Amizade
Pode perguntar. Todos vão confirmar que tenho cara de maluco mas sou de boa paz. Não vendo fiado, não casei, não discuto religião e política, e mulher de amigo é homem. Brigo só pelos meus amigos e pelo Botafogo.
Minha amizade com Aristeu tem muito a ver com o Botafogo. No Grupo Escolar éramos os únicos com a Estrela Solitária na capa do caderno. Demos e levamos muita porrada por conta disso. Amizade firme.
Eu herdei a sapataria do meu avô, Aristeu foi estudar.
Aristeu arrumou um bom emprego, foi subindo na firma, ganhando bem, mas ficou morando aqui.
Num sábado ao meio-dia, véspera de jogo, estávamos todos no bar nos preparando, quando passou na calçada, andando de patins, uma morena vestida de licra.
Alguém disse:
Deus faz, a Natureza conserva.
Outro esclareceu:
É a Beatriz, filha do Humberto.
Eu fiquei pensando como era possível. Ainda ontem era uma menina, hoje, aquele assombro de mulher! E o Humberto e a mulher tão feios… Também pensei no preço daquelas roupinhas e patins e na dureza do Humberto.
Aristeu não disse nada. Estava tão besta que derramou cerveja fora do copo.
Ela percebeu tudo e ficou dando voltas, se exibindo. Todo mundo comendo com o olhar.
Podia ter ficado nisso, mas Aristeu casou com ela. O que ele via nela não precisava explicação. O contrário não sei; não entendo de mulher. Aristeu era magro, alto, desengonçado, com um gogó saliente, nunca tinha arrumado namorada.
Casaram e mudaram. Aristeu comprou um apartamento na Barra, financiado, e um carro zero. Estava ganhando uma boa grana mas trabalhava como um condenado para pagar tudo. Engordou e ficou menos desengonçado. Até o gogó diminuiu.
Mesmo assim, Aristeu continuou vindo todo fim de semana tomar uma cerveja. Quando o Botafogo jogava no domingo, íamos junto. Durante a semana não dava por causa do trabalho. Beatriz só aparecia nos aniversários da mãe e do pai. O Humberto continuava duro, mas Aristeu dava-lhe uma força, escondido da mulher. Beatriz continuava gostosa. Ainda mais.
Quando o primeiro filho nasceu, fui o padrinho. Tive a impressão de que Beatriz não gostou muito, sem classe e meio doido. Bela festa, garçons, muito uísque e canapês. Foi a primeira vez que fui à casa deles. Apartamentaço.
Padrinho tem obrigações e passei a ir lá, levar o moleque para passear, brincar com a bola, que intimidade a gente pega de pequeno. Era tempo do moleque ganhar um irmão, mas eles nada.
Um domingo, Aristeu não compareceu. Estranhei, porque era dia de jogo com o Fluminense, o Bota era favorito e Aristeu tinha muita birra com o Fluminense. Foi até bom, porque perdemos. Roubados, mas perdemos.
Na segunda feira, quando estava fechando a sapataria, Aristeu apareceu. Gravata aberta no pescoço, um bafo de bebida de dois metros. O gogó tremendo. Beatriz tinha saído de casa. Não queria exibir a dor no botequim e sentamos ali mesmo, nos fundos da sapataria, cercados de caixas.
A gente andava brigando muito. Mais ela comigo. Diz que eu sou chato, medíocre. Medíocre, eu? Dei tudo para ela! Tudo!
As lágrimas corriam. Eu, embaraçado. Pensei em perguntar como iam as coisas de cama, mas tem coisa que não se indaga.
Mulher que larga o marido vai para a casa dos pais. Beatriz não, foi para um flat. Mas, na semana seguinte era o aniversário do Humberto e apareci por lá.
Achei Beatriz meio acabadinha. No meio da noite, puxou-me de lado e despejou um jorro de ódio. De que, não dava muito para entender. Da vida mansa que levava? Da chatura do Aristeu? Mas, esperava o que? O príncipe encantado no cavalo branco? Mas não disse nada, fiquei ouvindo.
O divórcio era uma guerra. Os pretextos eram os de sempre: dinheiro e filho. No fundo, era Aristeu inconformado com a separação.
Acompanhei a guerra de perto. Meu afilhado andava derreado. Aristeu estava um lixo, Beatriz nem tanto. Eu, a única testemunha. Aristeu sumiu do botequim e disse que tinha tirado uma licença de saúde no trabalho.
Andava precisando de um dinheirinho e resolvi fazer uma liquidação. Estava arrumando a vitrine quando Aristeu entrou. Tinha um papel na mão e só faltava babar.
Você ainda tem aquele revólver? A vagabunda! Vagabunda! Com aquela conversa de espaço, tédio, identidade! Me corneando pelas esquinas! Vaca! Mas eu acabo com ela! Mato ela! Descubro quem foi e mato ele também! Depois, me mato!
O papel era uma carta. Dizia que Beatriz tinha-lhe plantado chifres de montão, quando ainda eram casados. Não dizia com quem. Não tinha assinatura. Aristeu também tinha mudado e a carta tinha chegado no apartamento novo. Impressa em papel branco.
Estava na cara que não ia dar o revólver para Aristeu. Se ele quisesse já tinha arrumado um. Mas fiquei muito puto. Fazer isso com meu amigo?! Pai do meu afilhado!
Carta anônima é coisa de viado. Amigo, se é para dar um toque, puxa no canto e dá. Mas eu, num caso desses, não daria. Ninguém está livre disso. Se tivesse alguma intimidade, daria um epa, um aviso, na mulher.
Fomos para o botequim e ficamos bebendo até fechar. Levei o Aristeu para minha casa, para ele não dormir sozinho. Depois, passei na loja e peguei o revólver. Não devolvi a carta.
Na manhã seguinte, pus o revolver e a carta no porta-luvas do carro e fui procurar meu sobrinho Onofre, que entende de computador. Depois, fui até o antigo apartamento de Aristeu e Beatriz. O porteiro me confirmou que Aristeu não tinha vendido nem alugado, só fechado por uns tempos. Continuava indo ali pegar a correspondência.
Dali, fui até o tal flat de Beatriz. Era de manhã, horário de escola. Pus o revolver no cinto, encoberto pela camisa e a carta no bolso. O porteiro me conhecia das vezes que fui pegar o moleque, mas não me viu entrar.
Ficou espantada em me ver – o moleque não estava. Tinha desistido de ser loura. Estava descalça, de short e camiseta. Sem sutiã. De tirar o fôlego! O lugar era pequeno, mas bem arranjadinho. Empregada não tinha.
Sentei na poltrona e deixei o sofá para ela. Aceitei o café. Quando trouxe, percebeu o revolver em baixo da camisa. Ficou pálida e sentou devagarzinho.
Eu fiz que não percebi e perguntei pelos pais dela. Depois, nessa onda de família, contei de meu tio Cândido. Que tinha matado a mulher porque achava que ela tinha passado ele para trás. Achava, porque nunca foi provado. Mas tinha desgraçado os filhos, meus primos. Ela passou a ponta da língua nos lábios. Não tirava o olho da minha cintura. Disse que era um absurdo. Eu concordei. Mas a vida era assim, cheia de absurdo.
Tirei o revolver e coloquei em cima da mesa, entre os dois, cano virado para ela, mão apoiada na coronha. Ela meio que levantou, mandei sentar e ficar quieta. Com a outra mão, estiquei a carta para ela.
Aristeu é meu amigo. Meu irmão. Recebeu essa carta. Lê.
Ela mal olhou o papel.
Diz aí que você dava mais que chuchu em cerca. Quando ainda eram casados.
Confirmou com a cabeça.
Está confirmando o que? Que pôs chifre no Aristeu?
Ela não conseguiu falar, só abanou a cabeça.
Tem namorado?
Novo abano.
Peguei o revólver e afundei o cano entre os seus peitos. Ela foi recuando para dentro do sofá, até que chegou no encosto, a cara branca, os olhos fechados bem apertados.
Foi você quem escreveu a carta.
Sacudiu a cabeça. Eu apertei o cano do revolver até o osso.
Se eu abrir essa bosta de computador e achar essa carta em meus documentos aperto o gatilho…
Apertou ainda mais os olhos e prendeu o fôlego. Eu continuei:
Só você sabe o novo endereço do Aristeu… Vou perguntar pela última vez! Foi você quem escreveu?
Abriu os olhos, toda encolhida. Confirmou com a cabeça.
Pra sacanear o Aristeu?
Pra ver se ele me esquece.
Porque acha que ele não é homem capaz de uma besteira? Só não fez porque eu segurei! Queria te matar e depois se suicidar! É burra mesmo! Não percebe que o Aristeu é apaixonado por você?
Ela arregalou os olhos e abriu um pouco a boca, espantada, sem dizer palavra. Ia levantar mas eu empurrei de volta para o fundo.
Mas eu, eu sou capaz de muita besteira e sou amigo dele. Amigo pra mim é sagrado! E não tem ninguém para me segurar!
Não tirava os olhos do revolver e respirava com dificuldade. Segurei o seu rosto e obriguei a me olhar.
Essa briga faz mal ao meu afilhado, entendeu?
Peguei pelo braço e levantei-a, sem largar o revólver. Mandei ligar o computador e me mostrar a carta. Estava lá.
Escreve outra carta. Igual a que foi para o Aristeu. Endereçada para você. Dizendo que ele te corneava. Aí!
Fez o que mandei. Justiça seja feita, sem choro nem nada.
Agora, telefona para o Aristeu e faz uma cena.
Foi uma boa cena. Leu a carta no telefone. Xingou, chamou de canalha, mau caráter. Que aquilo confirmava que a coisa mais certa que fez na vida foi largá-lo. Que se arrependia de não tê-lo corneado quando ainda eram casados.
Peguei uma cópia da carta. Não dissemos palavra, mas me levou até a porta.
Domingo último, Aristeu apareceu cedo no botequim. Me levou para um canto e encheu nossos copos.
Mano, como tem gente má! Imagina só, Beatriz também recebeu uma carta igual. Tudo fofoca. Carta anônima é isso aí, não dá para confiar! Agradeço muito você ter me segurado. Podia ter feito alguma bobagem, e aí, como ficava? Já imaginou o remorso? Aliás, depois disso, as coisas com Beatriz melhoraram. A gente tem conversado… Outro dia ela perguntou por você.
Mas já estava na hora de ir para o jogo e não soube o que a Beatriz queria comigo. Gosto de vida em paz, não perguntei. Mas pensei que, se ela e Aristeu continuarem separados, ela não vai mais ser mulher de amigo meu.
Sangue e Fala
Os Restrepo eram muitos, quase inumeráveis. Para distinguir-se, como os nomes se repetiam, usavam apelidos. Também, dissera-o Restrepo Pai, os apelidos eram mais sensatos que os nomes : refletiam algo da personalidade, interna ou externa, do apelidado, enquanto o nome era arbitrário, dado que era...