação na taxa de câmbio e pela contração da liquidez, mostrando que a retórica do “descolamento” é ineficaz, podendo até ser contraproducente. A busca de ganhos financeiros por parte de grandes e médias empresas que apostaram com derivativos na manutenção da taxa de câmbio impôs-lhes pesadas perdas, mostrou importantes falhas nos mecanismos de regulação do mercado e aumentou a incerteza, à semelhança do que ocorreu em outros países.

Com a crise, o Banco Central ganhou ainda maior peso político. A política de metas de inflação e as próprias metas permaneceram – e permanecem – inalteradas e, ao fim de outubro, mais de um mês após a quebra do Lehman Brothers, o Copom continuava preocupado com os riscos “para um cenário menos benigno” de inflação, postos pelo descompasso entre os aumentos de demanda e oferta (Ata da Reunião no 138). À diferença dos seus pares no mundo, tanto de países desenvolvidos como emergentes,21 o Banco Central manteve a taxa de juros no seu nível elevado, quando a crise de liquidez e as condições fiscais sugeriam a conveniência de reduzi-la. Mas o Copom acenava claramente com a possibilidade de elevar a taxa de juros se as expectativas de inflação não convergissem para o centro da meta (Ata da Reunião no 138 do Copom. Disponível em: http://www.bcb.gov.br/?COPOM138). Assim, à incerteza para produção e investimentos, decorrente da situação internacional, somava-se a produzida pelo Bacen.

No último trimestre de 2008, a crise se fez manifesta, com a queda na taxa de crescimento do PIB. No semestre seguinte, a crise se agravou, e o PIB apresentou evolução negativa.22 

Em consequência, a agenda positiva de políticas públicas concentrou-se no combate à crise.23 No plano macroeconômico, a meta de superávit primária foi reduzida para 2,5% do PIB e os investimentos da Petrobras excluídos do cálculo; o Bacen cortou a Selic em 5 pontos percentuais (p.p.), chegando a 8,75% em agosto de 2009, quando parece ter dado fim ao ciclo de reduções. Não obstante a queda, o Brasil mantém uma das mais altas taxas de juros do mundo.24

Ao mesmo tempo, buscou-se a manutenção da demanda efetiva, tanto em termos de consumo das famílias, quanto do investimento. O primeiro foi fomentado pela antecipação do aumento do salário-mínimo, pelo aumento do valor e da cobertura da Bolsa Família e pela redução de impostos sobre bens de consumo. Para contrabalançar a retração na concessão de crédito do setor privado, os bancos públicos (notadamente o BB e a CEF) ampliaram suas operações e reduziram os encargos cobrados. O investimento foi estimulado pela ampliação de recursos do BNDES e pela redução da Taxa de Juros de Longo prazo (TJLP), assim como por incentivos fiscais para bens de produção e pela manutenção dos investimentos do PAC, ampliados por novo programa de habitação popular.

Em contrapartida, o sistema financeiro privado adotou uma postura defensiva, em termos de concessão de crédito e de taxas de juros, retraindo a primeira e aumentando as últimas, a despeito da queda da Selic, estratégia que preservou a lucratividade do sistema.25

A política anticrise deteve o processo de contração econômica. Estima-se que o crescimento do PIB anual seja levemente positivo no ano em curso e que, em 2010, volte ao patamar desejado de 4% a 5% a.a. Não obstante, a indústria de transformação ainda apresenta resultados negativos e, mais grave, os investimentos sofreram contração, cuja amplitude não está clara – as estimativas situam-se em um intervalo amplo, que vai desde a avaliação do BNDES que a formação de capital manter-se-ia estável em 19% do PIB em 2009, atingindo a meta de 21% em 2012, um atraso de dois anos em relação à meta do PAC (PUGA; BORCA JR., 2007), até estimativas de empresas de consultoria de que a taxa de formação de capital só voltará ao (baixo) nível de 2008 (19% do PIB) em 2012 ou 2013. Tendo em conta o peso dos investimentos atrelados ao mercado internacional, antes mostrado, tais resultados futuros dependem, naturalmente, da evolução da taxa de câmbio, que vem apresentando forte valorização, e da economia internacional, que, conforme já apontado, tem formato incerto.

A crise e as políticas adotadas para debelá-la têm repercussões sobre o debate sobre desenvolvimento.

Superadas a fase do descolamento e a retórica da “marola”, houve uma convergência entre as duas convenções, mantendo-se, de um lado, juros altos e, de outro, adotando medidas de cunho fiscal e de crédito para sair da crise.

Ou seja, a verificar-se o cenário otimista para as economias internacional e nacional, a tendência parece ser rumo a uma situação próxima à vigente antes da eclosão da crise, em que convivem duas convenções – a institucional restrita e a desenvolvimentista – sob a hegemonia da primeira. Nesse quadro, consistente com o diagnóstico de que o Brasil se desenvolvia adequadamente e a crise foi exógena, os interesses que formam a coalizão de suporte da segunda convenção têm liberdade de adotar as políticas pertinentes aos seus objetivos, desde que não firam os interesses da primeira coalizão, que detém, em última instância poder de veto sobre o desenrolar do desenvolvimento brasileiro.

Caso, porém, a demanda interna se amplie e as estimativas menos otimistas sobre o investimento se provem verazes, é provável que o Banco Central, mantendo a meta de inflação, volte a elevar os juros, sob a justificativa do estreitamento do hiato de produto e da ameaça que este representa para a “benignidade” do cenário inflacionário, mantendo, assim, a tendência à valorização do câmbio. Conforme argumentamos, essa combinação juros altos/câmbio valorizado desestimula os investimentos produtivos, gerando um círculo vicioso em que o capital financeiro é o principal beneficiário.

A expectativa do mercado financeiro, evidenciada por meio do Relatório de Mercado Focus, preparado pelo Bacen, é de que este voltará subir a Taxa Selic no próximo ano, mesmo que a taxa de inflação, medida pelo IPCA, se iguale ao centro da meta26 e a adoção de uma meta de crescimento de 4% a 5%, modesta, mas compatível com o suposto “produto potencial” – e com o poder do Banco Central –, sintetizam bem essa situação de convívio e dominação consentida. Em outros termos, nesse cenário não há histerese – a trajetória retoma seu curso anterior e a dependência em relação ao passado manifesta sua força.

No entanto, o período recente também evidenciou conflitos entre as duas convenções.

A estratégia defensiva do sistema financeiro, já descrita, foi duramente criticada pelo Ministro da Fazenda, que ameaçou o sistema privado com a perda de mercado para os bancos públicos e até pelo Presidente da República, que criticou pela mídia os altos spreads cobrados pelos bancos privados. Estes, após alguma tergiversação, preferiram não prosseguir no debate público, mas o governo vem mantendo a postura agressiva dos bancos públicos na oferta de crédito.

Ao lado da discussão sobre a força e a rapidez da recuperação, notadamente dos investimentos, dois temas vêm ocupando o debate macroeconômico: a tendência à redução do superávit primário, em função do aumento dos gastos correntes e da diminuição da receita, e a valorização do real frente ao dólar (28% no período janeiro/agosto do corrente ano).27 Em ambos os temas, notam-se posições distintas entre o Ministério da Fazenda, que vem adotando postura mais desenvolvimentista, e o Bacen, que segue apegado ao seu objetivo de conter a inflação próxima do centro da meta.

Quanto ao problema fiscal, enfatizado pela mídia, com o discreto apoio do Bacen, a posição do Ministério da Fazenda é a de que, apesar de terem aumentado, os gastos correntes estão sob controle e a receita aumentará com recuperação da economia. Vale notar que a parte principal do aumento dos gastos correntes é devida à expansão das transferências de renda às famílias28 e aos estados e aos municípios e, portanto, sua redução é, política e legalmente, muito difícil, exceto por improváveis reformas (política, fiscal e da Previdência) que, de todo modo, só terão efeitos a prazos mais longos. Ao mesmo tempo, o Ministério da Fazenda tem rejeitado qualquer ajuste fiscal via redução de investimentos, reiterando a disposição de manter os níveis previstos no PAC e sustentando, assim, um dos principais pilares da convenção desenvolvimentista.

A valorização do câmbio já vinha sendo denunciada como causa de “doença holandesa”, tornando a indústria localizada no país pouco competitiva no mercado externo e na competição contra importações e, no limite, ameaçando a economia brasileira de desindustrialização (BRESSER PEREIRA, 2008). A manter-se a valorização do câmbio, o estímulo a investimentos industriais no país seria reduzido, sendo mais rentável adquirir insumos, partes e componentes e, eventualmente, bens de capital no exterior, provocando a perda de densidade das cadeias produtivas, reduzindo os efeitos de encadeamento e sinergia e a capacidade de inovação associada às relações próximas entre vendedores e produtores.

A valorização está associada a movimentos da conta de capitais, alimentados pela alta taxa de juros brasileira e pela busca de aplicações rentáveis por investidores externos, estimulados pelo sucesso brasileiro em lidar com a crise, em comparação com outros países. Conta com a inequívoca simpatia do Bacen e dos atores no mercado de crédito e de capitais, que atribuem tal valorização às condições “estruturais” da economia brasileira. Não obstante, o Ministério da Fazenda, contrariando esses interesses, estabeleceu uma taxação sobre a entrada de capitais destinados a investimentos mobiliários. Medida semelhante havia sido tomada, em março de 2008, e eliminada alguns meses depois, após a quebra do Lehman Brothers. Embora sua eficácia para desvalorizar o real seja duvidosa,29 a medida tem inequívoco valor simbólico que pode indicar maior disposição do governo em intervir na conta de capitais, em favor da convenção desenvolvimentista.

É possível que o período eleitoral próximo venha a agravar as tensões entre as duas convenções, conferindo maior peso político à convenção desenvolvimentista. No entanto, a história recente do país apresenta farta evidência do poder, econômico e político, da coalizão de interesses que encontra sua expressão na convenção de desenvolvimento restrito, de modo que futura correlação de forças entre as duas convenções é altamente incerta.

4. Conclusão

Argumentamos anteriormente que o processo de desenvolvimento requer um dispositivo congnitivo coletivo, composto por conhecimentos codificados e tácitos, que permita hierarquizar problemas e soluções e facilitar a coordenação entre os atores sociais – uma convenção de desenvolvimento. Esta convenção reflete a distribuição de poder econômico e social na sociedade, constituindo, pois, um objeto de economia política.

Atualmente, após o fracasso das convenções desenvolvimentista e neoliberal, não há, internacionalmente, uma convenção de desenvolvimento firmemente constituída. Embora a crise em curso tenha servido a descartar alguns postulados anteriores, como a capacidade de autorregulação dos mercados, e tenha recolocado o Estado em um papel central, a indefinição quanto a uma convenção de desenvolvimento foi provavelmente ampliada. A saída mais rápida da crise nos países desenvolvidos atua a favor daquelas forças, notadamente o capital financeiro internacional, que têm interesse em minimizar as mudanças institucionais e em retornar, tanto quanto possível, ao status quo ante.

Argumentamos também que, no governo Lula, havia, desde o início, o reconhecimento da necessidade de nova convenção de desenvolvimento e que duas convenções disputavam a hegemonia. Parece-nos que a convenção que chamamos de “institucionalista restrita”, que privilegia a estabilidade de preços ao custo de um desenvolvimento também restrito, detém a hegemonia sobre a convenção neodesenvolvimentista, o que é explicado pela força da coalizão conservadora que sustenta a primeira e pela percepção de que os “pobres”, prioridade do governo, são os mais prejudicados pela alta inflação.

No entanto, esta ponte entre as duas convenções não implica a necessária adoção das metas de inflação e das políticas monetária e cambial praticadas pelo Bacen. Outras configurações de política macro podem conduzir à manutenção da estabilidade de preços. A análise dessas configurações alternativas foge ao escopo deste ensaio, mas cabe reiterar o peso econômico e político da coalizão de interesses que se expressa por meio da convenção de desenvolvimento restrito, cuja agenda positiva postula que a atual configuração de políticas é a mais “eficiente” do ponto de vista técnico, apagando com a retórica tecnocrática o debate político.

A crise internacional introduziu novos elementos de incerteza e perturbação no processo de desenvolvimento brasileiro. No entanto, com a retomada da atividade econômica, há forte tendência para a volta da correlação de forças entre as duas convenções, consistente com o diagnóstico de que a crise foi de natureza exógena e o desenvolvimento até então em curso era satisfatório.

Não obstante, a configuração das políticas anticíclicas e  seu resultado estabeleceram conflitos entre as duas convenções em relação ao equilíbrio fiscal e, especialmente, à valorização cambial e o correlato tratamento dos juros e do capital financeiro, nacional e internacional. A médio prazo, a contradição entre investimentos produtivos – cuja contração em função da crise ainda não está clara – e o aumento de juros/valorização do câmbio pode exacerbar os conflitos.

Como sabemos, economista é um profeta que olha para trás e o desdobramento destes conflitos, que tende a se acentuar em um período eleitoral, é imprevisível, dependendo da evolução da correlação de forças políticas e econômicas representadas pelas duas convenções de desenvolvimento.

Para concluir, chamamos atenção para o fato de que nenhuma das duas convenções em disputa enfrenta os problemas da transformação do Estado brasileiro, notadamente as reformas política, fiscal e administrativa, que, a nosso juízo, são essenciais para um processo de desenvolvimento alto e sustentável. Possivelmente, a explicação para este silêncio encontra suas raízes na governança que caracteriza o presidencialismo de coalizão brasileiro e que acaba por induzir a dependência em relação à trajetória passada e, assim, um forte viés conservador.