Fashion
Sou fotógrafo. Crio a realidade ou apenas a registro?
Pedaços, fragmentos de realidade.
Fotografo o efêmero com o meu nome. Vejo o que faço em todas as bancas de jornais, em cores brilhantes, a moda.
Fotografo o permanente, a morte. Anônimos, os mortos (quase – um pequeno registro no jornal) e eu. Em preto e branco. Guardo em meus arquivos, algumas vezes publico.
– Quer que vire a cabeça dele ?
O garoto é solícito. Solícito demais. Abano a cabeça e sigo clicando. A boca aberta. Faltam dentes. A miséria da morte. Os olhos espantados. Os buracos de bala. Meu fascínio não pode ser registrado.
– Vai sair em jornal ?
Sinto a suspeita às minhas costas. Bentinho talvez também.
– Garoto, cala a boca e deixa o moço trabalhar!
O garoto afasta-se, assobiando baixinho. E’ magro e feio, mas veste-se na moda. O garoto da escopeta.
Fotografo a mulher. A medalha de São Jorge. Não a protegeu.
Na birosca, com Bentinho. O garoto fora, vigiando.
-Eu queria entender…
Bentinho se interrompe. Espanto-me. Bentinho nunca teve dúvidas, que para ele são fraqueza e a fraqueza o prenúncio da morte. Sei o que não entende, mas não posso explicar. Não posso dizer que odeio a história, por isso sou fotógrafo. Ou que sou fotógrafo, por isso odeio a história, sou do momento. Teria que dizer que odeio nossa história. Exceto a da nossa amizade.
Bentinho sabe que foi ele que abriu a porta para a minha fuga da nossa história – o emprego que me arranjou, de boy, nas Notícias do Dia. Das Notícias pingava sangue. Um amigo de Bentinho arrumou o emprego, mas ele não se interessou. Já tinha quase o tamanho de hoje e andava no bicho. Eu era covarde e franzino. Fiquei com o emprego. Lá aprendi a fotografar. Meu passaporte para longe da favela, longe da história.
Também não sei a que servem esses estudos da morte. Esses registros do fim. As vítimas de Bentinho. Bentinho, o executivo.
Bentinho é um executor. Mata a quem seus chefes mandam. Uma vez convidou-me a assistir uma execução, mas não tive coragem. Não sou um ator, sou um fotógrafo. Depois, registrei o epílogo.
Talvez não tenha conseguido fugir da história. Talvez fotografe esses mortos para convencer-me de que fugi. De que não terminarei assim. Algumas vezes sonho com essas caras mortas. Mas já sonhava com elas antes de ser fotógrafo.
Saímos e o garoto me olha fixo. Quando percebe que percebi, disfarça. Sinto seu olhar nas costas quando desço a ladeira.
Mudo meu itinerário e volto para as Notícias. O prédio é o mesmo. O responsável pelas fotos também. Ofereço-lhe a notícia e as fotos. Não me pergunta como sei e como fiz. Para ele são apenas seu trabalho. Esquece-se delas no momento em que fecha a luz. Talvez também ache que não se foge da história. Ambos sabemos que as fotos são excelentes. Aceito o pagamento que me oferece. É uma ninharia, comparado com o que ganho lá fora, mas não dispenso, porque ali é uma transação profissional. Se não cobrasse seria suspeito. Apenas insisto em que as publiquem. Ele não entende e lembra-me que a política do jornal é não identificar o fotógrafo. Mas garante publicá-las. Pergunta-me da vida e invento uma em Minas Gerais. Para ele é tão distante como Paris.
Meu tempo no Rio está acabando. Estou, uma vez mais, interrogando a morte, lendo o noticiário, quando o telefone toca. É a hora em que Bentinho costuma chamar. Mas é outra voz. A do garoto. Pergunta apenas se quero tirar umas fotos e me dá o endereço.
Hesito. A passagem e o passaporte na mesa avisam-me de que não preciso ir. Mas estão misturados com as fotos. E penso que é a oportunidade de despedir-me de Bentinho até a próxima volta.
A escuridão está terminando quando chego. Ouço o assobio do garoto e subo o barranco. O garoto está-me esperando, como nas vezes anteriores. Pega no meu braço e para-me.
– Vi as fotos no jornal! Maneiro! Na hora, não sei não, achei que voce não era de jornal. Mas aí vi.
Ficamos ali um tempo. Eu esperando, ele com um sorriso moleque. Aponta a descida do barranco.
– Achei que voce ia querer tirar essas fotos aí.
Os olhos estão fechados. A boca também. Há marcas na face, nas têmporas, na cabeça. A camisa empapada de sangue e pólvora. Muitos buracos. Alguns grandes, como faz a escopeta. É uma camisa de griffe.
Lentamente, com todo o cuidado, fotografo. Registro os restos, o fim de meu amigo Bentinho. Com o amor compatível com um ritual. Mas não decifro a expressão do rosto. Sei que estas serão as últimas fotos. Talvez sejam minhas últimas fotos. Gasto todo o filme. Tenho todo o tempo.
Quando termino já é dia. Há gente no barranco, olhando.
O garoto está cercado de dois homens, que se afastam, obsequiosos, quando ele se encaminha para mim.
Olhamo-nos bem e, depois, sem uma palavra, subo o barranco. Imagino o barulho e a dor do tiro. Mas não acontece nada.