Fabio Erber: o economista e suas circunstâncias
Luiz Carlos Delorme Prado, Estratégias de desenvolvimento, política industrial e inovação: ensaios em memória de Fabio Erber / Organizadores: Dulce Monteiro Filha, Luiz Carlos Delorme Prado, Helena M. M. Lastres. – Rio de Janeiro : BNDES, 2014.
Fabio Erber was a representative of the first generation of scholars trained abroad with the support of the Brazilian government. His academic research has been reviewed in this essay, that showed how his work influenced and reflected the key issues of industrial and technological policy of the country, along the four decades in which it was written. Erber was a development economist who influenced Brazilian life through its academic production of his public functions and his activity as a professor. This article presents an intellectual biography of Fabio Erber and an interpretation of his theoretical contribution and his intellectual insertion in economic and political events of his time.
1. Introdução
A vida profissional de Erber deu-se nos quarenta anos compreendidos entre o período conhecido como “milagre econômico” e o fim do segundo governo Lula. Como economista do desenvolvimento, presenciou a euforia do crescimento acelerado e o fracasso do projeto desenvolvimentista. Foi observador, analista e crítico das reformas econômicas conservadoras que foram capazes de encerrar um longo ciclo de alta inflação, mas criaram as bases de uma nova convenção que, na visão de Erber, era pouco funcional à retomada de um projeto de desenvolvimento de longo prazo. Atuou como pesquisador, professor e policy maker em Política Científica e Tecnológica e em Política Industrial. Participou de governos, como secretário executivo adjunto do Ministério da Ciência e Tecnologia e (duas vezes) como diretor do BNDES.
Não é possível resenhar a contribuição teórica de um economista sem analisar seu tempo. Eric Hobsbawm, com seu refinado olhar de historiador, lembrou aos economistas, quando proferiu, em 1980, as Marshall Lectures, na Universidade de Cambridge, que:
economia é uma ciência aplicada, assim como medicina é uma ciência natural aplicada. Biólogos que não têm por objetivo curar doenças, como sua tarefa principal, não são médicos, mesmo que estejam associados à escola de medicina.
Economistas que não estão primeiramente preocupados, direta ou indiretamente, com a operação de economias reais, que querem transformar, melhorar ou proteger contra deterioração, podem ser melhor classificados como uma subespécie de filósofos ou matemáticos, a menos que desejem ocupar o espaço vago pela teologia em nossas sociedades seculares [Hobsbawm (1997, p. 96-97)].
Erber era um economista, no sentido indicado por Hobsbawm. Entendia essa disciplina como uma ciência social aplicada, que deveria não apenas discutir o mundo real, mas também transformá-lo. Ao longo de sua vida profissional, Erber exerceu muitas funções e produziu um grande número de artigos e capítulos de livro. Recebeu muitas influências, de autores de tradição cepalina, como Celso Furtado e Fajnzylber,1 da literatura de economia do desenvolvimento, como Hirschman, a quem muito apreciava, de autores vinculados a discussões de história e desenvolvimento, como Gerschenkron, de autores da literatura de comércio internacional e crescimento, como Posner, Linder e Johnson,2 dos neoschumpeterianos, como Freeman, e de seus muitos amigos, com quem mantinha constantes conversas sobre questões de economia do desenvolvimento, no Brasil, na Argentina, na França e em outros lugares do mundo.
No entanto, identifica-se um elemento unificador em sua obra: uma concepção de desenvolvimento que se manteve constante durante quase toda sua vida. Para Erber, desenvolvimento era uma política, um processo, e economista do desenvolvimento era um profissional que estuda, teoriza e implementa políticas de desenvolvimento. Por sua vez, o conceito de desenvolvimento do autor tem duas fontes sob muitos aspectos convergentes: as definições de Kuznetz e Schumpeter.3
Para Kuznetz, o crescimento moderno tinha características quantitativas, associadas à taxa de crescimento agregado, características relacionadas à transformação estrutural e relacionadas à difusão de seus efeitos pela economia mundial. No entanto, para ele, essas mudanças tinham uma fonte primordial do crescimento, que era a onda de inovações que geravam as transformações da economia. Mas a fonte dessas transformações era “a ascensão da ciência moderna como a base do avanço da tecnologia” [Kuznetz (1973, p. 249)].4
Erber tratou, em toda sua obra, de desenvolvimento econômico como um processo que envolvia taxas de crescimento per capita elevadas, aumento de produtividade, mas, sobretudo, mudanças estruturais na economia e na sociedade, que implicavam alterações no comportamento dos agentes econômicos. A ideia de que o processo de desenvolvimento tinha como condição necessária mudanças nas instituições e na cultura esteve sempre presente na obra desse autor. Em seus trabalhos finais, chamou de convenção de desenvolvimento esse comportamento coletivo que produzia (ou que era compatível com) a mobilização da sociedade voltada para o desenvolvimento. Erber, como muitos de sua geração, priorizava uma estratégia de desenvolvimento baseada no crescimento industrial, que, combinado com incorporação de ciência e tecnologia, seria a matriz da mudança estrutural. Sua agenda era a moderna – via o mundo por um olhar social-democrata, de forma compatível com as famosas Conferências de Cambridge de T. H. Marshall.5
Nunca foi entusiasta de uma agenda pós-moderna: questões como o meio ambiente e outros temas relacionados com a agenda pós-moderna no debate sobre desenvolvimento não lhe interessavam.
Em Schumpeter, Erber buscou três elementos que também se mantiveram em toda sua obra. Em primeiro lugar, a ideia de que desenvolvimento era um processo endógeno à vida social e exógeno a variáveis exclusivamente econômicas – ou seja, desenvolvimento não é obtido ou explicado por variáveis apenas econômicas.
Desenvolvimento não pode ser alcançado por meio de alterações exógenas simples, como alterações de políticas macroeconômicas [Schumpeter (1988)]. Embora, sensível à necessidade de políticas macroeconômicas consistentes e, nesse aspecto simpático à abordagem pós-keynesiana, para Erber, a essência da política de desenvolvimento era a capacidade de alterar o comportamento dos agentes econômicos, mediante mecanismos que passavam por alteração de mentalidades, políticas deinovação, políticas industriais, políticas de promoção de concorrência etc.
A segunda ideia schumpeteriana é a distinção entre crescimento, visto como mudança incremental, e desenvolvimento, visto como uma descontinuidade no estado estacionário, ou seja, uma quebra na regularidade contemporânea levando a um novo futuro indeterminado. Essa descontinuidade foi definida por Schumpeter da seguinte forma: “Transição de uma norma do sistema econômico em outra norma de tal forma que essa transição não pode ser decomposta em passos infinitesimais” [Schumpeter (2005, p. 115)].6
A terceira ideia schumpeteriana é a dinâmica da introdução do progresso técnico, como promovendo um ganho de monopólio, que será desafiado pela resposta de seus concorrentes, forçados, também, a responder por meio da inovação. Essa terceira ideia, no entanto, ficará mais presente na obra de Fabio ao fim de sua vida, quando chegou até mesmo a fazer vários pareceres em questões de direito da concorrência, enfatizando aspectos dinâmicos da relação entre antitruste e inovação no processo produtivo.7
Este ensaio discutirá a obra de Fabio Erber, cronologicamente, escolhendo artigos e temas que marcaram sua trajetória. Qualquer leitura de uma longa obra é influenciada pelo momento em que é feita. Não há, na escolha dos artigos, uma preocupação de selecionar os mais importantes. Essa escolha foi feita em função das preocupações que, a meu juízo, foram relevantes em cada época. Trata-se de estudar o intelectual e suas circunstâncias. O olhar é de um historiador econômico e não de um historiador das ideias econômicas.
2. Origens do debate sobre Ciência e Tecnologia e Desenvolvimento
Erber fez parte da primeira geração de intelectuais brasileiros que estudaram no exterior com apoio público. Até a década de 1960, os graus de mestrado e doutorado não eram dados com regularidade pelas universidades brasileiras, mas, na década de 1970, os cursos de pós-graduação no Brasil começaram a difundir-se.8 Além disso, nessa década, começaram aaparecer os primeiros resultados do crescente apoio a atividades de pesquisa no Brasil. A origem dessa política foi a criação do Fundo de Desenvolvimento Técnico-Científico (Funtec, atual BNDES Fundo Tecnológico), pelo BNDE, ainda na década de 1960. Mas esse tomou corpo e mostrou resultados com a atuação da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep,atualmente Agência Brasileira de Inovação), que, a partir de 1971, assumiu a responsabilidade de administrar o Funtec.9
Fabio Erber recebeu, em 1970, uma bolsa do British Council, que permitiu que ele obtivesse um mestrado em Economia do Desenvolvimento Econômico, na Universidade de East Anglia, na Grã-Bretanha, em 1971. De volta ao Brasil, participou da criação de um Grupo de Pesquisa na Finep, no qual realizou estudos sobre as relações de desenvolvimento econômico e ciência e tecnologia, sobre a indústria de bens de capital e temas correlatos. Essa experiência levou-o a publicar dois artigos, ainda na primeira metade da década. São artigos que expressavam as preocupações do debate brasileiro na tradição desenvolvimentista, mas que continham novidades que não estavam presentes no debate nacional, refletindo a experiência e os conhecimentos obtidos por ele em sua formação no exterior.
Em artigo publicado na revista Pesquisa e Planejamento Econômico,em 1972, Fabio apresentou uma interessante contribuição à discussão sobre escolha de tecnologias e os problemas de oferta de trabalho e desenvolvimento regional [Erber (1972)]. O artigo levantava questões relevantes para os principais debates desse momento histórico. Os primeiros anos da década foram marcados por dois debates sobre o desenvolvimento brasileiro:
(i) a controvérsia sobre distribuição de renda; e
(ii) o debate sobre o modelo brasileiro.
O primeiro surgiu como resultado da análise dos dados do Censo de 1970. Com a publicação pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dos dados dessa pesquisa decenal, verificou-se que, se a economia brasileira cresceu aceleradamente depois de 1967, a década de 1960 marcou, também, um aumento significativo da desigualdade no país. Esse resultado era um ponto fraco no argumento do governo militar de que a eficiência era o fundamento de sua legitimidade.10 Esse debate tinha duas correntes antagônicas que sustentavam que a causa da deterioração da distribuição de renda no país era resultado:
(i) das políticas públicas do governo militar; e
(ii) do aumento mais acelerado da demanda de mão de obra qualificada em relação à não qualificada [Wells (1978)].
O segundo debate tem sua contribuição seminal com a publicação, em 1972, do livro de Celso Furtado, Análise do “modelo brasileiro”. Esse economista argumentou que o Brasil era um caso paradigmático para a discussão da industrialização em condições de subdesenvolvimento. Furtado refutou a tese, generalizada no pós-guerra, de que a industrialização seria condição suficiente para a absorção do subdesenvolvimento. Segundo sua interpretação, o principal problema com que se defrontava o país era gerar fontes de emprego para sua numerosa e crescente população, grande parte da qual vivia em condições precárias, em setores urbanos marginalizados ou na agricultura de subsistência. Furtado via na importação de tecnologia um dos fatores que contribuíam para a não geração de empregos em número e qualidade suficientes para absorver a oferta de trabalho pela população brasileira de baixa renda.
Erber (1972, p. 105) partiu da constatação de que “a industrialização tal como vem sendo feita tem, sem dúvida, aumentado o produto, mas não produziu os efeitos que alguns esperavam na absorção de mão de obra”. Mas, ainda, essa insuficiência era mais grave no Nordeste, onde, depois de mais de uma década de investimentos maciços na indústria, permanece o problema de subutilização de mão de obra. O artigo contesta a tese de que a simples redução do custo da mão de obra, com referência ao custo do capital, levaria os empresários necessariamente a aumentar a utilização do fator trabalho. Nesse caso, a pergunta seria por que não foram escolhidas no Brasil tecnologias intensivas em mão de obra, o que seria razoável dada a oferta abundante de trabalho barato no Brasil. Mas, ao contrário, a industrialização brasileira caracterizava-se por investimentos intensivos em capital.
Erber levantou várias hipóteses para explicar essa aparente contradição. Em primeiro lugar, chamou a atenção para o fato de que o investimento de longo prazo (no qual as escolhas tecnológicas estão embutidas) era financiado no Brasil com capital próprio, ou seja, com reinvestimento dos lucros, enquanto o capital de giro era financiado com crédito bancário. No caso, como o custo de oportunidade do capital próprio era baixo, os empresários preferiam aplicações poupadoras de mão de obra que levariam a economizar capital de giro, que era relativamente escasso e caro. Erber recorreu a artigos de Giovanni Arrighi e de Michael Todaro para mostrar que investimento intensivo em capital economizava a necessidade de empregados qualificados, que eram caros e escassos no Brasil.11 Erber também acompanhou a interpretação de Furtado, de que os padrões de consumo no Brasil, que emulam os dos países mais desenvolvidos, implicam a importação de tecnologia estrangeira, que é desenhada para países onde o custo relativo da mão de obra é mais elevado. O artigo elabora, nesse contexto, a seguinte tese: a combinação de fatores de mercado e de distribuição de renda com a dependência de padrões de consumo elimina a possibilidade de escolhas de tecnologia para os bens de consumo no Brasil, em especial dos setores mais dinâmicos. Portanto, a dependência dos padrões de consumo se consolida pela dependência da tecnologia de produção. As empresas estrangeiras operam com tecnologia trazida de suas matrizes, as brasileiras com tecnologia licenciada do exterior. Portanto, não há escolha de tecnologia possível em bens de consumo. Como em bens intermediários, também são reduzidas as alternativas tecnológicas, e todas essas alternativas são intensivas em capital – a industrialização no Brasil não poderia ser intensiva em mão de obra.
Erber (1972) contribuiu, portanto, para o debate sobre distribuição de renda, já que mostrou que a industrialização brasileira era poupadora de mão de obra em decorrência da natureza de seu modelo, como afirmava Celso Furtado, mas também em função da dinâmica da transferência de tecnologia, questão que ainda não era tratada em profundidade no Brasil.
O segundo artigo publicado na década de 1970, escrito em coautoria com José Tavares de Araujo Jr., apresentava resultado da investigação que ambos realizavam no Grupo de Pesquisa da Finep. [Erber e Araujo Jr. (1973)]. Esse era um tema pioneiro, para o qual tanto Erber como Araujo Jr. viriam a fazer importantes contribuições ao longo de suas carreiras acadêmicas e profissionais. O artigo discutia as dimensões do setor de bens de capital:
(i) a de criação de excedentes que são apropriados pelo resto do sistema econômico;
(ii) a de ser veículo de incorporação e difusão do progresso tecnológico;
(iii) a de evitar a limitação da taxa de crescimento da economia; e
(iv) a de permitir a autonomia política.
Erber e Araujo Jr. (1973) trazem pela primeira vez à literatura econômica brasileira uma discussão sobre o progresso tecnológico por meio da análise das etapas de criação, incorporação e difusão, realizada com auxílio de atividades de pesquisas, desenvolvimento, engineering e administração, traduzindo-se economicamente na introdução de produtos ou na modificação dos já existentes. Esse artigo defendeu a tese de que o setor de bens de capital tem papel estratégico para sustentar o dinamismo do sistema industrial. Nesse contexto, levanta algumas características desse setor, como:
(i) a de instabilidade, ou seja, ser um barômetro das oscilações cíclicas da economia, principalmente em decorrência das oscilações nas demandas por expansão dos investimentos;
(ii) a de heterogeneidade, ou seja, a de envolver desde caldeirarias de fundo de quintal até os sofisticados complexos industriais; e finalmente
(iii) a de autonomia relativa em relação ao setor de bens de consumo.
Ou seja, os setores de bens de capital e de bens intermediários combinados podem crescer com relativa independência do crescimento do setor de bens de consumo. Todas essas questões seriam posteriormente debatidas por extensa literatura sobre progresso técnico e desenvolvimento econômico, na qual as contribuições do grupo de pesquisa da Finep foram pioneiras. Além disso, esse debate veio a ser o tema da tese de doutorado de Fabio Erber, no Institute of Developing Studies (IDS), Universidade de Sussex, defendida em 1978.
Erber chega a Brighton no momento em que os estudos e ações do IDS e do Science and Technology Policy Research Unit (SPRU), instituições que tinham sido criadas em 1969, abriam novos debates e promoviam grande impacto nas discussões sobre política do desenvolvimento. Alguns anos antes, em 1970, tinha sido publicado o “Manifesto do Grupo de Sussex”, que era produto de uma encomenda das Nações Unidas a uma comissão de acadêmicos do IDS e do SPRU sobre o tema de ciência e tecnologia para o desenvolvimento. Esse grupo reunia um dos mais importantes teóricos da teoria de desenvolvimento no pós-guerra, Hans Singer; o economista Christopher Freeman, que foi um dos fundadores e diretor do SPRU; Charles Cooper, economista britânico, que foi por vários anos joint-fellow do IDS e do SPRU e foi, posteriormente, um dos fundadores do centro do Instituto de Novas Tecnologias da Universidade das Nações Unidas (UNU-INTEC) em Maastrich, Holanda; o geofísico Geoffrey Oldham; e, ainda, R. C. Desai, Oscar Gish e Stephen Hill. Até o início da década de 1970, não havia uma preocupação com o desenvolvimento tecnológico dos países em desenvolvimento. Ao contrário, a visão generalizada era de que qualquer necessidade de tecnologia podia ser adquirida dos países industriais avançados e, portanto, investir em produção de Pesquisa & Desenvolvimento na periferia não era prioritário, podendo, até, ser considerado um desperdício de recursos.12 O Manifesto põe na agenda, pela primeira vez, a necessidade de promover desenvolvimento tecnológico e pesquisa nos países em desenvolvimento. O texto afirma que:
Há uma grande defasagem nos países em desenvolvimento entre a produção atual e a produção potencial através da aplicação da ciência e tecnologia. A análise desta situação é essencial para a proposta de uma política. […] O problema surge da divisão internacional do trabalho em ciência e tecnologia e que dirige os esforços científicos para os problemas e objetivos que interessam os países mais avançados [Singer et al. (1970)].
Esse foi um momento singular para a produção acadêmica da literatura do desenvolvimento. Nesse período, o debate tradicional da chamada High Theory of Development entrava em decadência, o que foi observado com perspicácia por Hirschman.13 Alguns dos grandes teóricos dessa literatura continuaram suas atividades acadêmicas e sua militância pela promoção de políticas desenvolvimentistas em outras esferas: Prebisch desde 1963 tinha ocupado uma posição de liderança na criação da United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), e Hans Singer aceitou ocupar uma cátedra no recém-criado Institute of Developing Studies (IDS). Singer teve uma formação acadêmica singular: estudou com Schumpeter em Bonn e, como judeu alemão, viu-se na contingência de sair do país com a ascensão de Hitler em 1933. Schumpeter convenceu Keynes a recebê-lo em Cambridge como um dos seus primeiros estudantes de doutorado. A reunião de Singer e Freeman, assim como as de vários outros intelectuais, fez de Sussex um ambiente instigante e singular naquele momento. A introdução do tema de pesquisa e tecnologia no debate sobre desenvolvimento abriria toda uma nova agenda de pesquisa. O debate sobre tecnologia e crescimento passou a ser importante não apenas para os chamados economistas neoschumpeterianos, mas também para autores como Romer e outros economistas de crescimento endógeno.14
Erber, que conviveu com esse debate em Sussex, trouxe para o Brasil sua formação e experiência desse momento histórico e, nas décadas seguintes, tornou-se um dos mais importantes autores do tema de política tecnológica e desenvolvimento no Brasil.
3. Crise do Desenvolvimentismo e o Fracasso da Política Tecnológica
A década de 1980 foi marcada pelo fim do governo militar e pela crise do que, posteriormente, seria chamado por Erber de convenção do desenvolvimento [Erber (2010a; 2011)]. Foi um período de intensa produção intelectual e, na Nova República, Erber ocupou, pela primeira vez, uma posição política na estrutura governamental: foi secretário executivo adjunto, no Ministério da Ciência e Tecnologia, quando o secretário executivo era Luciano Coutinho, e o ministro era Renato Archer. Nessa década, foi extinto o Grupo de Pesquisa da Finep, e Erber assumiu a posição de professor titular de História e Desenvolvimento do Instituto de Economia Industrial (IEI) da UFRJ.
Desde o retorno do doutorado, Erber publicou vários artigos e capítulos de livros, resenhando e discutindo a literatura de Política Científica e Tecnológica.15 Esse tema tinha à época várias leituras, mas, no campo da política tecnológica, o tema mais candente era a política brasileira de informática e do desenvolvimento da indústria de computadores. A constatação de Erber era de que, embora durante o regime militar houvesse uma política de engajamento de instituições federais em atividades de pesquisa sobre o desenvolvimento científico e tecnológico, a capacidade tecnológica do parque industrial brasileiro concentrava-se na fabricação e na engenharia de detalhe.16
Para ele, novos produtos e processos tendiam a apoiar-se na importação de tecnologia. Essa importação levava a um aprendizado, mas não alcançava atividades tecnológicas mais complexas, necessárias para que as inovações não fossem incrementais. Para ele, a exceção eram algumas empresas estatais à “mercê de sua ambiguidade estrutural, ao serem, ao mesmo tempo, empresas e Estado” [Erber (2010b, p. 17)].
Erber participou, também, na década de 1980, dos debates sobre política de informática no Brasil e sobre propriedade intelectual e competição entre empresas. O tema de política de informática e indústria de computadores foi um dos assuntos mais candentes na área de ciência e tecnologia, na primeira metade da década de 1980. A disputa em torno da criação da indústria de informática no Brasil, que deveria incluir a produção de computadores, equipamentos de telecomunicação, componentes e software, envolveu acadêmicos na área tecnológica, tecnocratas, economistas, burocratas, setores das Forças Armadas, setores do aparato de segurança do governo militar e, ainda, industriais e executivos brasileiros e estrangeiros.
A tentativa de implementar esse projeto, que perdurou desde os governos militares até a Nova República, foi uma experiência ousada, que foi chamada por Emanuel Adler de Ideological guerrillas for technological autonomy [Adler (1986)]. Erber não foi um dos protagonistas dessa militância. Esse papel deve ser atribuído a engenheiros como Ivan da Costa Marques, ao comandante José Guaranys, mas também a economistas, como Paulo Bastos Tigres, que, tal como Erber, era professor do IEI-UFRJ e doutor por Sussex. Erber foi, no entanto, um analista cuidadoso dessa disputa, e um artigo, publicado em livro de Bastos e Cooper, em 1995, é uma das mais interessantes avaliações realizadas dessa experiência.17
Um trabalho importante de Erber versa sobre propriedade industrial e competição entre empresas [Erber (1982)]. A visão dos países industriais avançados para propriedade intelectual é de que elas são iguais a qualquer outra forma de propriedade, portanto, não são, isoladamente, fonte de poder de mercado, sob o ponto de vista da legislação antitruste [Buccirossi (2008)]. As autoridades antitruste norte-americanas chegam até a deixar claro nos Guidelines de Propriedade Intelectual que “the Agencies will not require the owner of intellectual property to create competition in its own technology”(IP Guidelines §3). Erber discute as questões que envolvem a propriedade industrial como instrumento de competição entre empresas e como objeto de política pública. Esse é um artigo que trata dessa questão polêmica, sob a perspectiva de um país em desenvolvimento, mas de uma maneira objetiva, avaliando os ganhos e as cautelas necessárias para uma política nacional de patentes.18
Erber não era um macroeconomista, mas, como um economista do desenvolvimento, acompanhava as políticas públicas, discutindo, como professor de economia brasileira, as políticas de combate à inflação que dominaram a imprensa no Brasil ao fim da década de 1980. Em sua interpretação, o fracasso do cruzado foi o começo do fim do consenso em torno de uma política desenvolvimentista no Brasil. Essa ideia, que começou a se formar ao fim da década de 1980, seria elaborada durante a década de 1990, resultando nos seus trabalhos sobre convenção de desenvolvimento.19
Ao fim da década de 1980, a frustração da população brasileira com a incapacidade de o primeiro governo civil, depois do regime autoritário, garantir condições econômicas minimamente estáveis e previsíveis, criou condições para mudanças profundas no quadro eleitoral. Nesse contexto, eleitores movidos por protesto e medo levaram ao poder um aventureiro, produto de uma nova direita, o ex-governador de Alagoas, Fernando Collorde Melo. Erber analisou a política industrial do governo Collor em livro escrito com Roberto Vermulm, em 1993, no qual mostra que a ideia do governo era fazer uma política em forma de pinça, por um lado criando mecanismos de estímulo à competitividade e, por outro, forçando a concorrência por meio de uma abertura comercial unilateral [Erber e Vermulm (1993)].20 Ao fim do governo Collor, nada mais resta da agenda desenvolvimentista. Os ventos do liberalismo sopram fortes no Brasil. Depois do interregno do governo Itamar e do sucesso do Plano Real, o novo governo FHC marca a ascensão de uma nova convenção na economia brasileira. A partir da segunda metade da década de 1990, Erber iniciará uma discussão que se aproxima da sociologia econômica para entender a natureza das forças políticas que determinam as estratégias de desenvolvimento no Brasil.
4. De FHC a Lula: Convenções de Desenvolvimento no Brasil Contemporâneo
A vitória norte-americana na Guerra Fria e a excepcional taxa de crescimento da economia norte-americana nesse período marcaram o imaginário da década.21 Stiglitz definiu o sentimento do momento histórico da seguinte forma:
Não era apenas o capitalismo que havia triunfado sobre o comunismo; a versão americana do capitalismo, baseada em uma imagem de individualismo rude, parecia ter triunfado sobre outras versões mais brandas, menos assumidas. Em encontros internacionais, tais como o G-7, […] vangloriávamo-nos do nosso sucesso e recomendávamos aos líderes econômicos de outros países, às vezes invejosos, que bastaria nos imitar para que também desfrutassem de prosperidade [Stiglitz (2003, p. 33-34)].
Nesse clima, o sucesso do Plano Real criou condições políticas para a implementação de uma agenda de reformas liberais. As políticas desenvolvimentistas tinham ficado desmoralizadas com o fracasso do Plano Cruzado. A ideia de uma redução do papel do Estado na economia era sedutora para uma sociedade cansada de intervenções radicais que culminaram no congelamento de depósitos privados pelo Plano Collor. Nessas condições de incerteza, não era facilmente percebido pela massa de eleitores que políticas atendiam a seus interesses individuais. Ao contrário, esses interesses eram formulados e difundidos pela construção de um conjunto de políticas, que representaria o pensamento dominante de uma imensa coalizão que englobava economistas ortodoxos, a grande imprensa, as organizações empresariais e grande parte do Congresso Nacional. A base desse consenso, proposto por uma nova e ousada militância liberal, seria uma agenda de reformas liberais.22
Erber percebeu esse período, ao mesmo tempo fascinado e preocupado com o momento histórico. Com uma vasta cultura literária e com sua experiência na formulação de políticas econômicas, percebia que o discurso do governo FHC era absorvido pela população por razões que transcendiam o argumento econômico. Erber (2002; 1996a) mostrou que a ideia de um “mito da travessia”, presente nas mitologias e nas religiões, era inteiramente consistente com o argumento das reformas liberais. Tratava-se de enfrentar uma provação que, uma vez vencida, levaria os crentes à vitória final, à terra prometida. Se a economia não crescia, se os problemas da balança de pagamento não eram resolvidos, se o desemprego era elevado, eram os custos da transição. O liberalismo desses anos não seria apenas uma nova forma de conservadorismo: era uma forma nova de ativismo revolucionário. Não se tratava de conservar, mas de mudar a sociedade brasileira, construindo uma base política para uma nova estratégia de desenvolvimento.
O tratamento teórico de Erber dado a essas questões, que começaram a ser formuladas na década de 1990, foi sistematizado em um conjunto de artigos, escritos neste século, em seu estudo sobre convenções em economia, mas já estava presente em meados da década de 1990. Para ele, o debate sobre política econômica não podia ser reduzido a uma questão exclusivamente técnica. Em suas palavras: “[…] parte-se do princípio epistemológico de que a economia é ontologicamente política”. Portanto, sua abordagem movia-se na “contramão da visão de que os conflitos [de política econômica] são exclusivamente técnicos” [Erber (2011, p. 32)].
A eleição de Lula em 2003 levaria Fabio Erber a sua última atuação em um cargo de governo. Durante a gestão de Carlos Lessa como presidente do BNDES, Erber ocupou pela segunda vez uma diretoria no Banco. Esse foi um período conturbado, pois Erber tinha divergências quanto à maneira como Lessa dirigia o Banco. Porém, embora não concordasse com a forma das críticas de Lessa à política monetária do governo, Erber concordava com sua natureza e sentia-se desconfortável em ter que negociar com economistas que, durante toda a vida, foram duros adversários das políticas defendidas pelos economistas simpáticos ao PT e que dominavam o Ministério da Fazenda em um governo do PT. Isso não impediu que Erber exercesse com eficácia suas atividades, tendo um papel essencial na formulação da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE).
As bases da política industrial do primeiro governo Lula foram divulgadas em junho de 2003, no texto Roteiro para Agenda de Desenvolvimento. Em novembro de 2003, foi divulgado o documento Diretrizes de Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior.23 Esse foi um documento inovador, que se distinguia dos modelos de política industrial desenvolvimentistas e, também, dos modelos de política industrial horizontais, mais afeitos às políticas market friendly da década de 1990. Com efeito, essa política selecionava setores a serem incentivados entre os que eram os instrumentos de mudança e de criação de novas competências. O objetivo era articular as dimensões vertical (setores escolhidos para terem apoio, incentivo, fomento de forma diferenciada) e horizontal (os demais setores, que receberiam os efeitos dinâmicos proporcionados pelos setores escolhidos).24 A primeira política industrial do governo Lula não foi, no entanto, implementada. Havia uma notória falta de interesse do Ministério da Fazenda, sob a gestão de Antonio Palocci, de levar adiante uma política industrial ativa. Somente após a saída desse ministro e a ascensão de Guido Mantega, com uma nova equipe, mais sintonizada com os economistas industriais, é que foi possível implementar uma política industrial ativa no país.25 Nessa ocasião, no entanto, Erber já tinha saído do governo e retornado a suas atividades acadêmicas.
Com seu retorno ao IE-UFRJ, Erber refletiu sobre sua experiência de governo e sobre os problemas de mobilização para viabilizar uma política de desenvolvimento. Em um conjunto de artigos, formulou sua tese sobre convenções de desenvolvimento no Brasil contemporâneo.26 Erber define convenção como um dispositivo cognitivo compartilhado por uma população P, que segue um comportamento C, adotado por todos os membros de P, na suposição de que todos os membros de P o compartilharão [Erber (2010a)]. Uma convenção surgiria da interação entre atores sociais, mas é externa a esses atores e não pode ser reduzida à sua cognição individual ou seja, é um fenômeno emergente, em que o todo não é redutível às partes. Instituições proveem à sociedade meios para lidar com os problemas de incerteza e coordenação, estabelecendo as regras do jogo.
Para Erber, nas condições de incerteza do primeiro governo Lula, a necessidade de construir uma política mais inclusiva do ponto de vista social, mas compatível com a redução dos riscos políticos, advindos de um temor de que esse governo não teria compromissos com a estabilidade monetária, levou à construção de duas convenções distintas. A primeira seria uma convenção institucionalista, apresentada pelo Ministério da Fazenda e pelo Banco Central, que sustentava uma visão de sociedade competitiva e meritocrática, cuja eficiência é garantida pelo funcionamento do mercado. O cerne analítico dessa convenção era neoclássico, enriquecido do aporte da Nova Economia Institucional.27 Convivendo com a outra, mas subordinada a ela, foi formulada uma convenção neodesenvolvimentista. Essa abordagem tem uma visão de sociedade essencialmente cooperativa, expressa pelo conceito de pacto social e da prioridade à inclusão social. Erber apontava que essas convenções têm diferentes visões e núcleos duros distintos e atendem a diferentes interesses. Tais diferenças se traduzem em diferentes prioridades de modificação estrutural postuladas pelas duas convenções em agendas políticas distintas. Nesse contexto teórico, Erber discutiu a economia política do governo Lula, apontando seus avanços, mas expondo suas contradições e seus impasses. Essa abordagem apontava para toda uma linha de pesquisa sobre a dinâmica dessas convenções, que não chegou a ser desenvolvida pelo autor, em razão de sua morte prematura em fevereiro de 2011.
5. Conclusão
Fabio Erber foi um representante da primeira geração de intelectuais formados no exterior com o apoio do governo brasileiro. Sua produção acadêmica foi resenhada neste ensaio, em que se mostrou como ela influenciou e refletiu as principais questões de política industrial e tecnológica do país, ao longo das quatro décadas em que foi escrita. Erber foi um economista do desenvolvimento que influenciou a vida brasileira por meio de sua produção acadêmica, de suas funções públicas e de sua atividade de professor. Embora não fosse marxista, não tenho dúvida de que Erber concordaria com a XI Tese sobre Feuerbach, proposta por Marx (1975, p. 406): “Os filósofos [ou talvez os economistas] não fizeram mais do que interpretar o mundo, porém o que importa é transformá-lo”.
Nota do autor
Agradeço as conversas e sugestões de Paulo Tigre, que chamou minha atenção sobre a atmosfera intelectual da Universidade de Sussex, na década de 1970. Agradeço, também, a Fabio Sá Earp, Victor Prochnick e Dulce Monteiro Filha, as conversas e os comentários sobre este ensaio. Agradeço, sobretudo, a Ana Maria Erber, que me deu acesso à biblioteca de Fabio Erber e me emprestou exemplares de muitos de seus trabalhos. Agradeço a Ana especialmente a paciência e a gentileza com que sempre me recebeu em sua casa, durante as muitas horas em que ficava conversando com Fabio Erber sobre assuntos nem sempre relevantes, mas sempre instigantes. Este artigo foi originalmente publicado na Revista de Estudos Contemporâneos do IE-UFRJ, agradeço a autorização para a publicação desta versão.
Referências Bibliográficas
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