Desenvolvimento Econômico: O Recorte Setorial

Fabio S. Erber, Apresentação do livro intitulado Desenvolvimento econômico: o recorte sectorial (Livro BNDES 50 anos | Histórias setoriais)

Este artigo tem por objetivo abrir a discussão da temática setorial e apresentar brevemente catorze estudos setoriais feitos por especialistas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social como parte das comemorações dos cinquenta anos dessa instituição.Pareceu-me útil tentar, inicialmente, situar o conceito de “setor” no âmbito da teoria econômica, mostrando que essa dimensão de análise possui longa história e é de utilização frequente pelos autores preocupados com o desenvolvimento do capitalismo, tendo emergido há pouco das trevas a que havia sido consignada pelos programas de pesquisa keynesiano e neoclássico.A seção seguinte trata do caso brasileiro; mais especificamente, da atuação setorial do BNDES numa perspectiva histórico-analítica. Partindo da visão de desenvolvimento que foi hegemônica desde o pós-guerra até a década de 80, argumenta que a estratégia de desenvolvimento adotada demandava, simultaneamente, políticas setoriais e uma instituição financeira como o BNDES. A participação do Banco na evolução de alguns setores estratégicos e, inversamente, o peso desses setores na carteira do Banco justificaram, mais tarde, a institucionalização de centros de conhecimento setorial na forma de Gerências Setoriais. A seção conclui argumentando que, em face da necessidade de retomar o crescimento econômico e em face das pesadas restrições macroeconômicas existentes, parece muito provável que a nova estratégia de desenvolvimento venha a novamente privilegiar as alterações na estrutura produtiva, atuando por meio de políticas setoriais. Para tanto, o Banco será um instrumento fundamental para formular e executar a estratégia, e as Gerências Setoriais poderão cumprir um papel crucial como núcleos de inteligência setorial.Para concluir, a quarta seção faz uma breve revisão das características dos estudos setoriais a seguir apresentados, centrada principalmente em sua morfologia, deixando ao leitor o prazer de descobrir seu conteúdo substantivo.

2. O Conceito de “SETOR” na Teoria Econômica 

O uso do conceito de “setor” reflete uma visão da economia que privilegia a complexidade, a diferença entre as partes que compõem o sistema econômico. É um conceito mesoeconômico, situado entre as análises da empresa e a dos grandes agregados macroeconômicos. Sua função é reunir empresas ou atividades econômicas que apresentam elementos comuns. O nível de agregação usado – a definição de “setor” – depende do tipo de problema a ser tratado. Por exemplo, a divisão da economia em setores primário, secundário e terciário, muito usada em estudos de desenvolvimento, agrega no “secundário” “indústrias” distintas, que, em outros tipos de análise, como os de organização industrial, constituem a unidade de agregação. Mesmo a definição de “indústria” pode variar: enquanto alguns trabalhos associam a indústria a um mercado,1 outros vinculam a indústria a uma base técnica específica.2

O conceito de setor tem longa história. Suas raízes encontram-se na divisão de trabalho e na especialização. No clássico livro de Adam Smith sobre A riqueza das nações, já no capítulo inicial, argumenta-se que a separação de atividades é devida a esses dois fatores e, a seguir, é feita a distinção entre agricultura e indústria em termos da maior capacidade dessa última de “separar os diferentes ramos de trabalho”, o que explicaria por que o aumento da capacidade produtiva do trabalho é maior na indústria do que na agricultura. Em conseqüência, as nações “mais opulentas” seriam aquelas que se distinguem por sua superioridade na manufatura (Smith, 1974, p. 111). 

Corolário da especialização é a interdependência, também celebrada por Smith. Em conseqüência, a operação de um setor é um processo coletivo, em que o resultado final difere da soma das partes. Embora simplifique linearmente as relações de interdependência, a metáfora da “cadeia” que vai das matérias-primas à comercialização de produtos exprime adequadamente outra conseqüência importante da interdependência: o fato de que a força de um setor é inversamente proporcional à fraqueza de seu elo mais débil. “Ilhas de excelência” esparsas num mar de subdesenvolvimento não conduzem à superação deste.  

A interdependência também existe entre setores, o que, mais tarde, levou ao desenvolvimento de outros conceitos mesoeconômicos, como o de “complexo industrial”, que, à semelhança do conceito de “indústria”, pode ser usado para agregar setores industriais que mantêm fortes relações de compra-e-venda de produtos visando a abastecer determinado mercado (por exemplo, o complexo têxtil), ou para juntar setores que suprem mercados distintos mas que compartilham a mesma base técnica (como o complexo eletrônico). 

Finalmente, os setores (ou complexos) articulam-se para formar a estrutura produtiva de dada economia, cujo dinamismo depende dessa articulação e do peso relativo de seus componentes.  

Esses temas – especialização, interdependência e estrutura produtiva – e suas implicações para o desenvolvimento do capitalismo seriam posteriormente explorados em detalhe por Ricardo e Marx, em seus respectivos contextos históricos, como testemunham as análises que fizeram sobre a constituição do setor produtor de maquinaria e os efeitos da introdução desta no resto do sistema produtivo e sua percepção da natureza coletiva do processo de trabalho industrial. 

Apesar dessa ilustre genealogia, o conceito de setor foi relegado a um plano secundário quando a análise econômica se deslocou dos temas de desenvolvimento para a preocupação com o equilíbrio e a alocação de recursos. Admitindo-se que existam “firmas representativas”, cujo comportamento maximizador é conhecido e que operem em condições de perfeita competição, a noção de “setor” só tem sentido como uma imperfeição, resultado da rigidez técnica e, eventualmente, das preferências idiossincráticas dos consumidores. Em outras palavras, passava-se diretamente do micro (a empresa) para o macro (a economia com um todo) sem a intervenção do mesoeconômico (o setor). 

Sintomaticamente, a dimensão setorial reaparece com forte peso na obra de Schumpeter, toda ela dedicada à análise do desenvolvimento capitalista. As inovações que movem o sistema são introduzidas em setores específicos e deles se difundem pelo resto do sistema, provocando “ondas” de investimento e movimento cíclicos. 

Entretanto, na seqüência da Grande Depressão, a obra de Schumpeter seria eclipsada pelo programa de pesquisa keynesiano. Este, mesmo divergindo radicalmente da análise neoclássica, pela sua ênfase numa economia “monetária” e no horizonte de curto prazo,3 manteve o mesmo ocultamento da dimensão mesoeconômica, prometendo o crescimento mediante instrumentos de política macro. 

Mais recentemente, a retomada da hegemonia pelo programa neoclássico de pesquisas, reforçado por hipóteses como a existência de expectativas racionais, confirmou o desinteresse do mainstream econômico por análises setoriais.  

Contudo, o surgimento de um programa de pesquisas alternativo ao keynesiano e ao neoclássico, baseado nas teorias de Schumpeter, fez com que a dimensão setorial fosse retomada. Nessa perspectiva, o desenvolvimento depende da introdução de inovações. As empresas são essencialmente diferentes entre si em termos de suas competências, desaparecendo o “agente representativo” – o que demanda outra instância agregadora. Esta é dada pelos setores. 

A dimensão setorial cumpre também uma função explicativa da dinâmica econômica: os diversos setores em que as empresas atuam apresentam oportunidades distintas de introduzir inovações e têm padrões de inovação dados por “paradigmas” tecnológicos, imprimindo cumulatividade às distintas trajetórias setoriais. Assim, a composição setorial da estrutura produtiva é um determinante de dinâmica interna e de sua inserção internacional. De certa forma, voltamos a Smith. 

Embora banida por longo tempo dos debates de teoria “pura”, a dimensão setorial nunca deixou de ser tratada em análises de economia aplicada, como nos estudos de organização industrial, investimento e comércio internacional, e, conforme apontado acima, todos os teóricos do desenvolvimento do capitalismo, de Smith a Schumpeter, incorporaram essa dimensão em seu trabalho. 

3. O Setor no BNDES  

O desenvolvimento dos países que se integraram ao mundo capitalista como fornecedores de matérias-primas surge como tema específico de análise no segundo pós-guerra, alimentado pela Guerra Fria e pela descolonização. 

Nesse contexto, estabeleceu-se uma distinção importante entre “crescimento” e “desenvolvimento”: o primeiro significava a expansão da estrutura vigente, enquanto o segundo implicava mudanças estruturais.  

Durante o longo período desenvolvimentista, convencionou-se que a estrutura que devia ser mudada era a produtiva, por meio da constituição de uma infra-estrutura moderna e da industrialização, processos feitos com base em políticas setoriais específicas, conduzidas pelo Estado. A transformação da estrutura produtiva requeria, porém, uma estrutura institucional adequada em termos de financiamento. 

Um processo de desenvolvimento, que envolve a constituição de novos setores, é uma situação em que vigem problemas de incerteza “pura”, do tipo keynesiano – ou seja, uma incerteza que não pode ser eliminada por mais informações. Tal incerteza era agravada pelas características dos setores a desenvolver: vultuosos investimentos em ativos específicos destinados a projetos de longo prazo de maturação, que implicavam forte “afundamento” de recursos. O mercado de crédito e de capitais da época não apresentava instituições dispostas a assumir esse tipo de incerteza, lacuna que foi preenchida pela criação do BNDES. 

A história das aplicações do Banco reflete um duplo movimento: de um lado, a evolução das necessidades de funding de investimentos de setores essenciais a uma nova estrutura produtiva e, de outro, a constituição de mecanismos alternativos de provisão desses recursos. Assim, o BNDES foi, inicialmente, “o banco das ferrovias” e, a seguir, “o banco da eletricidade e da siderurgia”. Mais tarde, na vigência do II PND, veio a desempenhar papel fundamental na constituição de outros setores de insumos básicos, como celulose e papel e petroquímica, e da indústria de bens de capital.  

A trajetória setorial não se esgota na constituição: periodicamente, os setores necessitam passar por um processo de renovação, que, dependendo das especificidades, replica as condições de sua instalação. Embora o BNDES tenha contribuído para aperfeiçoar o mercado de crédito e de capitais brasileiro, este permanece incompleto em termos de financiamento a longo prazo. Não é, pois, acidental que a modernização de setores industriais como o petroquímico, celulose e papel, mineração e metalurgia e investimentos relacionados à infra-estrutura (transportes, energia e telecomunicações) figurem com destaque no atual Plano Estratégico do BNDES. 

A complexidade da estrutura produtiva brasileira, associada à incompletude e às deficiências da estrutura de financiamento (privado e público) no Brasil, explica também a diversificação das atividades do BNDES em direção a atividades como serviços distintos da infra-estrutura, exportação, pequenas e médias empresas e desenvolvimento social. No financiamento à exportação, emerge de forma mais nítida o corte setorial, com a forte concentração das operações no financiamento das vendas do setor aeronáutico. 

O peso assumido por um número restrito de setores na carteira do Banco postula, por si só, a necessidade da instituição de contar não apenas com um acompanhamento sistemático desses setores, mas também com o monitoramento específico das empresas mutuárias. Da mesma forma, a avaliação das propostas de financiamento submetidas ao Banco requer a competência para analisar os setores em que os candidatos ao financiamento se inserem. Em outras palavras, o BNDES, como outras instituições financeiras semelhantes, requer, operacionalmente, alto grau de inteligência setorial. Dada a diversificação das operações do Banco, este tem ainda que deter a competência para realizar a análise de novos setores. Para ser eficaz, tal conjunto de competências precisa estar institucionalizado, de forma a não depender de indivíduos específicos – o que implica contar com uma massa crítica de técnicos qualificados em análises setoriais. 

Esse tipo de consideração presidiu a decisão da diretoria do Banco de criar as Gerências Setoriais do BNDES, em 1993. 

No entanto, é importante notar que o BNDES é um instrumento do Estado. Dada a qualificação de seu pessoal, ampliada ao longo dos anos, é um dos principais aparatos do Estado brasileiro em termos de competência técnica, para além do seu peso financeiro. 

Essa competência transformou o Banco num dos principais atores do processo de formulação e execução de estratégias de desenvolvimento no país, especialmente em períodos de forte transformação produtiva, como por ocasião do Plano de Metas e do II PND, ou de mudança institucional, durante os anos 90. 

Nos próximos anos, parece provável que a atuação do BNDES como formulador e executor de políticas de alteração da estrutura produtiva se veja novamente exigida, em função das modificações que se anunciam para a estratégia de desenvolvimento do país. Para tanto, será fundamental a concepção das Gerências Setoriais como “núcleos de inteligência setorial”, agindo articuladamente com as áreas operacionais do Banco e os demais aparatos do Estado. 

4. Os Artigos deste Livro 

Este livro reúne catorze artigos sobre a experiência setorial do BNDES. O conceito de setor foi interpretado de várias formas, refletindo a experiência do Banco. Assim, o recorte adotado vai da “indústria” (siderurgia) ao “complexo industrial” (eletroeletrônica) e à “atividade” (microcrédito).  

Os estudos têm perspectiva histórica, remontando às primeiras intervenções do Banco no setor em pauta. Na maioria dos casos (energia, transportes, bens de capital, celulose e papel, petroquímica e siderurgia), a história do apoio do BNDES ao setor confunde-se com a própria história do Banco e do setor, tão intimamente entrelaçadas estão as duas trajetórias. Nos demais casos (comércio e serviços, indústria têxtil, agroindústria, eletroeletrônica e telecomunicações), a intervenção do Banco no setor, embora importante, não teve o mesmo caráter “estruturante”. A inclusão do setor “social”, abrangendo educação, saúde e microcrédito, testemunha a diversificação das atividades do BNDES e a concepção multidimensional do desenvolvimento. Em outras palavras, o livro oferece um rico painel de experiências históricas. 

Apesar da importância da recuperação da história setorial, especialmente num país onde esse tipo de informação é reconhecidamente precário, os estudos concentram sua atenção em dois outros aspectos. Em primeiro lugar, detalham a experiência recente do Banco nos respectivos setores e, em segundo, analisam as perspectivas de atuação do Banco nos setores. Dessa forma, fornecem elementos importantes para a revisão crítica do passado recente e, principalmente, contribuem para a formulação de políticas setoriais e para a própria atuação do Banco. Nesse sentido, cumprem a função estratégica das Gerências Setoriais de atuarem como centros de inteligência para a formulação de políticas de desenvolvimento.