Helena Lastres

Colega do IE | 21.3.2019 | Instituto de Economia da UFRJ, Rio de Janeiro

Conheci o Fabio no final dos anos 1970, na defesa de dissertação de mestrado de um colega. Morri de medo daquele homem que fez críticas tão mordazes na defesa de tese desse meu colega. Foi alguma coisa assim, para mim, assustadora. Eu nunca tinha participado de uma defesa com críticas tão arrasadoras e com o brilhantismo que o Fabio tinha. O pior foi que quando a gente saiu da defesa, a dissertação foi aprovada, e ele contou a piada do doido que estava internado no hospício porque cismava que tinha um cachorrinho chamado Totó. O doido fazia todos os médicos e os administrativos do hospício cumprimentarem o Totó, que não existia, só ele via, cumprimentava, dava comida, dava água, e as pessoas foram se acostumando. Quando encontravam Fulano, o doido, davam bom dia a Fulano e bom dia a Totó. E, um dia, os médicos o encontraram, deram bom dia a Fulano e bom dia a Totó. E o doido: “ué, que Totó?” “Não é o seu Totó?” “Você está vendo algum cachorro por aqui?” “Não.”. Aí os médicos: “Olha, o Fulano pode ser liberado porque ele se livrou do Totó. Não está vendo mais o Totó, então ele pode ter alta hoje mesmo”. E o Fulano foi liberado. Do lado de fora do hospício, Fulano olha para baixo na rua e fala: “Enganamos todos, hein, Totó?”. Eu falei… Meu Deus, não sei se foi pior essa piada pós defesa da dissertação ou as críticas que o colega tinha recebido. Fiquei realmente muito assustada com o Fabio.

Fiz o primeiro ano do Mestrado em Economia da Tecnologia na Coppe/UFRJ que deu origem a toda a Pós-Graduação que existe hoje no Instituto de Economia. Aí fui conhecer o Fabio pessoalmente. Eu sempre trabalhei no Ministério da Ciência e da Tecnologia, então o conheci mais fora da Academia, no âmbito de planejamento, Implementação de Políticas, do que propriamente no ambiente acadêmico.

E aí já faço o seguinte destaque: o Fabio é um dos exemplos da importância de juntar conhecimento acadêmico de fronteira com a prática, a experiência de pôr a mão na massa, de desenhar e implementar políticas. Além de ele ser brilhante na academia, ele teve uma importância de destaque como executivo, como diretor do BNDES; além de ele participar ativamente na vida política. Eu não me esqueço, nos anos 1980 e nos anos 1980, de ver Fabio na televisão, como um economista sênior, falando pelos partidos de esquerda sobre todos os assuntos. Ele, então, era um homem que misturava isso tudo.

Ele tinha atuação política, experiência como executivo do BNDES no planejamento e implementação de políticas e transitava excepcionalmente bem na academia, sendo um professor e pesquisador reconhecido mundialmente. Fui descobrindo uma pessoa doce, uma pessoa generosa, uma pessoa completamente amiga.

Meu maior período de convivência com o Fabio foi quando eles estavam criando o Ministério de Ciência e de Tecnologia (MCT). Eu já trabalhava lá, coordenando o NMAT – Núcleo de Novos Materiais no Instituto Nacional de Tecnologia (INT), no Rio de Janeiro. Ele, juntamente com Luciano Coutinho e José Cassiolato eram meus superiores. Eu ia muito a Brasília, eles vinham muito ao Rio, e nós tínhamos muitas interações. Quando ele assumiu a diretoria no BNDES, também tivemos algumas interações, porque eu continuava a trabalhar nessa área de planejamento e implementação de políticas no MCT.

Quando voltamos do Doutorado, no início dos anos 1990, fortalecemos a nossa interação aqui neste Instituto de Economia da UFRJ. Eu e o Cassiolato criamos a Redesist, há 20 anos, e o primeiro livro foi publicado em 1999. O título do livro é Globalização e Inovação Localizada – Experiências de Sistemas Locais no Mercado Sul. Está disponível de forma digital na nossa rede, www.redesist.ie.ufrj. Eu jamais vou me esquecer de quantas horas, quantas reuniões tivemos com o Fabio para convencê-lo a escrever o capítulo deste nosso primeiro livro – que nós fazíamos muita questão de que ele escrevesse. E ele era extremamente crítico, mas também muito cordato, e ouvia, e argumentava: “mas sistemas de inovação (que era um conceito que tinha sido recentemente criado lá fora) não tem teoria…”. E eu dizia: “Mas, Fabio, as teorias também começam assim, com pesquisas, com iniciativas deste tipo, que nós estávamos querendo avançar, e depois se constituem…”. E ele, certíssimo na crítica, em geral, as contribuições na economia se esquecem da questão do poder – que ele sempre fez questão de lembrar e da situação hierárquica dos países na economia. E acrescentava: “Mas isso não tem finanças, não tem moeda, não tem teoria”. Contra-argumentamos: “Fabio, então a gente está lhe convidando para escrever tudo o que você acha que está faltando e sugerir uma agenda de futuro”. Tivemos umas cinco reuniões, e ele relutante, mas afinal concordou e escreveu. E entregou em tempo o artigo que se intitula “O Sistemas de Inovação em uma Economia Monetária – uma agenda de pesquisa” (1999). Eu convido todos que tiverem interesse a ler o artigo em que ele faz todas as críticas e acaba dizendo que é possível que uma teoria geral dos sistemas de inovação simplesmente não seja factível pelo saber enciclopédico que demanda. Ao final cita o conhecido conto de Borges sobre os mapas do Império sinalizando a natureza paradoxal do rigor da ciência e da relação de representação. Eu acho que isso é típico Fabio Erber. A cultura que o Fabio tinha, os assuntos que a gente podia conversar com ele: de balé e coreografias a literatura, cobrindo e indo além de um infindável número de temas.

Nessa época, nos anos 1990, como o Cassiolato já era muito amigo da família, desde a época do Mestrado dele na Inglaterra, a gente frequentou muito a casa da Ana e do Fabio no Horto, uma casa muito simpática. Me lembro até hoje dos almoços, jantares que a gente participou ali. E as conversas, de uma amplitude muito além da Economia

.Mas na Economia, a gente não pode esquecer, Fabio Erber foi pioneiro na economia política do desenvolvimento, com foco no desenvolvimento produtivo e tecnológico, mas não só no Brasil. Na América Latina e no mundo, acho que ele é reconhecido como um dos primeiros a levantar ideias não só sobre a  importação de tecnologia, mas sobre a suposta transferência de tecnologias geradas em outro contexto, nada a ver com o nosso, que eram poupadoras de trabalho e intensivas em capital. Aqui era o contrário, nós tínhamos muito trabalho que é, em geral, o que essas tecnologias poupam e pouco capital. Fabio alertava, seguindo o Celso Furtado e outros latino-americanos importantes: essa importação aprofunda a nossa dependência e as nossas desigualdades. Ele fez contribuições também pioneiras em termos de política industrial e tecnológica, as quais são reconhecidas no mundo inteiro. O trabalho dele era centrado nas “atividades difusoras de progresso técnico”, com foco nos chamados bens de capital: máquinas e equipamentos.

Todas as atividades usam algum tipo de equipamento, e é por aí que as inovações são irradiadas, não é? Quando surgiram as novas tecnologias da informação, nos anos setenta, oitenta, ele foi um dos expoentes no Brasil pelo estudo das mesmas. Não por menos ele foi convidado pelo Luciano Coutinho, pelo Cassiolato, pelo Ministro (Renato) Acher a assumir o cargo no Ministério de secretário-adjunto quando o ministério estava sendo criado. E também sofreu as consequências das pressões contra as políticas de informática que constituíam o cerne das iniciativas estratégicas que o Ministério da Ciência e da Tecnologia, que ele, junto com o Luciano e demais tentavam implementar. Uma política não só para essa área de fronteira, mas para todas as outras: novos materiais era uma delas, mas junto com informática, nós tínhamos biotecnologia, química fina e mecânica de precisão, e as pressões eram muito fortes.Era maravilhoso ter pessoas como Renato Acher, Luciano Coutinho, Fabio Erber, Celso Amorim, José Cassiolato e vários outros as defendendo. Isso em meados dos anos 1980.

E a ideia era de que o mundo estava em um momento de mudança, e era importantíssimo nos posicionarmos, construirmos nossas bases nessas áreas que seriam transformadoras no desenvolvimento, como vemos hoje. Mas, enfim, muitas conquistas, muitas pressões contrárias, muitos retrocessos. E vivemos isso tudo na inspiração desse conjunto de pessoas que sempre nos faziam pensar além do tradicional. Nós nos lembramos das contribuições seminais do professor Fabio Erber, além de todas as contribuições sobre a importância da tecnologia e da inovação como um dos principais motores do desenvolvimento, e as dele foram realmente seminais. Uma prova disso foi que quando eu já estava trabalhando no BNDES e fomos organizar, a convite da Dulce, o livro em homenagem ao Fabio, não tivemos o menor problema quanto à aceitação ao convite que fazíamos aos nossos colegas, seja na França, na Inglaterra, ou aqui na América Latina. Todos prontamente respondiam e estavam mesmo querendo ser convidados para prestar essa homenagem ao Fabio. Mais uma vez convido para lerem as contribuições registradas no livro disponibilizado também em forma digital pelo BNDES.

Mas acho que quando ele escreveu sobre as convenções do desenvolvimento que, para mim, é a síntese do conhecimento acumulado por alguém que transita entre pensar, desenhar e implementar políticas, o Fabio se mostrou de uma competência enorme porque soube interpretar e registrar tudo o que vivenciou na academia e como policy-maker.

Como é que eu vejo essa compreensão dele? Primeiro eu acho que a raiz está na ideia do Amílcar Herrera, ainda nos anos 1970, de que havia politicas implícitas com capacidade de diminuir muito e até de anular o poder das políticas de fato, explícitas, que eram implementadas no âmbito produtivo e tecnológico. O Fabio foi um dos que ajudaram a aprofundar essa ideia.

Não podemos esquecer que Fabio também teve uma atuação muito importante na Finep, a nossa agência de inovação. Ali, como eu trabalhava no CNPQ e a gente tinha que discutir e planejar, e o Brasil, nessa época, fazia planos para cinco, dez anos, e tinha o tal do PBDCT, o Plano Básico do Desenvolvimento Científico e Tecnológico, nos encontrávamos nessas reuniões. E a compreensão dele sobre como, falando num linguajar muito claro, quando você tem uma taxa de juros muito alta, o empresário não vai pegar dinheiro, que depois vai ter que repagar, para investir em algo que é de longo prazo, e muito incerto, isto  se aquela pesquisa vai resultar em algum avanço tecnológico, alguma inovação no futuro. Ele percebia e registrava claramente, o óbvio: as empresas estavam se vendendo para aplicar no mercado especulativo, porque tem um retorno garantido, não tem problemas de todo tipo que os empresários têm. Em tais condições, quem iria convencer os empresários a se endividarem para investir em desenvolvimento tecnológico?

 

Creio que baseado em suas experiências na academia – e especialmente na BNDES, Finep e MCT – Fabio escreveu sobre happy dependence, um conceito que sempre me intrigou muito. No BNDES, ele ia sempre conversar e tinha muitas atividades com os empresários, com destaque aos da indústria química. E ele percebia que a instabilidade político-institucional brasileira, as políticas implementadas e outros condicionantes econômicos e políticos, criavam um desafio enorme ao desenvolvimento inovativo e produtivo. Assim como percebia que os empresários concluíam que era muito mais confortável, continuar dependente tecnologicamente, em vez de ficar brigando, torcendo para que os parâmetros macroeconômicos, e tudo aquilo que eles achavam que não tinham o menor controle, continuasse. Então creio que o Fabio – entendendo perfeitamente o cenário e o contexto geopolítico internacional – escrevia e falava nessa happy dependence, instigando os empresários e policy-makers brasileiros a compreenderem melhor a situação e saírem de suas áreas de conforto. Tendo também vivenciado as pressões muito fortes dos países mais desenvolvidos, principalmente dos Estados Unidos, contra as nossas políticas, como a Lei de Informática e outras para as chamadas áreas de tecnologia avançada nos anos 1980, creio que ele formulou essa ideia para chamar a atenção dos empresários… Eu gostaria até de ter conversado um pouco mais com ele sobre essa situação que os empresários acabavam assumindo, “de dependentes, mas felizes”, conformados com a situação que tinham. E ele brigava contra isso. De qualquer maneira, eu acho que a ideia de convenções do desenvolvimento vem também daí.

 

Assim, uma das principais contribuições do Fabio Erber, e foram muitas, foi a compreensão de que, por melhor que seja o plano de desenvolvimento, o programa de desenvolvimento produtivo e tecnológico, havia uma força enorme, que ele chamava de “convenção institucionalista, neoliberal, financista”, que fazia com que o vigor desse plano se diluísse, mesmo em um governo desenvolvimentista. Nos governos em que ele participou como alto executivo, e que eu chamaria de “mais progressistas”, ele vivenciou isso: o embate de diversas convenções. E a conclusão que a  implementação da que ele chamava de desenvolvimentista dependia de uma série de regras, ideologias, e instituições, em sentido largo, que estavam disseminadas pelo corpo da burocracia brasileira e que de fato impediam que aquele plano, efetivamente desenvolvimentista, pudesse ser implementado. Eu acho que essa contribuição do Fabio, que ultrapassa visões econômicas tradicionais, acaba com a ideia de que é só desenhar um bom programa. Ele salientou a necessidade entender as questões político-institucionais, geopolíticas, ideológicas e principalmente as relações entre grupos de interesse que ocupam os espaços de poder nos governos e que fazem com que algumas coisas andem e outras não.

 

Recentemente, ficou ainda mais clara a relevância de compreender os desafios do que ele chamava de “convenção institucionalista, neoliberal, financista”. As regras financeiras que estão coladas ao funcionamento do Estado impedem que o Brasil, hoje, de fato, execute, várias partes de seus programas de desenvolvimento, principalmente aqueles que tem que a ver com que o mundo hoje mais precisa: o desenvolvimento social e a sustentabilidade.

 

Tudo isso está discutido neste livro, que eu tive a honra de ter sido convidada pela Dulce Monteiro e pelo Luiz Carlos Prado para organizar em homenagem ao Fabio Erber. E o legado que o Fabio nos deixa é muito maior do que esse livro ou qualquer outro. Mas eu queria terminar a minha contribuição aqui fazendo minhas as palavras do então presidente do BNDES, Luciano Coutinho, que também teve uma interação muito grande com o Fabio. No prefácio do livro, ele  detalha como a gente sentia a falta do Fabio Erber, na época em que o livro foi publicado. Em 2014, o Brasil vivia importantes avanços econômicos, sociais, políticos e institucionais, que em muito contribuíram para reduzir desigualdades e implantar as bases para impulsionar novos ciclos virtuosos de desenvolvimento, combinando um quadro macro-econômico estável com enraizamento da democracia e da inclusão social, dinamização do mercado doméstico,  expansão do  crédito  e grande potencial de  investimentos em infraestrutura e revitalização industrial. Mas Fabio não estava mais conosco para experimentar as consequências positivas das muitas das sementes que ele próprio cultivara. Agora sentimos muito mais a falta dele quando todo este quadro está se esfacelando e a gente precisa recuperar o equilíbrio para pensar. Pessoas com a contribuição como a que o Fabio Erber nos trazia, e nos trouxe a vida toda, fazem muita falta hoje em dia.