Luiz Carlos Prado

Amigo e colega do IE | 25.2.2019 | Instituto de Economia da UFRJ, Rio de Janeiro

Sou professor do Instituto de Economia desde 1994 e conheci o Fabio Erber antes disso, ele era o presidente da banca do concurso que eu fiz. Fomos colegas durante muitos anos, dividimos sala no Instituto de Economia, compartilhamos disciplinas, desenvolvemos pesquisas de trabalho em conjunto, trabalhei como seu assessor na direção do BNDES, e portanto, viramos amigos pessoais. Tivemos um longo período de confiança, de convivência, de troca de ideias que para mim foi muito rico não apenas sob o ponto de vista intelectual e profissional, mas principalmente sob o ponto de vista humano.

Seria interessante começar descrevendo o Fabio Erber como professor do Instituto de Economia, a quem eu conheci e às suas práticas como docente. O Fabio era um professor muito admirado pelos alunos. Suas aulas demonstravam sempre, de forma ampla, o conhecimento que ele tinha dos temas, mas também este conteúdo era dado sempre de forma bem-humorada, esta era uma das características do Fabio. Acima de tudo ele cultivava a ironia, o uso inteligente da palavra, o que fazia com que seu trato profissional fosse sempre bastante afável.

O Fabio era professor da área do desenvolvimento em história econômica e um grande especialista em economia industrial. Nós compartilhamos disciplinas de história de economia recente, discutimos história econômica do Brasil e iniciamos uma prática que ele fez, posteriormente, com outros professores, em que dividíamos uma disciplina, o que implicava que nem sempre concordávamos em todos os pontos, muitas vezes debatíamos aspectos na frente dos alunos, mostrando a eles que, afinal de contas, a economia é uma ciência social em que as pessoas não têm que concordar com tudo, que faz parte do nosso campo o debate, a discordância, a discussão das matérias sempre em cima das coisas, dos temas, e não em cima das pessoas.

Além disso, o Fabio tinha a capacidade de apresentar, para os alunos, elementos da vida de gestor público, de funcionário público de carreira que ele foi e do exercício profissional da Economia, o que ele fazia com muito equilíbrio, sempre colocando os temas que ele tratava no contexto da discussão. Ao longo desses anos, eu nunca vi o Fabio ter nenhum desafeto no Instituto de Economia, o que não quer dizer que ele gostasse de todos ou que todos gostassem dele, mas ele conseguia tratar as pessoas de forma muito profissional. Essa serenidade no comportamento no exercício da sua função é uma marca muito importante do Fabio. Ele é um professor importante dentro da escola, respeitado, participativo, mas que não usava a sua influência de forma arrogante nem com disputa de micropoder. Ao contrário, ele procurava conduzir consensos quando era possível, ou no mínimo apresentar suas críticas e seus pontos de vista da maneira mais equilibrada e objetiva possível para não ofender o interlocutor ou não se colocar de forma mais diretamente antagônica ao interlocutor.

O Fabio é um grande contador de histórias. Histórias familiares e histórias pessoais. Ele era um observador da vida ao redor, tinha essa capacidade de olhar o acontecimento simples captando, muitas vezes, elementos que eu poderia chamar de universais, questões da natureza humana ou temas que transcendiam muito a singeleza ou a vulgaridade de um determinado evento. Essa coleção de histórias fazia com que ele fosse também um magnífico companheiro de conversas nas horas vagas, de cafés, de trocar ideias nas noites, em restaurantes, em bares, na minha casa, na casa dele. Tenho uma lembrança muito forte disso.

O Fabio gostava muito de teatro, quase se transformou em um profissional. Eu também gosto muito, fiz teatro amador quando estudava no Colégio Andrews, então esse é um campo das artes que compartilhávamos. Lembro-me de alguns autores de que ele gostava, como Brecht – tal como eu gosto. Uma vez nós conversamos longamente sobre uma peça norueguesa chamada O inimigo do povo, uma peça muito interessante e contemporânea, apesar de ter sido escrita há mais de 100 anos. Sempre que podíamos assistíamos a peças juntos, com nossas companheiras, e passamos várias noites discutindo sobre esse tema. Ele também gostava muito de cinema, ambos tínhamos acompanhado a tradição da nouvelle vague francesa, do Cinema Novo brasileiro, do cinema contemporâneo. Muitas vezes quando vejo um bom filme, sinto falta de poder ligar para ele e discutir determinadas nuances. O Fabio é uma geração superior à minha, nem tão mais velho, mas suficientemente mais velho para eu ter nele também uma experiência de referência e de senioridade a qual eu usava de forma frequente e que ele também concedia de forma generosa. Nós tínhamos conversas sobre os mais diversos assuntos: pessoais, políticos e literários. Ambos apreciávamos literatura brasileira, literatura internacional; história econômica, que era uma paixão conjunta, a minha mais remota, porque eu gostava de história econômica do século XIX, colonial, e o Fabio era mais voltado à história contemporânea. Nós tínhamos diferenças de períodos, mas trocávamos muitas ideias sob esse aspecto.

Tal como ele, fiz meu Doutorado na Inglaterra, o Fabio fez o doutorado dele em Success, uma instituição relativamente nova para os padrões ingleses, mas que tinha, na época em que ele fez Doutorado, uma grande importância na discussão dos temas de ciência e tecnologia. Diferentemente dele, eu estudei em Londres, na Universidade de Londres, fui orientado por Vitor Borba Thomas, que era conhecido na América Latina e um professor de grande prestígio na Universidade de Londres. Minha tese foi fundamentalmente em cima de História Econômica strictu senso, enquanto o trabalho do Fabio é focado em Ciência e Tecnologia.

Acima de tudo o Fabio foi um economista do Desenvolvimento. Ele pensava a Economia do Desenvolvimento sempre em uma perspectiva história. E isso talvez fosse o ponto onde não só as nossas trajetórias se aproximavam, mas onde encontrávamos grande afinidade profissional e intelectual, na preocupação no olhar para a realidade sempre de forma eclética. O Fabio é um eclético, acima de tudo. Ele bebe na tradição latino-americana da Cepal sem ser um cepalino; ele bebe na tradição institucionalista sem ser um institucionalista; ele bebe na tradição keneysiana sem ser também strictu sensu um keneysiano; na tradição de Schumpeter sem ser um shumpeteriano. Ele usa vários desses elementos de Marx, de Schumpeter e de vários outros autores para construir a interpretação da realidade de forma muito criativa e dentro de uma tradição fortemente empirista, fortemente influenciado pela tradição britânica. Eu e ele compartilhávamos dessa preocupação de olhar para a realidade em primeiro lugar e a partir da observação da realidade, encontrar regularidade desse processo para formular teorias mais gerais.

Por outro lado, nós dois sabíamos que a realidade não pode ser observada sem alguma teoria prévia, então essa observação da realidade não era feita de forma superficial sem reflexões que separassem o que é essencial do que é supérfluo. Nesse sentido este ecletismo nunca podia ser confundido com superficialidade e com tratamento meramente factual dos fatos históricos ou do seu tempo. Muitos dos escritos do Fabio são uma rica memória, uma rica reflexão do tempo em que ele viveu. O Fabio é, sobretudo, um intelectual do século XX, do século XXI. Nós somos visitantes, mas participamos de vários elementos da construção desse século XXI e com muitas das preocupações do processo histórico que nós vivemos.

Interpretar o que alguém está pensando é muito difícil e pode ser profundamente injusto com a pessoa que não está aqui para lhe contestar. É muito fácil nós projetarmos no outro aquilo que nós gostaríamos que o outro dissesse, mas o que eu posso dizer sob o ponto de vista político é que o Fabio, como eu, acreditava que o projeto do PT seria um projeto social democrata muito rico e interessante. Nós ficamos frustrados com alguns dos caminhos que foram feitos embora ambos reconhecêssemos que muitos progressos tinham sido colocados. Então, nós sempre tivemos um apoio crítico a várias das políticas que foram realizadas e uma crítica mais dura a elementos de alianças com as quais não simpatizávamos e da gestão pública tal como foi encaminhada muitas vezes. Por outro lado, éramos críticos de uma visão mais liberal no sentido econômico mais vulgar, no caso do PSDB. O PSDB, que se saiu originalmente como um partido que se pretendia social democrata, abandona a social democracia e caminha para um desenho muito mais liberal do que foi no início desse processo.  Tanto ele quanto eu considerávamos que, neste sentido, o PSDB também tinha abandonado suas origens e caminhado muito mais para um desenho de políticas que hoje seriam chamadas de neoliberais entre as políticas dentro da tradição social democrata que eu e ele compartilhávamos. Nós fazíamos parte de uma tradição de esquerda muito pouco ortodoxa. Entendíamos que o nosso pensamento devia ser livre, E não dominado, orientado, por nenhuma adesão incondicional a nenhuma política. Então, hoje eu não tenho dúvidas de que o Fabio seria um duro crítico ao governo atual. Hoje me preoucpo com o rumo que o país vai tomar, e também nunca conheci clima de um país tão agressivo e tão diferente daquilo que eu e ele vivemos, porque já tivemos momentos muito difíceis no país, mas uma das características das relações interpessoais, na universidade, nas famílias, entre os amigos na vida desse país sempre foi uma capacidade de tratar o outro com razoável generosidade, tanto no plano das pessoas como no plano pessoal, embora reconhecendo que o país também tenha um longo histórico de violências. No plano pessoal, porém, as relações não eram tão conflituosas como são hoje. Então eu entendo que uma pessoa afável como o Fabio ia se sentir profundamente incomodado com esse clima em que o whatsapp familiar, o wahstapp com os amigos de escola, o whatsapp nas academias se transformam num microfórum para conflitos muito pouco racionais. O Fabio faz parte de uma tradição do humanismo, uma tradição da crítica ao pensamento irracional, seja ele religioso, político ou do plano das crenças irrevogáveis e das crenças absolutas. Neste sentido, ele estaria, a meu ver, incomodado com os rumos de tudo do Brasil e do mundo contemporâneo.

A minha ida para o BNDES foi muito singular porque eu tinha sido convidado para ser um professor na Universidade de Kombea, no Japão e tinha aceito. Fabio Erber foi chamado pelo Lessa para ser o diretor do Banco, então telefona para mim e diz: “Quero conversar com você. Você não quer ser meu assessor?” Respondo que estava indo para o outro lado do mundo, para o Japão. E ele: “É um momento histórico interessante, vamos rediscutir política industrial, política de desenvolvimento.” “O que faz um assessor?”, eu perguntei.  “Um assessor faz tudo e não faz nada, depende em que você vai assessorar. Aqui você conhece o Lessa, conhece todo mundo, tem um histórico de professor e tem uma certa liberdade”. “Porque se você for contar comigo para pilotar escrivaninha e gerenciar burocracia, não vai funcionar”. “Vamos discutir ideias, conversar, debater, eu vou ter como assessores também profissionais do Banco, que conhecem as funções do assessor de diretoria do Banco”. A Dulce Monteiro fez esse papel. Então, de certa maneira, eu atuei com uma certa liberdade, trocando ideias com ele, desenvolvendo ideias na área de Política Industrial, fazendo alguns trabalhos para a Presidência do Banco e, nesse sentido, foi muito rico, eu aprendi muito ao longo desse período.

O Fabio é um profissional exemplar, de uma correção e integridade individual, que, em tempos como esse, é muito importante ressaltar.  Ele, como eu, achava que isso não é mais do que a obrigação, mas em tempos como estes, há pessoas que vão muito além de respeitar a letra da lei, a integridade de se pautar em princípios éticos, rígidos e bastante claros.

Ao longo do período em que eu convivi com ele, sempre o vi tendo esse tipo de postura. Ele não era uma pessoa de confronto, mas expressava quando não concordava com as coisas; não entrava em conflito direto, mas sempre deixava claro as suas posições e atuou com muita competência e correção nesse exercício profissional. Eram tempos difíceis também, mas tempos de muita discussão, formulação de ideias. Algumas foram levadas adiante, outras não, em especial, ele ficava incomodado com o fato de algumas discussões de política industrial parecerem retornar ao começo, ou seja, quase que abandonarem o histórico ou a experiência do passado, não incorporarem os erros que já tinham sido vividos ou, por outro lado, procurarem encontrar caminhos diferentes sem levar em conta também os acertos históricos brasileiros. Ele via possibilidades, mas também preocupações dessas políticas. Ele conhecia a imensa dificuldade de se levar políticas de desenvolvimento, políticas industriais no contexto histórico que o Brasil vivia e do período mundial que o Brasil vivia também. De qualquer maneira, eu entendo que a contribuição dele foi muito positiva nos vários aspectos que ele levantou e propôs levar adiante sempre de maneira clara.

Dois anos depois, passei a ser conselheiro do Cade – Conselho Administrativo e de Defesa Econômica, que vinha aprofundando seus trabalhos; O Cade tem um papel muito importante na economia de mercado – os controles, por um lado, de abuso de poder de mercado, e o controle administrativo de fusões e aquisições. Para mim foi também um período rico da vida, no sentido de ajudar a construir alguns marcos importantes na reparação do poder econômico no país. Era uma área que o Fabio conhecia profundamente. Em várias ocasiões, antes, do ponto de vista acadêmico e depois, quando saí do Cade, nós trocamos ideias, nós tínhamos também visões similares sobre o papel do mercado na economia contemporânea. Ambos concordávamos que o mercado é também um importante instrumento para a produção de inovações e eficiência, mas a política econômica deve usá-lo como tal, como instrumento para obter determinados resultados e não como senhor de orientações e decisões. Em última instância é o interesse público e as políticas de médio e longo prazo que devem guiar as políticas públicas. E o mercado é um dos instrumentos postos à disposição da sociedade para produzir os efeitos que a teoria econômica mostra que ele é capaz.

Nos conhecemos na década de 1990 e convivi com ele quase cotidianamente, dividíamos a sala por mais de 20 anos. Mas não era apenas um convívio profissional, era um convívio pessoal muito forte. Seu falecimento, para mim, foi muito duro, senti muito pessoalmente, ele representava uma pessoa mais experiente do que eu. Muitas vezes eu o consultava sobre diversos assuntos. O seu falecimento foi a perda da última pessoa que cumpria esse papel. Meus pais já tinham morrido, ele era a pessoa mais velha junto com os meus amigos de geração. Então esta foi a perda também de um referencial importante em várias esferas. Foi um sentimento difícil, passei um tempo grande absorvendo essa falta, vendo a mesa dele próxima vazia, seu endereço eletrônico no meu computador.  O mundo digital é curioso, as suas marcas sobrevivem à existência física. Então as pessoas se vão, mas ficam as imagens, as referências.