Sangue e Fala
Para Ana, esperando ter atendido.
Os Restrepo eram muitos, quase inumeráveis. Para distinguir-se, como os nomes se repetiam, usavam apelidos. Também, dissera-o Restrepo Pai, os apelidos eram mais sensatos que os nomes : refletiam algo da personalidade, interna ou externa, do apelidado, enquanto o nome era arbitrário, dado que era impossível saber, ao levar o bebê à pia batismal, se, mais tarde, teria cara de Anselmo ou Hermengarda. É verdade que, algumas vezes, o apelidado mudava ao longo da vida e o apelido perdia o sentido, até mesmo para o dono. Outras vezes, o apelido apanhava só uma parte do apelidado. Entre outros, havia, entre os Restrepo, Rodrigo o Boi e Hilário o Gago.
Foi Rodrigo o Boi quem mudou a vida de Hilário o Gago. Franzino e impedido de falar, Hilário cresceu no deboche dos primos e tios e, mais disfarçadamente, no desprezo do pai. Cuja língua solta levara-o a uma carreira política na Capital. A mãe de Hilário, decepcionada com aquele primogênito enfezado, em uma família em que a saúde era obrigatória, dedicara-se aos vários irmãos e irmãs que, pontualmente, a cada ano o sucederam, todos, a seu tempo, adequadamente falantes. Aos poucos, todos foram se esquecendo da existência de Hilário, até que, numa tarde de chuva, sem ter nada que fazer, Rodrigo entrou numa das salas e viu o sobrinho idiota frente a um tabuleiro de xadrez. Para seu espanto, era um problema que Hilário estava resolvendo. Por curiosidade, Rodrigo propôs uma partida.
O menino era um jogador maduro. Ponderava cada lance e jogava sem hesitação. Tinha, para cada partida, uma estratégia. Ganhou todas. O prazer que sentia ao ganhar era visível, embora tentasse disfarçar.
Se o físico de Rodrigo justificava o apelido, a inteligência e o afeto iam além. Apiedou-se do sobrinho e, estudante de medicina, fez vários testes com o garoto. Não obteve nenhum resultado que esclarecesse a gagueira. Intrigado, propôs levar o menino para a cidade, para fazer outros exames. O irmão e a cunhada manifestaram gratidão, embora duvidassem se o trabalho pagava a pena.
Na cidade, Hilário descobriu que, contra tudo que lhe haviam dito, era inteligente. Mas a gagueira não cedia. Nada de físico se descobriu e Hilário resistiu a todo tratamento psicológico. Se o preço da cura era abrir-se a estranhos, gago ficaria.
Depois, Hilário descobriu os dinossauros. Solteiro, sem saber como distrair o sobrinho, um domingo Rodrigo o levou ao Museu de História Natural. Ao passarem pela sala da pré-história, Hilário empacou. Abriu a boca e ficou olhando o esqueleto. Voltou dias seguidos. Aprendeu a desenhá-los. Lia tudo o que encontrava sobre o assunto e, para isso, voltou-se para outras línguas.
Ao mesmo tempo que alimentava a paixão do sobrinho, comprando-lhe livros e ouvindo com paciência o seu sofrido entusiasmo, Rodrigo ocultou da família o que ocorria, temeroso que internassem o sobrinho como louco. Assim, foi o único que não se surpreendeu quando Hilário, tendo concluído os cursos normais, anunciou que ia estudar paleontologia. Aos pais, antes de partir para o exterior, Hilário deu como única explicação o fato de ninguém saber, nem poder saber, que sons emitiam os sáurios .
Em outras línguas, sua gagueira limitava-se a uma dificuldade em dar a partida nas frases. Mas, na língua natal, especialmente quando se tratasse de afetos, ainda era o Gago. A única exceção eram as conversas com o Boi, que rebatizou, para sempre, de Tio Rodrigo.
Ao longo dos anos foram mantendo, o tio e o sobrinho, uma correspondência regular, cada qual com sua paixão. Enquanto Hilário dedicava-se aos fósseis, Rodrigo cultivava os prazeres da carne. Literalmente: detestava saladas, frutas e outros vegetais, talvez por reação ao apelido. Desprezava o colesterol e as dietas e, a medida que envelhecia, mais justificava o apelido. Também em mulheres apreciava as carnes e casou-se com uma enfermeira de ampla cubagem e temperamento plácido. Coincidiu o casamento com a Grande Partilha, após a morte de Restrepo Pai, e nessa, Rodrigo herdara extensas pastagens. Nelas se dedicou a criar carneiros e a cultivar sua outra paixão : a clínica geral. Construiu um anexo à fazenda para abrigar o consultório, comprou uma ambulância e equipou-os com o que de mais moderno havia. Atendia por quilômetros ao redor, freqüentemente sem nada cobrar. O pai de Hilário, em vão, tentou convencê-lo a entrar para a política.
Na Partilha, Hilário o Gago descobriu que, uma vez mais, fora esquecido. Embora o que tivesse herdado fosse suficiente para suas necessidades, era ínfimo em comparação com o que outros haviam recebido. Quis expressar seu ressentimento doando o legado a instituições de caridade, mas Rodrigo o dissuadiu.
Uma vez por ano, pelo menos, Hilário ia visitar o Tio. Na fazenda tinha um quarto, seu. Saía de onde estivesse, desertos da Austrália, museus da Europa, e ia passar um mês, conversar, comer carne de carneiro e reabastecer-se de afeto. Com o trabalho confirmara a solidão. Dos membros da profissão recebia estima e consideração pela competência, mas dele, achava, não gostavam. Talvez, porque os visse mais como competidores que como colegas. Pensara ter paixões, mas a língua e as emoções embaralhavam-se. Algumas vezes ia a prostitutas. Escrevia, com letra miúda, poesias torrenciais, longamente trabalhadas, que arquivava numa caixa de ferro, trancada a cadeado, guardada em baixo da cama, no quarto da fazenda. Consolava-se imaginando tratar-se, apenas, de um desencontro e ia, lentamente, esculpindo na mente o sonho do acerto, que, tinha certeza, estava por vir. Dessa paixão, que se agitava sem rumo, nada transpirava, nem para o Tio, que se preocupava com sua solidão.
A família, Hilário aboliu. Voltaram a ver-se quando a tragédia atingiu o Tio. Veio como um câncer, que lhe levou a mulher em poucos meses. Hilário largou tudo e ficou ao seu lado, vendo-o emagrecer sob a dor e o peso da culpa, de não ter percebido a doença a tempo e não poder curá-la. O enterro reuniu a família. Fechado no quarto, Hilário esperou que partissem. Quando terminou, choraram, ele e o tio, juntos, as primeiras lágrimas desde a infância.
Na semana seguinte ao enterro, Hilário recebeu uma carta do Smithsonian propondo-lhe a busca de toxodontes. Mamíferos, parecidos com o hipopótamo, à exceção do focinho, que era semelhante ao do rinoceronte, os toxodontes não tinham grande apelo. Nada comparável aos grandes sáurios com que sempre trabalhara. Mas o projeto tinha uma grande vantagem – a escavação seria perto, para seus padrões de distância, da fazenda. Em dois dias de carro, dirigindo sem parar, dava para ir. Ficou mais dois meses na fazenda, velando o Tio e, quando o viu comer o primeiro carneiro, concluiu que podia partir.
Em outras épocas, os toxodontes viviam à beira de lagoas e rios. A água, porém, secara há muito, e o deserto a substituíra. Apenas na estação de chuvas a água voltava, e com raiva, inundando tudo por três meses, até desaparecer de novo, tragada pelo chão. A revolução que causava no terreno era útil para desenterrar restos há séculos sepultos, mas enquanto durassem as chuvas, era impossível trabalhar. Ressecado pelo sol, frustrado pelos poucos achados, Hilário saudou as chuvas e começou a volta à fazenda.
Ao passar pela cidade para apanhar a correspondência, achou uma carta do tio. Era um ritual que se renovava a cada expedição e, ali, indicava a ressurreição. Mas estranhou o pedido. Na sua letra redonda e grande, Tio Rodrigo pedia-lhe que fosse a Santa Bárbara das Missões e procurasse notícias de um convento de uma obscura ordem, destruído por um incêndio em 1909 ou 1910. Queria também que tentasse saber se uma freira ou noviça chamada Clara Guzmán tinha por lá vivido e morrido nesse incêndio.
Santa Bárbara acrescentaria pelo menos dois dias de viagem, por estradas que não conhecia, mas que sabia serem ruins. Tentou telefonar para o tio, apesar do PS, que prometia explicações quando chegasse. Quando a telefonista informou-lhe que um cabo havia caído, desistiu.
Santa Bárbara era pior do que imaginava. Levara um dia e meio para chegar ao meio do nada. Pequena, feia, com uma rua principal onde arremedos de edifícios modernos, de oito pisos, haviam substituído as antigas lojas de armarinho e alimentos. Finalmente, achou a Igreja Matriz, cujo tamanho sugeria uma opulência passada insuspeitável. Apesar das dimensões do prédio, havia um ar de pequenez. Talvez, imaginou, fossem os santos mirrados, a modernidade datada dos vitrais. Que fé, indagou-se, isso pode inspirar? O padre não estava e resolveu esperá-lo na sombra do átrio.
Demorou uma hora, mas chegou. Era miúdo e calvo. A batina podia ter sido lavada há algum tempo. Hilário foi recebido sem entusiasmo, mas a irritação com o iminente desperdício da viagem, ou algum dos santos esquecidos, inspiraram-no. Quando disse que se tratava de uma herança, o padre entendeu. Sim, uma herança justificava uma pesquisa, mesmo tanto tempo depois. Sim, havia registros que remontavam à metade do século anterior, quando Santa Bárbara fora um rico empório de algodão, antes que a praga acabasse com tudo, até com a fé das pessoas.
E o livro, velho e coberto de pó, registrava a existência do Convento das Servas do Coração de Maria. Um convento pequeno, composto de uma madre-superiora e de vinte freiras, sem contar as serventes. Destruído completamente num incêndio, na véspera de Natal de 1909. Haviam sobrado apenas as fundações, depois cobertas pelos paralelepípedos. Ficava onde, hoje, são os fundos da Rodoviária. O livro trazia também os nomes das duas madres-superioras que o haviam dirigido e das freiras. Seus nomes seculares e religiosos. Algumas mudavam o nome, mas Clara Guzmán virara apenas Irmã Clara. Talvez relutasse em deixar o mundo. De todo modo, vivera pouco – ao morrer no incêndio tinha vinte anos. Entrara no convento onze meses antes. Não se dizia porque. Fé? Fora a última a entrar. Por via das dúvidas, anotou o nome das outras e respectivas datas de nascimento e entrada. Todas estavam lá havia, pelo menos, três anos e nenhuma tinha menos de quarenta anos. Que teria sentido aquela menina, no meio delas? Que cara teria? Para que queria o Tio aquelas informações?
Aquele registro burocrático de uma tragédia, o desperdício de uma vida, incomodou-o tanto que fechou o livro bruscamente, levantando uma nuvem de poeira. Agradeceu ao padre e deixou uma contribuição para as obras de melhoria da Igreja. Pelo bafo do padre, suspeitou que, na verdade, a coleta fosse destinada à compra de vinho. Que talvez fosse santo.
Obsessivo e ocioso, resolveu ir ao jornal. Era um prédio pequeno, do início do século, que, à época, fora azul claro. Orgulhavam-se de sua coleção completa, mesmo que ninguém a utilizasse, exceto o Professor Gastão, que estava escrevendo a história da cidade. Ali achou mais, mas pouco. O incêndio tivera causas inexplicadas. Apesar dos esforços dos valorosos soldados do fogo, fora impossível apagá-lo. As freiras estavam no claustro e os corpos estavam tão queimados que fora impossível distingui-los. O Sr. Bispo viera oficiar a missa do enterro. Entre as mortas, havia duas da cidade. Clara Guzmán era uma delas. Filha de Alfredo e Maria do Pilar, ele negociante de alimentos, ela do lar. Tinha três irmãos, menores. Todos tristíssimos, mas consolados porque se fizera a vontade de Deus e ela estava com os anjos. Rangeu os dentes.
O Sr. Gastão era professor aposentado. Esperava que o registro das glórias passadas de Santa Bárbara servisse de inspiração para os alunos, que só pensavam em sair dali para outros lugares, mais modernos. Hilário concordou que era difícil que fossem mais felizes nesses lugares. Sobre o Convento, o Professor sabia pouco. Queimara no ano do seu nascimento. Não tinha qualquer valor arquitetônico especial. Lembrava-se apenas de uma coisa : quando era menino, dizia-se que o terreno era mal-assombrado, que os fantasmas das freiras sugavam o sangue de quem passasse por lá à noite. Depois, os paralelepípedos haviam coberto a imaginação .
O registro civil pouco acrescentou. Alfredo Guzmán morrera dez anos depois da filha e a mulher seguira-o cinco anos depois. Encontrou o registro de óbito de um dos irmãos, três anos mais tarde, morto num acidente. Não procurou os demais.
Era o fim da tarde e resolveu ir até o cemitério. Num túmulo horrendo, protegido por um anjo de asas abertas, achou o nome da madre-superiora. Os outros nomes estavam apagados. Da família Guzmán, não havia rastro.
Cansado, hospedou-se no hotel principal da cidade. Ao preencher a ficha, hesitou ante a “profissão”. Pesquisador ? Necrófilo ? Optou por professor. Passou a limpo suas anotações. Comeu mal e teve pesadelos. Sonhou com o fogo e uma mulher loura que gritava. Ao raiar do sol retomou viagem.
Chegou a uma encruzilhada, onde havia um posto de gasolina. Estava muito cansado e resolveu parar. Sabia que, se fosse pela direita, em uma hora chegaria à fazenda que fora de Pai Restrepo e que, agora, era do tio Emílio, o Conservador. Pela esquerda, levaria mais quatro horas, correndo, para chegar à casa de Tio Rodrigo. Resolveu comer no restaurante do posto.
Trataram-no com a maior deferência. Não porque o conhecessem pessoalmente, mas porque era, sem dúvida, um Restrepo. Com os anos, desenvolvera o físico da família, alto, pesado, o rosto moreno de nariz adunco, testemunhando algum mouro perdido no tempo. No seu caso, o sol e a vida nas escavações haviam-no reforçado e curtido. O menino franzino só ficara dentro dele. Ao olhar-se no espelho do banheiro, descobriu um fio branco na espessa barba preta. Deixou-o ficar, com a esperança que preanunciasse a paz da maturidade.
Dormiu uma hora na própria camionete e seguiu viagem, para a casa do Tio Rodrigo. Sabia que, na outra fazenda, seria bem recebido, mas sentia calafrios ao pensar em voltar. Os primos e ele haviam envelhecido, ninguém o escorraçaria, debochando da gagueira, mas a língua continuava presa e a humilhação também. Havia muitos anos lá que não ia. A última vez fora para a Grande Partilha. Choveu pesado no caminho.
Chegou de madrugada, mas a luz da varanda estava acesa, como sempre. A porta do quarto do Tio estava fechada, sinal de que estava em casa. Conforme os códigos, a do seu quarto estava aberta. Fechou-a e abriu as janelas. Fazia um calor pesado, prenúncio de mais chuva. Despiu-se, verificou se a caixa de metal estava em baixo da cama, com o cadeado fechado e, cumpridos os rituais, foi tomar banho. Era um dos luxos da casa do Tio, a grande banheira de metal verde, esmaltada por dentro, com patas de leão, especialmente depois dos meses desérticos. Mas, ao deitar-se na água quente, teve uma indefinida e curiosa sensação de outra presença.
Sonhava pouco e mal. Em geral, eram pesadelos pré-históricos, como um que o acompanhara por muitas noites, em que um monstro, formado por um corpo de pterodáctilo e uma cabeça de tiranossauro, arrastava-se pelo chão, tentando levantar vôo, sem conseguir. Naquela noite, porém, o sonho era claro. Havia uma mulher loura, de pé, ao seu lado. Era lindíssima, mas quando ia estender os braços para abraçá-la, não conseguia, porque pesavam como pedras.
Acordou com o sol alto e a sensação do sonho ainda presente. Não encontrou o Tio. Apenas um bilhete, na mesa da grande sala de refeições, em que o Tio se desculpava – tivera que ir ver um doente e voltaria para o almoço. Havia, também, um curioso pedido – que não usasse o consultório. Como não costumava fazê-lo, estranhou. A velha empregada fez-lhe grandes festas, tentou dar-lhe muita comida, mas mostrou-se reticente em dar-lhe informações quanto à saúde do Tio. Para espantar a preocupação, mandou selar um cavalo. No campo, as ovelhas e os peões tinham a cara de sempre. Conhecia quase todos e, finalmente, encontrou quem procurava – Albano, o capataz. Estava com o Tio desde o início, mas era um índio velho e desconfiado, quase monossilábico. Comentou, porém, que o Patrão estava preocupado e que haviam roubado duas ovelhas, recentemente. A sensação do sonho acompanhou-o, embora tentasse não pensar nela.
Tio Rodrigo esperava-o na varanda, com um abraço apertado. Recuperara o velho peso, mas haviam novas linhas de preocupação em volta dos olhos e uma indefinível excitação.
Os almoços na fazenda eram frugais, em contraponto aos jantares. Presidia-os a regra de evitarem assuntos complexos. Fazia parte do ritual entre os dois o Tio interrogá-lo sobre as escavações; mas, dessa vez, depois de umas poucas perguntas, foi para a visita à Santa Bárbara. Hilário passou-lhe as anotações que fizera e percebeu que a leitura o perturbou. Parou de comer por um tempo – o que era extraordinário – e ficou balançando a cabeça, olhando para o nada. Agradeceu-lhe sumariamente, guardou o papel cuidadosamente no bolso e passou a falar do cotidiano da fazenda, até que Hilário mencionou o roubo das ovelhas. Já haviam chegado ao café, e o Tio, levantando-se, levou-o até a grande sala de estar. Era um sinal de crise.
A sala era o repositório das antigas glórias da fazenda, onde Tio Rodrigo concentrara os melhores móveis da decoração antiga, depois de modernizar o resto. Lá estavam os ouros e pratas, as porcelanas e, até mesmo, retratos de família. Em um canto, o mais alto da casa, havia duas grandes bergères, das quais, mesmo sentados, dava para ver a longa planície, coalhada de ovelhas. Para lá o Tio refugiava-se, quando necessitava meditar ou para conduzir as negociações mais intrincadas da criação e venda de ovelhas.
Tirou o papel do bolso, desdobrou-o e releu-o. Olhou para o sobrinho e parecia perplexo.
– Essa nossa mania de verificar as coisas… talvez não seja boa. Algumas vezes, acreditar ou desacreditar, sem mais, é melhor.
Hilário não comentou, porque sabia que o Tio era dado àquelas generalizações evasivas, especialmente as que levavam a longas discussões sobre ética e filosofia. Com o tempo, o hábito piorara. Se não aceitasse a provocação, o Tio acabaria por ir ao assunto.
– Há um mês e meio, fui fazer um parto. Partos são o que mais gosto. Foi tranqüilo – a mãe era de bacia larga, o bebê estava em posição e nasceu um belo guri, moreno e cabeludo. Já tinha anoitecido, mas, como estava de bom humor, peguei, para voltar, a estrada velha, dos contrabandistas, que é mais arborizada. Vinha com a janela aberta, para sentir o perfume das plantas. Perto da encruzilhada, comecei a ouvir algo esquisito. Não era bem ouvir, era mais sentir alguma coisa no ouvido.
Você lembra da encruzilhada? À direita a gente quebra para a fazenda, à esquerda vai para a fronteira, no meio há uma enorme figueira. Bem na figueira, havia um carro batido. Destroçado. Com a luz dos faróis, vi uma mulher, em pé, do lado do motorista, tentando puxá-lo para fora do carro. E dava uns gritos agudos, quase inaudíveis.
Parei, é claro, e fui ajudar. Parecia uma mocinha. Estava muito pálida e tinha o rosto marcado de sangue. Dos olhos até o queixo. Ficou assustada quando me viu, mas, quando lhe disse que era médico, se acalmou. Quis examinar seu rosto, mas não deixou. Que não era nada. Que a ajudasse com o companheiro. Como não vi sinal de cortes, fui tentar tirá-lo do carro. Estava fumegando e tinha medo de que explodisse.
Finalmente, conseguimos tira-lo. Estava totalmente inconsciente. Colocamos na maca e o levamos para a ambulância. Achei-o até leve, quando percebi que era ela quem estava com o grosso do peso. Fiquei admirado, porque parecia franzina. Lembro-me de que pensei que o amor dá forças às pessoas. Ela não falou, mas sabia que eram namorados.
Na ambulância, assustei-me com a palidez dela. Branca como papel, achei que ia desmaiar. O rapaz parecia grave e eu precisava de calma para examiná-lo. Mandei que sentasse no banquinho e abri a geladeira para pegar água.
Fez uma pausa, hesitando antes de continuar.
– Levo sempre umas bolsas de sangue, caso precise duma transfusão. Antes que eu pudesse fazer um gesto, ela pegou a primeira bolsa, rasgou-a com os dentes e tomou-a, toda. Como quem bebe um refrigerante. Aí, deu um suspiro fundo e sorriu. Os caninos eram maiores que o normal.
Acho que só aí percebeu o que fizera. A cor do rosto estava voltando ao normal. Pegou minha mão entre as suas e disse : “Por favor, cuide dele. Depois eu explico tudo”.
Hilário quis falar, mas não conseguiu. O Tio olhou-o e suspirou.
– Você já me disse que sou médico antes de tudo, até de criador de ovelhas. Fui ver o rapaz. Parecia muito grave. Estava vivo, mas sem qualquer reflexo. Expliquei a situação para ela e sugeri que o levássemos a um hospital. Ficou aflitíssima com a idéia.
“Não não. Não podemos”, me dizia. “Não vou poder ficar perto dele. Não vão deixar. E vão pegá-lo e matá-lo”.
Contou que o rapaz era traficante de drogas e fizera um grande desvio para fugir com ela. Mas ela achava que os donos da droga já haviam percebido e estavam atrás deles. Quando cheguei, ficou em pânico pensando que fossem eles.
Cada época tem as histórias românticas que pode.
Rodrigo fez outra pausa.
– Aí, suspeito, fiz uma loucura. Ou uma bobagem. Até agora não sei. Sempre fui um cidadão cumpridor das leis. Mas que leis valem num caso desses? Passei horas perguntando por que. Pode ter sido pena, ou romantismo, ou curiosidade. Desde que Liz morreu, minha vida tem sido um vazio.
O fato é que me ofereci para examiná-lo melhor no consultório. Dali, poderíamos sempre remove-lo para um hospital, no dia seguinte.
Só que, no dia seguinte, enquanto ela estava dormindo, chegou um carro aqui na fazenda. Dentro, estavam quatro homens. Saltaram todos e, enquanto dois olhavam em volta, com a desculpa de se espreguiçarem, os outros dois, os que estavam sentados na frente, vieram falar comigo.
Disseram que eram da polícia. Se fossem, preferiria chamar os bandidos. Perguntaram pelo carro e pelo casal. Eu não sabia de nem um nem outro. Pareceram acreditar e foram embora. Depois, Albano me disse que ficaram rodando pela vizinhança.
No dia seguinte voltaram. Tinham achado o carro. Expliquei que quase ninguém usa aquela estrada – só o pessoal que quer cruzar a fronteira sem passar pelo posto. O casal podia ter andado ou arranjado carona num caminhão. Ninguém podia saber.
Rondaram mais um dia e, depois, sumiram.
Mas eu não podia levá-lo para um hospital.
Ficou um tempo quieto, pensando.
– Estou mentindo, Hilário. Ou, pelo menos, me enganando. Eles ficaram porque eu quis. Porque tinha uma enorme curiosidade de conhecer uma vampira.
Levantou-se.
– Ainda estão aqui. No anexo do consultório.
Hilário lembrou-se do bilhete.
– Quer vê-los?
Ao destrancar a porta, Rodrigo virou-se e avisou :
– Não faça barulho. Ela está dormindo.
Na porta da salinha, Hilário teve de sentar-se rapidamente, porque tinha a sensação de que ia cair. Deitado, com um sorriso nos lábios, respirando levemente, estava o Sonho. Engasgou e teve medo de sufocar.
Não sabia quanto tempo depois, levantou-se para vê-la de perto.
Era e não era o Sonho. Era menor, mais franzina. O rosto mais afilado. O cabelo não era bem louro, mas castanho claro, cor de mel. E, ao mesmo tempo, era o Sonho.
Ficou ali, olhando-a, bestificado.
Quando o Tio o puxou pelo braço, tirou-lhe a mão, irritado. Olhou em volta, mas mal prestou atenção à figura deitada na outra cama. Precisava de ar fresco e saiu quase correndo.
Rodrigo encontrou-o na varanda, andando de um lado para o outro. Não queria e não podia explicar ao Tio o que ocorrera. Gaguejou uma desculpa e fugiu, primeiro para seu quarto e, depois, para o dorso do cavalo. Voltou ao fim da tarde.
Tomou um longo banho e foi encontrar o Tio na varanda. Já estava escurecendo e sua ansiedade subia. O Tio olhou-o longamente, preocupado. Para desconversar, Hilário perguntou :
– Quem mais sabe?
– Marta sabe que está aqui, cuidando do rapaz. Acho que Albano também sabe, mas ele não comenta. Desconfio que acham que é minha amante.
Hilário sentiu uma pontada no fígado e, logo, vergonha. O Tio, sem perceber, riu.
– Não faz o meu gênero. Muito magrinha! Mas ninguém sabe que é uma vampira. Nem pode saber!
Pela milésima vez, Hilário disse-se que o Tio estava errado. Que vampiros não existem. Que a moça devia sofrer de alguma doença rara. Lembrou-se de que o Tio não tinha diagnosticado a doença da própria mulher e envergonhou-se. Assustado, pensou que, talvez, o Tio tivesse enlouquecido. Loucos não faltavam na família, o próprio Tio sempre dizia. Mas sentiu alívio que ela estivesse a salvo dos ocupantes do carro e ficou grato ao Tio por protegê-la. Enternecido, comentou :
– Ela parece tão frágil !
– Frágil ?
Rodrigo contou-lhe o assalto.
– Eram dois pobres-diabos. Haviam sido despedidos da fazenda vizinha por pequenos roubos e precisavam de emprego. Até pensei em dar-lhes uma chance, mas Albano foi contra e, nessas coisas, respeito o que decide.
Entraram aqui à noite, depois do jantar. Marta havia saído. Estavam armados com faca. Nem revolver tinham. Encontrei-os na sala: tinham uma sacola aberta e estavam guardando as pratarias. Já não sou garoto e fiquei com medo. Mandaram-me sentar na poltrona e ficar quieto. Acho que não sabiam o que fazer comigo.
Aí ela entrou. Ao ver que era uma mocinha, um deles ficou ao lado da estante, pondo as pratas na sacola e o outro foi para o meio da sala e mandou-a chegar perto. Até disse que ela não precisava ter medo!
Sorrindo, ela foi se aproximando. Você vai ver, ela tem um sorriso esquisito. Você já viu um gato tocaiando uma borboleta ? Como se abaixa e vai de mansinho ? Até dava para ver a cauda dela abanando ! Até que chegou bem perto do sujeito. Sempre sorrindo. Não sei se de propósito, mas o último botão do vestido estava aberto. Ficaram assim, parados, um na frente do outro, ele com a faca na mão, meio sem jeito, e ela olhando-o e sorrindo. Até que, de repente, não sei como foi, ele deu um grito e vi que a faca estava na mão dela e ele segurava o pulso. De onde eu estava, parecia destroncado.
Parou para tomar fôlego.
– Aí começou o horror. Quase em câmara lenta, ela lhe deu um enorme talho no rosto. De cima a baixo. Deu um passo para trás e… lambeu a lâmina!
Franzina, não é ? Pois, de repente, tive a sensação que fosse enorme! Largou a faca e arreganhou os dentes, sibilando! Os caninos pareciam ter crescido!
Quando ela cortou a cara do primeiro, ele não pareceu acreditar. Talvez fosse o choque. Mas quando sentiu o sangue correndo, deu um berro. O outro, quando viu aquilo tudo, especialmente a cara dela, largou faca, sacola, tudo, e saiu correndo. Ela foi atrás. O cabelo solto, parecia não ter peso. O primeiro idiota foi atrás.
– E você ?
– Eu fiquei lá, sentado. Petrificado. Não queria ver.
Fez uma longa pausa.
– Ouvir foi o bastante. Primeiro, um grito. Depois, outro, Os dois foram urros – o segundo ainda pior que o primeiro. Depois, o silêncio. Silêncio total. Lá fora não havia um passarinho ou grilo piando. Um silêncio de fim de mundo.
Não sei quanto tempo fiquei sentado naquela poltrona. Até que ouvi a escada da varanda ranger. E ela entrou, limpando a boca na manga do vestido. Deu-me um sorriso e sentou na poltrona em frente, sem dizer nada. E ficou lá, com ar satisfeito, o olhar perdido para fora.
Nessa profissão, já vi muitos cadáveres. Fiz internato em pronto-socorro. Mas nunca, juro, nunca vi outros com tamanha expressão de horror no rosto! Os dois tinham a garganta rasgada e sugada. Acho que ela pegou o que saiu primeiro por trás e, aí, virou-se para pegar o segundo.
Fizeram um longo silêncio, o horror entre eles.
– O que… o que você fez com os corpos ?
– Tinha que me livrar deles. Devia ter chamado a polícia, mas não tive coragem de entregá-la. Já lhe disse, minha ética está muito confusa. Percebo que ela fez… o que fez, para me proteger. Matar alguém, para ela, não é grande drama. Imagino que uma onça não perde o sono depois de matar uma cotia. É um fato natural.
Ficou ponderando aquilo e acrescentou simplesmente, para si mesmo:
– Ela não é humana.
E para o sobrinho :
– Lembra-se da mina velha, abandonada ? Joguei-os lá. Logo, só vão sobrar os esqueletos. Quando os acharem, pensarão que caíram acidentalmente. Pobres coitados !
Fez uma pausa.
– Acho que quem convive com uma onça deve sentir o mesmo. Domesticada, sim, mas imprevisível. Outras vezes, penso que não é bem isso. Que não é uma onça, mas algo diferente. Alguém, algo, que tem um código de ética diferente.
Ficaram ali, parados, olhando as estrelas, cada um perdido em seus pensamentos, até que, sem que Hilário tivesse ouvido qualquer ruído, uma voz feminina deu-lhes boa noite.
Era o Sonho. Acordado, de pé, com um vestido preto, longo, que ia até os pés, abotoado na frente – um misto de vestido e negligê. Tinha, mesmo, um sorriso estranho, de lábios fechados, que lhe dava um ar misterioso, de Mona Lisa. Os cabelos lisos, soltos e repartidos no meio. Pele muito branca, com a tez de juventude. Sem pintura, o único adorno era um crucifixo de prata no pescoço, preso por uma corrente, também de prata. Os olhos, percebeu, eram grandes e levemente estrábicos.
– Você é Hilário, não é? O Doutor Rodrigo falou muito de você!
Falava baixo, com voz de mocinha bem-educada.
Mudo, Hilário apertou-lhe a mão. Olhava-a, arregalado, mas teve que fechar os olhos quando Tio Rodrigo anunciou, formalmente:
– Hilário Restrepo. Clara Guzmán
Teve vontade de gritar que não! Que era um engano! Clara Guzmán nascera em 1889 e morrera vinte anos depois num incêndio! Ele vira os registros, os jornais, o atestado de óbito! Estava tudo lá, em Santa Bárbara!
Felizmente, os dois outros estavam conversando algo que não ouvia. Até que ela disse para o Tio :
– Vamos ver o que acontece. Um milagre é sempre possível.
Olhando para Hilário, perguntou a Rodrigo, preocupada:
– Ele está zangado porque usei a banheira ?
Rodrigo pigarreou, embaraçado.
– Achei que Você não se incomodaria, se ela usasse a sua banheira.
Hilário sentia a confusão aumentar, mas abanou energicamente a cabeça. Podia usar a banheira, a cama, o que quisesse. Por que não iam jantar, para que pudesse sentar-se e tentar por ordem na cabeça ?
Mas ela insistiu :
– É igual a uma que havia na casa de meus pais.
Qual casa? pensou Hilário. Não em Santa Bárbara! Mas ela só acrescentou :
– Há muito tempo atrás.
Tinha vontade de sacudir os dois. Há quanto tempo atrás? Onde? Mas Tio Rodrigo apenas sugeriu que fossem jantar.
Ao sentar-se, pensou que era uma sorte que as batidas do coração fossem inaudíveis. Não tinha a mais remota idéia do que estava comendo, nem conseguia ouvir direito o que os outros dois falavam. Ou melhor, ela falava. Comia pouco, só beliscava, mas falava pelos cotovelos. Percebeu que o Tio a tratava quase como se fosse uma criança. Haviam feito um par de tentativas de integrá-lo na conversa, mas respondera tão monossilabicamente que haviam desistido, embora, por vezes, o olhassem perplexos. Quando, na sobremesa, estava conseguindo se aprumar, ela riu de algo que Rodrigo falou. Jogou a cabeça para trás e riu. Como mulher, não como menina. O equilíbrio foi para o espaço. Vira, claramente, os caninos.
Desculpou-se depois do café e foi para o quarto. Deitou-se, na esperança que, dormindo, o equilíbrio se re-estabelecesse. Ou melhor, que descobrisse, depois, que tudo fora um sonho. Até mesmo a notícia de uma alucinação seria benvinda. Mas não conseguia dormir e ficou olhando o teto, sentindo o pulsar do sangue.
Até que a porta abriu-se, silenciosamente, e Ela entrou. Não conseguia pensar nela como Clara Guzmán. Assustou-se quando o viu acordado.
– Desculpe! Não queria acordá-lo. Normalmente, não faço barulho. Ia tomar um banho e a porta do banheiro que dá para o corredor está trancada.
Tinha uma toalha na mão.
Hilário levantou-se, confuso. Ainda estava vestido. Ao vê-lo de pé, ela propôs :
– Se está sem sono, por que não vamos passear? Ainda são duas horas, temos muito tempo.
Fora, fazia muito calor. Ela lhe falava do Tio.
– Ele é uma pessoa muito boa. É tão raro encontrar humanos assim!
Hilário sentiu um desconforto e resolveu, sem saber, enfrentar a situação.
– Por que diz isso ? Você não é humana ?
Ela parou e o olhou, perplexa.
– Bem… pensei que seu Tio tivesse falado a meu respeito.
Encarando-o, sorriu, deixando ver os caninos, pequenos mas ponteagudos.
– Eu sou… diferente.
Recomeçaram a andar, em silêncio, até que Hilário voltou à carga.
– Estive em Santa Bárbara.
Aquilo desconcertou-a.
– Para que?
Mas Hilário não respondeu. Sentiu-se culpado, como de uma inconfidência ou uma indiscrição. Ela parou e encostou-se numa árvore.
– Nunca mais voltei lá. Eles ainda se lembram de mim?
Ele abanou a cabeça. Não conseguia dizer-lhe que, para todos, era uma morta.
– Meus pais já devem ter morrido. Há muito tempo. E meus irmãos?
Ele preferiu o silêncio. Ela sacudiu a cabeça e recomeçou a andar, tirando folhas de um galho.
– E que importa? Foi outra vida.
Saíram da mata e chegaram à beira do riacho que cortava a fazenda. Não havia lua, coberta de nuvens pretas. Estavam sobre uma ponte de madeira, debruçados sobre a murada, olhando o correr da água. Hilário sentia-se culpado e, talvez por isso, enternecido, mas não teve coragem de falar ou tocá-la. Ela estava perdida nas memórias. Subitamente, começou a falar. Tinha perdido o tom de menina.
– Eu era muito novinha. E muito, muito apaixonada. Íamos casar no ano seguinte. Que paixão! .
Sorriu para as águas.
– Meu irmão nos pegou na cama. Era de tarde; achávamos que todos tinham saído. Mas ele estava espionando há muito tempo e sabia. Tanto, que entrou armado. Carlos não teve a menor chance – meu irmão deu-lhe quatro tiros. Quatro! Um pegou-lhe o queixo, outros dois no peito, o último entre os olhos. Com o revolver de Papai. Não lhe deu oportunidade de pedir piedade. Lembro do barulho dos tiros no quarto e dos gritos. Só mais tarde percebi que era eu quem gritava. Meu irmão não disse palavra.
A voz ficara rouca e ela parou.
– Papi era um homem influente e abafaram o caso. Houve um processo, claro, mas era um clássico. Honra lavada em sangue. Eu queria dizer que fora eu quem seduzira Carlos, que ele queria esperar o casamento, mas não me deixaram depor. Para me poupar!
Com tanto ódio e tanta culpa, acho que enlouqueci por uns tempos. Não conseguia olhar para aquela gente, para minha família, para todos na cidade. Vê-los cumprir as rotinas do dia a dia, como se nada tivesse acontecido.
E, para eles, eu era um estorvo. Mulher e desonrada. Publicamente. Com a marca de sangue. Ninguém de boa família se casaria comigo.
O suicídio talvez tivesse sido uma solução. Mas o convento também resolvia.
Recomeçou a andar e Hilário acompanhou-a, silenciosamente.
– Foi no convento que… me iniciei. Que me transformei… no que sou hoje.
Virou-se e encarou-o.
– Em uma vampira.
Hilário sentiu a provocação e sustentou o olhar. Recomeçaram a andar e a voz dela fez-se mais leve.
– A madre-superiora era uma das nossas. E todas as outras freiras também. Isso era errado. A iniciação tem que ser muito limitada. É uma regra básica.
Hilário teve vontade de perguntar-lhe quem fizera a regra e quem zelava pelo seu cumprimento, mas não quis interrompê-la. A racionalidade da regra parecia-lhe evidente.
– Ouve-se falar todo tipo de coisa sobre conventos e, quando a madre começou a se aproximar de mim, fiquei assustada e com nojo. Até que ela me iniciou!
E, nesse momento, em seu pescoço brilharam dois pontos vermelhos.
– Até hoje, quando penso, me arrepio !
Tocou o pescoço.
– Esse é um sinal que damos, para nos identificarmos, uns para os outros.
Hilário, involuntariamente, olhou em volta. Ela riu.
– Bobo! Não há nenhum dos meus por perto, por quilômetros. E, se houvesse, eu o protegeria.
Deu-lhe a mão e Hilário sentiu o coração dar um salto. Voltaram de mãos dadas, ela falando. Os pontos vermelhos foram empalidecendo e desapareceram.
– Dei sorte naquele incêndio. Somos muito fortes, mas o fogo nos destrói. Era minha noite de saída e, quando voltei, estava tudo queimando. Com a iniciação, minha depressão tinha passado. Achei que era hora de começar outra vida. Nunca mais voltei. Até hoje, por sua causa.
A lua, com muito esforço, conseguira furar as nuvens, fazendo brilhar o crucifixo em seu pescoço. Hilário indicou-o.
– É verdade. É dessa época.
– E não lhe faz… mal ?
Ela riu.
– Por que faria? Deus está presente em nós também. Quem pode dizer qual é a semelhança de Deus? Por números ? Se quiséssemos, poderíamos ser tantos quantos vocês. Eu, mesmo se não vou à igreja, rezo todas as manhãs, antes de dormir. Mosteiros, conventos, lugares de retiro, sempre foram abrigos para nós.
Você não acredita nessas bobagens, que crucifixos nos espantam, que temos medo de alho ? É verdade que muitos acham que o sangue de quem come muito alho tem gosto ruim !
Hilário não se tinha por religioso, mas retirou a mão. Felizmente, estavam de volta à fazenda. No quarto, ouviu-a cantarolar no banheiro. Parecia um hino. Não conseguiu dormir.
Na manhã seguinte, Rodrigo intuiu-lhe a reticência, mas estava ansioso demais para um xadrez emocional e foi direto ao assunto.
– E aí, sobrinho, e a… nossa vampira?
Hilário, que sequer conseguia falar-lhe o nome, sentiu um soco no plexo e escudou-se na gagueira. Rodrigo foi-lhe ao encalço.
– Saíram de noite? Fico satisfeito. Tinha medo de que você não aceitasse.
A Hilário a idéia pareceu absurda, e indagou por que. Rodrigo olhou-o, espantado :
– Hilário, essa moça… Não sei porque digo isso…tem idade para ser, pelo menos, minha mãe, mas penso nela sempre como uma menina. Essa… senhora, já matou não sei quantas pessoas!
Mas, para Hilário, aquela questão parecia remota. Não podia imaginar Clara matando alguém. Para evitar o assunto, perguntou pelas ovelhas desaparecidas.
– Foram para ela. Ela precisa de sangue fresco. Depois, jibóia por uns tempos. Felizmente, pode passar um bom pedaço sem sangue humano.
Hilário animou-se com a notícia. Talvez, aos poucos, pudesse prescindir de sangue, desintoxicando-se, como um viciado. O Tio abanou a cabeça, desacreditando.
– Eu queria analisar o sangue dela. Tenho certeza que tem uma composição diferente. Mas ela se recusou.
Hilário prometeu-se tentar. Para sua alegria, Rodrigo acrescentou:
– Ela garante que, quando quer, quando não está com raiva, não sofrem. Ficam hipnotizados e a primeira mordida funciona como uma espécie de anestésico. Vi com as ovelhas e parece isso mesmo. Albano, claro, ficou furioso. Acha que foram roubadas e redobrou a guarda. Não sei como vou fazer para a próxima, mas talvez demore, depois do… assalto.
Estavam entrando no consultório. Depois de contemplá-la, Hilário forçou-se a desviar o olhar, para o homem que estava deitado, cercado de fios e monitores. Era ainda jovem, forte, de estatura mediana. Sem dúvida, bonito, admitiu, com uma pontada. A pele morena havia empalidecido. Além da respiração, não dava qualquer sinal de vida enquanto o Tio o examinava.
– Ao que sei, chama-se Carlos Santos. Ela diz que é a reencarnação do primeiro namorado, explicou Rodrigo. E acrescentou :
– O fato é que ela tem uma dedicação absoluta. Todos os dias, depois que levanta, lava-o todo, faz-lhe a barba e o fica olhando, até a hora do jantar. Mais tarde, quando volta, fica outro tanto. Fala muito com ele, mas nunca consegui entender o que diz.
Hilário sentiu outra lancetada de ciúme.
– E há alguma chance de recuperação ?
– Salvo milagres, nenhuma. Ë um coma profundo. Se desligarmos os aparelhos, acaba.
Hilário indagou-se, envergonhado, se o que sentia era, mesmo, alívio.
– Ela sabe ?
– Já lhe expliquei, várias vezes. Ela diz que milagres ocorrem e que tem tempo. A escala temporal dela é diferente da nossa. Se ocorreu o milagre de reencontrá-lo, outro pode acontecer. E eu, como fico? Já imaginou, eles dois, anos a fio aqui?
Mas os problemas do Tio estavam distantes e Hilário alegrou-se com a garantia da permanência de Clara na fazenda.
– Como ela o encontrou?
– Depois, vai saber em detalhe. Ela adora falar! Depois que saiu do convento, ela tinha o que você chamaria ‘um problema de inserção social’. Um ser que dorme de dia e vive de noite, e que tem o hábito de chupar sangue, tem alguns problemas. Durante muito tempo, trabalhou em hospitais, no turno da noite. Ideal, não é ? Me dá um certo incômodo, quando penso nos meus plantões noturnos. Parece que, no último, foi imprudente e começaram a estranhá-la. Aí, resolveu mudar de ares.
Foi para a capital e, óbvio, caiu na noite. Trabalhou de garçonete, mas não gostou. Tentou cantar, mas não tem voz. Pensou em ser, ou foi mesmo, nisso é meio vaga, prostituta. Mas um sujeito tentou cafetinizá-la e, como você pode imaginar, deu-se mal. Muito mal. Aí, encontrou um …primo, alguém da sua espécie, mais velho e experiente. Deu-lhe abrigo e uma solução profissional : o tráfico de drogas. Dava para operar de noite e, se sumia um de repente, não se faziam muitas perguntas. O primo estava cansado e passou-lhe o ponto.
Estava nisso havia já algum tempo, quando foi receber uma partida. O portador era o Carlos, aí. Foi o clássico coup-de-foudre romântico. Nele, paixão à primeira vista, e para ela, o reencôntro.
Estavam na varanda e Rodrigo interrompeu-se para dar instruções a um dos empregados. Hilário tentou imaginá-la na noite, mas sua cabeça recusou-se. Também não conseguia imaginá-la com aquele homem. Por fim, Rodrigo voltou.
– Tenho pena dela. Uma situação impossível. Ele, humano, ela vampira.
Hilário ia protestar, mas, a custo, se conteve. O Tio, pensando que concordava, continuou:
– Além do mais, ela se culpa pelo acidente. Acha que bateram porque o beijou quando estava dirigindo. Uma noite, perguntou-me se era uma maldição, levar os namorados à destruição? O que ia responder ?
Hilário não acreditava em maldições, mas pensou que, ao contrário, fora o destino que a levara à fazenda. A droga, porém, o preocupava. Mas Rodrigo serenou-o :
– Ela não usa. Não gosta e não tem efeito. Gostaria de saber porque… Ele não. Como muitos pequenos traficantes, ele também é usuário.
Perguntei-lhe porque não o…transformou. Respondeu que o amava assim como era, como humano. Se o transformasse, seria diferente. Concluiu que a única solução era saírem dali. Recomeçarem a vida em outro lugar, onde ele pudesse fazer um tratamento e arranjar um emprego honesto. Os valores dela são muito curiosos… Os planos eram casar e viver juntos. Se pudesse, ter filhos também. Ela acha que não pode ter. É óbvio que não pode! Claro que eu logo propus examiná-la, mas ela não aceitou. Uma pena!
Mas Hilário não estava interessado nos sentimentos do Tio. Outras emoções, mais fundas e menos entendidas, o agitavam. Ansioso, perguntou:
– Ela não pode transformá-lo, agora ?
– Pelo que entendi, com a transformação, eles ficam do jeito que estavam, fisicamente. Veja o aspecto dela ! Se o transformar agora, fica o mesmo vegetal. E ela não o quer como vampiro, quer como gente !
Hilário sentiu um claro alívio e, logo, vergonha.
Enquanto Rodrigo ia cuidar das ovelhas, Hilário ficou perambulando, sem conseguir sequer ler o jornal, esperando a noite chegar.
Durante o jantar, Clara encarregou-se da conversa, centrada, para pasmo de Hilário, nos acontecimentos da última novela de televisão. Mesmo querendo, não conseguia dialogar. Assim que terminaram o café ela se desculpou e foi, rapidamente, para a saleta de vídeo e som. Hilário decidiu acompanhá-la, para espanto do Tio. Acostumado a dormir cedo e acordar com o dia raiando no deserto, tão logo sentou-se, adormeceu. Acordou, sentindo caibras pelo corpo, na manhã seguinte.
Passou a forçar-se a dormir de dia, para estar desperto à noite. Quando acabavam as novelas, saiam a passear, ou, se estivesse chovendo, ficavam na varanda, conversando. Rodrigo, fiel aos seus hábitos matutinos, não os acompanhava.
Lutando contra a gagueira, Hilário tentou interessá-la nos dinossauros. Queria que entendesse o prazer de reconstruir um animal a partir de alguns ossos. Que apreciasse as controvérsias sobre sua extinção. Percebeu, porém, que o silêncio com que o ouvia era de simples polidez. Se não fosse gago, desesperava-se, se as palavras não grudassem na garganta, se o pensamento não fosse tão mais rápido que a fala, conseguiria aproximar-se, faria com que ela visse as coisas a seu modo. Durante o dia, ensaiava discursos que, tinha certeza, a comoveriam, mas, à noite, a seu lado, sentia formado o detestado funil e as palavras embrulhavam-se-lhe na boca. Impotente, tinha pavor de que ela risse de seus esforços e amava-a por nunca interrompê-lo, completando alguma frase. Um dia, desesperado, pôs-se a falar-lhe em inglês, mas descobriu que ela não entendia qualquer língua estrangeira.
Com os desenhos teve mais sucesso, mas era uma curiosidade efêmera, com a forma e o tamanho dos animais. Mesmo assim, o interesse que mostrou na evolução do cavalo, encheu-lhe o coração de esperança.
Até que a ouviu comentar com o Tio, pensando passar desapercebida:
– Doutor, por que o senhor não o convence a fazer algo de útil? Um homem tão forte e inteligente !
Aquilo caiu-lhe como uma punhalada, apesar do reconforto do elogio.
Foi mais feliz ao contar a respeito dos diversos lugares em que estivera. Tinha muitas fotos e podia falar pouco. Para sua surpresa, Clara passara a vida toda na área que ia de Santa Bárbara à capital. Não tivera curiosidade de ir mais longe. Ao contrário do que Hilário previra, Nova Iorque a interessava muito mais que o Deserto de Gobi. Sua ligação com a terra era menos intensa do que ele imaginara.
Aos poucos, Hilário ia percebendo que Clara, mesmo falando sem parar, não lhe revelava os segredos arcanos que devia ter. Talvez não tivesse nele a mesma confiança que depositava em Rodrigo. Brotou-lhe um ciúme do Tio quase tão forte como o que sentia por Carlos. Talvez a suspeita de Marta quanto à relação dos dois fosse correta… Não conseguia formular a frase “são amantes”, mas escrutinava-os, buscando indícios. O paternalismo de Rodrigo e a gratidão de Clara não o serenavam .
De seu passado, Clara pouco dizia. Falava muito da relação com Carlos e do futuro que teriam quando ele se re-estabelecesse. Hilário sentia uma brasa revolvendo o coração e, uma noite, enfrentou-a, furioso, rosnando em um arranque :
– Você não percebe que isso é uma fantasia ? Tio Rodrigo já não lhe disse que não tem cura ?
Ela pareceu surpresa com sua veemência e os olhos ficaram-lhe um pouco mais estrábicos.
– O que o Doutor Rodrigo disse é que ele não pode curá-lo. Mas Deus pode. Se já fez o milagre de reencontrar-nos, por que vai deixar o trabalho incompleto? Agora é um período de provação, para ver se o amo, mesmo.
E o que há de errado com fantasias? Você não passa a vida em desertos horríveis, procurando ossos de bichos que não existem? Acha um ossinho e faz um bicho maior que uma casa?
E concluiu :
– Você devia ver mais novelas, Hilário.
Mas, a partir daquela noite, passou a falar menos de Carlos. E mais de novelas.
Para Hilário, as novelas traziam ecos dolorosos de infância, quando a família se reunia em volta ao rádio. Sua incapacidade de seguir os meandros da trama era motivo de deboche. Agora, como no passado, não conseguia interessar-se por aquelas histórias. Mesmo fora das novelas, poucas pessoas o interessavam. Mas, por Clara, esforçava-se. Estavam juntos, naqueles momentos em frente à televisão.
Rodrigo percebia que algo não ia bem, mas não conseguia identificar o problema. Acreditava que, no fundo, o sobrinho o censurava pela aventura e passou a elogiar Clara, o que só fazia aumentar as suspeitas de Hilário. Até que veio o filme de vampiros.
Estavam os três na sala de vídeo, vendo o fim do jornal, quando Clara, em busca da novela, errou de canal e encontrou um velho filme de vampiros. Era um filme em preto e branco e Hilário achou as cenas grotescas. Pensou que ninguém faria um filme daqueles se conhecesse Clara. Ao virar-se para ela, assustou-se. Estava lívida, olhando fixo para a tela, o controle remoto na mão, o braço ainda erguido, paralisado. Hilário não conseguiu falar. Do outro lado, Rodrigo, delicadamente, tirou-lhe o controle da mão. Mas, antes que o acionasse, ela deu um salto e desligou a TV com um tapa. Virou-se e encarou-os.
– É assim que vocês me vêm? Como um monstro? Por que um monstro?
Hilário quis gritar e correr ao seu encontro, mas a voz e o corpo embaraçaram-se. Rodrigo, porém, levantou o corpanzil da poltrona e foi até Clara, que continuou :
– É verdade que eu mato gente! Mas para comer ou me proteger! Não sou um monstro! Não sou pior que vocês!
Rodrigo, sem falar, abraçou-a. Aos poucos, ela pareceu acalmar-se. Hilário censurava-se pela incapacidade de aproximar-se e admirava e odiava o Tio. Até que ele sugeriu:
– Meninos, porque vocês não pegam o carro e vão até a cidade?
Para alívio de Hilário, Clara deu uma risada.
Levou um susto, quando a viu arrumada. E ficou chocado. A saia era muito curta e o decote sugestivo. Tudo de couro preto, contrastando com a brancura da pele. De salto alto, chegava ao seu queixo. Cabelos presos, pintada, deixara a mocinha para trás. Rodrigo assobiou e ela rodopiou, mostrando ainda mais as pernas bem feitas. Hilário sentiu o coração apertando – um misto de desejo e reprovação.
Saíram na camionete de Hilário. Rodrigo sentou-se na varanda para vê-los partir e, acendendo um charuto, falou alto, para si mesmo.
– Meninos…! Estou mesmo ficando velho! Hilário tem quase quarenta anos e ela … E ainda mais, falando sozinho!
E ficou em silêncio, pensando na ética e nos monstros.
No carro, depois de virar o espelho e conferir a maquiagem, Clara anunciou :
– Vamos a um lugar que conheço. O dono é meu amigo, e é ótimo para dançar!
Estava alegre e, dobrando as pernas em baixo do corpo, passou-lhe o braço. Hilário fazia força para concentrar-se na direção.
Era em um beco, bastante escuro, numa zona que Hilário não conhecia, mas ela o pilotou sem hesitar. O porteiro cumprimentou-a como a uma freguesa antiga. Dentro, era menos escuro e esfumaçado do que Hilário temia. A decoração era convencional – um longo bar, uma pista de dança, mesas aos lados, as paredes com espelhos foscos. O porteiro devia ter feito algum sinal para o dono e ele veio recebê-los na porta. Era diferente de toda imagem que Hilário fazia de um dono de boate. Um homem quase tão alto como ele, corpulento, talvez no início dos sessenta, vestindo um circunspecto terno jaquetão cinza escuro.
– Bem vinda, Madame. Há muito tempo que não vem.
Clara apertou a grande mão com as suas duas e sorriu.
– Boa noite Jonatas. É bom estar de volta.
Indicou Hilário.
– Um amigo, Jonatas. Um bom amigo.
Hilário, feliz, sentiu-se medido por aquele olhar lento, seguido por um aceno de cabeça e a mão estendida.
– Os amigos de Madame são meus amigos. Estejam à vontade.
Levou-os a uma mesa perto da pista.
Hilário não tinha o hábito de dançar, mas felizmente, no início, Clara parecia satisfeita apenas em estar ali, ouvindo a música – o que lhe deu tempo de tomar um uísque duplo. E outro. Assim, quando ela sugeriu que fossem dançar, pôde aceitar sem muito medo.
Queria guiá-la, mas percebeu que o ritmo dela era mais fluído e, depois que ela sussurrou “siga-me”, deixou-se levar. Hilário dançava como lhe haviam ensinado as primas, com moças de família. Levou um choque quando ela colou o corpo ao seu. Assustadíssimo, pressentiu a ereção e quis afastar-se, com medo de ofendê-la, mas ela apenas riu contra seu peito e ajeitou-se mais.
Quando a música ficou rápida, voltaram para a mesa, de mãos dadas. As ondas na cabeça de Hilário eram um maremoto, reverberadas pela alegria de Clara.
Até que o homem sentou-se à mesa. Era um tipo de idade indefinida, magro, com um casaco esporte claro, pelo menos um número maior. Mal falou com Hilário, só para dizer-lhe :
– Com licença, amigo.
Sentou-se e dirigiu-se a Clara :
– E aí, gatinha? De volta?
Clara empalideceu e prendeu o fôlego.
Hilário sabia seu tamanho. E seu sobrenome. Os dois intimidavam. Não ia deixar desgraçado algum perturbar Clara e sua noite com ela. Também aprendera, com os anos, a dizer seu nome sem gaguejar. Levantou-se em toda a sua altura e, por cima do sujeito, estendeu-lhe a mão e anunciou “Hilário Restrepo”, antes que a mão de Clara o detivesse.
Hilário sentiu-se gratificado que ela se preocupasse com ele e pensou que, se o sujeito fosse inconveniente, cuidaria dele em dois segundos. No entanto, o estranho olhou-o, de baixo, e fez apenas menção de levantar-se. Mas apertou-lhe a mão. Era fina e seca.
– Todos me conhecem como O Magro. Muito prazer Senhor … Restepo.
Hilário, ia se sentando, desconcertado, mas não o corrigiu porque a mão de Clara o apertou debaixo da mesa.
– A moça e eu somos velhos amigos, não é verdade, gatinha?
Clara olhou-o fixo e depois sorriu um pouco.
– Claro. Velhos amigos.
A animosidade entre os dois era quase palpável.
– E o Carlos, gatinha, onde está?
– O filho da puta me largou em Buenos Aires. Sumiu. Tive que voltar para cá. Ainda deve estar por lá. Espero que arrebente!
– Verdade, gatinha? Que coisa! Vocês pareciam tão juntos!
Levantou-se.
– De todo jeito, acho que o Chefe vai querer conversar com você, gatinha. Agora, vocês dois têm, pelo menos, uma coisa em comum – acertar as contas com o Carlos!
Apoiou as duas mãos sobre a mesa e aproximou o rosto de Clara.
– Acho que hoje mesmo. Ele quer, muito, ter notícias do Carlos. Acho que seria bom você esperá-lo aqui, com o Senhor Restepo. Ou, talvez, irmos todos lá. Conversar.
Levantando-se, fez uma mesura a Hilário :
– Boa noite, Sr. Restepo. Desculpe o incômodo.
E foi para o bar.
Clara abraçou Hilário, enfiando o rosto em seu peito. A um observador, parecia uma cena de amor ou, se fosse muito atento e visse os ombros que sacudiam, uma crise de choro. Talvez tenha sido assim que O Magro a tenha interpretado. Só Hilário ouvia o ronco contra seu peito, como o de uma onça, e podia sentir os dedos apertando-lhe os braços como alicates, fazendo evaporar o uísque.
O ronco foi, aos poucos, diminuindo. Clara sacudiu a cabeça e olhou-o, dizendo :
– Você fala pouco, mas consegue falar demais!
Suspirou e, antes que Hilário pudesse se recuperar, chamou o velho garçom.
– Há um telefone público aqui ?
– Sim senhora, ao lado dos toaletes.
– Bom. Traga um bloody mary, por favor.
Antes, dissera-lhe que nunca bebia. E a quem queria telefonar?
Sem olhar para ele, Clara levantou-se e foi na direção dos toaletes. Voltou rapidíssimo e murmurou “pronto”. Foi Jonatas quem trouxe a bebida, lento, solene.
– Seu drinque, Madame.
– Obrigada Jonatas. Aquele senhor que estava antes sentado aqui, também precisa de um drinque. Bem forte.
– Vou providenciar, Madame.
– Obrigada Jonatas. Sabia que podia contar com você. Diga, há telefones aqui?
– Há um telefone público, ao lado dos toaletes, Madame.
– Esse está com o fio arrancado.
– Sempre deprecáveis esses atos de vandalismo. Mas há também um telefone no meu escritório, aos fundos do edifício.
– Talvez o senhor que estava aqui possa tomar seu drinque enquanto fala no telefone do seu escritório.
– Por certo, Madame.
Com uma mesura, o dono da boate afastou-se. Clara respirou fundo e virou-se para Hilário :
– Não olhe para ninguém. Esqueça tudo o que viu e ouviu. Com alguma sorte, vai dar tudo certo. Vamos, dance comigo.
Mas Hilário sentia sua tensão. A magia estava quebrada. Ao dar uma volta, viu O Magro, acompanhado por Jonatas, que saía por uma porta. Continuou dançando.
Pouco depois, Clara puxou-o de volta à mesa. Jonatas estava lá, de pé. De costas para a pista, fora da visão de todos, espalhou sobre a mesa chaves, carteira de dinheiro, documentos, papéis. Alguns papelotes de coca e uma navalha. Clara examinou-os em silêncio, um a um. Até que achou uma caixa de fósforos da boate, feita de papelão. No verso estava escrito “Ilário Restepo”. Devolveu o resto a Jonatas. Depois, tomou a mão dele entre as suas e apertou-a com força, sorrindo.
– Obrigada Jonatas
Pela primeira vez, ele lhe deu um sorriso. Depois, recompôs-se.
– Sempre pronto a servi-la, Madame. O que devo fazer com o corpo?
Hilário entendeu e sentiu o gosto de fel na boca.
– Deixa-lo longe daqui, no carro. Precisa de ajuda?
– Não, obrigado. Pedro é testemunha que ele saiu há pouco daqui.
Fez uma mesura para Hilário.
– Muito prazer, Senhor Restrepo.
E afastou-se.
Clara escondeu o rosto nas mãos e deixou cair os ombros. Hilário não conseguia pensar. Buscou a imagem dos dois no espelho, mas não encontrou. Finalmente, ela levantou a cabeça.
– Pague a conta, Hilário e vamos embora.
Quando iam levantar-se, ela lhe deu a caixa de fósforos, dizendo:
– Pode rasgar. Se O Magro tivesse passado seu nome adiante, ao Chefe, você não viveria uma semana.
Chovia forte quando saíram, mas nenhum dos dois parecia sentir.
No carro, Clara comentou :
– Acho melhor não comentar isso com seu tio. Vai perturbá-lo muito.
Hilário não respondeu. As idéias começavam a clarear. Pouco se lhe dava o que o Tio sentisse. A morte que causou também não lhe pesava. O que era um traficante? Tinha forjado um outro vínculo, mais forte, com Clara! Ela, afinal, mandou matar um homem por sua causa!
Estendeu a mão e pegou a de Clara, que não reagiu. Tinha os olhos fechados e não os abriu. Quando ele pigarreou, anunciando um comentário, disse, baixo :
– Por favor, Hilário, fique calado. Estou muito, muito cansada. Muito deprimida e encurralada.
Voltaram em silêncio até a fazenda. A chuva havia parado mas havia um cobertor de umidade. Clara deixou que ele abrisse a porta do carro e apoiou-se em seu braço. No último degrau da varanda, o salto do sapato prendeu no vão entre as tábuas, quebrando-se com um estalo e jogando-a para a frente. Hilário a amparou e ajudou-a a sentar-se. Ela tirou o sapato e ficou olhando-o um bom tempo. Até que começou a chorar, desesperadamente.
Hilário puxou-a contra o peito, sentindo as lágrimas quentes passarem a camisa. E começou a beijar-lhe os cabelos, confortando-a. Até que, sem se dar conta, puxou-lhe o rosto e beijou-a na boca. Clara arregalou os olhos e parou de chorar. Depois, lentamente, fechou-os e deixou-se beijar.
Exultante, Hilário ia explorando-lhe a boca, até achar com a língua a ponta aguda dos caninos e sentir um arrepio passar-lhe pelas costas. Mudando de posição, ela começar a beijar-lhe o rosto, enquanto as mãos entravam-lhe no cabelo e na barba. Fechando os olhos, Hilário foi sentindo a boca de Clara correr-lhe a testa, o rosto e descer para o pescoço. Quando sentiu os lábios na garganta, abriu os olhos e quando os dentes arranharam-lhe a pele, retesou-se, em pânico. Relaxou a seguir, mas era tarde.
Ela estava em pé, à sua frente, ofegante.
– Idiota! Estúpido! Animal! Eu só ia beijá-lo!
Duas lágrimas de sangue correram-lhe pelo rosto. E saiu correndo para dentro da casa, batendo a porta. Hilário ficou na varanda, segurando os sapatos, com a camisa ensopada de lágrimas e a morte na alma.
Em seu quarto, Hilário tirou a caixa de metal de seu esconderijo e passou a limpo todos os seus poemas. Com a mesma precisão de movimentos com que trabalhava no deserto, fez um pacote cuidadoso. Do jardim, retirou uma flor com que arrematou o laço. Aí, foi procurar o Tio. Já era de manhã.
– Queria a chave do consultório emprestada, por favor.
– Vou lá daqui a meia hora.
– Se não se incomoda, quero ir sozinho.
Rodrigo hesitou, mas entregou-lhe a chave.
Hilário sentou-se ao lado de Clara e contemplou-a longamente. Sentia a raiva turbilhonando os ouvidos. Deixou o pacote de poemas a seu lado.
Na varanda, Rodrigo perguntou-lhe :
– O que aconteceu? Você está com uma cara! Vocês brigaram?
Hilário estalou, furioso.
– Não. Não! Se quer saber, mesmo, até nos beijamos!
Rodrigo sentiu um aperto no coração. E uma grande culpa. Buscou como dizer ao sobrinho.
– Hilário, meu caro… Veja, você está cometendo um erro terrível. Clara é… diferente. Não pode dar certo…
Hilário encarou-o.
– Tio, você acha que eu devia ir embora.
Rodrigo assentiu, aliviado. De mulheres, sabia, Hilário não tinha muita experiência e percebia, agora, que Clara o tocara fundo. Culpava-se por não tê-lo percebido antes e por ter colocado o sobrinho naquele transe. Mas nada o preparara para a resposta e o ódio com que veio carregada.
– Você diz isso para ficar sozinho com ela! Pois não vou! Fico! Se quiser, terá que me expulsar!
Passaram o resto do dia evitando um ao outro. Na hora do jantar, Clara não subiu. Hilário não teve coragem de ir buscá-la, deixando isso a cargo de Rodrigo.
“ Ela se desculpou. Está sem fome”, disse o Tio, ao voltar. Ia tentar um movimento de reconciliação com Hilário, mas o olhar do outro dissuadiu-o. Jantaram em silêncio e separaram-se.
Já era de madrugada quando Hilário sentiu a mão de Clara em seu braço. Estavam na varanda. Ela tinha os seus poemas na mão. Sentiu as pernas tremerem e a antecipação de vitória. Conseguira reforjar os vínculos.
– Você deixou esses poemas para mim ?
A voz era quase um sussurro. Hilário conseguiu apenas acenar com a cabeça.
– Li todos. São muito bonitos.
Fez uma pausa, mas, antes que Hilário pudesse abraçá-la, continuou.
– Mas não os entendo.
Colocou-os nas mãos de Hilário. Com os poemas entre os dois, acrescentou :
– São muito difíceis para a minha cabeça. Mas, se tiver outros, mostre. São muito bonitos.
Afastou-se dois passos, enquanto ele ficava petrificado, com o embrulho desfeito nas mãos. E voltou.
– O que aconteceu ontem. Vamos esquecer? Você tinha bebido e estava emocionado. E eu estava mal. Me sentindo acuada. Problemas em todos os lugares. E eles ainda atrás de Carlos…
Podemos esquecer, não é verdade? Somos, os dois, adultos. E não vamos criar problemas para o seu tio…
Combinado?
E estendeu-lhe a mão. Hilário apertou-a, mecanicamente, e ficou olhando-a, enquanto ela se afastava, sem fazer ruído.
Com as lágrimas, Hilário destampou o ódio. Rasgou os poemas, lentamente, folha a folha, com um prazer estranho de sentir dor.
Sem saber onde ia, saiu na chuva e na lama. Quando deu por si, estava no posto de gasolina. Imaginou-se entrando na velha fazenda com um chute na porta, mas logo achou que era absurdo demais. Decidiu, em vez, tomar um porre, ali mesmo. A bebida já ia longa quando, no restaurante, entrou uma mulher. Roliça, loura oxigenada, parecia da vida. A Hilário pareceu, vagamente, desejável. Mais que isso, de uma forma confusa, achou que dormir com ela o vingaria de Clara.
Quase sem falar, subiram ao quarto. Deitado na cama, ainda vestido, com maus modos, mandou que ela se despisse. Não estava preparado para a resposta :
– Gaguinho, é ? Vamos ver se gagueja em baixo também !
Hilário jamais batera em alguém, antes. Ao vê-la estendida no chão, com a boca sangrando, surpreendeu-se com a sua força e com o prazer que sentia. O prazer aumentou com o choro contrito da mulher e seus pedidos abjetos de desculpas. Sem despir-se, Hilário mandou que o chupasse.. Depois, pagou-lhe o dobro do que tinham combinado e, segurando-a pelo cangote, empurrou-a fora do quarto, ainda semi-vestida.
Deitado, sentia uma grande satisfação. Percebia, agora, que sempre estivera errado. Que fora sempre bonzinho e nada levara. Acabou dormindo e sonhando com a mulher loura, que lhe abria os braços.
Voltou para a fazenda ao anoitecer do outro dia. Pensara em telefonar, avisando de seu paradeiro, mas desistira. Que se preocupassem! E sentissem sua falta.
Parecia ser o de antigamente, até melhor, menos gago. Ajudava o Tio com as ovelhas e propôs-se organizar os registros do consultório, que Rodrigo tinha preguiça de arrumar. Grato pela reconciliação e pela ajuda, Rodrigo aceitou. Com Clara evitava falar daquela noite, mas apontou-lhe no jornal as notícias da morte do Magro, para reavivar os vínculos e mantê-la presa na fazenda. Fazia-lhe gentilezas. Elogiava-lhe os bordados que fazia nas madrugadas. Passou a dormir com fronhas e lençóis bordados. Ela sorriu satisfeita. Algumas vezes cozinhavam juntos comidas que só ele comia. Estimulava-a a falar de si, dos planos que tinha quando saísse da fazenda. Observava sua relação com Rodrigo. Estudava-a com cuidado, pensando no próximo lance.
Uma noite, estava toda de preto, da boina que escondia os cabelos até os tênis. Deteve-a na varanda.
– Estou com fome, Hilário. Muita fome. E encurralada. Para a cidade não posso ir. Jonatas me avisou que ainda estão procurando Carlos. Pensei em ir para a estrada, pedir uma carona. Mas demora e não quero dormir fora – Carlos precisa do meu cuidado.
Hilário bufou, indicando-lhe a bobagem e perguntou porque não pedia uma ovelha ao tio.
– Não tenho coragem. Já dei muito trabalho.
Hilário cravou mais uma cunha :
– O Tio podia ser mais generoso.
Ela abanou a cabeça.
– Prefiro correr até a próxima fazenda. Sou muito rápida.
Hilário riu. Teria que correr mais de um dia para sair das terras de Rodrigo. Ao ver o seu desalento, aproveitou a oportunidade. Pegou-a pelo braço e levou-a ao carro.
– Eu a levo até a próxima fazenda.
Ela hesitou, mas, depois, submeteu-se.
Quase não se falaram. Quando chegaram à outra fazenda, ele quis acompanhá-la, mas ela não permitiu. Sentado no carro, com medo, Hilário procurava imaginar seus movimentos. Ouviu latidos, que logo viraram ganidos. Depois, um curto balir. Depois, o silêncio. Pouco depois, ela estava de volta. O rosto corado. Tirou a boina, soltando os cabelos. Acomodou-se no carro, e beijou-o no rosto. Ele não resistiu e perguntou.
– Problemas?
– Só um cachorro. Nenhum problema.
Sorriu, satisfeita.
Na volta, madrugada alta, cruzando a planície, Hilário deu outra rodada no parafuso do poder. Reduziu a velocidade e perguntou:
– O que acontece, se o carro enguiçar ?
Ela olhou o descampado em volta e fechou os olhos.
– O sol me faz muito mal. Teria que me proteger em algum lugar.
Encarou-o, preocupada.
– Você quer me assustar?
Ele apenas abanou a cabeça. Queria muito abraçá-la, mas não disse nada até chegarem à fazenda.
Ao mesmo tempo, Hilário cultivava memórias. Aquela noite, na cidade. Haviam estabelecido um vínculo. Lembrava continuamente o corpo de Clara colado ao seu, sentia na língua a ponta dos caninos. E lutava contra a memória da boca de Clara em sua garganta. Todo sorriso recebido, cada gesto de afeto, o apoiar-se em seu braço num passeio noturno, segurar-lhe a mão entre as dela para enfatizar um ponto, eram cuidadosamente guardados e catalogados. Na estante da memória ganhavam uma ficha detalhada.
Agora que tinha a chave do consultório, passava horas a olhá-la. Ao meio-dia, quando o sono dela era mais profundo, arrumava-lhe os cabelos e, algumas vezes, passava as mãos sobre seu corpo, explorando-lhe o relevo. Pelo buraco da fechadura do banheiro vira-a nua, enxugando-se. Mal conseguia dormir.
Outras vezes, olhava Carlos, longamente. Sentia o ódio ir crescendo e ir ficando frio. Lembrava-se dos primos e sentia ódio de sua impotência. A memória da mulher do posto acalentava-o.
Sabia também que as chuvas e seu tempo na fazenda estavam acabando. Tinha que fazer algo ou voltar para as escavações.
Numa manhã seca, sentado na varanda, o quadro completou-se. Espontaneamente, na retina da alma. Como no deserto, quando visualizara seu primeiro sáurio. Sentira a mesma paixão, uma emoção permeada de certeza. As mãos tremiam mas pensava com clareza. Rodrigo não era, na verdade, um problema. Voltara a pensar nele como Tio Rodrigo. O obstáculo era Carlos, que, mesmo vegetando, interpunha-se entre ele e Clara. Se Carlos não existisse, poderiam viver em paz, os três, ali. Ou, melhor, ele e Clara poderiam ter sua própria casa, como ela queria e ele nunca tivera. Ela, aos poucos, entenderia seu trabalho. Ou mesmo, por ela abandonaria os dinossauros. O que tinha de dinheiro era suficiente e Rodrigo poderia abastecê-los de ovelhas, até que ela se desintoxicasse de tanto sangue. A ciência, a medicina, a psiquiatria tinham muitos recursos.
Ao meio-dia, o calor era extenuante. Quando desligou os aparelhos do consultório, sentia a camisa empapada de suor. Como naquela noite.
Afastou-se rapidamente e foi para o seu quarto. Clara ainda demoraria seis horas para acordar e Tio Rodrigo estava fora, cuidando de um doente. A sensação de triunfo era tão forte que tinha vontade de chorar. Mas controlou-se. Tirou a caixa de metal de baixo da cama e foi joga-la na lixeira. Nunca mais precisaria dela! Deitou-se na cama para aguardar o fim do dia.
Cinco minutos depois, começou. Era um urro, que começava cavo e ia tornando-se cada vez mais agudo, até não se ouvir mais. Mas os cristais romperam-se em toda a casa. Também não adiantava tapar os ouvidos com as mãos e cobrir a cabeça com o travesseiro bordado. Repetiu-se várias vezes, espalhando-se pelas coxilhas. Hilário perdeu a conta de quantas vezes se repetiu.
E fez-se silêncio. Dentro e fora da casa, não havia um som. E, aos poucos, ao longo da tarde, as pessoas foram chegando. Albano. Os peões da fazenda, com suas famílias e animais. Marta. Todos em silêncio, mesmo os bichos. Em vigília. Ao fim da tarde, rolou sobre o gramado uma limusine preta e dela saltaram Jonatas e Pedro, o porteiro. Os dois tinham óculos escuros. Pouco depois, uma grande motocicleta preta também estacionou. Guiava-a um homem, vestido com um blusão negro dos Hell’s Angels. Também usava óculos escuros. Quando tirou o capacete, viu-se que era louro e tinha os cabelos compridos. Cumprimentou Jonatas e Pedro com um aceno de cabeça, mas não disseram palavra. Por último, chegou Rodrigo, a ambulância coberta de barro.
Hilário queria correr para o consultório, mas não conseguia levantar-se da cama. Agarrou-se ao travesseiro, mordendo a fronha bordada.
O consultório estava na penumbra, mas Rodrigo percebia a palidez do rosto dela. Estavam sentados frente a frente, com a mesa entre os dois. Havia um pacote sobre a mesa. Ela pegou a mão de Rodrigo entre as suas:
– Esperei que o senhor chegasse, Doutor.
– Quer que o examine?
Rodrigo fez menção de levantar-se, mas ela o reteve.
– Não, Doutor, não é necessário. Acabou.
Ficaram ali, sentados, um longo tempo sem dizer nada. Até que ela acrescentou:
– Pensei em vingar-me. Mas, a que serve? Ele não vai voltar.
Rodrigo sentiu os olhos molhando e apertou-lhe as mãos, que pareciam-lhe muito pequenas. Ela pareceu falar com ele e consigo mesma:
– Pode ser que, um dia, o milagre se repetisse. Mas não tenho forças para esperar. Ou fé, não sei.
Levantou a cabeça e encarou-o.
– Não posso agradecer-lhe o bastante.
Pegou o pacote e colocou-o nas mãos de Rodrigo.
– Era o meu dote. São sete quilos de cocaína pura. No embrulho, está o endereço de Jonatas e um bilhete para ele. Sei que ele está lá fora. Ele pode dispor disso para o senhor, sem maiores problemas. Pode compensá-lo dos prejuízos. Os materiais. Acho que, dos outros, é impossível.
Levantou-se e levou-o até a porta, onde beijou-o no rosto.
Rodrigo juntou-se aos demais do lado de fora. Hilário continuava no quarto.
Quando o sol, finalmente, acabou, o silêncio ficou mais denso. Até que o grito se repetiu, seguido, no fim, por uma explosão rascante, encimada por uma brilhante chama azul, que acabou por confundir-se com a escuridão que entrava. Quando terminou, todos desapareceram como vieram, sem ruído. Ficou apenas Rodrigo, com o pacote nas mãos, olhando as cinzas que restavam do consultório.
Naquela mesma noite, Hilário desapareceu da fazenda, levando o pacote de cocaína. Reapareceu, muito tempo depois, em Santa Bárbara das Missões. Falava com fluência sobre as vozes dos sáurios pré-históricos. Antes que o internassem, tentou publicar diversos artigos em que explicava isto, detalhadamente.
Aos Restrepo, que eram muitos, não causou espanto. Eram tantos, que, na família, qualquer destino era possível.
Celular
Sentou-se na varanda e acendeu o charuto. Como vira o Velho fazer, aquecendo-o aos poucos. Ao fim do dia, o Velho costumava fumar um e o escritório enchia-se de fumaça e perfume. Especialmente em dias de bons negócios. E essa fora uma semana de cão! De segunda a quarta trabalhara como um desgraçado,...