Ofícios

Aceitei porque o mercado anda mais ou menos. Virou para o Norte e o pessoal local é que atende. Também porque é um cliente antigo. Já fiz outros serviços, desde que começou como vereador, no interior do Estado. Hoje é senador. Estamos os dois mais gordos e com menos cabelos.

Minha tabela é diferente se o serviço é particular ou político. Político é mais caro. Ele sabe e regateou pouco. Está com  medo e pressa.

Depois, complicou. Quer o Argenário.

Ponderei que Argenário tinha-se aposentado. Que tinha outras pessoas de ofício.

Fincou pé. Tem que ser o Argenário. Nele tem confiança. Esses moços de moto são todos uns drogados, falam com todo mundo.

Mais, tinha assuntado com um compadre: Argenário estava morando lá pelas bandas de Casimiro.

Em época de mercado ruim cliente manda.

Fui até a fazenda do compadre e arrumei indicações do sítio de Argenário. O compadre me arrumou um cavalo. O carro que minha mulher quis comprar não agüenta. Importado não é para essas coisas.

Fazia anos que não montava, mas logo recuperei. O corpo para trás, cuidando para não me enfiar no Santo Antônio, deixando o bicho ir, marchinha que come léguas.

O Argenário. Tipo difícil, trancado. Já fazia uns cinco anos que não trabalhava para mim. A última vez disse que era a última vez. Lembrei de meu finado pai, Deus o tenha, grande cabo eleitoral em Raiz da Serra. Me ensinou o valor de ofício. Uma vez propuseram que se candidatasse: ficou quase escandalizado. Era cabo eleitoral, não era político. Morreu em campanha. Me disse que com certos ofícios só a morte acaba.

Boa, a localização da casa de Argenário. Fácil de ir, para quem soubesse, difícil de achar sem indicação. Tinha uma boa vista de quem chegasse. Os fundos davam para o mato. Argenário tinha muito inimigos na consciência.

Casa boa, alvenaria, tinta branca. A entrada no meio de uma buganvília roxa e outra amarela, enormes, cheias de espinhos. Uma porrada na vista. Argenário cegou?

A mesma índia velha me atendeu. Anda com ele desde que nos conhecemos, já tem mais de vinte anos. Nunca soube o nome. Também nunca disse palavra.

Sentei na sala. O estofado segura bem meu peso. Taco de madeira. De uma moldura oval, um casal em preto e branco, colorido depois, olha o Sagrado Coração na parede em frente.

A índia trouxe um café já adoçado, como detesto.

Fiquei sozinho.

Se Argenário  tivesse morrido, ou se estivesse viajando, ela me avisaria? Ou seguiria dando-me café doce até que eu percebesse?

Argenário. Argenário Teófilo Albuquerque. Onde descobri seu nome todo, nesse mundo em que nos conhecemos só por apelidos ou títulos ? Para ele, eu sempre fui o Doutor Tão. Nunca soube porque.

Não parece ter envelhecido muito. Sempre foi magro. Ereto, o mesmo jeito lento de andar.

Entre nós não há falsas intimidades, tapinhas nas costas, abraços. Somos cerimoniosos; seguimos velhos rituais.

Não falamos dos anos que passaram.

Vamos para os fundos da casa, onde Argenário passa os dias. Girassóis, margaridas, rosas. Mais buganvílias, vermelhas agora. Explica o cultivo. Os mais difíceis o entusiasmam.

Ao fundo dos fundos cria galinhas d’Angola. Detesto o barulho. Conta que são frágeis. Há gambás na redondeza.

É uma conversa de muitos silêncios. Observo-o. Como se abaixa para extirpar uma erva teimosa. Como localiza um beija-flor.

Faz calor e a índia traz  uma jarra com suco de laranja lima. Com muito açúcar. Ele serve. Observo-lhe a mão. É uma jarra pesada, a mão firme.

Estamos na sala e comemos bolo de fubá com mais café. Está entardecendo.

Digo-lhe que há um serviço. Ele não diz nada, nem com os olhos.

Explico-lhe o serviço. É simples. Uma das fazendas do senador pode ser invadida. É preciso prevenir. Antes que aconteça e vire um caso político. Mas  precisa alguém especial. Que não falhe. Nesses trabalhos, o pior é tentar e falhar. O senador  só confia nele.

Não falo de preço. Acendo um cigarro. Ele enrola outro.

Ficamos fumando.

Não vejo seu rosto. A índia traz um lampião de luz morna.

Da última vez, disse que estava me aposentando.

Não respondo.

De repente, conta-me sua história, fragmentos. Seu pai tinha o mesmo ofício, ensinara-lhe quando era criança. Não tivera filhos. Coisa da mulher, claro. As flores, as galinhas o mantinham ocupado. Mas, de noite, ficava inquieto. Não tinha a quem ensinar o que sabia.

Então, resolveu criar um menino. Sobrinho de uma irmã…

Digo-lhe que não. O serviço é para ele.

Fumamos outro cigarro.

Da sombra, pensa alto :

Para mostrar como se faz.

Concordo que um ajudante não faz mal. Posso negociar isso com o senador. Mas tenho uma dúvida essencial.

 

A técnica não basta. Argenário não sofre com remorsos. Vê o seu ofício com simplicidade. É o que o faz um profissional de exemplo. Mas, e o sobrinho? O remorso leva à bebida e à indiscrição. Ou à violência descontrolada, que também é indiscreta.

Ele me garante que não. Essa é a marca que identificou no sobrinho e fez com que o adotasse.

Argenário é um detalhista, eu também. Discutimos os hábitos da pessoa, familiares, segurança. Ele e o sobrinho verificarão tudo. Garante que o rapaz sabe ver. O prazo é curto e fixamos uma data. No preço incluo o sobrinho. Ninguém trabalha bem de graça.

A índia serve-nos o jantar.

Depois do café, preparo-me para ir. Há lua cheia e não quero invadir a privacidade de Argenário. Ele me detém :

Antes, quero mostrar duas coisas.

Sai e volta com as mãos atrás do corpo. Estende-me uma. Um revólver enorme, modelo antigo. Brilha como novo. É sua arma. Desde que o conheço é a mesma. Estende-me a outra. Contem a réplica do revólver.

Ri. É a primeira vez que o ouço rir.

Arrumei para o menino. Deu trabalho mas consegui. Está tão bom com ela como eu.

Saímos e pega-me o braço. A outra coisa.

Com um lampião leva-me a um pequeno galpão. Uma poderosa motocicleta reluz.

O menino me ensinou a usar. Perfeita para o trabalho. Mas, na hora, quem pilota é ele.

No caminho, penso no moderno. Decido não falar da motocicleta ao senador. O que contam são os resultados, como repetem os jornais.