Ofícios
Aceitei porque o mercado anda mais ou menos. Virou para o Norte e o pessoal local é que atende. Também porque é um cliente antigo. Já fiz outros serviços, desde que começou como vereador, no interior do Estado. Hoje é senador. Estamos os dois mais gordos e com menos cabelos.
Minha tabela é diferente se o serviço é particular ou político. Político é mais caro. Ele sabe e regateou pouco. Está com medo e pressa.
Depois, complicou. Quer o Argenário.
Ponderei que Argenário tinha-se aposentado. Que tinha outras pessoas de ofício.
Fincou pé. Tem que ser o Argenário. Nele tem confiança. Esses moços de moto são todos uns drogados, falam com todo mundo.
Mais, tinha assuntado com um compadre: Argenário estava morando lá pelas bandas de Casimiro.
Em época de mercado ruim cliente manda.
Fui até a fazenda do compadre e arrumei indicações do sítio de Argenário. O compadre me arrumou um cavalo. O carro que minha mulher quis comprar não agüenta. Importado não é para essas coisas.
Fazia anos que não montava, mas logo recuperei. O corpo para trás, cuidando para não me enfiar no Santo Antônio, deixando o bicho ir, marchinha que come léguas.
O Argenário. Tipo difícil, trancado. Já fazia uns cinco anos que não trabalhava para mim. A última vez disse que era a última vez. Lembrei de meu finado pai, Deus o tenha, grande cabo eleitoral em Raiz da Serra. Me ensinou o valor de ofício. Uma vez propuseram que se candidatasse: ficou quase escandalizado. Era cabo eleitoral, não era político. Morreu em campanha. Me disse que com certos ofícios só a morte acaba.
Boa, a localização da casa de Argenário. Fácil de ir, para quem soubesse, difícil de achar sem indicação. Tinha uma boa vista de quem chegasse. Os fundos davam para o mato. Argenário tinha muito inimigos na consciência.
Casa boa, alvenaria, tinta branca. A entrada no meio de uma buganvília roxa e outra amarela, enormes, cheias de espinhos. Uma porrada na vista. Argenário cegou?
A mesma índia velha me atendeu. Anda com ele desde que nos conhecemos, já tem mais de vinte anos. Nunca soube o nome. Também nunca disse palavra.
Sentei na sala. O estofado segura bem meu peso. Taco de madeira. De uma moldura oval, um casal em preto e branco, colorido depois, olha o Sagrado Coração na parede em frente.
A índia trouxe um café já adoçado, como detesto.
Fiquei sozinho.
Se Argenário tivesse morrido, ou se estivesse viajando, ela me avisaria? Ou seguiria dando-me café doce até que eu percebesse?
Argenário. Argenário Teófilo Albuquerque. Onde descobri seu nome todo, nesse mundo em que nos conhecemos só por apelidos ou títulos ? Para ele, eu sempre fui o Doutor Tão. Nunca soube porque.
Não parece ter envelhecido muito. Sempre foi magro. Ereto, o mesmo jeito lento de andar.
Entre nós não há falsas intimidades, tapinhas nas costas, abraços. Somos cerimoniosos; seguimos velhos rituais.
Não falamos dos anos que passaram.
Vamos para os fundos da casa, onde Argenário passa os dias. Girassóis, margaridas, rosas. Mais buganvílias, vermelhas agora. Explica o cultivo. Os mais difíceis o entusiasmam.
Ao fundo dos fundos cria galinhas d’Angola. Detesto o barulho. Conta que são frágeis. Há gambás na redondeza.
É uma conversa de muitos silêncios. Observo-o. Como se abaixa para extirpar uma erva teimosa. Como localiza um beija-flor.
Faz calor e a índia traz uma jarra com suco de laranja lima. Com muito açúcar. Ele serve. Observo-lhe a mão. É uma jarra pesada, a mão firme.
Estamos na sala e comemos bolo de fubá com mais café. Está entardecendo.
Digo-lhe que há um serviço. Ele não diz nada, nem com os olhos.
Explico-lhe o serviço. É simples. Uma das fazendas do senador pode ser invadida. É preciso prevenir. Antes que aconteça e vire um caso político. Mas precisa alguém especial. Que não falhe. Nesses trabalhos, o pior é tentar e falhar. O senador só confia nele.
Não falo de preço. Acendo um cigarro. Ele enrola outro.
Ficamos fumando.
Não vejo seu rosto. A índia traz um lampião de luz morna.
Da última vez, disse que estava me aposentando.
Não respondo.
De repente, conta-me sua história, fragmentos. Seu pai tinha o mesmo ofício, ensinara-lhe quando era criança. Não tivera filhos. Coisa da mulher, claro. As flores, as galinhas o mantinham ocupado. Mas, de noite, ficava inquieto. Não tinha a quem ensinar o que sabia.
Então, resolveu criar um menino. Sobrinho de uma irmã…
Digo-lhe que não. O serviço é para ele.
Fumamos outro cigarro.
Da sombra, pensa alto :
Para mostrar como se faz.
Concordo que um ajudante não faz mal. Posso negociar isso com o senador. Mas tenho uma dúvida essencial.
A técnica não basta. Argenário não sofre com remorsos. Vê o seu ofício com simplicidade. É o que o faz um profissional de exemplo. Mas, e o sobrinho? O remorso leva à bebida e à indiscrição. Ou à violência descontrolada, que também é indiscreta.
Ele me garante que não. Essa é a marca que identificou no sobrinho e fez com que o adotasse.
Argenário é um detalhista, eu também. Discutimos os hábitos da pessoa, familiares, segurança. Ele e o sobrinho verificarão tudo. Garante que o rapaz sabe ver. O prazo é curto e fixamos uma data. No preço incluo o sobrinho. Ninguém trabalha bem de graça.
A índia serve-nos o jantar.
Depois do café, preparo-me para ir. Há lua cheia e não quero invadir a privacidade de Argenário. Ele me detém :
Antes, quero mostrar duas coisas.
Sai e volta com as mãos atrás do corpo. Estende-me uma. Um revólver enorme, modelo antigo. Brilha como novo. É sua arma. Desde que o conheço é a mesma. Estende-me a outra. Contem a réplica do revólver.
Ri. É a primeira vez que o ouço rir.
Arrumei para o menino. Deu trabalho mas consegui. Está tão bom com ela como eu.
Saímos e pega-me o braço. A outra coisa.
Com um lampião leva-me a um pequeno galpão. Uma poderosa motocicleta reluz.
O menino me ensinou a usar. Perfeita para o trabalho. Mas, na hora, quem pilota é ele.
No caminho, penso no moderno. Decido não falar da motocicleta ao senador. O que contam são os resultados, como repetem os jornais.
Fashion
Sou fotógrafo. Crio a realidade ou apenas a registro?
Pedaços, fragmentos de realidade.
Fotografo o efêmero com o meu nome. Vejo o que faço em todas as bancas de jornais, em cores brilhantes, a moda.
Fashion
Sou fotógrafo. Crio a realidade ou apenas a registro?
Pedaços, fragmentos de realidade.
Fotografo o efêmero com o meu nome. Vejo o que faço em todas as bancas de jornais, em cores brilhantes, a moda.
Fotografo o permanente, a morte. Anônimos, os mortos (quase – um pequeno registro no jornal) e eu. Em preto e branco. Guardo em meus arquivos, algumas vezes publico.
– Quer que vire a cabeça dele ?
O garoto é solícito. Solícito demais. Abano a cabeça e sigo clicando. A boca aberta. Faltam dentes. A miséria da morte. Os olhos espantados. Os buracos de bala. Meu fascínio não pode ser registrado.
– Vai sair em jornal ?
Sinto a suspeita às minhas costas. Bentinho talvez também.
– Garoto, cala a boca e deixa o moço trabalhar!
O garoto afasta-se, assobiando baixinho. E’ magro e feio, mas veste-se na moda. O garoto da escopeta.
Fotografo a mulher. A medalha de São Jorge. Não a protegeu.
Na birosca, com Bentinho. O garoto fora, vigiando.
-Eu queria entender…
Bentinho se interrompe. Espanto-me. Bentinho nunca teve dúvidas, que para ele são fraqueza e a fraqueza o prenúncio da morte. Sei o que não entende, mas não posso explicar. Não posso dizer que odeio a história, por isso sou fotógrafo. Ou que sou fotógrafo, por isso odeio a história, sou do momento. Teria que dizer que odeio nossa história. Exceto a da nossa amizade.
Bentinho sabe que foi ele que abriu a porta para a minha fuga da nossa história – o emprego que me arranjou, de boy, nas Notícias do Dia. Das Notícias pingava sangue. Um amigo de Bentinho arrumou o emprego, mas ele não se interessou. Já tinha quase o tamanho de hoje e andava no bicho. Eu era covarde e franzino. Fiquei com o emprego. Lá aprendi a fotografar. Meu passaporte para longe da favela, longe da história.
Também não sei a que servem esses estudos da morte. Esses registros do fim. As vítimas de Bentinho. Bentinho, o executivo.
Bentinho é um executor. Mata a quem seus chefes mandam. Uma vez convidou-me a assistir uma execução, mas não tive coragem. Não sou um ator, sou um fotógrafo. Depois, registrei o epílogo.
Talvez não tenha conseguido fugir da história. Talvez fotografe esses mortos para convencer-me de que fugi. De que não terminarei assim. Algumas vezes sonho com essas caras mortas. Mas já sonhava com elas antes de ser fotógrafo.
Saímos e o garoto me olha fixo. Quando percebe que percebi, disfarça. Sinto seu olhar nas costas quando desço a ladeira.
Mudo meu itinerário e volto para as Notícias. O prédio é o mesmo. O responsável pelas fotos também. Ofereço-lhe a notícia e as fotos. Não me pergunta como sei e como fiz. Para ele são apenas seu trabalho. Esquece-se delas no momento em que fecha a luz. Talvez também ache que não se foge da história. Ambos sabemos que as fotos são excelentes. Aceito o pagamento que me oferece. É uma ninharia, comparado com o que ganho lá fora, mas não dispenso, porque ali é uma transação profissional. Se não cobrasse seria suspeito. Apenas insisto em que as publiquem. Ele não entende e lembra-me que a política do jornal é não identificar o fotógrafo. Mas garante publicá-las. Pergunta-me da vida e invento uma em Minas Gerais. Para ele é tão distante como Paris.
Meu tempo no Rio está acabando. Estou, uma vez mais, interrogando a morte, lendo o noticiário, quando o telefone toca. É a hora em que Bentinho costuma chamar. Mas é outra voz. A do garoto. Pergunta apenas se quero tirar umas fotos e me dá o endereço.
Hesito. A passagem e o passaporte na mesa avisam-me de que não preciso ir. Mas estão misturados com as fotos. E penso que é a oportunidade de despedir-me de Bentinho até a próxima volta.
A escuridão está terminando quando chego. Ouço o assobio do garoto e subo o barranco. O garoto está-me esperando, como nas vezes anteriores. Pega no meu braço e para-me.
– Vi as fotos no jornal! Maneiro! Na hora, não sei não, achei que voce não era de jornal. Mas aí vi.
Ficamos ali um tempo. Eu esperando, ele com um sorriso moleque. Aponta a descida do barranco.
– Achei que voce ia querer tirar essas fotos aí.
Os olhos estão fechados. A boca também. Há marcas na face, nas têmporas, na cabeça. A camisa empapada de sangue e pólvora. Muitos buracos. Alguns grandes, como faz a escopeta. É uma camisa de griffe.
Lentamente, com todo o cuidado, fotografo. Registro os restos, o fim de meu amigo Bentinho. Com o amor compatível com um ritual. Mas não decifro a expressão do rosto. Sei que estas serão as últimas fotos. Talvez sejam minhas últimas fotos. Gasto todo o filme. Tenho todo o tempo.
Quando termino já é dia. Há gente no barranco, olhando.
O garoto está cercado de dois homens, que se afastam, obsequiosos, quando ele se encaminha para mim.
Olhamo-nos bem e, depois, sem uma palavra, subo o barranco. Imagino o barulho e a dor do tiro. Mas não acontece nada.
Amizade
Amizade
Pode perguntar. Todos vão confirmar que tenho cara de maluco mas sou de boa paz. Não vendo fiado, não casei, não discuto religião e política, e mulher de amigo é homem. Brigo só pelos meus amigos e pelo Botafogo.
Minha amizade com Aristeu tem muito a ver com o Botafogo. No Grupo Escolar éramos os únicos com a Estrela Solitária na capa do caderno. Demos e levamos muita porrada por conta disso. Amizade firme.
Eu herdei a sapataria do meu avô, Aristeu foi estudar.
Aristeu arrumou um bom emprego, foi subindo na firma, ganhando bem, mas ficou morando aqui.
Num sábado ao meio-dia, véspera de jogo, estávamos todos no bar nos preparando, quando passou na calçada, andando de patins, uma morena vestida de licra.
Alguém disse:
Deus faz, a Natureza conserva.
Outro esclareceu:
É a Beatriz, filha do Humberto.
Eu fiquei pensando como era possível. Ainda ontem era uma menina, hoje, aquele assombro de mulher! E o Humberto e a mulher tão feios… Também pensei no preço daquelas roupinhas e patins e na dureza do Humberto.
Aristeu não disse nada. Estava tão besta que derramou cerveja fora do copo.
Ela percebeu tudo e ficou dando voltas, se exibindo. Todo mundo comendo com o olhar.
Podia ter ficado nisso, mas Aristeu casou com ela. O que ele via nela não precisava explicação. O contrário não sei; não entendo de mulher. Aristeu era magro, alto, desengonçado, com um gogó saliente, nunca tinha arrumado namorada.
Casaram e mudaram. Aristeu comprou um apartamento na Barra, financiado, e um carro zero. Estava ganhando uma boa grana mas trabalhava como um condenado para pagar tudo. Engordou e ficou menos desengonçado. Até o gogó diminuiu.
Mesmo assim, Aristeu continuou vindo todo fim de semana tomar uma cerveja. Quando o Botafogo jogava no domingo, íamos junto. Durante a semana não dava por causa do trabalho. Beatriz só aparecia nos aniversários da mãe e do pai. O Humberto continuava duro, mas Aristeu dava-lhe uma força, escondido da mulher. Beatriz continuava gostosa. Ainda mais.
Quando o primeiro filho nasceu, fui o padrinho. Tive a impressão de que Beatriz não gostou muito, sem classe e meio doido. Bela festa, garçons, muito uísque e canapês. Foi a primeira vez que fui à casa deles. Apartamentaço.
Padrinho tem obrigações e passei a ir lá, levar o moleque para passear, brincar com a bola, que intimidade a gente pega de pequeno. Era tempo do moleque ganhar um irmão, mas eles nada.
Um domingo, Aristeu não compareceu. Estranhei, porque era dia de jogo com o Fluminense, o Bota era favorito e Aristeu tinha muita birra com o Fluminense. Foi até bom, porque perdemos. Roubados, mas perdemos.
Na segunda feira, quando estava fechando a sapataria, Aristeu apareceu. Gravata aberta no pescoço, um bafo de bebida de dois metros. O gogó tremendo. Beatriz tinha saído de casa. Não queria exibir a dor no botequim e sentamos ali mesmo, nos fundos da sapataria, cercados de caixas.
A gente andava brigando muito. Mais ela comigo. Diz que eu sou chato, medíocre. Medíocre, eu? Dei tudo para ela! Tudo!
As lágrimas corriam. Eu, embaraçado. Pensei em perguntar como iam as coisas de cama, mas tem coisa que não se indaga.
Mulher que larga o marido vai para a casa dos pais. Beatriz não, foi para um flat. Mas, na semana seguinte era o aniversário do Humberto e apareci por lá.
Achei Beatriz meio acabadinha. No meio da noite, puxou-me de lado e despejou um jorro de ódio. De que, não dava muito para entender. Da vida mansa que levava? Da chatura do Aristeu? Mas, esperava o que? O príncipe encantado no cavalo branco? Mas não disse nada, fiquei ouvindo.
O divórcio era uma guerra. Os pretextos eram os de sempre: dinheiro e filho. No fundo, era Aristeu inconformado com a separação.
Acompanhei a guerra de perto. Meu afilhado andava derreado. Aristeu estava um lixo, Beatriz nem tanto. Eu, a única testemunha. Aristeu sumiu do botequim e disse que tinha tirado uma licença de saúde no trabalho.
Andava precisando de um dinheirinho e resolvi fazer uma liquidação. Estava arrumando a vitrine quando Aristeu entrou. Tinha um papel na mão e só faltava babar.
Você ainda tem aquele revólver? A vagabunda! Vagabunda! Com aquela conversa de espaço, tédio, identidade! Me corneando pelas esquinas! Vaca! Mas eu acabo com ela! Mato ela! Descubro quem foi e mato ele também! Depois, me mato!
O papel era uma carta. Dizia que Beatriz tinha-lhe plantado chifres de montão, quando ainda eram casados. Não dizia com quem. Não tinha assinatura. Aristeu também tinha mudado e a carta tinha chegado no apartamento novo. Impressa em papel branco.
Estava na cara que não ia dar o revólver para Aristeu. Se ele quisesse já tinha arrumado um. Mas fiquei muito puto. Fazer isso com meu amigo?! Pai do meu afilhado!
Carta anônima é coisa de viado. Amigo, se é para dar um toque, puxa no canto e dá. Mas eu, num caso desses, não daria. Ninguém está livre disso. Se tivesse alguma intimidade, daria um epa, um aviso, na mulher.
Fomos para o botequim e ficamos bebendo até fechar. Levei o Aristeu para minha casa, para ele não dormir sozinho. Depois, passei na loja e peguei o revólver. Não devolvi a carta.
Na manhã seguinte, pus o revolver e a carta no porta-luvas do carro e fui procurar meu sobrinho Onofre, que entende de computador. Depois, fui até o antigo apartamento de Aristeu e Beatriz. O porteiro me confirmou que Aristeu não tinha vendido nem alugado, só fechado por uns tempos. Continuava indo ali pegar a correspondência.
Dali, fui até o tal flat de Beatriz. Era de manhã, horário de escola. Pus o revolver no cinto, encoberto pela camisa e a carta no bolso. O porteiro me conhecia das vezes que fui pegar o moleque, mas não me viu entrar.
Ficou espantada em me ver – o moleque não estava. Tinha desistido de ser loura. Estava descalça, de short e camiseta. Sem sutiã. De tirar o fôlego! O lugar era pequeno, mas bem arranjadinho. Empregada não tinha.
Sentei na poltrona e deixei o sofá para ela. Aceitei o café. Quando trouxe, percebeu o revolver em baixo da camisa. Ficou pálida e sentou devagarzinho.
Eu fiz que não percebi e perguntei pelos pais dela. Depois, nessa onda de família, contei de meu tio Cândido. Que tinha matado a mulher porque achava que ela tinha passado ele para trás. Achava, porque nunca foi provado. Mas tinha desgraçado os filhos, meus primos. Ela passou a ponta da língua nos lábios. Não tirava o olho da minha cintura. Disse que era um absurdo. Eu concordei. Mas a vida era assim, cheia de absurdo.
Tirei o revolver e coloquei em cima da mesa, entre os dois, cano virado para ela, mão apoiada na coronha. Ela meio que levantou, mandei sentar e ficar quieta. Com a outra mão, estiquei a carta para ela.
Aristeu é meu amigo. Meu irmão. Recebeu essa carta. Lê.
Ela mal olhou o papel.
Diz aí que você dava mais que chuchu em cerca. Quando ainda eram casados.
Confirmou com a cabeça.
Está confirmando o que? Que pôs chifre no Aristeu?
Ela não conseguiu falar, só abanou a cabeça.
Tem namorado?
Novo abano.
Peguei o revólver e afundei o cano entre os seus peitos. Ela foi recuando para dentro do sofá, até que chegou no encosto, a cara branca, os olhos fechados bem apertados.
Foi você quem escreveu a carta.
Sacudiu a cabeça. Eu apertei o cano do revolver até o osso.
Se eu abrir essa bosta de computador e achar essa carta em meus documentos aperto o gatilho…
Apertou ainda mais os olhos e prendeu o fôlego. Eu continuei:
Só você sabe o novo endereço do Aristeu… Vou perguntar pela última vez! Foi você quem escreveu?
Abriu os olhos, toda encolhida. Confirmou com a cabeça.
Pra sacanear o Aristeu?
Pra ver se ele me esquece.
Porque acha que ele não é homem capaz de uma besteira? Só não fez porque eu segurei! Queria te matar e depois se suicidar! É burra mesmo! Não percebe que o Aristeu é apaixonado por você?
Ela arregalou os olhos e abriu um pouco a boca, espantada, sem dizer palavra. Ia levantar mas eu empurrei de volta para o fundo.
Mas eu, eu sou capaz de muita besteira e sou amigo dele. Amigo pra mim é sagrado! E não tem ninguém para me segurar!
Não tirava os olhos do revolver e respirava com dificuldade. Segurei o seu rosto e obriguei a me olhar.
Essa briga faz mal ao meu afilhado, entendeu?
Peguei pelo braço e levantei-a, sem largar o revólver. Mandei ligar o computador e me mostrar a carta. Estava lá.
Escreve outra carta. Igual a que foi para o Aristeu. Endereçada para você. Dizendo que ele te corneava. Aí!
Fez o que mandei. Justiça seja feita, sem choro nem nada.
Agora, telefona para o Aristeu e faz uma cena.
Foi uma boa cena. Leu a carta no telefone. Xingou, chamou de canalha, mau caráter. Que aquilo confirmava que a coisa mais certa que fez na vida foi largá-lo. Que se arrependia de não tê-lo corneado quando ainda eram casados.
Peguei uma cópia da carta. Não dissemos palavra, mas me levou até a porta.
Domingo último, Aristeu apareceu cedo no botequim. Me levou para um canto e encheu nossos copos.
Mano, como tem gente má! Imagina só, Beatriz também recebeu uma carta igual. Tudo fofoca. Carta anônima é isso aí, não dá para confiar! Agradeço muito você ter me segurado. Podia ter feito alguma bobagem, e aí, como ficava? Já imaginou o remorso? Aliás, depois disso, as coisas com Beatriz melhoraram. A gente tem conversado… Outro dia ela perguntou por você.
Mas já estava na hora de ir para o jogo e não soube o que a Beatriz queria comigo. Gosto de vida em paz, não perguntei. Mas pensei que, se ela e Aristeu continuarem separados, ela não vai mais ser mulher de amigo meu.
Sangue e Fala
Sangue e Fala
Fabio S. Erber, Para Ana, esperando ter atendido.
Os Restrepo eram muitos, quase inumeráveis. Para distinguir-se, como os nomes se repetiam, usavam apelidos. Também, dissera-o Restrepo Pai, os apelidos eram mais sensatos que os nomes : refletiam algo da personalidade, interna ou externa, do apelidado, enquanto o nome era arbitrário, dado que era impossível saber, ao levar o bebê à pia batismal, se, mais tarde, teria cara de Anselmo ou Hermengarda. É verdade que, algumas vezes, o apelidado mudava ao longo da vida e o apelido perdia o sentido, até mesmo para o dono. Outras vezes, o apelido apanhava só uma parte do apelidado. Entre outros, havia, entre os Restrepo, Rodrigo o Boi e Hilário o Gago.
Foi Rodrigo o Boi quem mudou a vida de Hilário o Gago. Franzino e impedido de falar, Hilário cresceu no deboche dos primos e tios e, mais disfarçadamente, no desprezo do pai. Cuja língua solta levara-o a uma carreira política na Capital. A mãe de Hilário, decepcionada com aquele primogênito enfezado, em uma família em que a saúde era obrigatória, dedicara-se aos vários irmãos e irmãs que, pontualmente, a cada ano o sucederam, todos, a seu tempo, adequadamente falantes. Aos poucos, todos foram se esquecendo da existência de Hilário, até que, numa tarde de chuva, sem ter nada que fazer, Rodrigo entrou numa das salas e viu o sobrinho idiota frente a um tabuleiro de xadrez. Para seu espanto, era um problema que Hilário estava resolvendo. Por curiosidade, Rodrigo propôs uma partida.
O menino era um jogador maduro. Ponderava cada lance e jogava sem hesitação. Tinha, para cada partida, uma estratégia. Ganhou todas. O prazer que sentia ao ganhar era visível, embora tentasse disfarçar.
Se o físico de Rodrigo justificava o apelido, a inteligência e o afeto iam além. Apiedou-se do sobrinho e, estudante de medicina, fez vários testes com o garoto. Não obteve nenhum resultado que esclarecesse a gagueira. Intrigado, propôs levar o menino para a cidade, para fazer outros exames. O irmão e a cunhada manifestaram gratidão, embora duvidassem se o trabalho pagava a pena.
Na cidade, Hilário descobriu que, contra tudo que lhe haviam dito, era inteligente. Mas a gagueira não cedia. Nada de físico se descobriu e Hilário resistiu a todo tratamento psicológico. Se o preço da cura era abrir-se a estranhos, gago ficaria.
Depois, Hilário descobriu os dinossauros. Solteiro, sem saber como distrair o sobrinho, um domingo Rodrigo o levou ao Museu de História Natural. Ao passarem pela sala da pré-história, Hilário empacou. Abriu a boca e ficou olhando o esqueleto. Voltou dias seguidos. Aprendeu a desenhá-los. Lia tudo o que encontrava sobre o assunto e, para isso, voltou-se para outras línguas.
Ao mesmo tempo que alimentava a paixão do sobrinho, comprando-lhe livros e ouvindo com paciência o seu sofrido entusiasmo, Rodrigo ocultou da família o que ocorria, temeroso que internassem o sobrinho como louco. Assim, foi o único que não se surpreendeu quando Hilário, tendo concluído os cursos normais, anunciou que ia estudar paleontologia. Aos pais, antes de partir para o exterior, Hilário deu como única explicação o fato de ninguém saber, nem poder saber, que sons emitiam os sáurios .
Em outras línguas, sua gagueira limitava-se a uma dificuldade em dar a partida nas frases. Mas, na língua natal, especialmente quando se tratasse de afetos, ainda era o Gago. A única exceção eram as conversas com o Boi, que rebatizou, para sempre, de Tio Rodrigo.
Ao longo dos anos foram mantendo, o tio e o sobrinho, uma correspondência regular, cada qual com sua paixão. Enquanto Hilário dedicava-se aos fósseis, Rodrigo cultivava os prazeres da carne. Literalmente: detestava saladas, frutas e outros vegetais, talvez por reação ao apelido. Desprezava o colesterol e as dietas e, a medida que envelhecia, mais justificava o apelido. Também em mulheres apreciava as carnes e casou-se com uma enfermeira de ampla cubagem e temperamento plácido. Coincidiu o casamento com a Grande Partilha, após a morte de Restrepo Pai, e nessa, Rodrigo herdara extensas pastagens. Nelas se dedicou a criar carneiros e a cultivar sua outra paixão : a clínica geral. Construiu um anexo à fazenda para abrigar o consultório, comprou uma ambulância e equipou-os com o que de mais moderno havia. Atendia por quilômetros ao redor, freqüentemente sem nada cobrar. O pai de Hilário, em vão, tentou convencê-lo a entrar para a política.
Na Partilha, Hilário o Gago descobriu que, uma vez mais, fora esquecido. Embora o que tivesse herdado fosse suficiente para suas necessidades, era ínfimo em comparação com o que outros haviam recebido. Quis expressar seu ressentimento doando o legado a instituições de caridade, mas Rodrigo o dissuadiu.
Uma vez por ano, pelo menos, Hilário ia visitar o Tio. Na fazenda tinha um quarto, seu. Saía de onde estivesse, desertos da Austrália, museus da Europa, e ia passar um mês, conversar, comer carne de carneiro e reabastecer-se de afeto. Com o trabalho confirmara a solidão. Dos membros da profissão recebia estima e consideração pela competência, mas dele, achava, não gostavam. Talvez, porque os visse mais como competidores que como colegas. Pensara ter paixões, mas a língua e as emoções embaralhavam-se. Algumas vezes ia a prostitutas. Escrevia, com letra miúda, poesias torrenciais, longamente trabalhadas, que arquivava numa caixa de ferro, trancada a cadeado, guardada em baixo da cama, no quarto da fazenda. Consolava-se imaginando tratar-se, apenas, de um desencontro e ia, lentamente, esculpindo na mente o sonho do acerto, que, tinha certeza, estava por vir. Dessa paixão, que se agitava sem rumo, nada transpirava, nem para o Tio, que se preocupava com sua solidão.
A família, Hilário aboliu. Voltaram a ver-se quando a tragédia atingiu o Tio. Veio como um câncer, que lhe levou a mulher em poucos meses. Hilário largou tudo e ficou ao seu lado, vendo-o emagrecer sob a dor e o peso da culpa, de não ter percebido a doença a tempo e não poder curá-la. O enterro reuniu a família. Fechado no quarto, Hilário esperou que partissem. Quando terminou, choraram, ele e o tio, juntos, as primeiras lágrimas desde a infância.
Na semana seguinte ao enterro, Hilário recebeu uma carta do Smithsonian propondo-lhe a busca de toxodontes. Mamíferos, parecidos com o hipopótamo, à exceção do focinho, que era semelhante ao do rinoceronte, os toxodontes não tinham grande apelo. Nada comparável aos grandes sáurios com que sempre trabalhara. Mas o projeto tinha uma grande vantagem – a escavação seria perto, para seus padrões de distância, da fazenda. Em dois dias de carro, dirigindo sem parar, dava para ir. Ficou mais dois meses na fazenda, velando o Tio e, quando o viu comer o primeiro carneiro, concluiu que podia partir.
Em outras épocas, os toxodontes viviam à beira de lagoas e rios. A água, porém, secara há muito, e o deserto a substituíra. Apenas na estação de chuvas a água voltava, e com raiva, inundando tudo por três meses, até desaparecer de novo, tragada pelo chão. A revolução que causava no terreno era útil para desenterrar restos há séculos sepultos, mas enquanto durassem as chuvas, era impossível trabalhar. Ressecado pelo sol, frustrado pelos poucos achados, Hilário saudou as chuvas e começou a volta à fazenda.
Ao passar pela cidade para apanhar a correspondência, achou uma carta do tio. Era um ritual que se renovava a cada expedição e, ali, indicava a ressurreição. Mas estranhou o pedido. Na sua letra redonda e grande, Tio Rodrigo pedia-lhe que fosse a Santa Bárbara das Missões e procurasse notícias de um convento de uma obscura ordem, destruído por um incêndio em 1909 ou 1910. Queria também que tentasse saber se uma freira ou noviça chamada Clara Guzmán tinha por lá vivido e morrido nesse incêndio.
Santa Bárbara acrescentaria pelo menos dois dias de viagem, por estradas que não conhecia, mas que sabia serem ruins. Tentou telefonar para o tio, apesar do PS, que prometia explicações quando chegasse. Quando a telefonista informou-lhe que um cabo havia caído, desistiu.
Santa Bárbara era pior do que imaginava. Levara um dia e meio para chegar ao meio do nada. Pequena, feia, com uma rua principal onde arremedos de edifícios modernos, de oito pisos, haviam substituído as antigas lojas de armarinho e alimentos. Finalmente, achou a Igreja Matriz, cujo tamanho sugeria uma opulência passada insuspeitável. Apesar das dimensões do prédio, havia um ar de pequenez. Talvez, imaginou, fossem os santos mirrados, a modernidade datada dos vitrais. Que fé, indagou-se, isso pode inspirar? O padre não estava e resolveu esperá-lo na sombra do átrio.
Demorou uma hora, mas chegou. Era miúdo e calvo. A batina podia ter sido lavada há algum tempo. Hilário foi recebido sem entusiasmo, mas a irritação com o iminente desperdício da viagem, ou algum dos santos esquecidos, inspiraram-no. Quando disse que se tratava de uma herança, o padre entendeu. Sim, uma herança justificava uma pesquisa, mesmo tanto tempo depois. Sim, havia registros que remontavam à metade do século anterior, quando Santa Bárbara fora um rico empório de algodão, antes que a praga acabasse com tudo, até com a fé das pessoas.
E o livro, velho e coberto de pó, registrava a existência do Convento das Servas do Coração de Maria. Um convento pequeno, composto de uma madre-superiora e de vinte freiras, sem contar as serventes. Destruído completamente num incêndio, na véspera de Natal de 1909. Haviam sobrado apenas as fundações, depois cobertas pelos paralelepípedos. Ficava onde, hoje, são os fundos da Rodoviária. O livro trazia também os nomes das duas madres-superioras que o haviam dirigido e das freiras. Seus nomes seculares e religiosos. Algumas mudavam o nome, mas Clara Guzmán virara apenas Irmã Clara. Talvez relutasse em deixar o mundo. De todo modo, vivera pouco – ao morrer no incêndio tinha vinte anos. Entrara no convento onze meses antes. Não se dizia porque. Fé? Fora a última a entrar. Por via das dúvidas, anotou o nome das outras e respectivas datas de nascimento e entrada. Todas estavam lá havia, pelo menos, três anos e nenhuma tinha menos de quarenta anos. Que teria sentido aquela menina, no meio delas? Que cara teria? Para que queria o Tio aquelas informações?
Aquele registro burocrático de uma tragédia, o desperdício de uma vida, incomodou-o tanto que fechou o livro bruscamente, levantando uma nuvem de poeira. Agradeceu ao padre e deixou uma contribuição para as obras de melhoria da Igreja. Pelo bafo do padre, suspeitou que, na verdade, a coleta fosse destinada à compra de vinho. Que talvez fosse santo.
Obsessivo e ocioso, resolveu ir ao jornal. Era um prédio pequeno, do início do século, que, à época, fora azul claro. Orgulhavam-se de sua coleção completa, mesmo que ninguém a utilizasse, exceto o Professor Gastão, que estava escrevendo a história da cidade. Ali achou mais, mas pouco. O incêndio tivera causas inexplicadas. Apesar dos esforços dos valorosos soldados do fogo, fora impossível apagá-lo. As freiras estavam no claustro e os corpos estavam tão queimados que fora impossível distingui-los. O Sr. Bispo viera oficiar a missa do enterro. Entre as mortas, havia duas da cidade. Clara Guzmán era uma delas. Filha de Alfredo e Maria do Pilar, ele negociante de alimentos, ela do lar. Tinha três irmãos, menores. Todos tristíssimos, mas consolados porque se fizera a vontade de Deus e ela estava com os anjos. Rangeu os dentes.
O Sr. Gastão era professor aposentado. Esperava que o registro das glórias passadas de Santa Bárbara servisse de inspiração para os alunos, que só pensavam em sair dali para outros lugares, mais modernos. Hilário concordou que era difícil que fossem mais felizes nesses lugares. Sobre o Convento, o Professor sabia pouco. Queimara no ano do seu nascimento. Não tinha qualquer valor arquitetônico especial. Lembrava-se apenas de uma coisa : quando era menino, dizia-se que o terreno era mal-assombrado, que os fantasmas das freiras sugavam o sangue de quem passasse por lá à noite. Depois, os paralelepípedos haviam coberto a imaginação .
O registro civil pouco acrescentou. Alfredo Guzmán morrera dez anos depois da filha e a mulher seguira-o cinco anos depois. Encontrou o registro de óbito de um dos irmãos, três anos mais tarde, morto num acidente. Não procurou os demais.
Era o fim da tarde e resolveu ir até o cemitério. Num túmulo horrendo, protegido por um anjo de asas abertas, achou o nome da madre-superiora. Os outros nomes estavam apagados. Da família Guzmán, não havia rastro.
Cansado, hospedou-se no hotel principal da cidade. Ao preencher a ficha, hesitou ante a “profissão”. Pesquisador ? Necrófilo ? Optou por professor. Passou a limpo suas anotações. Comeu mal e teve pesadelos. Sonhou com o fogo e uma mulher loura que gritava. Ao raiar do sol retomou viagem.
Chegou a uma encruzilhada, onde havia um posto de gasolina. Estava muito cansado e resolveu parar. Sabia que, se fosse pela direita, em uma hora chegaria à fazenda que fora de Pai Restrepo e que, agora, era do tio Emílio, o Conservador. Pela esquerda, levaria mais quatro horas, correndo, para chegar à casa de Tio Rodrigo. Resolveu comer no restaurante do posto.
Trataram-no com a maior deferência. Não porque o conhecessem pessoalmente, mas porque era, sem dúvida, um Restrepo. Com os anos, desenvolvera o físico da família, alto, pesado, o rosto moreno de nariz adunco, testemunhando algum mouro perdido no tempo. No seu caso, o sol e a vida nas escavações haviam-no reforçado e curtido. O menino franzino só ficara dentro dele. Ao olhar-se no espelho do banheiro, descobriu um fio branco na espessa barba preta. Deixou-o ficar, com a esperança que preanunciasse a paz da maturidade.
Dormiu uma hora na própria camionete e seguiu viagem, para a casa do Tio Rodrigo. Sabia que, na outra fazenda, seria bem recebido, mas sentia calafrios ao pensar em voltar. Os primos e ele haviam envelhecido, ninguém o escorraçaria, debochando da gagueira, mas a língua continuava presa e a humilhação também. Havia muitos anos lá que não ia. A última vez fora para a Grande Partilha. Choveu pesado no caminho.
Chegou de madrugada, mas a luz da varanda estava acesa, como sempre. A porta do quarto do Tio estava fechada, sinal de que estava em casa. Conforme os códigos, a do seu quarto estava aberta. Fechou-a e abriu as janelas. Fazia um calor pesado, prenúncio de mais chuva. Despiu-se, verificou se a caixa de metal estava em baixo da cama, com o cadeado fechado e, cumpridos os rituais, foi tomar banho. Era um dos luxos da casa do Tio, a grande banheira de metal verde, esmaltada por dentro, com patas de leão, especialmente depois dos meses desérticos. Mas, ao deitar-se na água quente, teve uma indefinida e curiosa sensação de outra presença.
Sonhava pouco e mal. Em geral, eram pesadelos pré-históricos, como um que o acompanhara por muitas noites, em que um monstro, formado por um corpo de pterodáctilo e uma cabeça de tiranossauro, arrastava-se pelo chão, tentando levantar vôo, sem conseguir. Naquela noite, porém, o sonho era claro. Havia uma mulher loura, de pé, ao seu lado. Era lindíssima, mas quando ia estender os braços para abraçá-la, não conseguia, porque pesavam como pedras.
Acordou com o sol alto e a sensação do sonho ainda presente. Não encontrou o Tio. Apenas um bilhete, na mesa da grande sala de refeições, em que o Tio se desculpava – tivera que ir ver um doente e voltaria para o almoço. Havia, também, um curioso pedido – que não usasse o consultório. Como não costumava fazê-lo, estranhou. A velha empregada fez-lhe grandes festas, tentou dar-lhe muita comida, mas mostrou-se reticente em dar-lhe informações quanto à saúde do Tio. Para espantar a preocupação, mandou selar um cavalo. No campo, as ovelhas e os peões tinham a cara de sempre. Conhecia quase todos e, finalmente, encontrou quem procurava – Albano, o capataz. Estava com o Tio desde o início, mas era um índio velho e desconfiado, quase monossilábico. Comentou, porém, que o Patrão estava preocupado e que haviam roubado duas ovelhas, recentemente. A sensação do sonho acompanhou-o, embora tentasse não pensar nela.
Tio Rodrigo esperava-o na varanda, com um abraço apertado. Recuperara o velho peso, mas haviam novas linhas de preocupação em volta dos olhos e uma indefinível excitação.
Os almoços na fazenda eram frugais, em contraponto aos jantares. Presidia-os a regra de evitarem assuntos complexos. Fazia parte do ritual entre os dois o Tio interrogá-lo sobre as escavações; mas, dessa vez, depois de umas poucas perguntas, foi para a visita à Santa Bárbara. Hilário passou-lhe as anotações que fizera e percebeu que a leitura o perturbou. Parou de comer por um tempo – o que era extraordinário – e ficou balançando a cabeça, olhando para o nada. Agradeceu-lhe sumariamente, guardou o papel cuidadosamente no bolso e passou a falar do cotidiano da fazenda, até que Hilário mencionou o roubo das ovelhas. Já haviam chegado ao café, e o Tio, levantando-se, levou-o até a grande sala de estar. Era um sinal de crise.
A sala era o repositório das antigas glórias da fazenda, onde Tio Rodrigo concentrara os melhores móveis da decoração antiga, depois de modernizar o resto. Lá estavam os ouros e pratas, as porcelanas e, até mesmo, retratos de família. Em um canto, o mais alto da casa, havia duas grandes bergères, das quais, mesmo sentados, dava para ver a longa planície, coalhada de ovelhas. Para lá o Tio refugiava-se, quando necessitava meditar ou para conduzir as negociações mais intrincadas da criação e venda de ovelhas.
Tirou o papel do bolso, desdobrou-o e releu-o. Olhou para o sobrinho e parecia perplexo.
– Essa nossa mania de verificar as coisas… talvez não seja boa. Algumas vezes, acreditar ou desacreditar, sem mais, é melhor.
Hilário não comentou, porque sabia que o Tio era dado àquelas generalizações evasivas, especialmente as que levavam a longas discussões sobre ética e filosofia. Com o tempo, o hábito piorara. Se não aceitasse a provocação, o Tio acabaria por ir ao assunto.
– Há um mês e meio, fui fazer um parto. Partos são o que mais gosto. Foi tranqüilo – a mãe era de bacia larga, o bebê estava em posição e nasceu um belo guri, moreno e cabeludo. Já tinha anoitecido, mas, como estava de bom humor, peguei, para voltar, a estrada velha, dos contrabandistas, que é mais arborizada. Vinha com a janela aberta, para sentir o perfume das plantas. Perto da encruzilhada, comecei a ouvir algo esquisito. Não era bem ouvir, era mais sentir alguma coisa no ouvido.
Você lembra da encruzilhada? À direita a gente quebra para a fazenda, à esquerda vai para a fronteira, no meio há uma enorme figueira. Bem na figueira, havia um carro batido. Destroçado. Com a luz dos faróis, vi uma mulher, em pé, do lado do motorista, tentando puxá-lo para fora do carro. E dava uns gritos agudos, quase inaudíveis.
Parei, é claro, e fui ajudar. Parecia uma mocinha. Estava muito pálida e tinha o rosto marcado de sangue. Dos olhos até o queixo. Ficou assustada quando me viu, mas, quando lhe disse que era médico, se acalmou. Quis examinar seu rosto, mas não deixou. Que não era nada. Que a ajudasse com o companheiro. Como não vi sinal de cortes, fui tentar tirá-lo do carro. Estava fumegando e tinha medo de que explodisse.
Finalmente, conseguimos tira-lo. Estava totalmente inconsciente. Colocamos na maca e o levamos para a ambulância. Achei-o até leve, quando percebi que era ela quem estava com o grosso do peso. Fiquei admirado, porque parecia franzina. Lembro-me de que pensei que o amor dá forças às pessoas. Ela não falou, mas sabia que eram namorados.
Na ambulância, assustei-me com a palidez dela. Branca como papel, achei que ia desmaiar. O rapaz parecia grave e eu precisava de calma para examiná-lo. Mandei que sentasse no banquinho e abri a geladeira para pegar água.
Fez uma pausa, hesitando antes de continuar.
– Levo sempre umas bolsas de sangue, caso precise duma transfusão. Antes que eu pudesse fazer um gesto, ela pegou a primeira bolsa, rasgou-a com os dentes e tomou-a, toda. Como quem bebe um refrigerante. Aí, deu um suspiro fundo e sorriu. Os caninos eram maiores que o normal.
Acho que só aí percebeu o que fizera. A cor do rosto estava voltando ao normal. Pegou minha mão entre as suas e disse : “Por favor, cuide dele. Depois eu explico tudo”.
Hilário quis falar, mas não conseguiu. O Tio olhou-o e suspirou.
– Você já me disse que sou médico antes de tudo, até de criador de ovelhas. Fui ver o rapaz. Parecia muito grave. Estava vivo, mas sem qualquer reflexo. Expliquei a situação para ela e sugeri que o levássemos a um hospital. Ficou aflitíssima com a idéia.
“Não não. Não podemos”, me dizia. “Não vou poder ficar perto dele. Não vão deixar. E vão pegá-lo e matá-lo”.
Contou que o rapaz era traficante de drogas e fizera um grande desvio para fugir com ela. Mas ela achava que os donos da droga já haviam percebido e estavam atrás deles. Quando cheguei, ficou em pânico pensando que fossem eles.
Cada época tem as histórias românticas que pode.
Rodrigo fez outra pausa.
– Aí, suspeito, fiz uma loucura. Ou uma bobagem. Até agora não sei. Sempre fui um cidadão cumpridor das leis. Mas que leis valem num caso desses? Passei horas perguntando por que. Pode ter sido pena, ou romantismo, ou curiosidade. Desde que Liz morreu, minha vida tem sido um vazio.
O fato é que me ofereci para examiná-lo melhor no consultório. Dali, poderíamos sempre remove-lo para um hospital, no dia seguinte.
Só que, no dia seguinte, enquanto ela estava dormindo, chegou um carro aqui na fazenda. Dentro, estavam quatro homens. Saltaram todos e, enquanto dois olhavam em volta, com a desculpa de se espreguiçarem, os outros dois, os que estavam sentados na frente, vieram falar comigo.
Disseram que eram da polícia. Se fossem, preferiria chamar os bandidos. Perguntaram pelo carro e pelo casal. Eu não sabia de nem um nem outro. Pareceram acreditar e foram embora. Depois, Albano me disse que ficaram rodando pela vizinhança.
No dia seguinte voltaram. Tinham achado o carro. Expliquei que quase ninguém usa aquela estrada – só o pessoal que quer cruzar a fronteira sem passar pelo posto. O casal podia ter andado ou arranjado carona num caminhão. Ninguém podia saber.
Rondaram mais um dia e, depois, sumiram.
Mas eu não podia levá-lo para um hospital.
Ficou um tempo quieto, pensando.
– Estou mentindo, Hilário. Ou, pelo menos, me enganando. Eles ficaram porque eu quis. Porque tinha uma enorme curiosidade de conhecer uma vampira.
Levantou-se.
– Ainda estão aqui. No anexo do consultório.
Hilário lembrou-se do bilhete.
– Quer vê-los?
Ao destrancar a porta, Rodrigo virou-se e avisou :
– Não faça barulho. Ela está dormindo.
Na porta da salinha, Hilário teve de sentar-se rapidamente, porque tinha a sensação de que ia cair. Deitado, com um sorriso nos lábios, respirando levemente, estava o Sonho. Engasgou e teve medo de sufocar.
Não sabia quanto tempo depois, levantou-se para vê-la de perto.
Era e não era o Sonho. Era menor, mais franzina. O rosto mais afilado. O cabelo não era bem louro, mas castanho claro, cor de mel. E, ao mesmo tempo, era o Sonho.
Ficou ali, olhando-a, bestificado.
Quando o Tio o puxou pelo braço, tirou-lhe a mão, irritado. Olhou em volta, mas mal prestou atenção à figura deitada na outra cama. Precisava de ar fresco e saiu quase correndo.
Rodrigo encontrou-o na varanda, andando de um lado para o outro. Não queria e não podia explicar ao Tio o que ocorrera. Gaguejou uma desculpa e fugiu, primeiro para seu quarto e, depois, para o dorso do cavalo. Voltou ao fim da tarde.
Tomou um longo banho e foi encontrar o Tio na varanda. Já estava escurecendo e sua ansiedade subia. O Tio olhou-o longamente, preocupado. Para desconversar, Hilário perguntou :
– Quem mais sabe?
– Marta sabe que está aqui, cuidando do rapaz. Acho que Albano também sabe, mas ele não comenta. Desconfio que acham que é minha amante.
Hilário sentiu uma pontada no fígado e, logo, vergonha. O Tio, sem perceber, riu.
– Não faz o meu gênero. Muito magrinha! Mas ninguém sabe que é uma vampira. Nem pode saber!
Pela milésima vez, Hilário disse-se que o Tio estava errado. Que vampiros não existem. Que a moça devia sofrer de alguma doença rara. Lembrou-se de que o Tio não tinha diagnosticado a doença da própria mulher e envergonhou-se. Assustado, pensou que, talvez, o Tio tivesse enlouquecido. Loucos não faltavam na família, o próprio Tio sempre dizia. Mas sentiu alívio que ela estivesse a salvo dos ocupantes do carro e ficou grato ao Tio por protegê-la. Enternecido, comentou :
– Ela parece tão frágil !
– Frágil ?
Rodrigo contou-lhe o assalto.
– Eram dois pobres-diabos. Haviam sido despedidos da fazenda vizinha por pequenos roubos e precisavam de emprego. Até pensei em dar-lhes uma chance, mas Albano foi contra e, nessas coisas, respeito o que decide.
Entraram aqui à noite, depois do jantar. Marta havia saído. Estavam armados com faca. Nem revolver tinham. Encontrei-os na sala: tinham uma sacola aberta e estavam guardando as pratarias. Já não sou garoto e fiquei com medo. Mandaram-me sentar na poltrona e ficar quieto. Acho que não sabiam o que fazer comigo.
Aí ela entrou. Ao ver que era uma mocinha, um deles ficou ao lado da estante, pondo as pratas na sacola e o outro foi para o meio da sala e mandou-a chegar perto. Até disse que ela não precisava ter medo!
Sorrindo, ela foi se aproximando. Você vai ver, ela tem um sorriso esquisito. Você já viu um gato tocaiando uma borboleta ? Como se abaixa e vai de mansinho ? Até dava para ver a cauda dela abanando ! Até que chegou bem perto do sujeito. Sempre sorrindo. Não sei se de propósito, mas o último botão do vestido estava aberto. Ficaram assim, parados, um na frente do outro, ele com a faca na mão, meio sem jeito, e ela olhando-o e sorrindo. Até que, de repente, não sei como foi, ele deu um grito e vi que a faca estava na mão dela e ele segurava o pulso. De onde eu estava, parecia destroncado.
Parou para tomar fôlego.
– Aí começou o horror. Quase em câmara lenta, ela lhe deu um enorme talho no rosto. De cima a baixo. Deu um passo para trás e… lambeu a lâmina!
Franzina, não é ? Pois, de repente, tive a sensação que fosse enorme! Largou a faca e arreganhou os dentes, sibilando! Os caninos pareciam ter crescido!
Quando ela cortou a cara do primeiro, ele não pareceu acreditar. Talvez fosse o choque. Mas quando sentiu o sangue correndo, deu um berro. O outro, quando viu aquilo tudo, especialmente a cara dela, largou faca, sacola, tudo, e saiu correndo. Ela foi atrás. O cabelo solto, parecia não ter peso. O primeiro idiota foi atrás.
– E você ?
– Eu fiquei lá, sentado. Petrificado. Não queria ver.
Fez uma longa pausa.
– Ouvir foi o bastante. Primeiro, um grito. Depois, outro, Os dois foram urros – o segundo ainda pior que o primeiro. Depois, o silêncio. Silêncio total. Lá fora não havia um passarinho ou grilo piando. Um silêncio de fim de mundo.
Não sei quanto tempo fiquei sentado naquela poltrona. Até que ouvi a escada da varanda ranger. E ela entrou, limpando a boca na manga do vestido. Deu-me um sorriso e sentou na poltrona em frente, sem dizer nada. E ficou lá, com ar satisfeito, o olhar perdido para fora.
Nessa profissão, já vi muitos cadáveres. Fiz internato em pronto-socorro. Mas nunca, juro, nunca vi outros com tamanha expressão de horror no rosto! Os dois tinham a garganta rasgada e sugada. Acho que ela pegou o que saiu primeiro por trás e, aí, virou-se para pegar o segundo.
Fizeram um longo silêncio, o horror entre eles.
– O que… o que você fez com os corpos ?
– Tinha que me livrar deles. Devia ter chamado a polícia, mas não tive coragem de entregá-la. Já lhe disse, minha ética está muito confusa. Percebo que ela fez… o que fez, para me proteger. Matar alguém, para ela, não é grande drama. Imagino que uma onça não perde o sono depois de matar uma cotia. É um fato natural.
Ficou ponderando aquilo e acrescentou simplesmente, para si mesmo:
– Ela não é humana.
E para o sobrinho :
– Lembra-se da mina velha, abandonada ? Joguei-os lá. Logo, só vão sobrar os esqueletos. Quando os acharem, pensarão que caíram acidentalmente. Pobres coitados !
Fez uma pausa.
– Acho que quem convive com uma onça deve sentir o mesmo. Domesticada, sim, mas imprevisível. Outras vezes, penso que não é bem isso. Que não é uma onça, mas algo diferente. Alguém, algo, que tem um código de ética diferente.
Ficaram ali, parados, olhando as estrelas, cada um perdido em seus pensamentos, até que, sem que Hilário tivesse ouvido qualquer ruído, uma voz feminina deu-lhes boa noite.
Era o Sonho. Acordado, de pé, com um vestido preto, longo, que ia até os pés, abotoado na frente – um misto de vestido e negligê. Tinha, mesmo, um sorriso estranho, de lábios fechados, que lhe dava um ar misterioso, de Mona Lisa. Os cabelos lisos, soltos e repartidos no meio. Pele muito branca, com a tez de juventude. Sem pintura, o único adorno era um crucifixo de prata no pescoço, preso por uma corrente, também de prata. Os olhos, percebeu, eram grandes e levemente estrábicos.
– Você é Hilário, não é? O Doutor Rodrigo falou muito de você!
Falava baixo, com voz de mocinha bem-educada.
Mudo, Hilário apertou-lhe a mão. Olhava-a, arregalado, mas teve que fechar os olhos quando Tio Rodrigo anunciou, formalmente:
– Hilário Restrepo. Clara Guzmán
Teve vontade de gritar que não! Que era um engano! Clara Guzmán nascera em 1889 e morrera vinte anos depois num incêndio! Ele vira os registros, os jornais, o atestado de óbito! Estava tudo lá, em Santa Bárbara!
Felizmente, os dois outros estavam conversando algo que não ouvia. Até que ela disse para o Tio :
– Vamos ver o que acontece. Um milagre é sempre possível.
Olhando para Hilário, perguntou a Rodrigo, preocupada:
– Ele está zangado porque usei a banheira ?
Rodrigo pigarreou, embaraçado.
– Achei que Você não se incomodaria, se ela usasse a sua banheira.
Hilário sentia a confusão aumentar, mas abanou energicamente a cabeça. Podia usar a banheira, a cama, o que quisesse. Por que não iam jantar, para que pudesse sentar-se e tentar por ordem na cabeça ?
Mas ela insistiu :
– É igual a uma que havia na casa de meus pais.
Qual casa? pensou Hilário. Não em Santa Bárbara! Mas ela só acrescentou :
– Há muito tempo atrás.
Tinha vontade de sacudir os dois. Há quanto tempo atrás? Onde? Mas Tio Rodrigo apenas sugeriu que fossem jantar.
Ao sentar-se, pensou que era uma sorte que as batidas do coração fossem inaudíveis. Não tinha a mais remota idéia do que estava comendo, nem conseguia ouvir direito o que os outros dois falavam. Ou melhor, ela falava. Comia pouco, só beliscava, mas falava pelos cotovelos. Percebeu que o Tio a tratava quase como se fosse uma criança. Haviam feito um par de tentativas de integrá-lo na conversa, mas respondera tão monossilabicamente que haviam desistido, embora, por vezes, o olhassem perplexos. Quando, na sobremesa, estava conseguindo se aprumar, ela riu de algo que Rodrigo falou. Jogou a cabeça para trás e riu. Como mulher, não como menina. O equilíbrio foi para o espaço. Vira, claramente, os caninos.
Desculpou-se depois do café e foi para o quarto. Deitou-se, na esperança que, dormindo, o equilíbrio se re-estabelecesse. Ou melhor, que descobrisse, depois, que tudo fora um sonho. Até mesmo a notícia de uma alucinação seria benvinda. Mas não conseguia dormir e ficou olhando o teto, sentindo o pulsar do sangue.
Até que a porta abriu-se, silenciosamente, e Ela entrou. Não conseguia pensar nela como Clara Guzmán. Assustou-se quando o viu acordado.
– Desculpe! Não queria acordá-lo. Normalmente, não faço barulho. Ia tomar um banho e a porta do banheiro que dá para o corredor está trancada.
Tinha uma toalha na mão.
Hilário levantou-se, confuso. Ainda estava vestido. Ao vê-lo de pé, ela propôs :
– Se está sem sono, por que não vamos passear? Ainda são duas horas, temos muito tempo.
Fora, fazia muito calor. Ela lhe falava do Tio.
– Ele é uma pessoa muito boa. É tão raro encontrar humanos assim!
Hilário sentiu um desconforto e resolveu, sem saber, enfrentar a situação.
– Por que diz isso ? Você não é humana ?
Ela parou e o olhou, perplexa.
– Bem… pensei que seu Tio tivesse falado a meu respeito.
Encarando-o, sorriu, deixando ver os caninos, pequenos mas ponteagudos.
– Eu sou… diferente.
Recomeçaram a andar, em silêncio, até que Hilário voltou à carga.
– Estive em Santa Bárbara.
Aquilo desconcertou-a.
– Para que?
Mas Hilário não respondeu. Sentiu-se culpado, como de uma inconfidência ou uma indiscrição. Ela parou e encostou-se numa árvore.
– Nunca mais voltei lá. Eles ainda se lembram de mim?
Ele abanou a cabeça. Não conseguia dizer-lhe que, para todos, era uma morta.
– Meus pais já devem ter morrido. Há muito tempo. E meus irmãos?
Ele preferiu o silêncio. Ela sacudiu a cabeça e recomeçou a andar, tirando folhas de um galho.
– E que importa? Foi outra vida.
Saíram da mata e chegaram à beira do riacho que cortava a fazenda. Não havia lua, coberta de nuvens pretas. Estavam sobre uma ponte de madeira, debruçados sobre a murada, olhando o correr da água. Hilário sentia-se culpado e, talvez por isso, enternecido, mas não teve coragem de falar ou tocá-la. Ela estava perdida nas memórias. Subitamente, começou a falar. Tinha perdido o tom de menina.
– Eu era muito novinha. E muito, muito apaixonada. Íamos casar no ano seguinte. Que paixão! .
Sorriu para as águas.
– Meu irmão nos pegou na cama. Era de tarde; achávamos que todos tinham saído. Mas ele estava espionando há muito tempo e sabia. Tanto, que entrou armado. Carlos não teve a menor chance – meu irmão deu-lhe quatro tiros. Quatro! Um pegou-lhe o queixo, outros dois no peito, o último entre os olhos. Com o revolver de Papai. Não lhe deu oportunidade de pedir piedade. Lembro do barulho dos tiros no quarto e dos gritos. Só mais tarde percebi que era eu quem gritava. Meu irmão não disse palavra.
A voz ficara rouca e ela parou.
– Papi era um homem influente e abafaram o caso. Houve um processo, claro, mas era um clássico. Honra lavada em sangue. Eu queria dizer que fora eu quem seduzira Carlos, que ele queria esperar o casamento, mas não me deixaram depor. Para me poupar!
Com tanto ódio e tanta culpa, acho que enlouqueci por uns tempos. Não conseguia olhar para aquela gente, para minha família, para todos na cidade. Vê-los cumprir as rotinas do dia a dia, como se nada tivesse acontecido.
E, para eles, eu era um estorvo. Mulher e desonrada. Publicamente. Com a marca de sangue. Ninguém de boa família se casaria comigo.
O suicídio talvez tivesse sido uma solução. Mas o convento também resolvia.
Recomeçou a andar e Hilário acompanhou-a, silenciosamente.
– Foi no convento que… me iniciei. Que me transformei… no que sou hoje.
Virou-se e encarou-o.
– Em uma vampira.
Hilário sentiu a provocação e sustentou o olhar. Recomeçaram a andar e a voz dela fez-se mais leve.
– A madre-superiora era uma das nossas. E todas as outras freiras também. Isso era errado. A iniciação tem que ser muito limitada. É uma regra básica.
Hilário teve vontade de perguntar-lhe quem fizera a regra e quem zelava pelo seu cumprimento, mas não quis interrompê-la. A racionalidade da regra parecia-lhe evidente.
– Ouve-se falar todo tipo de coisa sobre conventos e, quando a madre começou a se aproximar de mim, fiquei assustada e com nojo. Até que ela me iniciou!
E, nesse momento, em seu pescoço brilharam dois pontos vermelhos.
– Até hoje, quando penso, me arrepio !
Tocou o pescoço.
– Esse é um sinal que damos, para nos identificarmos, uns para os outros.
Hilário, involuntariamente, olhou em volta. Ela riu.
– Bobo! Não há nenhum dos meus por perto, por quilômetros. E, se houvesse, eu o protegeria.
Deu-lhe a mão e Hilário sentiu o coração dar um salto. Voltaram de mãos dadas, ela falando. Os pontos vermelhos foram empalidecendo e desapareceram.
– Dei sorte naquele incêndio. Somos muito fortes, mas o fogo nos destrói. Era minha noite de saída e, quando voltei, estava tudo queimando. Com a iniciação, minha depressão tinha passado. Achei que era hora de começar outra vida. Nunca mais voltei. Até hoje, por sua causa.
A lua, com muito esforço, conseguira furar as nuvens, fazendo brilhar o crucifixo em seu pescoço. Hilário indicou-o.
– É verdade. É dessa época.
– E não lhe faz… mal ?
Ela riu.
– Por que faria? Deus está presente em nós também. Quem pode dizer qual é a semelhança de Deus? Por números ? Se quiséssemos, poderíamos ser tantos quantos vocês. Eu, mesmo se não vou à igreja, rezo todas as manhãs, antes de dormir. Mosteiros, conventos, lugares de retiro, sempre foram abrigos para nós.
Você não acredita nessas bobagens, que crucifixos nos espantam, que temos medo de alho ? É verdade que muitos acham que o sangue de quem come muito alho tem gosto ruim !
Hilário não se tinha por religioso, mas retirou a mão. Felizmente, estavam de volta à fazenda. No quarto, ouviu-a cantarolar no banheiro. Parecia um hino. Não conseguiu dormir.
Na manhã seguinte, Rodrigo intuiu-lhe a reticência, mas estava ansioso demais para um xadrez emocional e foi direto ao assunto.
– E aí, sobrinho, e a… nossa vampira?
Hilário, que sequer conseguia falar-lhe o nome, sentiu um soco no plexo e escudou-se na gagueira. Rodrigo foi-lhe ao encalço.
– Saíram de noite? Fico satisfeito. Tinha medo de que você não aceitasse.
A Hilário a idéia pareceu absurda, e indagou por que. Rodrigo olhou-o, espantado :
– Hilário, essa moça… Não sei porque digo isso…tem idade para ser, pelo menos, minha mãe, mas penso nela sempre como uma menina. Essa… senhora, já matou não sei quantas pessoas!
Mas, para Hilário, aquela questão parecia remota. Não podia imaginar Clara matando alguém. Para evitar o assunto, perguntou pelas ovelhas desaparecidas.
– Foram para ela. Ela precisa de sangue fresco. Depois, jibóia por uns tempos. Felizmente, pode passar um bom pedaço sem sangue humano.
Hilário animou-se com a notícia. Talvez, aos poucos, pudesse prescindir de sangue, desintoxicando-se, como um viciado. O Tio abanou a cabeça, desacreditando.
– Eu queria analisar o sangue dela. Tenho certeza que tem uma composição diferente. Mas ela se recusou.
Hilário prometeu-se tentar. Para sua alegria, Rodrigo acrescentou:
– Ela garante que, quando quer, quando não está com raiva, não sofrem. Ficam hipnotizados e a primeira mordida funciona como uma espécie de anestésico. Vi com as ovelhas e parece isso mesmo. Albano, claro, ficou furioso. Acha que foram roubadas e redobrou a guarda. Não sei como vou fazer para a próxima, mas talvez demore, depois do… assalto.
Estavam entrando no consultório. Depois de contemplá-la, Hilário forçou-se a desviar o olhar, para o homem que estava deitado, cercado de fios e monitores. Era ainda jovem, forte, de estatura mediana. Sem dúvida, bonito, admitiu, com uma pontada. A pele morena havia empalidecido. Além da respiração, não dava qualquer sinal de vida enquanto o Tio o examinava.
– Ao que sei, chama-se Carlos Santos. Ela diz que é a reencarnação do primeiro namorado, explicou Rodrigo. E acrescentou :
– O fato é que ela tem uma dedicação absoluta. Todos os dias, depois que levanta, lava-o todo, faz-lhe a barba e o fica olhando, até a hora do jantar. Mais tarde, quando volta, fica outro tanto. Fala muito com ele, mas nunca consegui entender o que diz.
Hilário sentiu outra lancetada de ciúme.
– E há alguma chance de recuperação ?
– Salvo milagres, nenhuma. Ë um coma profundo. Se desligarmos os aparelhos, acaba.
Hilário indagou-se, envergonhado, se o que sentia era, mesmo, alívio.
– Ela sabe ?
– Já lhe expliquei, várias vezes. Ela diz que milagres ocorrem e que tem tempo. A escala temporal dela é diferente da nossa. Se ocorreu o milagre de reencontrá-lo, outro pode acontecer. E eu, como fico? Já imaginou, eles dois, anos a fio aqui?
Mas os problemas do Tio estavam distantes e Hilário alegrou-se com a garantia da permanência de Clara na fazenda.
– Como ela o encontrou?
– Depois, vai saber em detalhe. Ela adora falar! Depois que saiu do convento, ela tinha o que você chamaria ‘um problema de inserção social’. Um ser que dorme de dia e vive de noite, e que tem o hábito de chupar sangue, tem alguns problemas. Durante muito tempo, trabalhou em hospitais, no turno da noite. Ideal, não é ? Me dá um certo incômodo, quando penso nos meus plantões noturnos. Parece que, no último, foi imprudente e começaram a estranhá-la. Aí, resolveu mudar de ares.
Foi para a capital e, óbvio, caiu na noite. Trabalhou de garçonete, mas não gostou. Tentou cantar, mas não tem voz. Pensou em ser, ou foi mesmo, nisso é meio vaga, prostituta. Mas um sujeito tentou cafetinizá-la e, como você pode imaginar, deu-se mal. Muito mal. Aí, encontrou um …primo, alguém da sua espécie, mais velho e experiente. Deu-lhe abrigo e uma solução profissional : o tráfico de drogas. Dava para operar de noite e, se sumia um de repente, não se faziam muitas perguntas. O primo estava cansado e passou-lhe o ponto.
Estava nisso havia já algum tempo, quando foi receber uma partida. O portador era o Carlos, aí. Foi o clássico coup-de-foudre romântico. Nele, paixão à primeira vista, e para ela, o reencôntro.
Estavam na varanda e Rodrigo interrompeu-se para dar instruções a um dos empregados. Hilário tentou imaginá-la na noite, mas sua cabeça recusou-se. Também não conseguia imaginá-la com aquele homem. Por fim, Rodrigo voltou.
– Tenho pena dela. Uma situação impossível. Ele, humano, ela vampira.
Hilário ia protestar, mas, a custo, se conteve. O Tio, pensando que concordava, continuou:
– Além do mais, ela se culpa pelo acidente. Acha que bateram porque o beijou quando estava dirigindo. Uma noite, perguntou-me se era uma maldição, levar os namorados à destruição? O que ia responder ?
Hilário não acreditava em maldições, mas pensou que, ao contrário, fora o destino que a levara à fazenda. A droga, porém, o preocupava. Mas Rodrigo serenou-o :
– Ela não usa. Não gosta e não tem efeito. Gostaria de saber porque… Ele não. Como muitos pequenos traficantes, ele também é usuário.
Perguntei-lhe porque não o…transformou. Respondeu que o amava assim como era, como humano. Se o transformasse, seria diferente. Concluiu que a única solução era saírem dali. Recomeçarem a vida em outro lugar, onde ele pudesse fazer um tratamento e arranjar um emprego honesto. Os valores dela são muito curiosos… Os planos eram casar e viver juntos. Se pudesse, ter filhos também. Ela acha que não pode ter. É óbvio que não pode! Claro que eu logo propus examiná-la, mas ela não aceitou. Uma pena!
Mas Hilário não estava interessado nos sentimentos do Tio. Outras emoções, mais fundas e menos entendidas, o agitavam. Ansioso, perguntou:
– Ela não pode transformá-lo, agora ?
– Pelo que entendi, com a transformação, eles ficam do jeito que estavam, fisicamente. Veja o aspecto dela ! Se o transformar agora, fica o mesmo vegetal. E ela não o quer como vampiro, quer como gente !
Hilário sentiu um claro alívio e, logo, vergonha.
Enquanto Rodrigo ia cuidar das ovelhas, Hilário ficou perambulando, sem conseguir sequer ler o jornal, esperando a noite chegar.
Durante o jantar, Clara encarregou-se da conversa, centrada, para pasmo de Hilário, nos acontecimentos da última novela de televisão. Mesmo querendo, não conseguia dialogar. Assim que terminaram o café ela se desculpou e foi, rapidamente, para a saleta de vídeo e som. Hilário decidiu acompanhá-la, para espanto do Tio. Acostumado a dormir cedo e acordar com o dia raiando no deserto, tão logo sentou-se, adormeceu. Acordou, sentindo caibras pelo corpo, na manhã seguinte.
Passou a forçar-se a dormir de dia, para estar desperto à noite. Quando acabavam as novelas, saiam a passear, ou, se estivesse chovendo, ficavam na varanda, conversando. Rodrigo, fiel aos seus hábitos matutinos, não os acompanhava.
Lutando contra a gagueira, Hilário tentou interessá-la nos dinossauros. Queria que entendesse o prazer de reconstruir um animal a partir de alguns ossos. Que apreciasse as controvérsias sobre sua extinção. Percebeu, porém, que o silêncio com que o ouvia era de simples polidez. Se não fosse gago, desesperava-se, se as palavras não grudassem na garganta, se o pensamento não fosse tão mais rápido que a fala, conseguiria aproximar-se, faria com que ela visse as coisas a seu modo. Durante o dia, ensaiava discursos que, tinha certeza, a comoveriam, mas, à noite, a seu lado, sentia formado o detestado funil e as palavras embrulhavam-se-lhe na boca. Impotente, tinha pavor de que ela risse de seus esforços e amava-a por nunca interrompê-lo, completando alguma frase. Um dia, desesperado, pôs-se a falar-lhe em inglês, mas descobriu que ela não entendia qualquer língua estrangeira.
Com os desenhos teve mais sucesso, mas era uma curiosidade efêmera, com a forma e o tamanho dos animais. Mesmo assim, o interesse que mostrou na evolução do cavalo, encheu-lhe o coração de esperança.
Até que a ouviu comentar com o Tio, pensando passar desapercebida:
– Doutor, por que o senhor não o convence a fazer algo de útil? Um homem tão forte e inteligente !
Aquilo caiu-lhe como uma punhalada, apesar do reconforto do elogio.
Foi mais feliz ao contar a respeito dos diversos lugares em que estivera. Tinha muitas fotos e podia falar pouco. Para sua surpresa, Clara passara a vida toda na área que ia de Santa Bárbara à capital. Não tivera curiosidade de ir mais longe. Ao contrário do que Hilário previra, Nova Iorque a interessava muito mais que o Deserto de Gobi. Sua ligação com a terra era menos intensa do que ele imaginara.
Aos poucos, Hilário ia percebendo que Clara, mesmo falando sem parar, não lhe revelava os segredos arcanos que devia ter. Talvez não tivesse nele a mesma confiança que depositava em Rodrigo. Brotou-lhe um ciúme do Tio quase tão forte como o que sentia por Carlos. Talvez a suspeita de Marta quanto à relação dos dois fosse correta… Não conseguia formular a frase “são amantes”, mas escrutinava-os, buscando indícios. O paternalismo de Rodrigo e a gratidão de Clara não o serenavam .
De seu passado, Clara pouco dizia. Falava muito da relação com Carlos e do futuro que teriam quando ele se re-estabelecesse. Hilário sentia uma brasa revolvendo o coração e, uma noite, enfrentou-a, furioso, rosnando em um arranque :
– Você não percebe que isso é uma fantasia ? Tio Rodrigo já não lhe disse que não tem cura ?
Ela pareceu surpresa com sua veemência e os olhos ficaram-lhe um pouco mais estrábicos.
– O que o Doutor Rodrigo disse é que ele não pode curá-lo. Mas Deus pode. Se já fez o milagre de reencontrar-nos, por que vai deixar o trabalho incompleto? Agora é um período de provação, para ver se o amo, mesmo.
E o que há de errado com fantasias? Você não passa a vida em desertos horríveis, procurando ossos de bichos que não existem? Acha um ossinho e faz um bicho maior que uma casa?
E concluiu :
– Você devia ver mais novelas, Hilário.
Mas, a partir daquela noite, passou a falar menos de Carlos. E mais de novelas.
Para Hilário, as novelas traziam ecos dolorosos de infância, quando a família se reunia em volta ao rádio. Sua incapacidade de seguir os meandros da trama era motivo de deboche. Agora, como no passado, não conseguia interessar-se por aquelas histórias. Mesmo fora das novelas, poucas pessoas o interessavam. Mas, por Clara, esforçava-se. Estavam juntos, naqueles momentos em frente à televisão.
Rodrigo percebia que algo não ia bem, mas não conseguia identificar o problema. Acreditava que, no fundo, o sobrinho o censurava pela aventura e passou a elogiar Clara, o que só fazia aumentar as suspeitas de Hilário. Até que veio o filme de vampiros.
Estavam os três na sala de vídeo, vendo o fim do jornal, quando Clara, em busca da novela, errou de canal e encontrou um velho filme de vampiros. Era um filme em preto e branco e Hilário achou as cenas grotescas. Pensou que ninguém faria um filme daqueles se conhecesse Clara. Ao virar-se para ela, assustou-se. Estava lívida, olhando fixo para a tela, o controle remoto na mão, o braço ainda erguido, paralisado. Hilário não conseguiu falar. Do outro lado, Rodrigo, delicadamente, tirou-lhe o controle da mão. Mas, antes que o acionasse, ela deu um salto e desligou a TV com um tapa. Virou-se e encarou-os.
– É assim que vocês me vêm? Como um monstro? Por que um monstro?
Hilário quis gritar e correr ao seu encontro, mas a voz e o corpo embaraçaram-se. Rodrigo, porém, levantou o corpanzil da poltrona e foi até Clara, que continuou :
– É verdade que eu mato gente! Mas para comer ou me proteger! Não sou um monstro! Não sou pior que vocês!
Rodrigo, sem falar, abraçou-a. Aos poucos, ela pareceu acalmar-se. Hilário censurava-se pela incapacidade de aproximar-se e admirava e odiava o Tio. Até que ele sugeriu:
– Meninos, porque vocês não pegam o carro e vão até a cidade?
Para alívio de Hilário, Clara deu uma risada.
Levou um susto, quando a viu arrumada. E ficou chocado. A saia era muito curta e o decote sugestivo. Tudo de couro preto, contrastando com a brancura da pele. De salto alto, chegava ao seu queixo. Cabelos presos, pintada, deixara a mocinha para trás. Rodrigo assobiou e ela rodopiou, mostrando ainda mais as pernas bem feitas. Hilário sentiu o coração apertando – um misto de desejo e reprovação.
Saíram na camionete de Hilário. Rodrigo sentou-se na varanda para vê-los partir e, acendendo um charuto, falou alto, para si mesmo.
– Meninos…! Estou mesmo ficando velho! Hilário tem quase quarenta anos e ela … E ainda mais, falando sozinho!
E ficou em silêncio, pensando na ética e nos monstros.
No carro, depois de virar o espelho e conferir a maquiagem, Clara anunciou :
– Vamos a um lugar que conheço. O dono é meu amigo, e é ótimo para dançar!
Estava alegre e, dobrando as pernas em baixo do corpo, passou-lhe o braço. Hilário fazia força para concentrar-se na direção.
Era em um beco, bastante escuro, numa zona que Hilário não conhecia, mas ela o pilotou sem hesitar. O porteiro cumprimentou-a como a uma freguesa antiga. Dentro, era menos escuro e esfumaçado do que Hilário temia. A decoração era convencional – um longo bar, uma pista de dança, mesas aos lados, as paredes com espelhos foscos. O porteiro devia ter feito algum sinal para o dono e ele veio recebê-los na porta. Era diferente de toda imagem que Hilário fazia de um dono de boate. Um homem quase tão alto como ele, corpulento, talvez no início dos sessenta, vestindo um circunspecto terno jaquetão cinza escuro.
– Bem vinda, Madame. Há muito tempo que não vem.
Clara apertou a grande mão com as suas duas e sorriu.
– Boa noite Jonatas. É bom estar de volta.
Indicou Hilário.
– Um amigo, Jonatas. Um bom amigo.
Hilário, feliz, sentiu-se medido por aquele olhar lento, seguido por um aceno de cabeça e a mão estendida.
– Os amigos de Madame são meus amigos. Estejam à vontade.
Levou-os a uma mesa perto da pista.
Hilário não tinha o hábito de dançar, mas felizmente, no início, Clara parecia satisfeita apenas em estar ali, ouvindo a música – o que lhe deu tempo de tomar um uísque duplo. E outro. Assim, quando ela sugeriu que fossem dançar, pôde aceitar sem muito medo.
Queria guiá-la, mas percebeu que o ritmo dela era mais fluído e, depois que ela sussurrou “siga-me”, deixou-se levar. Hilário dançava como lhe haviam ensinado as primas, com moças de família. Levou um choque quando ela colou o corpo ao seu. Assustadíssimo, pressentiu a ereção e quis afastar-se, com medo de ofendê-la, mas ela apenas riu contra seu peito e ajeitou-se mais.
Quando a música ficou rápida, voltaram para a mesa, de mãos dadas. As ondas na cabeça de Hilário eram um maremoto, reverberadas pela alegria de Clara.
Até que o homem sentou-se à mesa. Era um tipo de idade indefinida, magro, com um casaco esporte claro, pelo menos um número maior. Mal falou com Hilário, só para dizer-lhe :
– Com licença, amigo.
Sentou-se e dirigiu-se a Clara :
– E aí, gatinha? De volta?
Clara empalideceu e prendeu o fôlego.
Hilário sabia seu tamanho. E seu sobrenome. Os dois intimidavam. Não ia deixar desgraçado algum perturbar Clara e sua noite com ela. Também aprendera, com os anos, a dizer seu nome sem gaguejar. Levantou-se em toda a sua altura e, por cima do sujeito, estendeu-lhe a mão e anunciou “Hilário Restrepo”, antes que a mão de Clara o detivesse.
Hilário sentiu-se gratificado que ela se preocupasse com ele e pensou que, se o sujeito fosse inconveniente, cuidaria dele em dois segundos. No entanto, o estranho olhou-o, de baixo, e fez apenas menção de levantar-se. Mas apertou-lhe a mão. Era fina e seca.
– Todos me conhecem como O Magro. Muito prazer Senhor … Restepo.
Hilário, ia se sentando, desconcertado, mas não o corrigiu porque a mão de Clara o apertou debaixo da mesa.
– A moça e eu somos velhos amigos, não é verdade, gatinha?
Clara olhou-o fixo e depois sorriu um pouco.
– Claro. Velhos amigos.
A animosidade entre os dois era quase palpável.
– E o Carlos, gatinha, onde está?
– O filho da puta me largou em Buenos Aires. Sumiu. Tive que voltar para cá. Ainda deve estar por lá. Espero que arrebente!
– Verdade, gatinha? Que coisa! Vocês pareciam tão juntos!
Levantou-se.
– De todo jeito, acho que o Chefe vai querer conversar com você, gatinha. Agora, vocês dois têm, pelo menos, uma coisa em comum – acertar as contas com o Carlos!
Apoiou as duas mãos sobre a mesa e aproximou o rosto de Clara.
– Acho que hoje mesmo. Ele quer, muito, ter notícias do Carlos. Acho que seria bom você esperá-lo aqui, com o Senhor Restepo. Ou, talvez, irmos todos lá. Conversar.
Levantando-se, fez uma mesura a Hilário :
– Boa noite, Sr. Restepo. Desculpe o incômodo.
E foi para o bar.
Clara abraçou Hilário, enfiando o rosto em seu peito. A um observador, parecia uma cena de amor ou, se fosse muito atento e visse os ombros que sacudiam, uma crise de choro. Talvez tenha sido assim que O Magro a tenha interpretado. Só Hilário ouvia o ronco contra seu peito, como o de uma onça, e podia sentir os dedos apertando-lhe os braços como alicates, fazendo evaporar o uísque.
O ronco foi, aos poucos, diminuindo. Clara sacudiu a cabeça e olhou-o, dizendo :
– Você fala pouco, mas consegue falar demais!
Suspirou e, antes que Hilário pudesse se recuperar, chamou o velho garçom.
– Há um telefone público aqui ?
– Sim senhora, ao lado dos toaletes.
– Bom. Traga um bloody mary, por favor.
Antes, dissera-lhe que nunca bebia. E a quem queria telefonar?
Sem olhar para ele, Clara levantou-se e foi na direção dos toaletes. Voltou rapidíssimo e murmurou “pronto”. Foi Jonatas quem trouxe a bebida, lento, solene.
– Seu drinque, Madame.
– Obrigada Jonatas. Aquele senhor que estava antes sentado aqui, também precisa de um drinque. Bem forte.
– Vou providenciar, Madame.
– Obrigada Jonatas. Sabia que podia contar com você. Diga, há telefones aqui?
– Há um telefone público, ao lado dos toaletes, Madame.
– Esse está com o fio arrancado.
– Sempre deprecáveis esses atos de vandalismo. Mas há também um telefone no meu escritório, aos fundos do edifício.
– Talvez o senhor que estava aqui possa tomar seu drinque enquanto fala no telefone do seu escritório.
– Por certo, Madame.
Com uma mesura, o dono da boate afastou-se. Clara respirou fundo e virou-se para Hilário :
– Não olhe para ninguém. Esqueça tudo o que viu e ouviu. Com alguma sorte, vai dar tudo certo. Vamos, dance comigo.
Mas Hilário sentia sua tensão. A magia estava quebrada. Ao dar uma volta, viu O Magro, acompanhado por Jonatas, que saía por uma porta. Continuou dançando.
Pouco depois, Clara puxou-o de volta à mesa. Jonatas estava lá, de pé. De costas para a pista, fora da visão de todos, espalhou sobre a mesa chaves, carteira de dinheiro, documentos, papéis. Alguns papelotes de coca e uma navalha. Clara examinou-os em silêncio, um a um. Até que achou uma caixa de fósforos da boate, feita de papelão. No verso estava escrito “Ilário Restepo”. Devolveu o resto a Jonatas. Depois, tomou a mão dele entre as suas e apertou-a com força, sorrindo.
– Obrigada Jonatas
Pela primeira vez, ele lhe deu um sorriso. Depois, recompôs-se.
– Sempre pronto a servi-la, Madame. O que devo fazer com o corpo?
Hilário entendeu e sentiu o gosto de fel na boca.
– Deixa-lo longe daqui, no carro. Precisa de ajuda?
– Não, obrigado. Pedro é testemunha que ele saiu há pouco daqui.
Fez uma mesura para Hilário.
– Muito prazer, Senhor Restrepo.
E afastou-se.
Clara escondeu o rosto nas mãos e deixou cair os ombros. Hilário não conseguia pensar. Buscou a imagem dos dois no espelho, mas não encontrou. Finalmente, ela levantou a cabeça.
– Pague a conta, Hilário e vamos embora.
Quando iam levantar-se, ela lhe deu a caixa de fósforos, dizendo:
– Pode rasgar. Se O Magro tivesse passado seu nome adiante, ao Chefe, você não viveria uma semana.
Chovia forte quando saíram, mas nenhum dos dois parecia sentir.
No carro, Clara comentou :
– Acho melhor não comentar isso com seu tio. Vai perturbá-lo muito.
Hilário não respondeu. As idéias começavam a clarear. Pouco se lhe dava o que o Tio sentisse. A morte que causou também não lhe pesava. O que era um traficante? Tinha forjado um outro vínculo, mais forte, com Clara! Ela, afinal, mandou matar um homem por sua causa!
Estendeu a mão e pegou a de Clara, que não reagiu. Tinha os olhos fechados e não os abriu. Quando ele pigarreou, anunciando um comentário, disse, baixo :
– Por favor, Hilário, fique calado. Estou muito, muito cansada. Muito deprimida e encurralada.
Voltaram em silêncio até a fazenda. A chuva havia parado mas havia um cobertor de umidade. Clara deixou que ele abrisse a porta do carro e apoiou-se em seu braço. No último degrau da varanda, o salto do sapato prendeu no vão entre as tábuas, quebrando-se com um estalo e jogando-a para a frente. Hilário a amparou e ajudou-a a sentar-se. Ela tirou o sapato e ficou olhando-o um bom tempo. Até que começou a chorar, desesperadamente.
Hilário puxou-a contra o peito, sentindo as lágrimas quentes passarem a camisa. E começou a beijar-lhe os cabelos, confortando-a. Até que, sem se dar conta, puxou-lhe o rosto e beijou-a na boca. Clara arregalou os olhos e parou de chorar. Depois, lentamente, fechou-os e deixou-se beijar.
Exultante, Hilário ia explorando-lhe a boca, até achar com a língua a ponta aguda dos caninos e sentir um arrepio passar-lhe pelas costas. Mudando de posição, ela começar a beijar-lhe o rosto, enquanto as mãos entravam-lhe no cabelo e na barba. Fechando os olhos, Hilário foi sentindo a boca de Clara correr-lhe a testa, o rosto e descer para o pescoço. Quando sentiu os lábios na garganta, abriu os olhos e quando os dentes arranharam-lhe a pele, retesou-se, em pânico. Relaxou a seguir, mas era tarde.
Ela estava em pé, à sua frente, ofegante.
– Idiota! Estúpido! Animal! Eu só ia beijá-lo!
Duas lágrimas de sangue correram-lhe pelo rosto. E saiu correndo para dentro da casa, batendo a porta. Hilário ficou na varanda, segurando os sapatos, com a camisa ensopada de lágrimas e a morte na alma.
Em seu quarto, Hilário tirou a caixa de metal de seu esconderijo e passou a limpo todos os seus poemas. Com a mesma precisão de movimentos com que trabalhava no deserto, fez um pacote cuidadoso. Do jardim, retirou uma flor com que arrematou o laço. Aí, foi procurar o Tio. Já era de manhã.
– Queria a chave do consultório emprestada, por favor.
– Vou lá daqui a meia hora.
– Se não se incomoda, quero ir sozinho.
Rodrigo hesitou, mas entregou-lhe a chave.
Hilário sentou-se ao lado de Clara e contemplou-a longamente. Sentia a raiva turbilhonando os ouvidos. Deixou o pacote de poemas a seu lado.
Na varanda, Rodrigo perguntou-lhe :
– O que aconteceu? Você está com uma cara! Vocês brigaram?
Hilário estalou, furioso.
– Não. Não! Se quer saber, mesmo, até nos beijamos!
Rodrigo sentiu um aperto no coração. E uma grande culpa. Buscou como dizer ao sobrinho.
– Hilário, meu caro… Veja, você está cometendo um erro terrível. Clara é… diferente. Não pode dar certo…
Hilário encarou-o.
– Tio, você acha que eu devia ir embora.
Rodrigo assentiu, aliviado. De mulheres, sabia, Hilário não tinha muita experiência e percebia, agora, que Clara o tocara fundo. Culpava-se por não tê-lo percebido antes e por ter colocado o sobrinho naquele transe. Mas nada o preparara para a resposta e o ódio com que veio carregada.
– Você diz isso para ficar sozinho com ela! Pois não vou! Fico! Se quiser, terá que me expulsar!
Passaram o resto do dia evitando um ao outro. Na hora do jantar, Clara não subiu. Hilário não teve coragem de ir buscá-la, deixando isso a cargo de Rodrigo.
“ Ela se desculpou. Está sem fome”, disse o Tio, ao voltar. Ia tentar um movimento de reconciliação com Hilário, mas o olhar do outro dissuadiu-o. Jantaram em silêncio e separaram-se.
Já era de madrugada quando Hilário sentiu a mão de Clara em seu braço. Estavam na varanda. Ela tinha os seus poemas na mão. Sentiu as pernas tremerem e a antecipação de vitória. Conseguira reforjar os vínculos.
– Você deixou esses poemas para mim ?
A voz era quase um sussurro. Hilário conseguiu apenas acenar com a cabeça.
– Li todos. São muito bonitos.
Fez uma pausa, mas, antes que Hilário pudesse abraçá-la, continuou.
– Mas não os entendo.
Colocou-os nas mãos de Hilário. Com os poemas entre os dois, acrescentou :
– São muito difíceis para a minha cabeça. Mas, se tiver outros, mostre. São muito bonitos.
Afastou-se dois passos, enquanto ele ficava petrificado, com o embrulho desfeito nas mãos. E voltou.
– O que aconteceu ontem. Vamos esquecer? Você tinha bebido e estava emocionado. E eu estava mal. Me sentindo acuada. Problemas em todos os lugares. E eles ainda atrás de Carlos…
Podemos esquecer, não é verdade? Somos, os dois, adultos. E não vamos criar problemas para o seu tio…
Combinado?
E estendeu-lhe a mão. Hilário apertou-a, mecanicamente, e ficou olhando-a, enquanto ela se afastava, sem fazer ruído.
Com as lágrimas, Hilário destampou o ódio. Rasgou os poemas, lentamente, folha a folha, com um prazer estranho de sentir dor.
Sem saber onde ia, saiu na chuva e na lama. Quando deu por si, estava no posto de gasolina. Imaginou-se entrando na velha fazenda com um chute na porta, mas logo achou que era absurdo demais. Decidiu, em vez, tomar um porre, ali mesmo. A bebida já ia longa quando, no restaurante, entrou uma mulher. Roliça, loura oxigenada, parecia da vida. A Hilário pareceu, vagamente, desejável. Mais que isso, de uma forma confusa, achou que dormir com ela o vingaria de Clara.
Quase sem falar, subiram ao quarto. Deitado na cama, ainda vestido, com maus modos, mandou que ela se despisse. Não estava preparado para a resposta :
– Gaguinho, é ? Vamos ver se gagueja em baixo também !
Hilário jamais batera em alguém, antes. Ao vê-la estendida no chão, com a boca sangrando, surpreendeu-se com a sua força e com o prazer que sentia. O prazer aumentou com o choro contrito da mulher e seus pedidos abjetos de desculpas. Sem despir-se, Hilário mandou que o chupasse.. Depois, pagou-lhe o dobro do que tinham combinado e, segurando-a pelo cangote, empurrou-a fora do quarto, ainda semi-vestida.
Deitado, sentia uma grande satisfação. Percebia, agora, que sempre estivera errado. Que fora sempre bonzinho e nada levara. Acabou dormindo e sonhando com a mulher loura, que lhe abria os braços.
Voltou para a fazenda ao anoitecer do outro dia. Pensara em telefonar, avisando de seu paradeiro, mas desistira. Que se preocupassem! E sentissem sua falta.
Parecia ser o de antigamente, até melhor, menos gago. Ajudava o Tio com as ovelhas e propôs-se organizar os registros do consultório, que Rodrigo tinha preguiça de arrumar. Grato pela reconciliação e pela ajuda, Rodrigo aceitou. Com Clara evitava falar daquela noite, mas apontou-lhe no jornal as notícias da morte do Magro, para reavivar os vínculos e mantê-la presa na fazenda. Fazia-lhe gentilezas. Elogiava-lhe os bordados que fazia nas madrugadas. Passou a dormir com fronhas e lençóis bordados. Ela sorriu satisfeita. Algumas vezes cozinhavam juntos comidas que só ele comia. Estimulava-a a falar de si, dos planos que tinha quando saísse da fazenda. Observava sua relação com Rodrigo. Estudava-a com cuidado, pensando no próximo lance.
Uma noite, estava toda de preto, da boina que escondia os cabelos até os tênis. Deteve-a na varanda.
– Estou com fome, Hilário. Muita fome. E encurralada. Para a cidade não posso ir. Jonatas me avisou que ainda estão procurando Carlos. Pensei em ir para a estrada, pedir uma carona. Mas demora e não quero dormir fora – Carlos precisa do meu cuidado.
Hilário bufou, indicando-lhe a bobagem e perguntou porque não pedia uma ovelha ao tio.
– Não tenho coragem. Já dei muito trabalho.
Hilário cravou mais uma cunha :
– O Tio podia ser mais generoso.
Ela abanou a cabeça.
– Prefiro correr até a próxima fazenda. Sou muito rápida.
Hilário riu. Teria que correr mais de um dia para sair das terras de Rodrigo. Ao ver o seu desalento, aproveitou a oportunidade. Pegou-a pelo braço e levou-a ao carro.
– Eu a levo até a próxima fazenda.
Ela hesitou, mas, depois, submeteu-se.
Quase não se falaram. Quando chegaram à outra fazenda, ele quis acompanhá-la, mas ela não permitiu. Sentado no carro, com medo, Hilário procurava imaginar seus movimentos. Ouviu latidos, que logo viraram ganidos. Depois, um curto balir. Depois, o silêncio. Pouco depois, ela estava de volta. O rosto corado. Tirou a boina, soltando os cabelos. Acomodou-se no carro, e beijou-o no rosto. Ele não resistiu e perguntou.
– Problemas?
– Só um cachorro. Nenhum problema.
Sorriu, satisfeita.
Na volta, madrugada alta, cruzando a planície, Hilário deu outra rodada no parafuso do poder. Reduziu a velocidade e perguntou:
– O que acontece, se o carro enguiçar ?
Ela olhou o descampado em volta e fechou os olhos.
– O sol me faz muito mal. Teria que me proteger em algum lugar.
Encarou-o, preocupada.
– Você quer me assustar?
Ele apenas abanou a cabeça. Queria muito abraçá-la, mas não disse nada até chegarem à fazenda.
Ao mesmo tempo, Hilário cultivava memórias. Aquela noite, na cidade. Haviam estabelecido um vínculo. Lembrava continuamente o corpo de Clara colado ao seu, sentia na língua a ponta dos caninos. E lutava contra a memória da boca de Clara em sua garganta. Todo sorriso recebido, cada gesto de afeto, o apoiar-se em seu braço num passeio noturno, segurar-lhe a mão entre as dela para enfatizar um ponto, eram cuidadosamente guardados e catalogados. Na estante da memória ganhavam uma ficha detalhada.
Agora que tinha a chave do consultório, passava horas a olhá-la. Ao meio-dia, quando o sono dela era mais profundo, arrumava-lhe os cabelos e, algumas vezes, passava as mãos sobre seu corpo, explorando-lhe o relevo. Pelo buraco da fechadura do banheiro vira-a nua, enxugando-se. Mal conseguia dormir.
Outras vezes, olhava Carlos, longamente. Sentia o ódio ir crescendo e ir ficando frio. Lembrava-se dos primos e sentia ódio de sua impotência. A memória da mulher do posto acalentava-o.
Sabia também que as chuvas e seu tempo na fazenda estavam acabando. Tinha que fazer algo ou voltar para as escavações.
Numa manhã seca, sentado na varanda, o quadro completou-se. Espontaneamente, na retina da alma. Como no deserto, quando visualizara seu primeiro sáurio. Sentira a mesma paixão, uma emoção permeada de certeza. As mãos tremiam mas pensava com clareza. Rodrigo não era, na verdade, um problema. Voltara a pensar nele como Tio Rodrigo. O obstáculo era Carlos, que, mesmo vegetando, interpunha-se entre ele e Clara. Se Carlos não existisse, poderiam viver em paz, os três, ali. Ou, melhor, ele e Clara poderiam ter sua própria casa, como ela queria e ele nunca tivera. Ela, aos poucos, entenderia seu trabalho. Ou mesmo, por ela abandonaria os dinossauros. O que tinha de dinheiro era suficiente e Rodrigo poderia abastecê-los de ovelhas, até que ela se desintoxicasse de tanto sangue. A ciência, a medicina, a psiquiatria tinham muitos recursos.
Ao meio-dia, o calor era extenuante. Quando desligou os aparelhos do consultório, sentia a camisa empapada de suor. Como naquela noite.
Afastou-se rapidamente e foi para o seu quarto. Clara ainda demoraria seis horas para acordar e Tio Rodrigo estava fora, cuidando de um doente. A sensação de triunfo era tão forte que tinha vontade de chorar. Mas controlou-se. Tirou a caixa de metal de baixo da cama e foi joga-la na lixeira. Nunca mais precisaria dela! Deitou-se na cama para aguardar o fim do dia.
Cinco minutos depois, começou. Era um urro, que começava cavo e ia tornando-se cada vez mais agudo, até não se ouvir mais. Mas os cristais romperam-se em toda a casa. Também não adiantava tapar os ouvidos com as mãos e cobrir a cabeça com o travesseiro bordado. Repetiu-se várias vezes, espalhando-se pelas coxilhas. Hilário perdeu a conta de quantas vezes se repetiu.
E fez-se silêncio. Dentro e fora da casa, não havia um som. E, aos poucos, ao longo da tarde, as pessoas foram chegando. Albano. Os peões da fazenda, com suas famílias e animais. Marta. Todos em silêncio, mesmo os bichos. Em vigília. Ao fim da tarde, rolou sobre o gramado uma limusine preta e dela saltaram Jonatas e Pedro, o porteiro. Os dois tinham óculos escuros. Pouco depois, uma grande motocicleta preta também estacionou. Guiava-a um homem, vestido com um blusão negro dos Hell’s Angels. Também usava óculos escuros. Quando tirou o capacete, viu-se que era louro e tinha os cabelos compridos. Cumprimentou Jonatas e Pedro com um aceno de cabeça, mas não disseram palavra. Por último, chegou Rodrigo, a ambulância coberta de barro.
Hilário queria correr para o consultório, mas não conseguia levantar-se da cama. Agarrou-se ao travesseiro, mordendo a fronha bordada.
O consultório estava na penumbra, mas Rodrigo percebia a palidez do rosto dela. Estavam sentados frente a frente, com a mesa entre os dois. Havia um pacote sobre a mesa. Ela pegou a mão de Rodrigo entre as suas:
– Esperei que o senhor chegasse, Doutor.
– Quer que o examine?
Rodrigo fez menção de levantar-se, mas ela o reteve.
– Não, Doutor, não é necessário. Acabou.
Ficaram ali, sentados, um longo tempo sem dizer nada. Até que ela acrescentou:
– Pensei em vingar-me. Mas, a que serve? Ele não vai voltar.
Rodrigo sentiu os olhos molhando e apertou-lhe as mãos, que pareciam-lhe muito pequenas. Ela pareceu falar com ele e consigo mesma:
– Pode ser que, um dia, o milagre se repetisse. Mas não tenho forças para esperar. Ou fé, não sei.
Levantou a cabeça e encarou-o.
– Não posso agradecer-lhe o bastante.
Pegou o pacote e colocou-o nas mãos de Rodrigo.
– Era o meu dote. São sete quilos de cocaína pura. No embrulho, está o endereço de Jonatas e um bilhete para ele. Sei que ele está lá fora. Ele pode dispor disso para o senhor, sem maiores problemas. Pode compensá-lo dos prejuízos. Os materiais. Acho que, dos outros, é impossível.
Levantou-se e levou-o até a porta, onde beijou-o no rosto.
Rodrigo juntou-se aos demais do lado de fora. Hilário continuava no quarto.
Quando o sol, finalmente, acabou, o silêncio ficou mais denso. Até que o grito se repetiu, seguido, no fim, por uma explosão rascante, encimada por uma brilhante chama azul, que acabou por confundir-se com a escuridão que entrava. Quando terminou, todos desapareceram como vieram, sem ruído. Ficou apenas Rodrigo, com o pacote nas mãos, olhando as cinzas que restavam do consultório.
Naquela mesma noite, Hilário desapareceu da fazenda, levando o pacote de cocaína. Reapareceu, muito tempo depois, em Santa Bárbara das Missões. Falava com fluência sobre as vozes dos sáurios pré-históricos. Antes que o internassem, tentou publicar diversos artigos em que explicava isto, detalhadamente.
Aos Restrepo, que eram muitos, não causou espanto. Eram tantos, que, na família, qualquer destino era possível.
Celular
Celular
Sentou-se na varanda e acendeu o charuto. Como vira o Velho fazer, aquecendo-o aos poucos. Ao fim do dia, o Velho costumava fumar um e o escritório enchia-se de fumaça e perfume. Especialmente em dias de bons negócios.
E essa fora uma semana de cão! De segunda a quarta trabalhara como um desgraçado, noite e dia, para acertar a operação. Daisy reclamara porque não parava quieto na cama. Então, levantara para voltar ao computador. Mas, na quinta, estava tudo completo. Fizera e refizera todas as contas da engenharia financeira e tudo batia.
Fora, então, a glória. Seu chefe não estava e o Velho mandou chamá-lo, direto. Fez uma exposição como as que lhe haviam dito que o Velho gostava. Seca, ao ponto. O Velho sabia tudo do Mercado e detestava que gastassem seu tempo. Frases como “já via debentures antes de você nascer” eram lendárias na firma.
Ouvira-o, como sempre, com os olhos semi-cerrados e, ao fim, após o interrogatório, comentara :
– Bom. Muito bom.
Isso, por si só, já era o Céu. Elogios do Velho eram mais que raros, especialmente para juniores.
Depois, o Céu abrira-se em par.
– Essa é uma operação complicada e há outros no mercado atrás dela. Como o Edgar está viajando, você fica diretamente responsável por ela.
Mais portas celestiais se abrindo.
– Estou vendo, aqui, que amanhã você tem que ir a Brasília. Vá. Amanhã, no fim da tarde, vou conversar sobre isso com os acionistas. Pode ser que tenhamos que alterar algumas coisas no fim de semana. Conto com você.
O Velho tirara da gaveta um telefone celular e um carregador. Um dos seus telefones. E pusera-o nas suas mãos. Para falarem no fim de semana.
Todas as emoções vieram juntas. Todo o passado condensado naquele momento. Missas de infância, D’Artagnan admitido entre os Mosqueteiros do Rei, Robin Hood sagrado cavaleiro pelo Rei Ricardo Coração de Leão. Tudo. Lera os clássicos e agora sabia o que os heróis sentiam.
Revivendo o momento, pensou que fizera por merecer. Começara em um escritório de contabilidade, como auxiliar. Fizera uma faculdade noturna, trabalhando para se sustentar. No escritório aprendera mais. Tudo sobre a malandragem contábil e, mais tarde, fiscal. Safo, sempre fora. O negócio era aplicar a viveza aos negócios.
Um grande cliente o levara do escritório. Já ganhava bem para casar com Daisy, que namorava desde os tempos do Grajaú. Mas queria mais e concluíra que salário só não bastava. Para o que queria, só o Mercado.
Entrara no Mercado, por meio de um amigo que trabalhava com o Velho. Coitado; fora, mais tarde, despedido por transar com uma das secretárias. O Velho fizera sua fortuna inicial em obscuras transações com os militares, mas era um puritano feroz em matéria de sexo e drogas, especialmente quando relacionados com trabalho.
Agora, chegara lá. Morava na Barra, num condomínio moderno, com sauna, piscina e quadras de tênis e squash, com circuito de televisão interno, toda a segurança. Tinha um carro do ano. Nacional, é verdade, mas, quem sabe, para o ano pudesse comprar um Honda como o do vizinho. Certamente podia já ter comprado um celular. Mas receber o do Velho…
O celular fora a glória e mais, a porta para Raquel. Olhou para Daisy, que estava acabando de aprontar as crianças, Maurício Alberto e Patrícia Laura, para irem ao clube. Quando casaram, Daisy era cheinha, boa de apertar. Agora, de tanto malhar, se a mordesse, quebraria os dentes.
Raquel não. Ali tinha carne. Pena que fosse judia. E mais velha. Como era a frase? Cerca velha gosta de mourão novo! E que trepada! Bem diferente da burocrática papai-e-mamãe, Daisy virando para o outro lado para dormir, sem um suspiro. Até andara com dúvidas a seu próprio respeito. Mas Raquel acabara com as dúvidas.
Já se haviam visto antes, na Bolsa e em reuniões para privatização. Antes, ele achava que era só ele que a tinha visto, pois ela não o reconhecia. Mas, não; depois, ela lhe dissera que se lembrava muito bem dele. Haviam estado juntos em Brasília, na reunião no Banco Central. Com sua cabeleira loura, na mesa cheia de homens, Raquel fazia vista. E falava muito, o que o irritava. Para se mostrar, ela tirara o celular da maleta, igual ao dos homens, e fizera uma ligação. Para comprovar que um dado que ele dissera estava errado. O pior é que estava mesmo. Mas, para não dar o braço a torcer, também sacara do seu celular e fingira telefonar. Para checar e, só então, concordar que o número dela era melhor. Perdera, mas marcara ponto. E os celulares eram do mesmo modelo.
Um dos lobistas no Congresso passara para apanhá-los e foram juntos para um briefing. Na discussão houve um racha, paulistas versus cariocas, e ele e Raquel, os únicos do Rio, haviam fechado posição juntos. Mas ser chamado de “o meu menino aqui” deixara-o muito mordido. No fim, para serenar, o lobista produzira um uísque doze anos, que rendeu bastante.
Com isso tudo, chegaram ao aeroporto em tempo apenas de pegar o último vôo. Vinha de Manaus e estava atrasado, sem previsão. Foram então para o bar e ela pediu um uísque. Ia pedir uma Coca mas decidiu acompanhar.
– Pensei que você fosse pedir um guaraná . Você é tão novinho !
Deixou sem resposta e desviou a conversa para o trabalho. Podia ser novo mas sabia de coisas de que ela nem suspeitava. E esmerou-se no inglês. E falou de operações.
Como imaginava, o interesse dela foi crescendo e crescendo. E foram ficando ali, bebendo e conversando. Até que o alto-falante anunciou que, por razões, como sempre, técnicas, o vôo estava cancelado.
Só restava pernoitar em Brasília e pegar o primeiro da manhã. Ao mesmo tempo, os dois sacaram seus celulares e disseram “tenho que avisar o Rio”. E desataram a rir, com a imensa graça da coincidência.
No táxi já foram de mãos dadas e, sem precisar combinar nada, foram para o mesmo quarto. Ele insistiu em carregar as duas maletas, mas com tanto azar que, ao entrarem no quarto, as duas se abriram, esparramando tudo pelo chão.
Abaixaram-se os dois e encontraram-se no carpete e, depois, na cama e até no banheiro.
Quase perderam o avião. Ela tinha um carro no Galeão, mas ele, para não dar bandeira, preferira voltar de táxi (a firma pagava). Prometeram ver-se num futuro próximo. Sem compromisso. Como adultos, que sabem das coisas. Mas pretendia repetir. Breve.
Daisy e as crianças estavam prontas. Era uma sorte ter o celular, senão teria que ficar plantado ali. Patrícia Laura ficou encantada e logo pediu um. Maurício Alberto quis ver como funcionava e ele explicou, mas não o deixou testá-lo. Ficara horas carregando.
No clube recusou todos os convites para jogar. A cabeça pesava uma tonelada e o celular era uma ótima desculpa. Estava esperando uma ligação importante. No almoço comeu só uma saladinha, com a desculpa de estar engordando.
Mesmo assim, estava cochilando quando veio o grande momento. O celular tocou. Atendeu com a garganta apertada e, antes que pudesse falar, uma voz máscula, um pouco rouca, anunciou que aquela noite pretendia comer-lhe o cu. E mais várias partes da anatomia. Recuperou o fôlego e, engrossando a voz, anunciou que havia um engano. Fez-se uma longa pausa e, em vez do esperado pedido de desculpas, ouviu apenas “vaca!”. E desligaram.
Quando Daisy perguntou quem era, respondeu apenas “engano”.
Voltaram do clube e foi tomar um chuveiro frio, para esclarecer as idéias. Quando estava se enxugando ouviu Daisy chamá-lo “Marcos Tenório!”. Quando Daisy usava o nome todo, a encrenca era grande. Meio molhado, abriu a porta e viu-a faiscante, com o celular na mão.
– Marcos Tenório! Esse telefone tocou e, como você estava no banheiro, atendi. Do outro lado havia um sujeito que me disse coisas que nem no Mangue imagino que se falem !
– E ?
– Bati o telefone, claro ! Para que tipo de gente você deu esse número, Marcos Tenório ?
E veio-lhe a resposta. Que não podia dar para Daisy. O Velho, fora do escritório, era um sacana ! Quem diria ! Sempre desconfiara de puritanos !
Tentou aplacá-la, protestando inocência e a ineficiência conhecida da Telefônica, especialmente em áreas high tech, como a telefonia celular.
Ficou vigiando o telefone. Imagine se Patrícia Laura recebe um chamado desses.
O resto do sábado passou incólume. Os amigos do Velho não telefonaram mas tampouco o Velho ligou. O celular ficou no carregador.
No domingo dormiu além da conta e, no café, Maurício Alberto, confidenciou-lhe, ao pé do ouvido, para que as mulheres não soubessem, que haviam passado um trote cabeludo no celular. Passou o resto do domingo com o telefone em baixo do braço, mas ele não tocou.
Quase não dormiu de domingo para segunda, tentando imaginar o que podia ter ocorrido com a operação. Talvez o Velho não tivesse encontrado os acionistas na sexta. Ou eles quisessem pensar durante o fim-de-semana. Ou, horror, o Velho tivesse passado mal. No fim das contas, naquela idade e com aquela vida sexual!
Seria discreto e não mencionaria os telefonemas para ninguém. Seria um segredo dele e do Velho. Uma cumplicidade, além dos negócios. Sentiu quase ternura pelo patrão.
Entrou cedo no escritório, mas já havia um recado do Velho, mandando-o subir. Achou que a secretária na ante-sala estava melhor disposta que de costume e não teve que esperar – dois bons sinais. Não levou papéis – só o celular. A operação tinha toda na cabeça. O Velho estava atrás da mesa, os olhos bem abertos.
– Na quinta-feira, disse-lhe que essa era uma operação complicada e confidencial. E que estava sob sua inteira responsabilidade. Na sexta-feira encontrei-me com os acionistas, que concordaram com a estrutura mas sugeriram algumas modificações. Essas modificações tinham que estar prontas hoje pela manhã, senão a operação não se realizaria. Você era o único que podia fazer essas mudanças durante o fim de semana. Telefonei-lhe no sábado.
Os olhos apertaram e fez uma longa pausa. A voz tremeu um pouco.
– Atendeu uma simpática senhora. No meu celular. Dona Raquel Levi, que trabalha para um dos nossos competidores. Subiu na vida porque tem cabeça e xota. Fez-lhe grandes elogios. Grandes! Também deu vários palpites sobre a operação. Nossa operação. Alguns, até interessantes.
Estendeu a mão.
– Devolva. Vou mandar entregar para Dona Raquel e pegar o meu. E busque outro emprego. Mas não no Mercado, porque vão me pedir referências.
Os clássicos não o haviam preparado completamente.
O que fariam Robin Hood e D’Artagnan nessa situação ?
Chutando o pau da barraca
Chutando o pau da barraca
Sentou-se a meu lado. Há sempre um lugar vago a meu lado. Quando o vi entrar, pensei: ali está um cliente. Ficara um tempo bebendo no fundo do bar, com uma menina que tinha idade para ser sua filha. Ela saiu com ar irritado e ele ficou sozinho, o olhar parado no ar. Depois, veio para o balcão. Sentou-se a meu lado.
Sem olhar para mim, pediu um uísque. Quando o barman perguntou se queria de primeira ou segunda linha, hesitou. Tomou coragem e pediu:
– De primeira… Duplo!
Tomou um gole grande e quase engasgou. Era um homem comum. Meia idade, média estatura, um pouco gordo, nem bonito nem feio. A barba de dois dias e as roupas amarrotadas. Vestia terno e camisa social, mas estava sem gravata. Roupas e sapatos de loja de departamentos. As unhas das mãos estavam roídas. Os olhos com bolsas. Maxilares trancados, a tez avermelhada, a gordura flácida. Suava, apesar do ar condicionado. Um cliente.
Ainda sem me olhar, falou para o espelho escondido atrás das garrafas:
– Chutei o pau da barraca!
É comum me fazerem confidências.
Depois de outro gole, acrescentou:
– Amanhã faço sessenta anos.
Repetiu, com mais força:
– Chutei o pau da barraca!
Fiquei curiosa em saber qual barraca. Ele se virou para mim, mas logo voltou a olhar para o que via de si atrás das garrafas.
Começou falando de seu trabalho. É normal. Os homens em geral começam com o trabalho, as mulheres com os filhos e o marido.
Sua história era comum, embora ele não soubesse.
– Comecei como entregador. Ainda era um armazém. Depois, virei caixa. Já era um mini-mercado. O português chamava de super-mercado, mas não era. Depois virou. Fui subindo. Fui conferente, encarregado de estoque, gerente. Nos últimos anos trabalhava na holding.
Ralei. Ralei como um animal. Acabei o secundário no supletivo noturno. Comecei uma faculdade no noturno, mas não deu. Já estava casado, a mulher grávida e larguei. Era muito cara, e o tempo não dava.
O salário não era essas coisas, mas nos últimos tempos dava para sustentar a família com um padrão razoável. Família grande, sabe como é, gasta muito.
Fez uma pausa, percorrendo a memória.
– Há dois anos, o velho se aposentou. Comprou uma quinta e voltou para Portugal. Dizem que é enorme. Vinhedos, oliveiras, carneiros… tudo. O desgraçado nem se despediu. Tudo aquilo comprado com nosso suor!
Fiquei pensando como ia ser comigo. O galego na quinta em Portugal e eu aqui, com minha pensãozinha do INSS. Como ia manter a família?
Com a saída do velho, o genro assumiu. Deve ter casado pelo baú. A filha é feia como o Cão, mas é a única herdeira. Não entende daquilo. O velho era um miserável pão duro, mas entendia. O genro é um babaca.
Depois de um ano, começou um zum-zum que uma cadeia estrangeira ia-nos comprar. Não era boato. Eu mesmo andei mostrando umas contas aos gringos. Eles acharam que o negócio não era tão bom assim e deram uma parada. Fiquei sossegado.
Há seis meses voltaram. Um deles, o testa-de-ferro deles aqui, me disse que o genro abaixara o preço.
Não tenho diploma, mas não sou bobo. Já vi essas coisas antes. Os gringos compram e a primeira coisa que fazem é mandar o pessoal embora. Começando com os mais velhos. Chamam isso de re-engenharia. Põem gente da confiança deles.
Na minha idade, onde ia encontrar outro emprego? Eu e minha família, íamos viver da minha pensão? Depois de passar a vida inteira trabalhando para o português, a filha e o genro? Tomei muito esporro do galego, comi merda e humilhação!
Bateu com o copo no balcão e pediu outro. De segunda linha e com muito gelo.
– Pareço bobo, mas não sou. Boi manso! O velho economizava em tudo, até em controles. O genro é um babaca. Desde que desconfiei para onde iam as coisas comecei a fazer umas químicas com as contas.
Pode ser ilegal, mas é justo! Uma vida inteira trabalhando para eles e tenho o que? Um apartamento no subúrbio e um carro de dois anos! E o galego com a quinta em Portugal! Vinhedos… oliveiras… Meio Portugal com meu trabalho!
Chutei o pau da barraca e fui embora!
Era só isso? Por causa disso viera ali, sentar-se ao meu lado? Enquanto ele pensava naquela revolução, eu antecipava o que aconteceu. Descobriram logo seus patéticos truques, mas ele já gastara tudo, com bebidas e mulheres… Já vi isso tantas vezes!
Nem sempre a experiência é tudo.
Virou-se para mim e duas lágrimas correram pelo seu rosto.
– Senti muito medo. O tempo todo. Ficava imaginando o que aconteceria se me pegassem. O vexame. O maior medo era da reação da minha família. Pensando o que iriam dizer.
Fez uma pausa, lembrando.
– O tempo todo eu me dizia que estava fazendo aquilo por eles. Que, logo, ia morrer e queria deixá-los garantidos. Meu pai morreu cedo, aos sessenta anos, de coração. Minha pressão é alta, meu colesterol ruim. Umas artérias meio entupidas. O cardiologista diz que não é preciso operar, mas tenho medo…
Encarou-me e voltou a olhar o espelho.
– Pensei em dizer que tinha ganho uma indenização. Era um domingo e estávamos todos almoçando juntos. Olhei para eles, para minha mulher, meus filhos e noras, meus netos, tudo ali, discutindo, de mal com a vida e lembrei do medo que sentia. Aí, foi de repente, senti um estranhamento. Tão forte que pensei que fosse o coração. Mas não, era na cabeça.
Como se não os conhecesse. E uma raiva. Maior do que a sentia do galego. Lembrei dos anos de trabalho, ralando. E me perguntei, para que?
Com o galego, pelo menos era claro. Eu trabalhava e ele me pagava. Mal, é verdade. Mas não tenho muita instrução nem sou muito esperto. E de algumas coisas eu até gostava.
E eles? Aquela gente toda, estranha?
Engasgou. As lágrimas corriam pelo rosto e se refletiam como gotas nas garrafas.
– Nunca fui de pensar muito no porquê, fazia as coisas que tinha que fazer. Meu pai morreu do coração. Tinha uma alfaiataria no Méier, e um dia minha mãe foi embora. Assim, sem mais nem menos. Ele morreu de tristeza. Duvido que minha mulher morra!
Então, chutei o outro pau da barraca. Levantei da mesa e fui embora.
Fez uma longa pausa.
– Andei bastante por aí. Viajei um pouco. Conheci mulheres; mas o tesão na minha idade não é lá essas coisas. E sentia vergonha de pagar. Comi e bebi coisas finas…
Indicou o bar.
– Mas o meu paladar não é fino…
Ficou relembrando, enquanto as lágrimas secavam.
– Não adiantou nada. Continuo tão infeliz como antes.
Voltou a um passado distante.
– Meu pai dizia que a vida é um tecido, feito de muitos fios…
Gostei da imagem. Olhou-me longamente.
– Não dá para refazer a trama, não é?
Confirmei com a cabeça. Ficamos assim, olhando-nos muito tempo. E ele me disse:
– Você é muito atraente, sabe?
Já me disseram isso, mas não foram muitos.
Ele perguntou meu nome e disse-lhe Moira. Ele achou bonito, mas esquisito. Disse-lhe que era grego. Um antigo nome de mulher. Aquela que corta os fios. Tenho uma irmã que fia e outra que tece. Eu sou a que corta, a que acaba a trama.
Minha mãos são compridas, bem cuidadas mas gélidas, não há nada que eu possa fazer. Peguei-o pelo braço e quando estávamos na porta segurei a sua mão. Ele fez uma careta de medo e dor e um gesto para retirá-la, mas eu a retive. Não tenho lembrança de alguém que tenha retirado sua mão da minha. Ele parou e me olhou longamente, respirando com dificuldade. Perguntou de novo meu nome e eu repeti. A explicação também. Perguntou minha profissão.
– Sou…uma prestadora de serviços. Uma…agente funerária.
Só então ele me reconheceu.
Doida
Doida
Espreguiçou-se. Fora bom. Muito bom. Nunca fora tão bom assim, da primeira vez. Olhou-se no espelho do teto. Satisfeito, notou a barriga lisa, a musculatura do peito, as pernas fortes. Àquela distância não era possível distinguir nitidamente o rosto, mas congratulou-se pela plástica. Ninguém daria a idade que tinha.
A moça mexeu-se um pouco, aconchegou-se e disse, com a boca colada no seu peito, os olhos fechados:
– Detesto esses espelhos.
Sentiu-se envergonhado, pego em flagrante. Ela acrescentou, com os olhos sempre fechados:
– Tenho muitas cicatrizes.
Ele passou os dedos pela pele das costas e olhou-a no espelho. Apenas as marcas do biquini. A pele lisa. Ela pareceu adivinhar seu pensamento.
– Minhas cicatrizes são por dentro.
Ele assustou-se e ela acrescentou:
– E têm zíper. As cicatrizes. Quando puxam, elas abrem e sangram.
Ele suspirou profundamente e pensou, quase falando.
– Ai meu Deus! Outra doida! Por que só arrumo doidas?
A respiração dela indicou que voltara a dormir. Sem mexer-se, pelos espelhos, examinou-a. Voltou a olhar-se. Veio-lhe, inesperado, o medo.
E se fosse doida mesmo? Não sabia coisa alguma a respeito dela. Mal o seu nome. Que podia ser falso. Os cabelos eram tingidos.
Lera a história de uma serial killer que arrumava homens em hotéis e os matava. Crimes perfeitos. E com mutilações. E se ela fosse uma serial killer? Sentiu uma contração nos genitais.
No espelho identificou uma tatuagem na omoplata. O desenho era pequeno e não conseguia percebê-lo. Lentamente, deslocou-se até poder ver. Uma caveirinha, com duas tíbias cruzadas. O medo virou pânico.
Conseguiu controlar-se e, devagar, com todo o cuidado, desvencilhou-se do abraço e levantou-se. Ela murmurou algo e abraçou o travesseiro.
A bolsa estava no chão, do lado dela. Sem fazer barulho no carpete espesso, apanhou-a.
Trancou-se no banheiro e abriu a bolsa. Era uma bolsa bastante grande. No fundo, preto, com brilhos sinistros, estava o revólver de cano curto. Sentiu a contração no estômago, a boca seca, um estampido nos ouvidos. Olhou-se no espelho e não se reconheceu. O medo era ruidoso.
Pôs uma toalha na pia e colocou o revolver em cima, com cuidado para não fazer barulho. Foi procurando e achou o canivete suíço. Abriu todas as lâminas. Tesourinha, lixa, lâmina pequena. Mas a outra lâmina, a grande, era de bom tamanho. E afiada. Enfiada no pescoço, cortaria a carótida. Um golpe só seria suficiente. Depois, poderia cortar o resto. Ou até antes, ainda vivo, sentindo.
Sentou-se na privada e, aos poucos, controlou-se. Agora sabia com quem estava lidando. A questão era, o que fazer? Guardou o revolver e o canivete na bolsa e, escondendo-a atrás de si, voltou para o quarto. Ela continuava dormindo, de bruços. Colocou a bolsa de volta onde a achara.
Podia vestir-se em silêncio e fugir. Mas ela podia acordar. E não podia sair do motel sem ela. Não ia dar certo.
Podia sair com ela e, na volta, parar numa delegacia de polícia e entregá-la. Mas não vira nenhuma delegacia no caminho. Se desviasse e ela percebesse, podia dar-lhe um tiro ou esfaqueá-lo. Sentiu o pânico voltando.
Ela virou-se na cama, mas não acordou. Continuava abandonada. Inerme. Podia domina-la. Sentar-se em cima dela, prendendo-lhe os braços com os joelhos. Sufoca-la com o travesseiro, até que ela desfalecesse. Sem matá-la. Depois, seria fácil. Podia amarrá-la, amordaçá-la, pagar o motel, colocá-la no carro e entregá-la na delegacia.
Mas o que aconteceria na delegacia? Ela podia negar que fosse uma serial killer. Que provas tinha? Quem acabaria preso seria ele.
A solução era leva-la com uma confissão. Tinha um gravador portátil no carro, que usava para ditar memorandos. Depois que a tivesse amarrado, seria fácil. Havia massagens em partes do corpo que causavam dores terríveis e não deixavam marcas. Isso ele sabia por experiência. Com o olhar identificou as partes. Sentia o suor nas mãos.
Ou, quem sabe, não entregá-la na delegacia? Seria um escândalo. Todos os jornais iriam comentar o caso. Todos. Teria que dar depoimentos, participar do processo. Insuportável. E tinha um viagem marcada para o dia seguinte. E para que? Psicopatas são incuráveis. Ele, a sociedade, estariam melhor se ela morresse. Depois de confessar, claro. Seria fácil. Não precisaria usar o revolver, nem o canivete, que sujariam tudo. Era só sufocá-la com o travesseiro. Ela se debateria um pouco…
Dispor do corpo seria fácil. Havia tantos precipícios perto. E nada os ligava. Perfeito.
Sentiu um calor no corpo, irradiado do sexo, e relaxou, fechando os olhos.
Ela deu uma risada. Estava apoiada nos dois travesseiros. Sentou-se na cama e sacudiu os cabelos, como os cachorros quando saem da água. Pegou a bolsa, foi até ele, fez-lhe uma carícia no rosto com a ponta dos dedos e foi para o banheiro.
Ouviu o barulho da descarga e, depois, o de água correndo. Ela colocou a cabeça para dentro do quarto e disse:
– Vou tomar um banho. Se quiser pode entrar.
Hesitou longamente. E se ela o estivesse esperando, com o revólver na mão? Ou escondida atrás da porta, com o canivete? Ouviu-a chamar seu nome. Talvez ela não desconfiasse de que ele descobrira seu segredo.
Ela estava na banheira, a bolsa ao lado. A banheira cheia, via-lhe o bico dos seios e a mancha escura do púbis. Sentou-se atrás dela e colocou as duas mãos nos ombros. Seria fácil empurrá-la.
Ela esfregou a nuca contra suas mãos. O roçar dos cabelos molhados contra os pulsos provocou-lhe um arrepio.
– Isso, massageie aí. Está tão tenso… E’ o meu trabalho, que é muito estressante. Trabalho na Polícia Federal.
Virou-se e olhou-o. Sem perceber, ele massageava-lhe os ombros.
– E você, faz o que?
Atrapalhou-se e murmurou.
– Sou um executivo.
Ela riu.
– Hoje em dia todos são. Venha, executivo, execute-me!
E puxou-o para dentro da banheira.
Morto
Morto
Quase morreu. Estivera no banho – um longo chuveiro. No banho, dizia sempre, tinha suas melhores idéias Era um lugar protegido. Na verdade, estava furiosa. Também se sentia culpada por estar furiosa. Enfim, era uma mulher liberada, madura e independente e sabia que essas coisas acontecem com todo mundo.
Com Marcelo não. Durante a dúzia de anos de casamento fora um relógio, sem nunca atrasar. Um relógio suíço, na infalibilidade e no afeto. Repercorreu a guerra cruenta que levavam e constatou que perdera a última batalha. Marcelo tinha fazendas e o filho fora estudar em Viçosa. Mas a última batalha não era a última.
Passara muito tempo olhando-se no espelho, buscando o que Fuad vira. Não estava mal para quase quarenta anos. Os quadris podiam ser mais finos – devia perder três quilos – mas tudo somado… Era também uma grande profissional.
Olhando os olhos achou o que viu em Fuad. A tristeza do olhar. Não era bonito, mas não fora feio. Envelheceu mal, o atleta envelopado em gordura. Mas ainda atraente. Um turcão. Sempre gostou de homens grandes.
Mas era o olhar. A melancolia que subia quando ele baixava a guarda. Ao ver os resultados dos pesquisadores jovens. Foi um cientista de brilho promissor. Largou a universidade pela firma e a administração apagou o brilho. Mas não o sentimento – era capaz de entender um bom trabalho e de saber que nunca mais faria algo semelhante. E não era um executivo brilhante. Hesitava e liderava mal.
Talvez por isso gostasse dele. Pela sua fraqueza. Marcelo também era um triste. Menos na cama.
Também porque gostava da admiração que via nos seus olhos. Especialmente quando achava que ela não percebia.
Enquanto enxugava os cabelos recapitulou a tarde. O Congresso foi, como esperava, um tédio. E estava chovendo, o que, por alguma razão, a enterneceu. E Fuad ali, depois de apresentar os trabalhos da firma, que apenas pajeava, com aquele olhar nu. Haviam descido para tomar um uísque no bar do hotel e ele, de repente, pegou sua mão. Sabia que era casado e, antes que ele dissesse algo irreparável, concordou.
Para, ali no motel, tudo acabar assim. Em nada. Ele suando, murmurando desculpas e ela, no fundo, furiosa.
Aí, quase morreu.
Saindo, enrolada na toalha, viu-o. Deitado na cama. Nu. Morto.
Os olhos revirados, a boca aberta.
Em nenhum momento duvidou da morte acabada. Nem tentou respiração artificial.
Ficou ali, olhando. A toalha caiu e nem se deu conta. Só via a morte, refletida em todos os espelhos.
Só depois notou a ereção, a notável ereção. Refletida por todos os lados.
A ironia deu-lhe um tapa.
Se tivesse conseguido antes, talvez não tivesse morrido. Voltou correndo para o banheiro e, entre soluços, vomitou convulsivamente a alma.
No quarto, sem olhar, foi direto para a bolsa e acendeu um cigarro. Viu-se no espelho e levou um susto. Não podia ficar assim.
Devia, em algum lugar, ter o número da casa. Surprise, minha senhora! Venha, por favor, recolher o cadáver de seu marido no Motel Caliente. Podia, então, fugir. O carro era dele, mas, mesmo com chuva, acabaria por achar um táxi.
Recolocou o fone no gancho. Sentou-se na cama. Olhando para o rosto de Fuad, evitando mais em baixo.
Não podia fazer isso com ele. A mulher era-lhe indiferente. Fuad nunca se referira a ela com uma palavra de ternura ou amizade – apenas para comentar sua insatisfação com o padrão de vida que levavam. E ele não devia ganhar mal! A firma esfolava, mas pagava bem a perda de juventude. Vira-a apenas uma vez, em uma festa da empresa. Uma perua, carregada de jóias e pintura.
Mas imaginou os comentários. Para sempre Fuad seria lembrado como o que morreu no motel. Morreu trepando. De pau duro. Mal saberiam.
Comendo quem? Aí bateu o pânico. Não podia fugir. Mesmo que passasse pela portaria. Teria antes que pagar, com o seu cheque, com o seu nome impresso. Mesmo que passasse e conseguisse um táxi. Com chuva? Na Niemeyer? A mulher faria um escândalo. Mesmo que não fizesse, acabariam por descrevê-la. E todos, no Departamento, sabiam que foi ao Congresso com Fuad.
Emprego estava muito difícil. Como aquele, então…
Por Fuad e por ela mesma.
Vestiu-se toda. Penteou o cabelo e maquiou-se.
Pegou o telefone e mandou chamar o gerente. Peremptória. Freguesa com problemas.
Foi esperar na antessala, fumando.
O gerente era de meia-idade, baixo, troncudo, careca. Muito preocupado, mas delicado.
Temos um problema, comunicou. Seca. Como se fosse no laboratório. Para se controlar. E, abrindo a porta, fez-lhe ver.
– Moça, a senhora!
Mas o seu olhar cortou outros comentários. Coçou a calva.
-É. Temos um problema.
Disse-lhe logo que ele era casado e que ela não era a mulher dele. O gerente deu um suspiro profundo e voltou a coçar.
Sentaram-se no pé da cama, olhando para Fuad, com seu ponto de exclamação plantado no meio.
Por fim, ela sugeriu:
– Não acho uma boa ideia chamar a família
O gerente concordou com entusiasmo.
Sentiu alívio e vazio, sem saber o que fazer. Que, por uma vez na vida, o outro tomasse decisões.
-Foi coração, não foi?
Concordou e o homenzinho animou-se.
-Então podia ter acontecido aqui ou em outro lugar qualquer.
Seguiu concordando.
-Então, moça, vai ter acontecido.
Estava definitivamente animado.
-Vamos vestir, colocar no carro e deixar em algum lugar perto da casa dele. O coração falhou no caminho de casa.
-..e…
Apontou para Fuad. Para o meio.
-Bom, minha senhora, isso é mais seu departamento que o meu.
Sentiu o calor subindo e, ríspida, mandou-o virar-se. Aí viram-se no espelho e, sem se poderem controlar, quebraram a rir. Mesmo assim, o gerente teve a delicadeza de ir ao banheiro.
Prendeu a respiração, como para um mergulho, mas não teve coragem. Procurou uma toalha, mas estavam no banheiro e teve vergonha do gerente. Pensou em fechar os olhos, mas ficou com medo de errar. Então, com um olho só, o mais míope, pegou-o com firmeza. Para seu alívio, amainou na hora.
Vestiram-no todo. O gerente, percebeu, era um artista. Cuidadoso com os detalhes. Como era o laço da gravata, simples ou duplo? Era melhor deixar afrouxado, porque, na hora, isso era a primeira coisa que alguém fazia. E nos bolsos? A carteira de dinheiro ia no paletó ou na calça? E o talão de cheques?
Temia a descida para a garagem. Sugeriu ao gerente que pedisse ajuda para carregá-lo, mas ele abanou a cabeça.
-Quanto menos gente souber, melhor. Isso é fogo no cerrado em tempo de seca.
Para sua surpresa, jogou-o sobre os ombros e, mesmo bufando e cambaleando um pouco, foi até a garagem. Há muito tempo não via um homem tão forte.
Enquanto ela abria a porta do carro e ajeitavam Fuad no banco do passageiro, ele explicou, com orgulho, que na juventude foi campeão de luta. Não entendeu que tipo de luta, mas não se importou.
O gerente estendeu-lhe a mão, a palma virada para cima e olhou-a firme. Como não entendesse, foi mais claro.
-A conta, moça.
-Vou ter que pagar?
-Em primeiro lugar, a senhora e o moço aí usaram o motel. Em segundo, o que faço com os meus registros? Isso não dá para ser cortesia da casa.
Mesmo sendo chamada de senhora, com toda discrição, sem ter seu nome indagado (o de Fuad ele vira na carteira), ia ter que se revelar. Pagou em cheque.
Fez menção de entrar no carro e recuou. Tampou o rosto, escondendo a ausência de lágrimas.
-Não posso. Não tenho condições de dirigir com ele ao meu lado. E depois, como vão acreditar que ele passou para o banco do passageiro? Eu não tenho força para puxá-lo para o lado do motorista!
A calva voltou a ser coçada. E o gerente decidiu ir junto. Primeiro queria ir seguindo no seu carro, mas ela fincou pé que não ia sozinha com Fuad.
A chuva continuava e foram para a Barra. Ia no banco de trás, apertada de medo. Fantasiava uma blitz da Polícia ou que algum conhecido cruzasse no sentido contrário. O gerente resmungava contra a chuva, em contraponto com os limpadores de para-brisa.
Fuad, felizmente, não morava na praia e acharam uma rua deserta e escura, perto de sua casa, onde estacionar o carro. Juntos, empurrando e puxando, passaram-no para o lado do motorista.
Ele teve que segurá-la para que não corresse.
A água corria-lhe pelos cabelos e entrava pelo corpo. Sentia os pés afundando em poças, mas não conseguia enxergar. Seguia-o. Até que viu um telefone e soube que não podia simplesmente deixá-lo lá, naquele carro escuro, embaixo da chuva.
Olhou-a como louca, quando pediu um cartão. Mas ficou esperando enquanto ela chamava a Polícia e avisava que havia um homem caído num carro. Demoraram a achar um táxi e ele a levou até em casa. No percurso, ele elogiou-lhe a coragem. As lágrimas destamparam
Tomou um banho quente e meteu-se na cama. Nem ligou a televisão, que sempre enchia a casa de som. Sentia-se febril, mas chorar no ombro do gerente tinha-lhe feito bem. Ao despedir-se, ele lhe dera um cartão. Yan de Almeida.
Na manhã seguinte estava gripadíssima, rouca e com febre. Telefonou para o escritório e comunicaram o falecimento de Fuad. O coração. Um enfarte fulminante. No carro, a caminho de casa. O enterro era às cinco, no São João Batista. Colocariam o nome dela no anúncio fúnebre do Departamento.
Passou dois dias de cama. O filho telefonou-lhe de Viçosa e desejou-lhe melhoras, mas não se ofereceu para ir ajudá-la.
No terceiro dia, voltou ao trabalho.
A morte de Fuad ainda era notícia, mas, muito mais, era a especulação de quem iria sucedê-lo na Chefia. Percebeu que era cotada. Comentou o Congresso e a participação de Fuad, sua última contribuição para a empresa. Tentou concentrar-se no trabalho, mas a gripe ainda restava. Acabou saindo mais cedo.
No quarto dia ficou em casa, mas no quinto e sexto voltou ao trabalho. No sétimo, dia da missa, foi nomeada Chefe.
A missa foi concorrida. A família era grande e o Departamento compareceu em peso. Achou que não teria coragem de cumprimentar a viúva e os filhos. Mas não podia evitar, agora que tinha tomado o lugar do morto.
Sentiu-se tonta quando saiu da fila e pensou estar enlouquecendo quando, ao fundo da igreja, viu a silhueta troncuda do gerente, Yan.
Coçou a cabeça quando a viu aproximar-se e, tomando-a pelo braço, comentou:
-Era meu dia de folga e fiquei curioso de ver o que tinha acontecido. Vi o anúncio no jornal. Bom que deu tudo certo.
Parecia genuinamente preocupado com o estado dela. Físico e mental.
A igreja era perto de sua casa e tinha medo de voltar e ligar a televisão.
Convidou-o para tomar um café e descobriu que tinham várias coisas em comum, como uma paixão por chorinhos…
Genética
Genética
Fabio S. Erber, Conto de Fabio Erber
Suava. O ônibus só parou em frente ao Benjamim Constant e teve que voltar rápido. Desviou a custo de um cego. Já tinha saído de casa atrasado, como não conseguia sair na hora? Início de dezembro e já fazia aquele calor. Ela gostava da Urca, de passear no fim da tarde. Entrou pelo portão do Teatro. Não achava o papel nos bolsos. Ninguém no saguão, nem um cartaz para informar. As gotas de suor desciam até à calça.
No Teatro de Arena estavam colocando caixas de som. Parou para saborear o bom augúrio: tinham se conhecido lá, numa festa. Andava assim, dependendo de sinais.
A luz na Arena incomodava mas a sombra no corredor aladrilhado dava fôlego. Chegou no saguão da entrada principal. Um funcionário indicou o andar de cima. Subiu, tinha que ser devagar, tinha que parar de fumar. A capela estava aberta, cheia de flores. Ainda casavam. Achou o papel no bolso da camisa, grudado. Salão Pedro Calmon, como não lembrou?
Já tinha começado. Atrás da mesa alta, emoldurada pelo espaldar da poltrona pomposa, ela parecia pequena. Mas ainda não queria vê-la, precisava de calma. Deixou-se cair na última fila, mas era o único ali, o salão estava meio vazio e foi curvo, até encontrar gente. Ela não o viu – estava apontando uma tabela.
Achou um lugar na ponta, ao lado da janela aberta. Os ventiladores só jogavam o ar quente de um lado para o outro. Via o Teatro. Evitou as lembranças e fechou os olhos, esperando.
Detestava aqueles óculos remendados com esparadrapo mas não tinha jeito. Agora ela estava mostrando uma figura que até ele reconhecia: a dupla espiral do DNA. Tentou lembrar as explicações
Ela parecia a mesma. Fantasia, dez anos passam para todos.
Muita vontade de fumar, de tomar um uísque. Não adiantava ficar ali, esgueirou-se.
No banheiro pequeno e sujo ( a Universidade não mudava, nem os grafites) olhou a cara encovada. Dez anos passam para todos. Tinha cortado o rosto quando fazia a barba braba de quatro dias, agora ardia. As sobrancelhas juntas, os olhos escuros, fundos, o nariz adunco, a boca de lábios finos, a gente não envelhece, se agrava.
Aplausos. A guimba fez um arco luminoso, estrela cadente.
As perguntas eram por escrito. Devolveu o papel à mocinha que circulava. Duas frases. Saudações Universitárias! A genética é implacável ! Se ela não reconhecesse, podia sair e matar-se.
Pilha de papeluchos amarelos. Ela olhava a pergunta e depois repetia-a alto. Seu papel devia ser um dos últimos ou ela o tinha descartado. Pensou em ir embora.
Ela pigarreou e ficou olhando para o alto. Voltou a ler, limpou a garganta e disse que agradecia as saudações enviadas, procurando-o com o olhar. Ele ergueu um pouco a mão. Saiu para fumar.
Ela saiu cercada mas foi encontrá-lo no nicho da janela. As pessoas foram embora e ficaram os dois ali sozinhos.
Os dez anos tinham-lhe dado peso. Mas o oval do rosto continuava perfeito, olhos grandes boca e nariz pequenos. O cabelo estava preso num coque complicado, severo.
A roupa escura bem cortada fez sentir a camisa suada a calça sem pregas o tênis puído. Tirou rápido os óculos.
Ela o beijou no rosto e murmurou quanto tempo. O que queria que fizesse? Dez anos.
Tateando emoções em silêncio. Ele perguntou se tinha tempo para um café, ela acenou que sim. Nunca fora de falar muito.
O café, numa das quinas da Arena, continuava ruim. Ela comentou que ali nada mudava, ele lembrou a quantidade de cerveja que tinham tomado quando se conheceram mas ela não deu seguimento.
Sentaram no Teatro. Estava escurecendo e bateu uma brisa. Seguia a carreira dela, Oxford, Stanford, Oxford de novo. Feliz pelo sucesso. Ela reconheceu o agrado com um pequeno sorriso. Súbito, explodiu, você podia ter escrito, telefonado, ido lá!
Estavam dez anos de volta. Aos últimos meses. Mas ele não queria brigar. Concordou, mas ela não precisava dele. A resposta foi surpresa. Quem disse? Um arrepio sacudiu-a e acrescentou, pelo menos no início.
Ele estava ali por uma suspeita mas ela atalhou perguntando por ele, pela sua vida. Complicado. Enrolou. Falou dos empregos, agora era consultor, frila. Casamentos e separações. Sem filho, felizmente. Se ela visse os óculos com esparadrapo veria o seu sucesso. Se tivesse um filho seria um sentido na vida.
Ela disse que ia melhorar. Ele concordou. Começaram a testar as caixas. O som reverberava no seu estomago.
No saguão as pessoas desciam a escadaria, fim de aula. Convidou-a para jantar, um cheque sem fundos a mais, que diferença fazia? Impossível, tinha um jantar em sua homenagem.
Parados na porta, olhando o transito, ele achou que era a sua última oportunidade. Receber um sinal e, quem sabe, se orientar, tomar outro rumo, algum rumo na vida.
Perguntou se ela tinha casado. A cabeça sacudiu, sem olhar para ele. Mas uma revista a mostrava com um menino, num jardim. Um menino e um cachorro. O rosto do menino estava meio encoberto pelo braço.
Ela encarou-o:
Paul e Tubby. Paul é o menino. Paixão da minha vida!
Ele disfarçou e perguntou a idade. Ela olhou-o longamente e depois disse em voz neutra oito anos, uma produção independente, não se arrependia, melhor coisa que tinha feito na vida. Grande para a idade. Não, não tinha um retrato ali, mãe desnaturada.
Ele não insistiu. O sinal falhou, não veio, a vida era um lixo mesmo. Estava vazio.
Ela olhou o relógio. Tinha que pegar um táxi para Ipanema, queria uma carona? Ele mentiu que morava perto. Beijou-a no rosto e saiu em direção à Urca.
No hotel, ela tirou o retrato de Paul da carteira. O rosto fino, os olhos fundos, o nariz a boca, dez anos já a cara do pai, ele tinha razão, a genética era implacável.
Duende
Duende
Fabio S. Erber, Conto de Fabio Erber
A Herança
Se me olhar no espelho, posso vê-lo. Descontando, claro, meus quilos a mais e cabelos a menos. Um homem naturalmente corpulento, cabelos escuros, olhos pequenos, o nariz grande e adunco. A boca larga, sempre ocupada, desde criança, com balas, cigarros, chicletes, o que fosse.
Samuel, Sammy, e eu nascemos com um dia de diferença. Eu antes, o que talvez explique alguma coisa. Os dois, filhos únicos. Nossas mães eram gêmeas, o que talvez explique a coincidência.
Seguimos paralelos a infância e a adolescência. Só agora dá para ver que já haviam diferenças. Imperceptíveis, à época.
Separamo-nos, mesmo, quando fomos estudar nos Estados Unidos. Ou melhor, eu fui para estudar; Sammy foi mandado pelo pai. Tinha-se metido em uma encrenca, vendido algo que não tinha. Eu fui para o Leste. Boston. Harvard, Escola de Direito. Sammy foi para o Oeste. Califórnia. Foi para Woodstock e não voltou.
De vez em quando, mandava um postal. San Francisco, Los Angeles, Paris, Katmandu, Amsterdam. Bancoc, Miami…Nada de muito prolixo. Wish you were here, love, nada mais. No meu aniversário, porém, era certo chegar um cartão.
Seu pai desesperava-se mas mandava-lhe dinheiro. Apesar da oposição virulenta e indignada do Tio Lemle, irmão mais velho e sócio principal do negócio. Meu pai também não aprovava, mas não era sócio. Eu me espantava por não me surpreender. Era como se uma parte minha, desconhecida, já antecipasse a bifurcação. O papel de filho e sobrinho modelo, advogado trabalhador, bom pai de família, não me desagradava.
Aos poucos, a geração mais velha foi morrendo. Nossas mães, sempre solidárias, foram com uma semana de diferença. Um ano depois, meu pai, e no seguinte, o pai de Sammy. Um enfarte, ao voltar do banco onde foi remeter dinheiro para Sammy. No meio de uma discussão com Tio Lemle. Ninguém me disse porque discutiram, mas tenho as minhas idéias. Duvido que fosse por negócios. Tio Lemle era um gênio comercial e o pai de Sammy nunca questionou a ascendência do irmão mais velho. Não tinham outras paixões, salvo Sammy.
Sammy veio ao Brasil para o enterro. Antes, só voltara quando soube da morte da mãe, ao chegar do Nepal. Bom filho, à sua maneira, foi visitá-la no cemitério. Estava genuinamente triste com a morte do pai. A recusa de Tio Lemle, nosso único parente vivo, de vê-lo, deixou-o ainda mais acabrunhado.
Com a morte do irmão, Tio Lemle fechou o negócio, vendeu tudo e recolheu-se a um casarão em Petrópolis. Não casara nem tivera filhos.
Sammy herdou uma bela fortuna. Não me contou que negócios fazia lá fora mas encarregou-me de administrá-la. Eu sabia que sua intenção era torrá-la. Não precisava me dizer.
Fora as coisas práticas, pouco falamos. Nunca fôramos de muita conversa. Não questionamos a bifurcação, reconhecendo sua irreversibilidade. Sammy voltou para o exterior e a correspondência reduziu-se a ordens de pagamento para diversas partes do mundo. Os cartões de aniversário, porém, continuavam a chegar. Aos poucos, as ordens foram convergindo para a Califórnia, como um círculo se completando.
Este ano, a fortuna de Sammy estava acabando. Na mesma semana em que o avisei dessa iminência, minha secretária recebeu um telefonema de uma mulher que não se identificou: Tio Lemle queria me ver. Levei um susto, como se um fantasma tivesse entrado porta a dentro e pedido para fazer seu planejamento fiscal. Tio Lemle tornara-se um recluso tão eficiente, sem telefone, desencorajando abertamente qualquer visita, que eu acabara por esquecer que ainda existia.
Petrópolis virou algo detestável – a cidade média de interior. A parte comercial já estava chegando perto da casa do Tio, embora duvido que ele soubesse disso, ou se importasse. A casa, um mostrengo sem estilo, construída no início do século, estava decrépita, as paredes externas descascadas, mostrando a alvenaria. A hera cobrira o largo portão, as grades, o muro da frente e avançava, intrépida, pelo portãozinho lateral, resistindo a quem tentasse abri-lo. Do lado de dentro, o mato liquidou todos os competidores no antigo jardim. Ninguém, no entanto, acabara com a figueira, que, escura, dominava o pedaço. No meio do mato, pensando nas marcas que deixaria em meu terno claro, algo roçou minha perna. Esforcei-me para não gritar.
Os degraus da escada que dava acesso à varanda haviam rachado. Pedaços do corrimão de madeira e ferro batido e da grade que circundava a varanda haviam sido tragados pelo mato triunfante.
Já na porta assaltou-me o cheiro. Penetrante, perverso, de sujeira e podridão.
Com minha batida, a porta abriu-se. A penumbra fazia a sala parecer maior. O cheiro era espesso. Havia muitas respirações.
Finalmente, o enxerguei. Estava sentado numa poltrona no meio da sala. Cercado de gatos. Talvez tivesse esbarrado num deles, no mato.
A voz era aguda e anasalada. Tão fraca que parecia o fantasma da voz que eu lembrava. Mandou-me puxar uma cadeira e sentar-me. Não disse palavra de boas-vindas. Muito menos de agradecimento por ter largado tudo e subido a serra num dia útil.
Tomei coragem e abri uma janela. Precisava de luz e ar fresco para não correr. Vários gatos reclamaram em antífona.
Tio Lemle virara um duende!
Encolhera, mas de forma desigual. A cabeça. agora, era enorme. Nela, ainda restavam alguns fiapos de cabelo branco, espalhados como tufos pela pele encardida. No meio da cabeça reinava absoluto o nariz, que se curvava sobre uma boca de lábios finos e alguns dentes amarelados. No queixo uns tufos de barba, que não chegava a ser branca. Sob a pele, viam-se os vasos, que davam ao rosto uma falsa aparência de corado. Sentado numa cadeira de rodas, coberto por uma manta de cor indefinida, o corpo parecia pequeno, mas as mãos, estriadas de azul e preto, ainda eram grandes.
A sala era uma ruína. Louça quebrada, alguns móveis também. E sujeira, por toda parte. Montes. O cheiro era insuportável. Também havia pilhas de livros, espalhadas por toda a sala.
Fechei a parte de cima. Há anos que não vou lá. Tenho um acerto com uma mulher da redondeza. Faz a comida e deixa na porta uma vez por semana.
Aos poucos, a voz ia recobrando força. Há quanto tempo não falava com um ser humano ? Vivo, pelo menos ?
Já satisfez a curiosidade ? Viu como vive o seu velho tio ? Então vamos aos negócios, que não o tirei do escritório num dia útil para ficar falando bobagens!
Era a voz do Tio Lemle como a lembrava, dando instruções ao pai de Sammy ou a meu pai, mandando-me estudar para progredir na vida. Sentei-me à sua frente.
Trouxe o gravador, como mandei ? Tome notas também, porque não confio muito nessas coisas.
Fez uma pausa.
-Na verdade é simples. Estou morrendo.
Abanou a mão com força, para impedir-me de falar.
-Sei que sente. Alguma coisa.
Olhou-me fixo nos olhos.
-Não estou senil nem maluco, sobrinho. Apenas sei que a morte está muito perto.
Relaxou e mostrou-me os poucos dentes.
-Andei muito ocupado, estudando coisas que não lhe interessam. Mas agora, tenho algo a fazer que é da sua área. Meu testamento.
Olhou-me fixo novamente. Parecia reunir forças.
-Nomeio meu sobrinho Samuel meu herdeiro universal.
A voz era firme e a carga de prazer e ódio que trazia quase tirou-me da cadeira. Prosseguiu no mesmo tom.
-Meus bens são esta casa e seu conteúdo. A escritura da casa você encontra naquela gaveta. Pode examinar – está em ordem. Todos os impostos pagos, tudo em ordem para que meu sobrinho possa gozá-la.
Pensou um pouco.
-Mas o principal é o conteúdo. Que também lego a Samuel. Nele há um tesouro, que será dele, se souber achá-lo. E conservá-lo.
Pôs-se a rir. Gargalhava, com tal prazer que eu sentia calafrios, apesar do calor abafado da sala.
Fez-me repetir tudo e tocar a gravação. Recusou-se a esclarecer o que era o tal tesouro.
Trouxera um laptop e resolvemos tudo rapidamente. O tesouro ficou incluído no conteúdo da casa, sem especificação. Como dissera, era simples. Do ponto de vista legal. Antes de assinar, teve uma idéia.
-Coloque aí uma clausula adicional. No caso de falecimento de Samuel, a casa e tudo mais passam a você.
Com um risinho satisfeito, acrescentou :
-Não há risco de você encontrar o tesouro se Samuel não conseguir.
O olhar pôs-se vago e ficamos muito tempo em silêncio. Por fim, despediu-me com um gesto da mão. Pensei que deveria beijá-lo ou fazer algum gesto de carinho, mas não foi possível.
Quando estava na porta, chamou-me de volta.
-Não deixe de tocar essa gravação para Samuel, quando chegar a ocasião.
Atravessei o jardim quase correndo. Tinha a sensação de ser observado.
Uma semana depois, a mulher que lhe preparava a comida telefonou para comunicar o falecimento de Tio Lemle. Para minha surpresa, chorava muito e dizia que ele era uma ótima pessoa. Enterrei-o em Petrópolis mesmo. Estávamos só ela e eu. Era velha, gorda e tinha um ar de boa pessoa, um pouco pateta. Mandei fechar a casa e contratei um vigia.
Sammy chegou no fim do mês. Nada pareceu espantá-lo. Ouviu a gravação com o mesmo espírito com que escutara meu relato. Tio Lemle, no fundo, era um bom sujeito e gostava dele. No fim da vida, reconhecera que fora injusto e corrigira o erro deixando seu dinheiro para quem mais precisava. E precisava muito!
O cinzeiro já transbordava mas acendeu outro cigarro. Penso que interpretou mal minha cara, porque perguntou :
-Você não se incomoda? Com a herança? Meti-me em uns negócios complicados e estou a perigo. Meus…clientes, não são do tipo que se queixa ao bispo. Ou ao advogado.
Não comentou mais e também mais não perguntei. Marcamos para ir a Petrópolis no dia seguinte, mas um mal súbito me impediu. Sugeri adiarmos para o fim de semana, mas ele estava com pressa. À noite veio ver-me. Anunciou que parara de fumar e ofereceu-me um drops.
-Estive lá. Bad vibrations, man. Dá para vender? Tipo rápido?
Vender é sempre possível, depende do preço. Rápido, mesmo barato, é difícil.
Pensei que Sammy devia estar mesmo pressionado, para ter esquecido assim o que nossos pais e o tio Lemle teriam dito.
-Então, só me resta achar o tal tesouro. Pelas minhas contas, tenho quinze dias. Vou precisar de ferramentas, roupas e comida. Me empresta algum?
Ofereci emprestar-lhe o que precisava para pagar os tais “clientes”.
-Só in extremis. Esse é um negócio em que é melhor você não se meter. E, depois, o Tio Lemle deixou-me um tesouro!
Ofereci para ajudá-lo na busca.
-Muito grato. Mas tenho a intuição de que o Tio arrumou as coisas de modo que, seguindo a minha cabeça, vou acabar achando. No offence meant, mas sinto que você vai acabar atrapalhando. Sua cabeça ficou muito diferente.
Rindo, enfiou outro drops na boca.
No dia seguinte pegou as plantas da casa no meu escritório e subiu.
Tive uma semana especialmente complicada, mas, à noite, não conseguia não pensar em Sammy e no Tio Lemle. Talvez Sammy tivesse razão. No domingo, não resisti e subi.
Cheguei no meio do dia. Todas as janelas e portas estavam abertas. Na varanda, encontrei Sammy, sem camisa, suarento, com o rosto vincado. Levou-me para a sala. Fizera uma retícula na planta, com quadrados de várias cores. Um bom número estava riscado.
-Olha aí! Adotei um método racional. Depois de estudar a casa, dei probabilidades a cada lugar e comecei a procurar. Comecei pelo térreo, para depois ir para o andar de cima e o porão.
Deixou-se cair numa cadeira, que rangeu.
-Nada! Nada vezes nada! Nesse ritmo, posso passar anos aqui; nessa catacumba! E tempo não tenho!
Voltamos para a varanda. Estava muito tenso. Perguntei-me se dormira ou mantivera a busca durante as noites. Encheu a boca de balas. Dava para alimentar-se de balas? Falava entredentes.
-Estive pensando. O tesouro só pode ser de coisas muito duráveis, fisicamente. Duráveis em valor também. Ações, títulos, papel, estão fora. O velho já deve ter escondido há tempo, pelo estado de saúde que você descreveu. Só pode ser ouro e pedras preciosas!
Ocorreu-me uma idéia terrível :
-E se for algum conhecimento? Ele falou de pesquisas que eu não iria entender.
Ria muito. As lágrimas corriam soltas.
-Você está fora de sintonia com o velho. Dinheiro, grana, era o que lhe interessava e que preciso!
Pegou-me pelo braço:
-Vamos almoçar, brother. Estou sentindo que estou na trilha errada.
Depois do almoço despachou-me de volta para o Rio. Quando parti, estava sentado em baixo da figueira, fumando um cigarro de maconha, totalmente indiferente à reação dos vizinhos.
Dois dias depois entrou em meu escritório. Estava ainda mais magro, a barba crescida, as roupas mais sujas. Mas os olhos brilhavam. Ofereceu-me balas. Tentava parecer frio, mas a voz tremia.
-Depois que você foi embora, fiquei lá pensando. Tinha certeza de que estava no caminho errado. Aí, tentei pensar como Tio Lemle. Imaginar como ele me via. A sensação de erro foi Então, veio o primeiro clique. Não era para seguir uma estratégia racional, certinha. Para isso, ele teria chamado você. Eu, eu sou o porra-louca da família!
-Esperei a noite e tomei um ácido. Oh boy! Que viagem naquela casa! No início, foi meio sinistro. Todas aquelas sombras. Tive medo de estar entrando numa very bad trip. Mas, depois, fui-me acostumando. Saí andando pela casa, vendo coisas, cores, que nunca tinha visto antes. As madeiras estalando pareciam tiros. Longe, ouvia a voz de Tio Lemle me chamando, mas não conseguia localizar. Andei pelo térreo, onde tudo era marrom. Na andar de cima, era verde e azul. Aí fui para o porão. A voz era mais forte. Como quando ia lá em casa levando um presente. Vermelho. Bordô. Muito sangue. Rosa também, pouco mas tinha. Uma coisa grudou no meu rosto. Deu tanto horror, medo, que caí no chão. Devia ser uma teia de aranha. Fiquei lá sentado, cercado de sangue, quase sem respirar. Então comecei a ouvir uns barulhos. Passinhos. Depois, vi uma sombra. Enorme! Acho que encostei numa parede, me escondi atrás de uma pilastra. Era um homenzinho. Bem pequeno. Com cabeção, perninhas curtas. Barbudo.
Pulei em cima dele. Não lembro bem o que aconteceu, mas segurei-o firme. Ficamos assim, nos encarando, e aí eu disse que queria o tesouro do Tio Lemle. Que o Tio Lemle tinha deixado para mim. Ele disse que eu podia ser o herdeiro mas que ele tinha a posse. Parecia um advogado, o desgraçado! Aí, fiquei muito irado e apertei a garganta dele. Começou a espernear e gemer e lembrei que, se ele morresse, eu nunca acharia o tesouro. Coloquei-o no chão e fiz um trato. Podíamos dividir o tesouro. Metade para cada um. Aí soube que o tesouro estava com ele. Tinha uma bolsa no cinto, que arranquei. Não tenho muita lembrança do que aconteceu depois. Acho que saí correndo…Na manhã seguinte, acordei em baixo da figueira, com isso na mão!
Mostrou-me uma bolsinha de couro, franjada nas pontas.
-Não tenho noção de como foi parar lá nem onde achei! Dentro havia isso…
Na palma da mão tinha os dois diamantes mais maravilhosos que já vi. Tenho um cliente que é obcecado por diamantes e acabei aprendendo bastante. Ficamos os dois ali, bestificados, olhando para as pedras. Fechei os olhos, para quebrar o encantamento e empurrar a inveja. O tesouro do Tio Lemle era um tesouro mesmo!
Sammy deu uma gargalhada e guardou os diamantes.
-Com isso, pago as minhas dívidas e posso retomar minha vida!
-E o homenzinho, duende, ou o que fosse? perguntei. Você não ficou de dar um para ele, racharem o tesouro?
-Um duende de ácido?! Rachar um tesouro com um duende? Oh man, quem ficou doido foi você! Vou para o hotel, descansar! Amanhã nos falamos.
Ria muito e quando saiu do escritório ainda dava para ouvir sua gargalhada. Ouvi de novo a gravação do Tio Lemle, mas não espantou a minha angústia.
Na manhã seguinte, telefonaram-me do hotel. Nervosíssimos. A camareira encontrara Sammy. Morto, deitado na cama. Não havia sinais de violência; tudo indicava uma morte natural. Queriam evitar um escândalo.
Chamei o médico da família e fomos para o hotel.
Era uma suíte. Enorme. Sammy começara a gastar por conta.
Estava deitado na cama. De pijama de seda, novo. Os olhos e a boca abertos. Um ar perplexo. Deu-me aflição olhá-lo.
Havia comprado uma mala nova e roupas também. O gerente fez abrir o cofre em minha presença. Lá estavam o passaporte, cartões de crédito e algum dinheiro. Mas não havia rastro da bolsinha nem dos diamantes. Interroguei o gerente. Não havia registros de visitas, ninguém vira nada. Mas poderiam ter subido direto, se soubessem o número. Era um hotel grande – não dava para controlar tudo. Sammy dera dois telefonemas internacionais. Para San Francisco. Os dois muito curtos.
O médico chamou-me de lado. Parecia muito espantado. Tinha um dos diamantes entre os dedos.
-Estava na garganta. Descobri por acaso.
Ficamos um tempo olhando a pedra. Eu, pensando em Sammy e suas transações. Ele, não sei.
-Ele morreu sufocado.
Pensei nas balas de Sammy. Na nossa infância. Lembrei do Tio Lemle.
-Ponha aí ataque cardíaco. Não vamos complicar as coisas.
O outro diamante não foi achado. Prefiro crer que Sammy o engoliu, mas não tive coragem de pedir uma autópsia. Que descanse em paz. Ele, o Tio Lemle e os demais.
O diamante que restou, vendi para meu cliente. Há pouco tempo, ele me assegurou que outra pedra parecida não apareceu no mercado. O que não quer dizer muito. A casa, mandei demolir, cimentar o chão e virou estacionamento. Só deixei a figueira, mesmo que o manobreiro reclame.