Fabio Erber e a pedagogia a quatro mãos

Fabio Sá Earp, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.

Fabio Erber made significant contributions to the teaching of current Brazilian Economics. Facing the difficulties that are intrinsic to teaching this subject, he was part of an apparently original process that, here, we will call co-pedagogy, which we believe contributes to better performance of the professors that work with such content.

Um intelectual tem uma parte de sua obra escrita, conhecida e valorizada. Mas uma outra parte, por vezes não menos importante, pode não estar registrada em papel, guardada na memória dos que conviveram com o autor. Um exemplo é o dos grandes conferencistas, como Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa e Antonio Barros de Castro, que durante décadas correram o país palestrando sobre os mais diversos assuntos para plateias com graus muito distintos de conhecimento de economia. O autor destas linhas foi um dos que migrou para o estudo da economia depois de influenciado por esses conferencistas. O levantamento dessa obra não escrita é um exercício de memória, que não se deve deixar de lado quando se tenta levantar a contribuição de um autor.

Fabio Erber deu uma contribuição importante e original em um outro campo: sua atuação como professor naquilo que denomino pedagogia a quatro mãos. Trata-se de um experimento praticado desde o início do milênio no ensino de economia brasileira por alguns professores do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).1 Consiste, sinteticamente, em um professor apresentar a matéria de cada aula e o outro fazer logo em seguida uma apreciação crítica, seja complementando, seja discordando do que foi colocado anteriormente.

Ensinar economia brasileira é uma experiência ingrata, na qual alguns professores tiveram um desempenho brilhante – podemos citar Carlos Lessa, Antonio Barros de Castro, Pedro Malan e Edmar Bacha. Mas essa é uma atividade para a qual o professor nunca está suficientemente preparado, em virtude da amplitude de conhecimentos indispensáveis para sua atuação. O único profissional que conheço com esse perfil carente é, no campo da medicina, o clínico geral. Para o bem e para o mal.

Para lecionar economia brasileira é preciso, antes de mais nada, conhecer a história do período coberto pelo curso, visto que é sempre conveniente começar com os cenários político e econômico nacional e internacional. O mais importante, claro, é conhecer a história econômica e, ao contrário do que acontece nos cursos de teoria, a bibliografia é um problema. Existem alguns manuais, suficientes para o que se exige de um aluno de graduação – mas de forma alguma para atender às necessidades de um professor, pois a evolução da disciplina transforma em sucata conhecimentos que considerávamos plenamente assentados um par de décadas antes. O docente será obrigado a mergulhar na literatura especializada, existente em alguns livros marcantes, mas, sobretudo, em meia dúzia de journals e nos papers apresentados nos congressos nacionais e internacionais. É uma grande quantidade de material a ser lido e digerido, mas infelizmente incompleto. A maioria dos trabalhos são monografias que esmiúçam a fundo temas de escopo limitado, cada uma das quais construída a partir de metodologias distintas, cuja síntese e junção estão longe de ser uma tarefa simples, muito menos imediata.

Se isso já oferece problemas suficientes para o estudioso, a situação piora quando nos referimos a períodos mais recentes – os últimos trinta anos. Pois, nesse período, os historiadores estão praticamente ausentes, sendo necessário recorrer a relatórios de governo e a obras de cunho memorialístico e jornalístico – todas desprovidas do necessário rigor da disciplina científica, portanto, exigindo um rigoroso filtro crítico. Tal filtro tem que ser construído por cada estudioso a partir de sua formação teórica. E essa – tragédia maior – é sempre insuficiente.

Isso acontece porque, para entender o processo de mudança estrutural, é preciso conhecer as teorias do desenvolvimento econômico. No caso da economia brasileira, é necessário começar com as teorias em voga no fim dos anos 1940, que influenciaram fortemente as políticas de substituição de importações aqui implantadas até o fim da década de 1970. E continuar conhecendo as novas teorias do desenvolvimento que surgiram desde aquela época até nossos dias.

As políticas desenvolvimentistas acarretaram desequilíbrios importantes, expressos em processos inflacionários e crises de balanço de pagamentos. Para decifrar esses processos, é preciso conhecer teoria macroeconômica. A macro exige alguns três anos para ser estudada e, para o bem ou para o mal, muda a cada poucos anos. Assim, conhecer macro implica embarcar em um processo de reciclagem permanente, sob pena de não conseguirmos entender o debate em voga. Em seguida, aparece a necessidade de estudar economia internacional, tanto a teoria como a aplicação dela a distintas realidades históricas – lá se vão mais alguns anos de estudo e a mesma reciclagem periódica, obrigação que nos acompanha por toda a vida, em todos os campos da teoria.

Existem pelo menos mais dois campos cujo estudo é indispensável. O primeiro é a economia do setor público, o segundo é o da economia monetária e financeira, pois ambas dão suporte à macroeconomia. Como entender políticas monetária e fiscal sem essa base de conhecimentos?

Finalmente, é preciso conhecer economia industrial, para estudar alguns segmentos-chave da economia. Fabio Erber, por exemplo, era um profundo conhecedor de petroquímica. Mas uma vida inteira dedicada ao estudo é insuficiente para conhecer todos os ramos industriais. É preciso ter humildade para lidar com essa deficiência – como com todas as outras falhas de formação.

A conclusão lógica é que um professor jamais está suficientemente preparado para lecionar economia brasileira. Seja pelo aspecto histórico, seja pelo teórico, sempre existirão abundantes falhas em sua formação – e que ele mesmo conhece melhor do que ninguém. É preciso ter estômago forte para conviver com a tensão daí decorrente. Quem quiser livrar-se dela deve escolher lecionar cálculo.

Em seguida, há a questão do foco do curso. Grosso modo, existe a possibilidade de centrar o estudo no eixo sincrônico (privilegiando a mudança no longo prazo) ou no diacrônico (privilegiando um dado momento histórico). Cada curso é o resultado de uma mediação entre essas possibilidades polares. Assim, um curso de economia brasileira, em tese, pode ser igual mente bem dado tratando apenas do governo Dilma ou retratando a experiência de mudança da economia brasileira desde o início do século XX.  No entanto, no primeiro caso, devem-se levar em conta elementos do desenvolvimento histórico que conduziram ao cenário atual e, no segundo caso, privilegiar algumas conjunturas especialmente importantes – como as reformas institucionais de Campos e Bulhões, o II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), os planos de estabilização.

Uma peculiaridade da UFRJ é que, em lugar de dois cursos obrigatórios de história econômica do Brasil (Formação Econômica do Brasil e Economia Brasileira), temos três – dividindo a economia brasileira em duas, uma cobrindo o período 1889-1964 e outra de 1964 aos dias atuais. Além disso, oferecemos mais uma disciplina optativa, aprofundando a análise do período posterior ao Plano Real.

No nosso caso, o curso versava sobre o período posterior a 1964. A questão do eixo estava resolvida. Mas restava o problema do foco. Decidimos privilegiar a política econômica de cada governo, suas propostas, sua base teórica, seus sucessos e igualmente seus fracassos. Enfatizávamos sempre a limitação dos conhecimentos que os policy makers tinham acerca da realidade que tentavam administrar, daí resultando algumas das falhas de percurso – sendo as demais obras do acaso, sempre presente na história. Como testemunhas oculares da maior parte dos eventos, comentávamos igualmente nossas próprias interpretações na época do ocorrido, comparando com nossa visão atual. Procurávamos mostrar que a análise econômica é um processo dinâmico, que muda ao longo da vida do analista, à medida que este incorpora novas informações e novos instrumentos de análise.

Definido o foco, é preciso escolher a escola de pensamento a adotar. Existe uma tradição no Instituto de Economia da UFRJ que diferencia essa instituição de outros centros de ensino no Brasil: ainda que a maior parte dos cursos siga a tradição estruturalista latino-americana, disseminada por Conceição, Castro e Lessa, lá não existe um “pensamento da casa”. O pluralismo vigente2 confere a cada professor completa liberdade para apresentação de seu ponto de vista, desde que respeitando os tópicos mais gerais da ementa.

A questão seguinte a ser tratada era a da profundidade da matéria lecionada. Como explorei em trabalhos anteriores, qualquer análise econômica pode ser apresentada em quatro versões, segundo a capacidade do analista e o público a quem se dirige.3 A primeira, V1, dirige-se ao público altamente especializado, necessariamente um grupo reduzido de estudiosos.  A segunda, V2, consiste no conhecimento comum aos economistas de boa formação. A terceira, V3, é voltada para estudantes. A quarta, V4, dirige-se ao público em geral. Em um curso de graduação, é preciso ter sensibilidade para começar com a V3 e fornecer os elementos para que o aluno possa compreender a V2 – em um processo que os anos de experiência acabam ensinando ao professor e que a crítica de um colega acelera e aprofunda.
Quando assumimos a disciplina, Erber e eu, no início do presente século, não éramos exatamente calouros no ensino de economia brasileira – ambos a lecionávamos havia mais de três décadas. Talvez exatamente por essa senioridade, conseguimos enxergar nossas limitações e desenvolver um diálogo permanente, procurando complementar as interpretações de cada um.

Tínhamos facilidade para trabalhar juntos porque compartilhávamos algumas crenças (seria exagerado dizer certezas). Antes de mais nada, a de que sempre podemos aprender algo ouvindo o colega. Um professor de economia brasileira bem-preparado navega por um mar de conhecimento coalhado por ilhas de ignorância (se for malpreparado, é o contrário). Por isso, as parcerias são tanto mais frutíferas quanto mais distintas as formações dos dois professores. Na verdade, cada um de nós começou a lecionar a disciplina repetindo um curso de que tinha gostado e aos poucos foi introduzindo nele modificações – um processo de copiar/aperfeiçoar/ recriar que podemos chamar de mimese antropofágica. A pedagogia a quatro mãos amplifica esse processo ao máximo.

Uma segunda crença é de que uma aula nunca está pronta, sempre pode ser aperfeiçoada. Mesmo uma aula “redonda” sempre merece reparos e poderia ser apresentada de forma completamente diferente. Por isso, tínhamos longas conversas, pessoalmente ou por telefone, antes de cada aula, explicitando a estratégia pedagógica a adotar no dia seguinte. E nada garantia que chegássemos a um consenso; nesse caso, apresentávamos o mesmo tema de duas maneiras, um criticando o ponto de vista do outro.

Uma terceira crença é que, ao analisarmos a contribuição de um estudioso, algumas vezes devemos deixar de lado o todo e nos ater aos detalhes. Em que aquele argumento, aquela frase, aquele dado contribui para nossa compreensão do problema? Isso ajuda a limpar o terreno das inevitáveis controvérsias teóricas e ideológicas que permeiam nossa profissão. Temos muito a aprender com aqueles de quem discordamos.

Existe sempre um exercício de escolha – o que ler, o que privilegiar. Normalmente, o analista escolhe aqueles que lhe são próximos, sua turma, aquilo que outrora se denominou sua “igrejinha”. A comunidade acadêmica se divide em muitas tribos, que, por vezes, travam combates quase mortais. Nós compartilhávamos a crença de que os membros de nossa tribo não são necessariamente melhores do que os membros das demais. Nem em qualidade de trabalho, nem em caráter, nem em competência de gestão, nem mesmo em conduta. Por isso, vale a pena ler com respeito as obras dos conservadores de quem não gostamos e, com senso crítico igualmente aguçado, os trabalhos dos amigos.

Finalmente, a vaidade é o maior inimigo do intelectual. Sobretudo por estar frequentemente oculta. Ao mesmo tempo, ela é seu maior amigo, incentivando-o a esforçar-se para resolver seus puzzles. Como administrá-la com sabedoria? Talvez o melhor seja não ter medo de errar e admitir que todo intelectual diz bobagens, via de regra, sem se dar conta. O filósofo Ivan Illich, nos anos 1970, dizia que o melhor ambiente para a produção de ideias se resume em contar com dois ou três amigos a quem não nos envergonhamos de confessar nossa ignorância – e que, eventualmente, podem nos esclarecer algum ponto. Jean Piaget recomendava que privilegiássemos o erro, pois, no momento de sua descoberta, simultaneamente aprendemos algo e podemos aprender a errar menos. O erro nos expõe ao ridículo. É prudente cultivar a arte de rir de si mesmo, pois de qualquer maneira os outros rirão de nós.

Não se perde um amigo impunemente, não temos tantos assim para desperdiçá-los. Gostaria que Fabio Stefano Erber, onde quer que esteja agora,4 entre baforadas de seu cachimbo, soubesse que esse aspecto pedagógico da sua vida não foi esquecido. E que continuo me lembrando das risadas que demos das bobagens ditas por cada um de nós.