Desenvolvimento Industrial e Tecnológico na década de 90: Uma Nova Política para um Novo Padrão de Desenvolvimento

Fabio S. Erber, Ensaios FEE vol. 13, nº 1 (1992)

This paper has fíve sections. The begining threes are esentialy analitical. In the first one it is schematicaly tried the carcterízation of a national "standard of development" starting form the "regulation approach" thesis and neoschumpeterian contribuitions. In the second one, a definition of "pattern of industrialization" is deepened by means of sectorial dinamics and industrial complex and technical evolution. In the next section, a taxonomy of industrial policy is presented from this standpoint. The last two sectins deals with brazilian case, starting from an interpretation of its industrialization and ending with proposals for industrial policy in the light of a new standard of development.

Este artigo desdobra-se em cinco seções. As três primeiras são essencialmente analíticas. Na primeira, buscamos, de forma esquemática, caracterizar um “padrão de desenvolvimento” nacional, a partir das teses da “escola de regulação” e dos autores neoschumpeterianos1. Na segunda seção, aprofundamos a caracterização de um “padrão de industrialização” pela ótica da dinâmica setorial e de complexos industriais e do progresso técnico. Na seção seguinte, apresentamos uma taxionomia das políticas industriais, seguindo essa mesma ótica. As duas últimas seções são dedicadas ao caso brasileiro, iniciando com uma interpretação da sua industrialização e, finalmente, propostas quanto às características que a política industrial deveria assumir visando a um novo padrão de desenvolvimento.

1. Padrão de desenvolvimento e padrão de Industrialização 

Por “padrão de desenvolvimento” de uma dada formação capitalista entendemos o conjunto de relações entre os agentes econômicos e sociais que garante, ao longo de um período de tempo, a manutenção dos processos de acumulação de capital e de preservação do poder político. Dentre essas relações, destacamos, no plano econômico: 

– normas de acumulação, dadas pelas relações intersetoriais e intra-setoriais de compras, progresso técnico e preços (notadamente as relações entre os setores produtores de bens de consumo e produção), pelo padrão de concorrência, pelas relações de produção, pela introdução de progresso técnico e pela criação de novos setores ou mercados; 

-normas de produção, dadas pelo grau de automação e escalas mínimas de produção, padronização dos produtos, relação produtividade/salário, formas mais ou menos hierarquizadas e rígidas de controle de processo de trabalho, fragmentação das atividades de concepção e execução, caráter coletivo ou individual do contrato de trabalho; 

– normas de consumo, composição da cesta básica dos consumidores e formas de suprimento dessa cesta básica (auto-suprimento, via agentes privados, pelo Estado); 

– normas de financiamento dos setores privado e público, relações entre autofinanciamento, crédito interno, transferências involuntárias (por exemplo, via inflação), taxação e recursos externos, relações de propriedade e de preços entre o sistema financeiro e os demais setores; 

– normas de inovação e difusão do progresso técnico, relações entre progresso técnico e desenvolvimento científico, tipos de conhecimentos científicos e tecnológicos (inclusive organizacionais), participação dos vários agentes (empresas. Estado, universidades, trabalhadores) na introdução e na difusão de conhecimentos, diferenças setoriais nesses processos, ritmo de introdução e difusão; 

– normas de intervenção do Estado, atuação do Estado como agente de resolução de conflitos políticos e de manutenção da estrutura do poder, como regulador da atividade ao nível macroeconômico, como regulador, fomentador ou estruturador de atividades, setores ou empresas específicas e como supridor direto de bens e serviços; 

– normas de inserção internacional, participação nos fluxos internacionais de comércio, financiamento, investimento e tecnologia; participação de empresas e instituições estrangeiras nas demais relações estruturais do padrão de desenvolvimento. 

Essas relações constituem-se, historicamente, em cada formação nacional. No entanto estão sujeitas a limites dados pela lógica do sistema como um todo e pela prevalência, em nível internacional, de tima dada formação hegemônica, política e economicamente, tendendo a assumir traços comuns em todos os países. 

Assim, as relações estruturais de um padrão de desenvolvimento movem-se, em nível nacional, dentro de certos limites estabelecidos em nível internacional, articulando a história nacional com a do sistema. 

Dentro desses limites, as relações são elas mesmas seletivas — elas definem um elenco de “problemas” a serem tratados e as formas de solucioná-los, assumindo um caráter cumulativo. Daí, na tradição kuhniana, as chamarmos de normas ou paradigmas. 

Um padrão de desenvolvimento é caracterizado pela solidariedade entre as diversas normas — são a complementaridade e o mútuo apoio entre as normas que garantem a estabilidade, ao longo do tempo, do padrão de desenvolvimento. 

No entanto a própria dinâmica do sistema contém, além das forças cumulativas de continuidade, elementos de transformação das normas. Alguns desses elementos, como o progresso técnico que gera novos setores que vão modificar a norma da acumulação, são endógenos ao sistema econômico. Outros, no entanto, como o progresso científico, que alimenta a inovação tecnológica, ou a resistência dos trabalhadores às normas de produção ou, ainda, projetos nacionais de poder militar e econômico, são relativamente autônomos. 

A evolução em ritmos diferenciados das várias normas faz com que a eventual estabilidade do padrão de desenvolvimento esteja sempre sujeita a crises. A crise de uma das normas (por exemplo, a redução no ritmo de acumulação devido a reduções nos aumentos de produtividade) pode ser compensada pela ação de outras normas (por exemplo, a busca de inovações que aumentem a produtividade). 

Entretanto podem surgir situações em que tais movimentos compensatórios não são possíveis e onde várias normas entram em crise de forma mais ou menos simultânea, configurando uma crise do padrão de desenvolvimento como um todo. 

É a indústria de transformação que define a dinâmica de acumulação do padrão de desenvolvimento capitalista, notadamente através dos seus encadeamentos intra e intersetoriais e pela criação de novos espaços econômicos de acumulação. Da indústria origina-se também o progresso técnico, que dinamiza os demais setores. Finalmente, o processo de trabalho industrial, que separa os produtores diretos dos meios de produção, subordinando os primeiros aos segundos e tornando o processo coletivo, serve de paradigma aos processos de trabalho dos demais setores e dá ao capitalismo sua base técnica adequada. Assim, não é de se estranhar que “padrão de desenvolvimento” e “padrão de industrialização” sejam, freqüentemente, usados como sinônimos. Não obstante, parece conveniente reservar a última expressão para as relações estruturais acima elencadas, pertinentes à indústria de transformação, dando ao padrão de processo de transformação um caráter fortemente endógeno. 

O processo de transformação industrial pelo progresso técnico é feito pelo agrupamento (“clustering”) de inovações e pela constituição de novas indústrias, que têm em comum, no mínimo, certas características tecnológicas — o que estabelece interdependências na sua dinâmica, que, assim, tem efeitos de sinergia. 

A problemática da interdependência dinâmica entre indústrias, que faz com que a resultante dos processos interativos seja distinta da soma das partes, coloca a necessidade de conduzir a análise a um nível de agregação intermediária entre o setor industrial e a macroeconomia. 

No entanto, apesar de interdependentes, as indústrias não têm o mesmo dinamismo e desempenham papéis distintos nos encadeamentos interindustriais e na mobilização de investimento, consumo e outras categorias macroeconômicas; ou seja, do ponto de vista da dinâmica industrial e da sua política, há, no sistema industrial, uma heterogeneidade e uma hierarquia, e o peso que os setores mais dinâmicos têm numa estrutura industrial serve de parâmetro para as possibilidades de desenvolvimento econômico. 

É à luz dessa constatação que deve ser interpretada a importância atribuída na literatura do desenvolvimento à falia de uma indústria de bens de capital nos países subdesenvolvidos como fator que tanto definia a especificidade do seu padrão de desenvolvimento, em comparação com os países já industrializados, como explicava um processo de acumulação de capital menos dinâmico e mais dependente do Exterior. 

Como resposta a esses fatos, desenvolveu-se, recentemente, o conceito de “complexo industrial”— um grupo de indústrias que se movem articuladamente, embora com ritmos diferenciados, sob a liderança de uma indústria motriz, que organiza o complexo. 

Na maior parte dos casos, os complexos industriais têm sido tratados pelo ângulo das relações de compra e venda inter-industriais, tanto por razões analíticas como pela facilidade que matrizes de insumo-produto oferecem para delimitar empiricamente os diversos complexos. Estes são, em regra, definidos pelo mercado — por exemplo, automotriz, onde a indústria montadora de veículos atua como organizadora e indústria hegemônica do complexo. 

Porém existem grupos de setores industriais, orientados para mercados distintos, em que a interdependência é estabelecida por uma base técnica comum, dinamizada pelo fluxo intersetorial de inovações, cujo melhor exemplo é dado pelas indústrias que compõem o complexo eletrônico, que atendem a mercados tão distintos como os de entretenimento (áudio e TV) e profissional (telecomunicações e informática), mas têm uma dinâmica interdependente. 

Nesse segundo tipo de complexo, a hegemonia é mais difusa, tendendo, porém, a recair na indústria que tenha uma alta taxa de inovações, utilizáveis pelas demais indústrias que compartilham sua base técnica. 

A Figura 1 ilustra a morfologia dos dois tipos de complexos industriais—enquanto o primeiro grupo de complexos tem a forma de uma espinha de peixe, estruturada pela hegemonia da indústria motriz, no segundo tipo, a forma é de um leque, dotado de um centro tecnológico para o qual convergem várias indústrias que atendem a diversos mercados. No caso do complexo eletrônico, a convergência tecnológica tende a reagrupar os mercados, como na telemática, processo indicado na Figura 1-B. É previsível que fenômenos análogos venham a ocorrer nas indústrias farmacêuticas e de alimentos pela introdução de processos baseados na biotecnologia. 

A forma dos dois tipos de complexo guarda relação estreita com as características dos produtos e do padrão de competição; enquanto no primeiro tipo de complexo tendem a predominar os produtos padronizados e a competição baseada em economias de escala estática, no segundo tendem a prevalecer a diversificação, baseada no progresso técnico, e as economias de escopo e aprendizado. 

A cooperação entre empresas também tende a ser distinta nos dois tipos de complexos. No primeiro, predominam acordos referentes a preços e quantidades, enquanto, no segundo tipo, ganham importância acordos de cooperação técnica (seja na fase de pesquisa pré-competitiva, seja no licenciamento de patentes e “know-how”) e “joint ventures” de produção entre firmas potencialmente competidoras e relações de cooperação técnica entre fornecedores e usuários ao longo da cadeia produtiva. 

Em decorrência dessas características, o primeiro tipo de complexo tende a ser mais rígido e estável que o segundo, tanto em termos de produtos como de empresas que dele participam. 

Araújo Júnior (1985) segue que os complexos passam, inicialmente, por uma fase formativa, em que as estratégias das firmas líderes privilegiam a exploração de uma inovação primária e o desenvolvimento de inovações secundárias, transformando seu comportamento usual. Nessa fase, a distribuição do poder dentro do complexo estaria fortemente concentrada na indústria produtora de inovações, cuja estrutura tenderia à concentração e a altas barreiras à entrada, ao passo que as demais indústrias do complexo teriam luna estrutura facilmente contestável pela indústria motriz. Ao mesmo tempo, as relações interindustriais dentro do complexo apresentariam um grau relativamente alto de indefinição. 

FIGURA 1 – A MORFOLOGIA DOS COMPLEXOS INDUSTRIAIS 

FIGURA 1 A – COMPLEXO DO TIPO INSUMO PRODUTO (INDÚSTRIAS SUPRIDORAS)

FIGURA 1 B – COMPLEXO DO TIPO TECNOLÓGICO 

Assim, articulando nossa análise com a de Araújo Júnior (1985) e às teses de ciclo de produto, na fase inicial, o complexo industrial teria a forma de leque, vista na Figura 1-B, e, na sua dinâmica, predominariam as economias de escopo e aprendizado, com as firmas líderes do complexo seguindo estratégias de diversificação e integração (horizontal e vertical) dentro do próprio complexo, com o objetivo de captar as economias proporcionadas pela base técnica. O complexo eletrônico exemplifica esse processo. 

Se não ocorrerem outras inovações primárias, o complexo tenderá à maturidade, evidenciada pela padronização de produtos, pela consolidação das relações inter-industriais, pela redução de contestabilidade dos mercados pela indústria motriz, bem como por uma redução relativa da hegemonia desta. 

Nessa fase, passam a predominar as economias de escala estática, e o complexo tende a assumir a forma de espinha de peixe. 

Araújo Júnior (1985) diz que, ao chegar à maturidade, as firmas líderes do complexo podem tanto optar por uma estratégia de diversificação de investimentos para fora do complexo, como tentar revitalizá-lo através da busca de uma nova inovação primária. No primeiro caso, o dinamismo do complexo tenderá a reduzir se, e provavelmente ocorrerão transformações substanciais na sua estrutura, ao passo que, no segundo, o ciclo pode reiniciar-se pelo “rejuvenescimento” do complexo. 

A siderurgia nos países centrais exemplifica o primeiro caso, enquanto o comportamento das grandes firmas do complexo químico em relação à biotecnologia ilustra o segundo. 

Se, no presente, as inovações têm por base a pesquisa científica, a observação dessa fronteira toma-se um fator importante na estratégia das firmas líderes dos complexos maduros. Nesse sentido, o comportamento de várias grandes firmas do complexo químico, que adquirem participações acionárias de pequenas empresas de origem acadêmica para ter conhecimento do que ocorre na área de engenharia genética, parece exemplar. 

Nessa perspectiva, de uma dinâmica industrial induzida por inovações tecnológicas, é importante destacar a heterogeneidade dos setores quanto ao seu potencial de inovação e as relações intersetoriais que se estabelecem em decorrência dessa diferenciação de papéis na geração e difusão do progresso técnico. 

A evidência empírica2, quanto aos fluxos interindustriais de inovações, mostra que os setores industriais podem ser agrupados em três grupos: 

– setores motores da inovação, aqueles que, além de gerarem o grosso das inovações que usam, são os principais supridores de inovações para o resto do sistema. De forma mais indireta, através do exemplo de seu processo de produção e controle de qualidade (por exemplo, “grau de pureza ambiental eletrônica”), definem padrões de produção e margens de tolerância para o resto da economia. No presente, esses são setores intensivos em ciência, que atuam na “ponta” da tecnologia, desenvolvendo as novas trajetórias tecnológicas para o sistema econômico — a eletrônica, novos materiais e a nova biotecnologia, neles incluídos os serviços conexos como “software”; 

– setores receptores de inovações, aqueles cuja demanda por inovações é atendida principalmente pela oferta de outros setores. Esse grupo é composto, principalmente, pelas indústrias produtoras de bens de consumo não duráveis e pelos demais setores da economia; 

– setores intermediários, aqueles cuja demanda por inovações é suprida, em parte, por esforços internos (principalmente inovações incrementais) e, em parte (as inovações mais radicais), por inovações geradas nos setores motores, eventualmente aperfeiçoadas internamente. Esses setores atuam também como supridores importantes de inovações entre si e para o segundo grupo. Compõem este último grupo os setores produtores de bens de capital, intermediários e de consumo duráveis, entre os quais se destaca, pelo papel especial na absorção e difusão do progresso técnico, a indústria de bens de capital. 

As inovações geradas no primeiro conjunto de setores tendem a ter múltiplos setores usuários, estabelecendo relações intersetoriais que, inicialmente, são tecnológicas e, a seguir, de insumo-produto e investimento. 

Os setores motores têm, porém, em comum a base científica e técnica do seu paradigma e a mesma trajetória tecnológica, que faz com que sua dinâmica seja interdependente, mesmo que forneçam a distintos mercados. Dessa forma, um novo paradigma tecnológico expressa-se no plano produtivo por um novo complexo industrial articulado pela base técnica, em forma de leque. 

Na medida em que um paradigma tecnológico, gerado no primeiro grupo de indústrias, demonstra ser superior para resolver certos problemas técnicos, econômicos e sociais, ele tende a ser adotado pelas indústrias dos outros grupos, provocando uma “destruição criadora” na base técnica destas. 

Em conseqüência, forjam-se novos vínculos intersetoriais, provocando uma transformação da estrutura industrial pela articulação entre o complexo industrial que gera o novo paradigma e os complexos industriais cuja base técnica está sendo modificada por esse paradigma. As relações em curso entre os complexos automobilístico e eletrônico são um bom exemplo desse processo. 

Na nova estrutura industrial dele decorrente, a dimensão relativa do complexo industrial vetor do novo paradigma no aparato produtivo e a sua dinâmica de expansão — isto é, os novos espaços econômicos que cria, por meio de novos produtos e processos, e os espaços de antigos complexos que ocupa, substituindo-os — dão (ou não) ao novo paradigma um caráter de inovação primária (ou não). 

O impacto do novo paradigma será maior se seus principais setores usuários forem os setores intermediários (conforme a taxionomia acima), devido ao peso que estes têm na estrutura industrial e, principalmente, pelo seu poder de encadeamento nos fluxos tecnológicos e de insumo-produto. 

Os estudos de ciclo de produto e de difusão de inovações mostram que a proximidade física, econômica e cultural entre geradores e usuários de inovações é essencial à eficiência do processo. Ao mesmo tempo, a literatura sobre transferência de tecnologia mostra que as normas que a regem não conduzem à constituição de uma capacidade de inovação nas empresas receptoras, a menos que estas realizem investimentos autônomos com esse fim.3

Em conseqüência, para que um sistema industrial seja dinâmico e competitivo em termos internacionais é necessário que conte, internalizados, com os complexos motores da inovação. 

No entanto, para que as relações intersetoriais acima discutidas possam se dar de forma eficaz e eficiente, a indústria necessita possuir sistemas de apoio adequados. No passado, concentrava-se a atenção sobre a infra-estrutura de serviços econômicos, como transporte, energia e comunicações. Mais recentemente, como reflexo das características dos setores motores e dos requisitos dos demais setores para absorverem as inovações que estes geram, incorporou-se como prioritário o conjunto das instituições tecnológicas, científicas e educacionais, que produzem os conhecimentos, e as pessoas necessárias para que as inovações surjam e se difundam pelo sistema industrial propriamente dito e pelos demais setores da economia, fornecendo-lhes indispensáveis economias externas. 

A operação conjunta do setor industrial e desses “sistemas de apoio” tem efeitos de aprendizado e sinergia, configurando uma capacidade “sistêmica” de transformação endógena. 

Essa capacidade sistêmica requer, porém, padrões de financiamento adequados aos prazos de maturação e aos riscos envolvidos nas várias atividades que compõem o sistema, articulando a norma de financiamento às normas de investimento, inovação, produção e consumo, de forma a constituir a plena capacidade sistêmica de uma economia nacional. 

2. Política industrial: uma taxionomia 

Em seção anterior, foram brevemente enumeradas as várias facetas da intervenção do Estado num sistema capitalista contemporâneo. Tanto a intervenção regulatória de natureza macroeconômica como a atuação do Estado para a reprodução da força de trabalho têm repercussões sobre a atividade industrial. No entanto esta não constitui o objetivo precípuo das referidas políticas, o que sugere ser conveniente excluí-las da política industrial em sentido estrito, reservando este último termo para aquelas medidas de política destinadas a alterar o comportamento da indústria de transformação. 

Entretanto essa distinção é apenas parcial, pois a política industrial apresenta várias relações de interdependência com as demais políticas. Assim, o comportamento das empresas industriais é afetado, por exemplo, pelas políticas monetária e fiscal, embora estas sejam desenhadas para outros fins. Em conseqüência, pode-se falar de uma política industrial “implícita” nas demais políticas econômicas. No sentido inverso, o resultado dessas políticas é influenciado pelo comportamento das empresas industriais decorrente da política industrial.

A interdependência entre as políticas acima referidas requer um marco analítico apropriado, para o qual a noção de padrão de desenvolvimento aqui esboçada parece um ponto de partida útil. 

Assim, pode-se caracterizar um padrão de desenvolvimento como “industrializante”, na medida em que as várias “normas” que definem esse padrão convergem para tomar prioritários a constituição e o desenvolvimento da indústria. Nesse contexto, verifica-se também a convergência entre políticas industriais explícitas e implícitas. 

Conforme será visto com mais detalhes na próxima seção, essa parece ser uma caracterização adequada para o padrão de desenvolvimento brasileiro no período que vai do Segundo Pós-Guerra até os anos 80. A partir dessa década, as políticas implícitas e explícitas tomam-se contraditórias, e as primeiras, de natureza recessiva, tomam-se hegemônicas. 

Tanto as políticas explícitas como as implícitas precisam dar conta da heterogeneidade que caracteriza o sistema industrial e que, em conseqüência, afeta seus resultados. Convém, pois, analisar os principais “cortes” no sistema produtivo utilizados para organizar a política industrial. 

Uma das mais tradicionais formas de estabelecer distinções em política industrial consiste em segmentá-la segundo o tamanho das empresas. Argumenta-se que devem ser estabelecidas políticas de apoio a pequenas e médias empresas, coadjuvadas por medidas de proteção contra grandes firmas, com os propósitos de fomentar a competição e, por esse meio, a eficiência do sistema econômico; estimular a inovação, no suposto de que essas firmas sejam relativamente mais inovativas, e aumentar a eqüidade econômica pela ampliação das oportunidades empresariais e pela criação de empregos, supondo-se que essas empresas tendem a utilizar mão-de-obra mais intensamente que as grandes. 

No entanto existem situações em que, dadas certas economias de escala estáticas e economias de escopo significativas, a eficiência econômica recomenda o apoio a grandes firmas. O mesmo vale para situações em que os patamares mínimos de gastos em pesquisa e desenvolvimento são elevados. Da mesma forma, observa-se com freqüência que as firmas maiores tendem a ter níveis salariais mais elevados, seja por razões de estabilidade de relações trabalhistas, seja pelo baixo peso da mão-de-obra no custo total, contribuindo, assim, para elevar a taxa média de salário. 

Essas situações contrastantes, que levam a políticas diametralmente opostas, são definidas em função de características setoriais, tanto técnicas como econômicas. Nesse sentido, é significativo que não exista qualquer indicador simples de tamanho (por exemplo, número de empregados, capital investido, etc.) que sirva para todos os setores industriais. 

O mesmo se aplica a outro critério clássico de política industrial, que estabelece distinções entre empresas de acordo com sua propriedade. 

Considerações de soberania e segurança nacional e diferenças de comportamento entre firmas nacionais e multinacionais em relação a aspectos estratégicos do desenvolvimento industrial justificam a diferenciação de políticas segundo a propriedade do capital, seja nacional, seja estrangeira, independentemente de qualquer xenofobia. 

Porém a conveniência e a oportunidade dessa diferenciação são fortemente afetadas pela inserção setorial das empresas e pelo papel que esses setores desempenham no padrão de desenvolvimento nacional. Assim, em padrões primário-exportadores, o foco das políticas que diferenciam empresas segundo o controle de suas decisões tende a recair sobre os setores produtores de matérias-primas, ao passo que, em sistemas mais complexos industrialmente, as políticas tendem a concentrar-se nos setores motores da dinâmica industrial. Nestes últimos países, toma-se, inclusive, necessário redefinir os conceitos de firma nacional e estrangeira, utilizando critérios mais complexos que o simples controle de capital, como o domínio da capacidade de inovação. 

As mesmas razões de segurança e soberania nacional, associadas à incapacidade ou à falta de vontade de capitais privados nacionais para realizar investimentos ou à decisão de subsidiar determinados tipos de consumidores, podem levar o Estado a assumir a responsabilidade de supridor direto de bens e serviços, constituindo empresas industriais sob seu controle total ou parcial, que serão objeto de políticas específicas.

 Da mesma forma, a conveniência e a oportunidade desse tipo de diferenciação dependem, fundamentalmente, das características do setor em que essas empresas serão estabelecidas, sejam características técnico-econômicas, como a escala mínima e o prazo de maturação dos investimentos, sejam as relações que existem entre o setor e os demais. 

Em síntese, embora as empresas sejam o objeto último da política industrial, o setor em que se inserem constitui o principal elemento organizador do seu comportamento e, em consequência, da política industrial. 

Em sistemas em que a malha de relações interindustriais se encontra bastante constituída, como é o caso brasileiro, as interdependências setoriais apontam a conveniência de tratar a política industrial também ao nível de complexos industriais, que expressam a articulação dinâmica dos setores. 

É importante notar que a política por complexos não prescinde de políticas setoriais dirigidas para as indústrias componentes do complexo, tampouco consiste em uma superposição de políticas setoriais. Seu enfoque difere destas últimas, complementando-o, por concentrar-se nos vínculos entre os setores e, conseqüentemente, nos desequilíbrios existentes nas relações intersetoriais, seja no nível da produção, seja no dos fluxos de investimento e tecnologia. 

Atuando no marco setorial ou de complexo, a política industrial torna-se operacional, incidindo sobre o comportamento das empresas através de instrumentos que tanto estimulam certas ações como impõem sanções a outras. 

Entre os instrumentos de estímulo, convém distinguir aqueles que se destinam a reduzir os custos das empresas dos que têm por finalidade diminuir a incerteza com que estas operam. 

Os instrumentos redutores de custos podem estar orientados tanto para o uso de determinados recursos como para a realização de determinadas atividades. Exemplificando, entre os primeiros encontram-se medidas destinadas a reduzir o custo do uso de insumos e bens de capital importados por meio de taxas de câmbio e tarifas especiais ou medidas de estímulo ao uso de bens de capital nacional via incentivos fiscais e craütícios. Os mesmos instrumentos podem ser dirigidos para atividades que a empresa exerça, como a pesquisa e o desenvolvimento ou o investimento em instalações produtivas. 

A redução da incerteza pode abarcar três dimensões: a incerteza técnica — que a firma seja capaz de produzir bens e serviços dentro de certos critérios técnicos —, a incerteza econômica — que a firma, embora sendo capaz de produzir os bens e serviços tecnicamente adequados, não encontre mercado para eles — e, finalmente, a incerteza financeira — que a firma não disponha de recursos em montante e prazo adequados aos seus fluxos de gastos e rendimentos. 

A primeira dimensão é normalmente tratada por meio de instrumentos que aumentam a competitividade sistêmica, especialmente pela formação de recursos humanos através de instituições especializadas. 

A redução da incerteza econômica centra-se em tomo do mercado. Encontram-se nesse âmbito as políticas que regulam o acesso e a permanência, em mercados específicos, de produtos e fabricantes, por meio de restrições à importação, reservas de mercado para certos tipos de produtores e demais barreiras “à entrada e saída”. De uma forma mais geral, esse nível de incerteza é fortemente afetado pela evolução das atividades econômicas no país e no Exterior. 

Finalmente, a redução da incerteza financeira remete aos critérios e procedimentos operacionais do sistema financeiro e do mercado de capitais, sobre os quais o Estado influi por vários meios, tanto diretamente, através de suas instituições financeiras, como indiretamente, via políticas fiscal e monetária. 

Em contrapartida a essas medidas de estímulo a determinadas atividades empresariais, o Estado só utilizar outros instrumentos que visam coibir comportamentos socialmente indesejáveis, como o abuso do poder econômico, via medidas antitruste, e a poluição do meio ambiente, via multas e outras penalidades. Em regra, esses instrumentos redundam em aumentos de custos para os infratores. Sua eficácia como elemento dissuasor de comportamentos indesejados parece, porém, depender tanto da eficiência do sistema jurídico e, consequentemente, da credibilidade deste, como do valor das penalidades. 

Cabe reiterar dois pontos já discutidos anteriormente. Em primeiro lugar, a articulação entre política industrial e demais políticas. Estas últimas podem inviabilizar a política industrial, por exemplo, aumentando a incerteza econômica e financeira das atividades industriais. 

Em segundo lugar, é importante notar que a importância e a própria aplicabilidade dos vários tipos de instrumentos varia de acordo com as características do setor em que a empresa está inserida. 

Em síntese, pode-se dividir a política industrial, por setores ou complexos, em três grandes tipos, seguindo um critério de abrangência decrescente: 

estruturante, quando o Estado atua diretamente na montagem de um setor ou complexo industrial, criando, simultaneamente, o mercado (por exemplo, via restrições à importação ou políticas de compras) e seus fornecedores, tanto por meio de empresas públicas, como pela definição de regras de participação de empresas privadas (por exemplo, reservas de mercado por nacionalidade ou tamanho de empresa). Nesses casos, combinam-se medidas redutoras de custos e riscos para as empresas, com ênfase nas segundas, e são comuns as distinções quanto à nacionalidade das empresas participantes; 

fomento, quando o Estado define incentivos para certas atividades e condicionalidades para o uso desses incentivos, mas deixa ao mercado a estruturação final do setor. Nesses casos, tendem a predominar as medidas redutoras de custos para as empresas. São também comuns as medidas que diferenciam empresas, embora sejam mais frequentes aquelas que dizem respeito ao tamanho da firma do que a sua nacionalidade; 

normalização, quando o Estado atua no nível de produtos e processos, definindo suas características, por exemplo, segundo critérios de segurança dos consumidores ou de poluição ambiental, basicamente através de medidas redutoras de custos e de imposição de sanções, sem distinções quanto ao tipo de empresas. 

Dependendo da inserção internacional do país e da posição competitiva dos setores industriais nacionais, essas políticas podem ter caráter ofensivo, quando destinadas a conquistar espaços competitivos na arena internacional, ou defensivo, quando visam adequar setores nacionais a novas situações internacionais, tanto pela simples proteção como pela completa reestruturação. 

É importante notar que o formato de espinha de peixe dos complexos industriais facilita a implementação de políticas, especialmente as de caráter estruturante, por permitir centrar a política sobre a indústria hegemônica do complexo. 

No entanto diversas razões fazem com que a ação do Estado privilegie os setores motores da inovação como objeto de política, mesmo que tenham forma de leque: 

– o seu caráter estratégico para o resto do sistema econômico nacional em termos de influência sobre o padrão de industrialização e sobre o padrão de desenvolvimento como um todo; 

– a grande incidência de “imperfeições de mercado” nesses setores, como a incerteza e o tempo de maturação dos investimentos, fortes efeitos de aprendizado, conhecimentos científicos, tecnológicos e produtivos personalizados, dificuldade de apropriação de resultados (mesmo com leis de proteção à propriedade intelectual) e, cumulativamente, a intervenção de outros Estados nacionais; 

– o seu caráter estratégico em termos de comércio internacional, onde seus produtos apresentam as maiores taxas de crescimento; 

– o seu caráter estratégico em termos militares, onde constituem o cerne dos sistemas avançados; 

– a sua alta visibilidade política, que faz com que sejam símbolos de “modernidade” e sucesso do regime; 

– o seu caráter estratégico em termos de manutenção da lei e da ordem pública, inclusive pela força. Nos países centrais, a intervenção do Estado nos setores motores da inovação foi de cunho marcadamente estruturante e ofensivo, através de um conjunto de medidas caracterizado pela abrangência, cobrindo todas as atividades da firma; 

– financiamento a gastos em pesquisa e desenvolvimento em instituições de pesquisa governamentais e acadêmicas; 

– financiamento e incentivos fiscais a gastos em pesquisa e desenvolvimento em empresas; 

– financiamento às linhas de produção das empresas; 

– políticas de compras de instituições governamentais restritas a firmas nacionais e que ensejavam economias de aprendizado, de escopo e de escala; 

– políticas de ordenação de oferta no mercado intemo, por exemplo, via fusões de empresas; 

– políticas de proteção contra importações e/ou entrada de competidores do Exterior; 

– políticas de apoio à exportação. 

A intervenção do Estado foi tão mais estruturante quanto mais novo era o complexo portador do novo paradigma — assim, foi mais estruturante para a eletrônica, onde se constituiu um novo complexo industrial, do que para a biotecnologia, estabelecida a partir de complexos industriais já existentes e em processo de rejuvenescimento. 

Nos setores intermediários no fluxo de inovações, a intervenção foi mais de caráter de fomento, combinando elementos ofensivos, dirigidos especialmente para a absorção do progresso técnico gerado no primeiro bloco (a exemplo dos programas destinados a fomentar o uso de dispositivos microeletrônicos na indústria de máquinas-ferramentas) e defensivos, para a proteção contra a competição externa. 

Por fim, no último grupo de indústrias, aquelas que são essencialmente receptoras do progresso técnico, a intervenção do Estado foi especificamente de caráter normativo e defensivo, cabendo, porém, notar que, em alguns casos, a definição de normas mais estritas para produtos e processos, visando à proteção dos consumidores e do meio-ambiente, obrigou essas indústrias a ampliarem seus esforços de pesquisa e desenvolvimento. 

A Figura 2 sintetiza as relações entre a intervenção estatal, o papel desempenhado pelos setores industriais no progresso técnico e o tipo de medida aplicado às empresas. No eixo vertical, define-se o papel dos setores na geração e difusão de progresso técnico; e, no eixo horizontal, apresenta-se tanto a abrangência da intervenção do Estado como a relação entre medidas redutoras de riscos e redutoras de custos. 

FIGURA 2 – INTERVENÇÃO DO ESTADO, POR SETORES, DE ACORDO COM O PAPEL DESTES NA DINÂMICA TECNOLÓGICA DA INDÚSTRIA 

NOTA: 

  1. As setas indicam os principais fluxos de inovações. 
  2. A representação gráfica adotada simplifica a extensão das medidas. As medidas de política para os setores “motores” e “intermediários” podem envolver uma política “estruturante” para os setores “receptores”. Assim, para os setores “motores” e “intermediários” a sua representação gráfica poderia ser estendida à esquerda. 

3. O padrão de industrialização brasileiro 

O padrão de industrialização brasileiro apresenta conhecidas especificidades que o singularizam no Mundo. Estabelecido sob a dinâmica da substituição de importações, onde as restrições externas constituíam causa e, a seguir, conseqüência da industrialização, renovando a sua dinâmica, levou à montagem, na década de 50, de uma estrutura industrial marcada pelo desequilíbrio entre os setores de bens de consumo (duráveis e não duráveis) e os setores produtores de bens de produção (notadamente bens de capital). 

Tampouco se estabelece no país uma norma de inovação interna, devido, em parte, à gravitação que assumiriam no padrão de industrialização as empresas estrangeiras, cuja lógica é a de utilizar a tecnologia desenvolvida nos países centrais, induzindo fornecedores e competidores locais a comportamento análogo e, complementarmente, o precário desenvolvimento dos sistemas educacional, científico e tecnológico nacionais. 

Nesse período, o Estado brasileiro pratica uma política estruturante para os setores de infra-estrutura e de produtos intermediários, notadamente através de empresas estatais e do BNDE, e uma política de fomento para os setores de bens duráveis e de bens de capital, especialmente através do controle de importações. 

Com a expansão do período 1968-73, liderada pelo setor de bens de consumo duráveis, com base no mercado interno, ao amparo de políticas de fomento industrial e de estruturação financeira, os desequilíbrios acima mencionados não foram eliminados. Completado o “pacote” de investimento de bens duráveis e ressurgindo as restrições externas pelo aumento dos preços do petróleo e das importações de bens de capital, lançou-se o Estado, com o segundo PND, à etapa final da substituição de importações, estruturando a produção local de bens intermediários e de capital através de suas empresas públicas, do BNDES e do endividamento externo. Com essas políticas, alterou-se a estrutura da indústria e suas relações com o Exterior, estabelecendo um padrão mais próximo dos países centrais, embora singularizado por baixos coeficientes de importação. 

Contemporaneamente (e este é um fato curiosamente relegado nas análises do período), tomam-se medidas para estabelecer no País uma norma de inovação interna e setores motores do progresso técnico sob controle nacional — computadores, aeronáutica, equipamentos de telecomunicações, armamentos e energia nuclear. 

A política de inovação desdobra-se em duas frentes: de um lado, o Estado estrutura o setor de pós-graduação e pesquisa científica, dando-lhe nova dimensão, e lança os fundamentos dos serviços de tecnologia básica, de uso generalizado — normalização, metrologia, propriedade intelectual; de outro, faz uma política de fomento às atividades de inovações das empresas nacionais através de crédito subsidiado e faz um ensaio de política estruturante através das empresas estatais, nelas montando centros de pesquisa e procurando combinar a política de compras com financiamentos à pesquisa e à produção para capacitar tecnologicamente os fornecedores dessas empresas. 

As políticas para os setores motores caracterizam-se pelo objetivo de buscar o controle nacional sobre a produção e a capacitação tecnológica, configurando um padrão distinto do observado em outros setores, especialmente no que tange à tecnologia nacional. 

No entanto a ação estruturante do Estado variou bastante de acordo com os setores e obteve resultados bem diferenciados. Onde o setor não era ocupado por firmas estrangeiras, reduzindo, pois, os conflitos internos, a forma do complexo era de espinha de peixe, a política foi consistente ao longo do tempo, e os vários instrumentos (controle de importação, barreiras à entrada de competidores estrangeiros, compras do Estado, financiamento para pesquisa e desenvolvimento e produção, incentivos fiscais para capitalização e exportação, constituição do tecido industrial de fornecedores e do tecido tecnológico de instituições de pesquisa e de formação de recursos humanos) foram utilizados de forma convergente, a exemplo do ocorrido no setor aeronáutico, cujo sucesso, inclusive no mercado externo, foi inequívoco. 

Nas áreas onde já existiam empresas estrangeiras instaladas, a forma do complexo era de leque, e a política estruturante foi parcial, em parte devido às próprias condições iniciais, como na eletrônica, onde os resultados também foram mais limitados. Por outro lado, o caso da energia nuclear parece demonstrar que uma política estruturante de largo espectro não é garantia de sucesso se as escolhas estratégicas iniciais são equivocadas. 

Apesar das limitações, entre as quais se destaca um protecionismo desordenado e casuístico, estabelecido produto a produto, sem dar a devida atenção aos vínculos interindustriais e às condições de aprendizagem futura, o padrão de industrialização que tendia a estabelecer-se no fim dos anos 70 era um padrão moderno — ao mesmo tempo em que se completava verticalmente a estrutura industrial tradicional, constituindo os setores supridores de bens de produção, lançavam-se as bases para os setores motores e para a capacidade de inovação, que permitiriam dinamizar o sistema e dar-lhe competitividade internacional. 

Com efeito, o sucesso exportador brasileiro não está baseado apenas em salários miseráveis e incentivos fiscais, embora estes pesem para certas firmas e setores. Uma parte substancial desse sucesso apóia-se em baixos custos oriundos de instalações produtivas modernas — como em produtos intermediários — e na capacidade de projetar e produzir bens de relativa complexidade, adequados a mercados específicos — como em bens de capital e armamentos. 

Não obstante, o padrão de desenvolvimento associado a esse padrão de industrialização revelava graves desequilíbrios. Embora diversos estudos4 apontem a redução da pobreza no País entre 1970 e 1980 e os bens duráveis se façam cada vez mais presentes na norma de consumo, prefigurando um mercado de massas, a oferta de serviços básicos — saúde, educação, transporte, proteção ao meio-ambiente, etc. — a cargo do Estado, era, no mínimo, precaríssima. Entretanto a crise dos anos 80, que veio frear bruscamente o desenvolvimento da industrialização, não se origina da inadequação da norma de consumo às de produção e acumulação, por mais desigual e iníqua que sejam as distribuições de renda e riqueza no País. Tampouco é uma crise oriunda do esgotamento de um conjunto de inovações primárias e da perda de dinamismo das relações intersetoriais, como ocorre nos países centrais. Diferentemente desses países, no Brasil o padrão de desenvolvimento industrial prefigurado na segunda metade dos anos 70 não chega a amadurecer, e o corte vem pelo lado financeiro. 

A norma de financiamento do padrão de desenvolvimento brasileiro apóia-se num tripé que viria a demonstrar-se frágil — o endividamento externo, a dívida pública e as transferências de renda via inflação. 

Essa norma de financiamento é caracterizada por sua gravitação em tomo do Estado. Este, por meio de recursos fiscais e de um crescente endividamento, interno e externo, vai não só se abastecer de recursos para suas funções desenvolvimentistas e de bem-estar (aquelas privilegiadas em relação às segundas), como vai suprir o setor privado de recursos, especialmente para investimentos de prazo mais longo, via créditos subsidiados, incentivos fiscais e baixos preços dos bens e serviços que produz diretamente. Mais ainda, pelo controle das políticas salarial e dos preços, fornece parâmetros para o autofinanciamento e, pelas políticas monetária e creditícia, define as condições de operação do sistema financeiro privado. 

Fracassada a tentativa dos anos 60 de envolver este último no financiamento e no investimento de longo prazo, cabe ao Estado a responsabilidade única pelo crédito para o processo de acumulação, ficando o setor privado com o financiamento a curto e médio prazos para empresas e consumidores de bens duráveis. Uma das principais características da norma brasileira de financiamento é que nela não se estabelecem as relações de longo prazo entre capitais privados financeiros e industriais, típicos de padrões de desenvolvimento industrial complexos. No Brasil, não ocorrem as relações entre grandes bancos e grupos industriais ao estilo da Alemanha e do Japão, tampouco surgem as relações entre instituições financeiras especializadas (inclusive de “venture” capital) e empresas industriais como nos Estados Unidos. Por sua vez, o mercado de capitais acionário é de dimensão insignificante, concentrado em poucos papéis e sujeito a fortes pressões especulativas. 

Cabe salientar a natureza cumulativa e seletiva dessa norma de financiamento, para a qual convergem: os altos lucros do setor financeiro em operações de curto prazo e baixo risco, desestimulando-o a buscar aplicações alternativas; o caráter crônico da inflação, que permite o repasse de custos aos consumidores; a repressão às reivindicações salariais; a possibilidade do endividamento externo, que permite, por um tempo, evitar transformações internas; e, finalmente, a própria ação do Estado que, como agente transferidor de recursos, referenda e reforça o funcionamento da norma. 

Essa norma de financiamento rompe-se do lado externo, com a brusca subida das taxas de juros, determinada por injunções da política econômica dos Estados Unidos, e com o redirecionamento dos fluxos financeiros internacionais para longe do Hemisfério Sul. No entanto é provável que, mesmo que a ruptura externa não tivesse ocorrido, a norma de financiamento viesse a se tomar inviável pelo lado intemo. As demandas postas ao Estado pela continuidade das suas tarefas desenvolvimentistas e pela necessidade de ampliar suas funções de bem-estar requeriam uma transformação de estrutura de captação e distribuição de recursos e uma modificação do perfil da dívida pública interna. 

Incapacitado, politicamente, de proceder a essas transformações, o Estado viu-se crescentemente presa do padrão de financiamento, por ele controlado e não mais o controlando, processo que se expressa pelo aumento da dívida pública, que passa a se auto-alimentar. 

Perdida a funcionalidade da ação do Estado e rompido o fluxo externo, a norma de financiamento passa a apoiar-se cada vez mais em mecanismos de transferências via preços relativos, que são alimentados pelo próprio colapso do padrão de financiamento do Estado, até que a inflação assuma também um caráter disfuncional para o processo de acumulação. 

Nos anos 80, a crise da norma de financiamento estende-se ao resto do sistema. Os desequilíbrios já existentes na norma de consumo e na sua articulação com as demais normas agravam-se pela deterioração dos serviços básicos e pelo achatamento salarial. Convergentemente, as demais normas passam a funcionar de modo perverso — a acumulação privada torna-se predominantemente financeira, e os investimentos públicos são drasticamente cortados em nome do equilíbrio financeiro. O desenvolvimento da norma de inovação é abortado pela brusca redução de fundos públicos e pelo desestímulo à inovação privada, tendendo a norma de produção a estagnar o seu processo técnico. Finalmente, a face regulatória do Estado entra em conflito com seus lados de bem-estar e desenvolvimentista, impondo sua lógica contracionista, que, à exceção do esforço exportador e do breve período do Plano Cruzado, se torna hegemônica. 

Após quase uma década de crescimento industrial espasmódico, o que era essencialmente uma crise financeira se toma uma crise industrial propriamente dita, em termos da capacidade tecnológica de produção do parque nacional e, conseqüentemente, da sua competitividade internacional, o que se soma à deficiência crônica da capacidade tecnológica de projeto e pesquisa, herdada do período de substituição de importações. 

Nesse contexto, a política industrial, exceto nos textos governamentais, desaparece na prática, embora se sustentem algumas políticas setoriais de maior alcance, como a da informática. 

No fim da década, porém, a política industrial dá alguns sinais de vida através de uma reforma tarifária que racionaliza os níveis de proteção e de reformulação dos incentivos fiscais, que são reorientados principalmente para as indústrias de alta tecnologia e para atividades de inovação tecnológica. Visando maior eficácia e transparência, a política passa a ser concebida em termos de Programas Setoriais Integrados, pelos quais busca-se articular as políticas industrial, tecnológica e educacional ao nível de complexos industriais. 

No entanto, inseridas num contexto macroeconômico recessivo e propostas por um Governo de baixa credibilidade e em fim de mandato, essas medidas têm alcance curto, não chegando a afetar o comportamento do setor empresarial de forma significativa. 

O presente Governo, ao implantar uma política macroeconômica de cunho fortemente recessivo, propõe uma profunda alteração no sentido da política industrial. 

Esta é concebida como uma “pinça”. De um lado, busca-se aumentar a pressão competitiva sobre as firmas estabelecidas no País, combinando pressões internas (leis antitruste e de proteção ao consumidor, privatização de empresas públicas) e externas (liberalização das importações, do investimento estrangeiro e das regras de propriedade intelectual); de outro, pretende-se aumentar a competitividade das empresas, ampliando os gastos federais em ciência e tecnologia e estendendo créditos às empresas para sua capacitação tecnológica. 

As duas partes da “pinça” são desequilibradas em termos de força dos instrumentos e em termos de “timing”. A primeira parte incide diretamente sobre o cerne das atividades empresariais, o mercado, agravando a incerteza econômica gerada pelo contexto macroeconômico, e já tem um cronograma de execução definido, ao passo que a segunda atua apenas sobre uma parte das atividades da empresa (relativas à capacitação tecnológica), e a disponibilidade de recursos públicos para implementá-la é muito incerta. Mesmo ao nível de capacitação tecnológica, é provável que a capacidade de inovação interna seja inibida pela competição externa. 

Em conseqüência, longe de prefigurar um novo padrão de desenvolvimento industrial, é provável que a atual política reforce os aspectos negativos herdados do padrão anterior. 

É importante, finalmente, notar que esse processo se dá num contexto internacional marcado pelos aspectos colocados a seguir. 

  1. a) Aumento da competição entre os países capitalistas centrais, com o aumento do peso relativo comercial e financeiro do Japão e redução da hegemonia americana. Essa competição traduz-se em: 

políticas estruturantes dos setores motores da inovação, que vêm constituindo uma nova revolução tecnológica e industrial; 

políticas defensivas e de fomento dos demais setores, visando absorver o progresso técnico gerado nos setores motores; 

acordo de cooperação intersetorial entre empresas nos setores de ponta, espontâneos e/ou patrocinados pelos Estados, a exemplo dos programas da CEE (ESPRIT, RACE, EUREKA); 

formação de blocos econômicos regionais institucionalizados (CEE, EUA/Canadá) ou não (EUA/México, Japão/NICs do sudeste asiático). 

  1. b) Concentração dos fluxos econômicos (comércio, investimento e tecnologia) no Hemisfério Norte, regulamentados de acordo com seus interesses (propriedade intelectual, serviços, etc). 
  2. c) Emergência dos NICs asiáticos como atores importantes no piano comercial.

Esse contexto internacional contém uma forte tendência concentradora de atividades econômicas no Hemisfério Norte, reduzindo o espaço de acumulação dos países recentemente industrializados como o Brasil, a menos que o Estado, a exemplo de alguns NICs asiáticos, empreenda políticas que, aproveitando o potencial das novas tecnologias, contrabalancem o seu efeito concentrador. 

4. O padrão de desenvolvimento e a política industrial nos anos 90 

4.1. Estabilização e política industrial 

As relações entre processos de industrialização e inflação são complexas. Em períodos de rápida transformação da estrutura industrial, tendem a ocorrer bruscas mudanças de preços relativos nos mercados de produtos e fatores. Ao mesmo tempo em que geram pressões inflacionárias, provocando movimentos defensivos em outros mercados, essas mudanças constituem um dos mecanismos clássicos de financiamento da industrialização, especialmente em contextos onde o sistema financeiro carece de instrumentos e agilidade para cumprir essa função. Em conseqüência, um processo de rápida industrialização frequentemente está associado a um processo de inflação, que lhe é funcional. 

No entanto essa relação não é linear — em altos níveis, a inflação perde o seu caráter funcional para a industrialização, tomando-se, ao contrário, “patológica” para esse processo. Encurtando drasticamente todos os horizontes operacionais das empresas e tomando o investimento financeiro o mais rentável, a alta inflação acaba por tomar-se essencialmente antiindustrial. 

O desenvolvimento brasileiro do Pós-Guerra ilustra bem essas situações — após três décadas e meia de compatibilidade entre industrialização e inflação, no último decênio a relação tomou-se contraditória, gerando um consenso quanto à necessidade de estabelecer-se uma mínima estabilidade de preços como condição de retomada do processo de desenvolvimento industrial. 

O presente Governo vem buscando obter essa estabilidade através de uma política monetária ativa, que tem mantido as taxas de juros em níveis muito elevados, e de uma política fiscal de redução do déficit público mediante cortes nos gastos de pessoal e investimentos e nas transferências vinculadas à dívida mobiliária federal. 

Essas medidas de natureza geral vêm sendo coadjuvadas pelo uso de instrumentos antitruste e pela ameaça da liberalização das importações, dirigidas contra empresas que apresentem elevações de preços julgadas “abusivas” pelo Governo. 

Dessa fonna, o Governo parece buscar a estabilidade de preços, principalmente através de políticas que impõem sanções às empresas que elevem seus preços, seja deprimindo o nível de demanda agregada, seja penalizando diretamente comportamentos “abusivos”. 

Em contrapartida, o Governo prometeu conceder, a partir do corrente ano, estímulos creditícios e fiscais às empresas que realizem gastos de modernização e capacitação tecnológica. 

O sucesso obtido até o momento na política de estabilização é muito parcial e à custa de uma severa contração nos níveis de produção industrial. Inexistindo uma política de rendas, sendo fracos os estímulos concedidos ao desenvolvimento industrial e dado um contexto internacional pouco favorável (conforme a seção anterior), é previsível que, mantida a atual política, a recessão venha a aprofundar-se. 

Estudos sobre a recessão do início dos anos 80 (Almeida e Ortega, 1987, e Almeida, 1988) sugerem que as firmas de grande porte, notadamente as de propriedade estrangeira, têm melhores condições para atuar nesse contexto, enquanto as empresas estatais, devido ao setor em que atuam e à sua estrutura financeira, onerada por preços administrados, são as mais prejudicadas. 

A retração de atividades decorrentes do encarecimento do capital de giro e da queda de demanda final tende a afetar mais diretamente os fornecedores de insumos industriais. Finalmente, o achatamento dos níveis salariais, combinado com o alto custo do crédito ao consumidor, tende a deprimir a demanda por bens duráveis, especialmente os de maior valor unitário. 

Assim, em síntese, a atual política macroeconômica vai na direção de reduzir a capacidade produtiva e tecnológica da indústria brasileira, mas seus efeitos recessivos tendem a ser diferenciados segundo os setores, propriedade e tamanho das empresas. Provavelmente, os mais afetados serão os setores motores e intermediários do progresso técnico, ou seja, o núcleo dinâmico do processo de desenvolvimento industrial. Dentro desses setores, as empresas nacionais, especialmente as privadas de pequeno e médio portes e as estatais, serão as mais afetadas, acentuando a heterogeneidade estrutural da indústria. 

A presente política macroeconômica não é a única viável. Há combinações de medidas alternativas à atual, cujos efeitos industriais são mais positivos. No entanto não só foge ao escopo deste artigo detalhá-las, como delas não parece cogitar o Governo. Realisticamente, pois, resta trabalhar com a conjectura de que a atual política será mantida e torcer para que o objetivo de estabilização seja atingido no prazo mais curto possível e, portanto, com os menores danos. 

4.2. A reconstrução da capacidade industrial: as novas normas de produção, acumulação e inovação 

Recompor a capacidade industrial do País, a partir da herança dos processos de substituição de importações e de estabilização, num contexto internacional distinto, constituirá a principal tarefa da futura política industrial. 

Capacidade é utilizada aqui no seu sentido sistêmico, abrangendo as atividades da indústria de transformação e a infra-estrutura que lhe dá apoio. 

4.2.1. Infra-estrutura econômica, social e tecnológica 

A infra-estrutura econômica (energia, transportes, comunicações) brasileira sofreu, ao longo dos últimos anos, um grave processo de deterioração intimamente ligado aos investimentos públicos, que é necessário reverter. Embora sobre essa necessidade não pairem dúvidas, o modelo institucional que será utilizado ainda está por ser definido. O presente Governo, por razões financeiras e ideológicas, anunciou a intenção de estender o processo de privatização também a essas áreas, tradicionalmente de responsabilidade do Estado. 

Para este autor parece improvável que essa transferência de responsabilidades venha a dar-se de forma ampla, dadas as escalas de investimento que se fazem necessárias, os prazos de maturação envolvidos e a pressão generalizada dos usuários sobre os preços desses serviços, limitando, pela própria natureza estrutural das atividades, as possibilidades de valorização dos capitais investidos. Porém não é improvável que segmentos dessas atividades, menos sujeitos às restrições acima expostas, venham a ser privatizados (por exemplo, comunicações internacionais). 

Nesta última hipótese, é possível que, no longo prazo, esgotado o resultado da transferência de patrimônio, a manutenção e a expansão dos segmentos menos comercialmente rentáveis venham a onerar financeiramente o Estado mais ainda que no presente. 

A intensidade e as características do progresso técnico recente conferiram aos serviços de infra-estrutura social (educação, saúde, transporte de massas, etc.) uma importância industrial que antes não tinham, especialmente no Brasil, onde a formação de recursos humanos sempre foi relegada a um plano ultra-secundário e esses serviços são precaríssimos. 

Dadas as características de execução e apropriação de resultados desse tipo de investimento, a responsabilidade pela sua implementação cabe, inequivocamente, ao Estado, conforme mesmo o atual Governo reconhece. 

Finalmente, a infra-estrutura industrial é completada pelas atividades de base do sistema nacional de inovação, que fornecem recursos humanos, conhecimentos científicos e tecnológicos, etc, que são utilizados por todos os partícipes do sistema, inclusive as empresas industriais. 

Essa infra-estrutura científica e tecnológica, constituída por universidades, sistemas de informação e normas técnicas, metrologia, etc, está implantada no País de forma muito precária, cabendo ao Estado, pelas mesmas razões acima vistas, a responsabilidade principal pelo seu estabelecimento. 

Em síntese, para recompor a capacidade industrial do País, será necessário um grande esforço, institucional e financeiro, por parte do Estado para constituir os principais segmentos da infra-estrutura que garantem uma competitividade sistêmica às atividades industriais e articulam a política industrial a outros âmbitos. 

4.2.2. Estrutura industrial 

O processo de substituição de importações legou ao País uma complexa estrutura industrial, que, provavelmente, sobreviverá ao período de estabilização. 

A densidade da malha de relações interindustriais sugere a conveniência, por razões antes discutidas, de conceber-se a política industrial ao nível de complexos industriais. Tendo, porém, em vista a precariedade da infra-estrutura industrial, seria igualmente produtivo agregar aos complexos propriamente ditos seus requisitos infra-estruturais, dando à competitividade sistêmica o tratamento integrado que lhe é pertinente. 

No Brasil, essa abordagem foi prefigurada na política industrial definida no Decreto-Lei nº 2.433/88, que nunca chegou a ser implementada, cabendo, numa futura política industrial, resgatar o conceito, aperfeiçoando seus instrumentos de execução. 

Entretanto, conforme foi visto anteriormente, os setores e complexos industriais cumprem papéis diferenciados no processo de desenvolvimento e encontram-se em estágios distintos de amadurecimento no Brasil, demandando, pois, políticas diferenciadas. 

4.2.2.1. O estabelecimento dos setores motores 

Do ponto de vista estrutural, é prioritário dar prosseguimento ao processo de implantação dos setores motores de inovação, tanto pelo papel que estes representam na dinâmica industrial moderna como pela sua precariedade no País. 

Dadas as características da economia brasileira, abrem-se nesses setores grandes espaços de acumulação. No entanto esses espaços permanecerão virtuais, mesmo em condições de estabilidade de preços, se não se efetivarem alguns outros requisitos. 

Em primeiro lugar, dada a natureza “infante” desses setores, é necessário adotar medidas redutoras de riscos. Parece pouco provável que, dado o seu estágio de amadurecimento, esses setores possam contar, no curto prazo, com o acesso ao mercado internacional de forma substancial. Assim, durante um certo tempo, o mercado intemo será seu principal sustento, e a ele deverão ser destinadas as principais medidas de redução do risco econômico. 

Essas medidas envolvem, de um lado, a proteção contra importações e, de outro, o fomento ao uso intemo dos bens e serviços gerados por esses setores. 

A proteção contra importações não pode assumir o caráter indiscriminado e perpétuo do período de substituição de importações, seja por razões econômicas, seja por falta de legitimidade política. Assim, deveria centrar-se em “famílias de produtos”, em que existissem economias de escopo e aprendizado, sujeitas a acordos entre Governo e empresas quanto a objetivos de preços/qualidade a serem alcançados em horizontes de tempo previamente pactados. 

Embora a tarifa seja o instrumento clássico de proteção, as características dos bens e serviços produzidos pelos setores motores, que são definidos por uma multiplicidade de atributos, prestam-se ao uso de instrumentos não tarifários, que não deveriam ser descartados. 

O uso interno desses bens e serviços fabricados localmente pode ser fomentado mediante um conjunto de medidas dirigidas aos seus consumidores, visando reduzir sejam os riscos desse uso, seja seu custo. No primeiro grupo, destacam-se políticas que fortaleçam a capacidade dos fornecedores de prestar, direta ou indiretamente, serviços de assistência técnica, bem como políticas de difusão de conhecimentos a respeito dos bens e serviços. No segundo grupo, encontram-se as medidas clássicas de redução de custo, como crédito e incentivos fiscais, aplicáveis de forma geral à aquisição desses bens. Finalmente, o Estado dispõe, através do seu poder de compra direto, de um poderoso instrumento de redução do risco econômico, cuja eficácia é comprovada, sujeita, no entanto, às mesmas qualificações pertinentes à proteção contra as importações. 

Pelas próprias características dos setores motores antes discutidas, o risco técnico é neles alto. Esse risco é comensurado à capacidade tecnológica que se pretende atingir, e esta é uma das decisões estratégicas da política industrial, devido a suas implicações em termos de dinâmica interna do sistema industrial, de sua inserção internacional, tanto em termos comerciais como dos papéis representados por firmas internacionais e, de forma ampla, das relações entre o Estado e a sociedade civil. 

Nesses setores, mais que nos demais, é desejável obter uma capacidade de inovação, devido aos seus efeitos econômicos, sociais e políticos. Ao mesmo tempo, aqui, maiores são as dificuldades para lograr essa capacidade, pela própria rapidez do progresso técnico, sua complexidade cognitiva, escalas crescentes de gastos mínimos e pelas restrições existentes à transferência internacional de conhecimentos, decorrentes tanto da operação do mercado de tecnologia como da estratégia de firmas internacionais. 

Em conseqüência, impõe-se uma seletividade na busca de uma capacidade de inovação. Em princípio, esta deveria ser orientada para famílias de produtos e processos dotados de economias de escopo, de uso amplo e para os quais as especificidades do mercado brasileiro trouxessem vantagens naturais de proximidade entre fornecedores e usuários. Os produtos utilizados para automação bancária, resultado bem sucedido da política de informática, constituem uma boa aproximação. Políticas sociais, por exemplo, nos campos da educação e da saúde, inclusive de reaparelhamento das agências governamentais, constituem outras áreas a serem exploradas. 

A capacidade de inovação tem as mesmas características de uma indústria” infante” (economias de escala estáticas e dinâmicas, efeitos de aprendizado e sinergia, etc), que justificam sua proteção contra a competição externa, ao custo de um hiato tecnológico em relação à fronteira internacional. 

Entretanto, diferentemente do caso da indústria “infante”, onde a proteção está baseada no acesso dos produtos ao mercado, a defesa da capacidade de inovação requer, para ser eficaz, que o acesso ao mercado interno seja vedado tanto aos produtos fabricados no Exterior como às técnicas que expressam a inovação externa. 

Estabelece-se, a esse propósito, uma distinção crucial entre firmas sob controle nacional e estrangeiro, posto que é parte da lógica destas últimas utilizar as técnicas desenvolvidas nos países avançados, induzindo o mesmo comportamento em seus competidores nacionais. É ilusório imaginar que firmas multinacionais venham a desenvolver uma capacidade de inovação no País, mesmo que o Governo lhes conceda incentivos para tal, seja atuando isoladamente, seja em “joint-ventures” com firmas nacionais. 

Assim, a proteção à capacidade de inovação requer o estabelecimento de condições diferenciadas para firmas nacionais e estrangeiras que protejam as primeiras da competição tecnológica das segundas. 

Na argumentação acima sumariada, justificava-se a política de reserva de mercado para firmas nacionais, instituída para a informática e que mereceu ser estendida a outros setores motores, modificada de modo a tomar-se mais seletiva em termos de produtos e processos e condicionada à obtenção de resultados que evidenciassem uma progressiva redução do hiato tecnológico antes mencionado. 

Por constituir um modelo utilizável em outros setores além da informática e por estabelecer distinções entre firmas nacionais e estrangeiras, a política de reserva de mercado tomou-se o centro de um debate que atualiza o nacionalismo. Problemas de gestão da política, como a sua seletividade, não logram esconder o seu ceme — a diferenciação de interesses nacionais, que se traduz em lógicas e comportamentos dos atores econômicos e políticos distintos segundo a nacionalidade. 

No momento, o nacionalismo encontra-se em refluxo, e o presente Governo liquidou, na prática, com a política de informática. No entanto a diferenciação acima mencionada garante a permanência do debate, e a Constituição brasileira, em seu artigo 171, estabelece o marco legal para traduzir essa diferenciação em política econômica. 

A reserva de mercado, tal como aparecia na política de informática, constituía a forma mais completa de diferenciação redutora de riscos, técnicos e econômicos, centrada no mercado. É possível que, mesmo havendo um revigoramento do nacionalismo, o que é previsível, não existam condições para restabelecê-la, embora com as qualificações (seletividade, objetivos definidos com horizonte certo, etc.) acima postas. 

O uso do poder de compra do Estado de forma diferenciada, previsto no mesmo artigo da Constituição, constituiria, nesse caso, uma versão reduzida de reserva a ser utilizada como meio de privilegiar os bens e serviços localmente concebidos. 

A esse instrumento poderiam somar-se outros, como o aporte de capital de risco ou créditos para pesquisa e desenvolvimento reembolsáveis apenas em caso de sucesso do projeto, diferenciados segundo a nacionalidade da empresa, bem como o estímulo à associação de empresas nacionais para a realização de projetos científicos e tecnológicos e, de uma forma mais geral, o reforço dos segmentos do sistema científico e tecnológico que abastecem os setores motores de recursos para inovação. 

Estes últimos instrumentos não são incompatíveis com a reserva de mercado plena. Com efeito, uma das singularidades da política de informática e causa parcial dos seus problemas foi o uso quase exclusivo da reserva como instrumento. 

Qualquer que seja a combinação de mecanismo adotada, é inequívoco que a diferenciação de empresas segundo a origem do capital não passa despercebida e traz custos econômicos e políticos não triviais, decorrentes, inclusive, da ação de outros governos. Tanto esses custos como os benefícios resultantes de uma maior capacidade de inovação não são redutíveis a um cálculo monetário, dependendo de valores como o apreço pela independência de decisões. Aqui, revela-se plenamente a politização da política industrial. 

Enfatizou-se acima a capacidade de inovação tanto pela sua importância nos setores motores como pelos conflitos que a sua constituição traz. Porém a capacidade técnica desses setores não se reduz à inovação, e a política industrial deverá buscar reduzir os riscos e, notadamente, os custos das demais competências técnicas dos mesmos mediante o uso de instrumentos como créditos e incentivos fiscais e pelo reforço do sistema científico e tecnológico que se articula mais intimamente a eles, na ótica de complexo acima proposta. 

A dimensão financeira da política de constituição dos setores motores foi comentada em diversas passagens deste texto, e a ela voltaremos mais tarde, ao discutir a norma de financiamento que deveria presidir um novo padrão de desenvolvimento industrial. 

4.2.2.2. A modernização dos demais setores 

Os setores intermediários e receptores do progresso técnico encontram-se, “grosso modo”, já implantados no Brasil. No entanto, ao cabo do processo de estabilização, deverão encontrar-se numa situação de capacidade produtiva ao mesmo tempo ociosa e obsoleta, especialmente os setores fornecedores de meios de produção, que, como vimos anteriormente, tendem a ser os mais atingidos. 

Concomitantemente, se o presente Governo tiver implementado o seu programa de privatização de empresas públicas, na área de insumos industriais terá ocorrido uma substancial transferência de ativos para o setor privado. Dadas as características desses setores, parece provável que neles a privatização avance mais celeremente que nos serviços de infra-estrutura, e é previsível que os novos proprietários, livres das peias que vêm impedindo a modernização das empresas estatais, estejam dispostos a acelerar sua atualização tecnológica. 

É de se desejar que a futura política industrial se desenrole num contexto político que provoque modificações na iníqua distribuição de renda nacional. Nesse contexto, haverá uma grande pressão, tanto sobre os setores supridores de serviços sociais como sobre os setores industriais fornecedores de bens-salários, que são, essencialmente, receptores de progresso técnico. 

Todos esses setores poderão responder a um movimento inicial de recuperação econômica, utilizando a capacidade ociosa, mas esta não apaga a necessidade de uma atualização tecnológica — apenas concede-lhes um curto tempo para tomar as medidas, técnicas e financeiras, requeridas para esse fim. 

O processo de atualização tecnológica demandará novos conhecimentos e novos meios de produção, ativando as relações interindustriais e com o sistema científico e tecnológico. Dessa maneira, pode-se estabelecer um “círculo virtuoso” de acumulação e progresso técnico — a base para um novo ciclo de desenvolvimento industrial. 

Nesse processo, os setores motores da inovação e os sistemas científico e tecnológico e educacional encontrariam nos setores intermediários e receptores do progresso técnico seus principais mercados, validando o estabelecimento e o reforço daqueles sistemas e setores. 

Essa visão fortalece, uma vez mais, a necessidade de abordar-se a política industrial ao nível de complexos industriais e das relações destes com outros sistemas, como o de produção e difusão de conhecimentos e de formação de recursos humanos. 

Nesse contexto, a futura política industrial distinguir-se-ia das anteriores pela ênfase na capacitação tecnológica, que envolve não só a inovação como a difusão de novos processos produtivos. Medidas como as sugeridas acima para os setores motores visam, precisamente, estabelecer outro “círculo virtuoso” na economia brasileira — o da inovação-difusão. 

Note-se, também, que as características atuais do progresso técnico privilegiam modificações nas relações entre firmas ao longo da mesma cadeia produtiva (por exemplo, “just-in-time” externo), o que tende a reforçar a conveniência de adotar uma abordagem por complexos industriais. 

Ao mesmo tempo, o progresso técnico atual vem recolocando em questão a rigidez das normas de relação entre trabalhadores e administradores de empresas, tanto pela exaustão do padrão fordista como pelas possibilidades de flexibilização baseada na automação fundamentada na microeletrônica. Introduzir essa nova norma de produção no Brasil constitui um desafio que vai muito além da política industrial, implicando grandes transformações na “cultura” empresarial do País e, em última instância, no contexto político nacional. 

É previsível que a oferta nacional não seja suficiente para atender à demanda oriunda desse processo de atualização, que solicitará importações significativas de meios de produção e tecnologia. Havendo restrições de divisas, essas importações deveriam ser privilegiadas. 

O exemplo de ciclos anteriores de desenvolvimento industrial no Brasil mostra que as importações de bens de capital são fortemente pró-cíclicas e que, em fases de forte desenvolvimento, tende a haver espaço seja para essas importações, seja para a oferta local. 

Não obstante, a atualização tecnológica da indústria de bens de capital nacional é fundamental nesse contexto, bem como o estabelecimento de condições de financiamento competitivas com o Exterior. 

A importação de tecnologia deveria ser especialmente estimulada, por exemplo, através de incentivos fiscais, desde que fosse vinculada a esforços locais de desenvolvimento tecnológico, conforme o que foi proposto no Decreto-Lei nº 2.433/88. 

As filiais de firmas multinacionais poderiam desempenhar um papel importante na introdução de novas técnicas de organização social da produção, como elemento difusor dessas técnicas ao longo da cadeia produtiva em que operam e, eventualmente, para outras firmas do setor. Incentivos com esse fim poderiam ser acordados no âmbito de uma política por complexos. 

A análise anterior enfatizou as vantagens decorrentes da existência de uma densa malha de relações industriais no Brasil, fruto do processo de substituição de importações. No entanto é hoje consensual que esse processo foi levado a extremos, havendo atividades industriais cuja presença só se justifica em condições de extrema restrição de divisas. 

A abertura seletiva às importações preconizada a seguir provavelmente levará à redução do nível de atividades em alguns ramos industriais, principalmente nos setores intermediários do progresso técnico. Essa redução deveria ser administrada por meio de medidas que minimizassem os custos sociais envolvidos, especialmente para os trabalhadores, que deveriam merecer programas de retreinamento e relocação de emprego. 

As medidas acima sugeridas, para todos os setores, concedem estímulos para que as empresas adotem comportamentos julgados socialmente desejáveis. Entretanto tais benefícios devem ter uma contrapartida de resultados — daí a insistência no caráter pactuado que a política industrial deve assumir. Em decorrência, o instrumental dessa política deve incorporar medidas que imponham sanções às empresas que não cumpram os acordos sem justificação ou que tenham comportamento inadequado do ponto de vista social. 

Nesse sentido, a reformulação de leis que coíbem o abuso do poder econômico e que protegem os consumidores, iniciada pelo presente Governo, bem como o uso das importações como elemento de pressão sobre fabricantes nacionais constituem parte integrante desse instrumental, que deveria ser complementado por uma reforma no sistema judiciário que assegurasse a efetiva aplicação da lei e de suas penalidades, tomando o sistema de sanções mais dissuasório que punitivo. 

O uso desse instrumental não implica uma adesão ao ideário neoliberal, nem um movimento em direção a um mítico estado de concorrência perfeita. Ao contrário, reconhece-se a prevalência do oligopólio como forma de organização típica da indústria moderna, frequentemente a menos “contestável”. Mais além, em vários setores no Brasil, seria conveniente reduzir o número de ofertantes existente para lograr economias de escala estática e induzir a associação entre os restantes para realizar projetos conjuntos, especialmente de pesquisa e desenvolvimento. 

Essas características definem-se setorialmente, assim como é ao nível do setor que melhor se detectam comportamentos a serem penalizados, remetendo, nesse aspecto, também a uma política industrial enfocada pelo ângulo setorial. 

4.3. A nova norma de financiamento 

A retomada do processo de desenvolvimento industrial passa pela transformação da norma de financiamento do padrão de desenvolvimento brasileiro e, dada a gravitação do Estado nessa norma, pela redefinição dos papéis que o Estado cumpre. A análise anterior sugere que a norma de financiamento atual é totalmente inadequada a uma retomada do desenvolvimento e que é necessário reformular, ao mesmo tempo, todos os seus componentes e suas inter-relações. 

Assim, é pouco provável que se possa contar com aportes significativos de recursos do Exterior, mesmo na hipótese otimista de uma renegociação exitosa da dívida. 

Dado o peso assumido pelo Estado na norma de financiamento brasileira, qualquer solução passa pela modificação do seu padrão de financiamento. As medidas de política industrial acima propostas implicam um aumento de demanda por recursos das várias esferas do Estado, tanto do Tesouro como das agências financeiras e empresas sob seu controle. 

Parece consensual que a capacidade financeira do Estado só pode ser alcançada mediante uma profunda revisão das fontes tributárias e, ao mesmo tempo, uma transformação das transferências implícitas nas condições de pagamento da dívida pública, interna e externa, dos incentivos fiscais e dos preços dos bens e serviços diretamente fornecidos pelo Estado. 

A utilização da capacidade já existe nos setores motores, especialmente na informática, e pode levar a um aumento substancial de produtividade em várias atividades desempenhadas pelo Estado, notadamente em serviços básicos, reduzindo a necessidade adicional de recursos — processo que tenderá a ampliar-se na medida em que os setores motores amadureçam, formando um “círculo virtuoso” de produtividade entre demanda pública e oferta privada, que justifica, inclusive, a prioridade a ser dada àqueles setores industriais e serviços conexos. 

O mesmo tipo de “círculo virtuoso” pode ser estabelecido entre as empresas estatais, os setores intermediários fornecedores de seus insumos e bens de capital e os setores motores. Cabe notar que, no passado recente, essas empresas sofreram de forma perversa o efeito de sua “ambiguidade estrutural” — de serem, ao mesmo tempo, empresas, norteadas por uma lógica de acumulação, e Estado, onde várias lógicas coexistem. Nos últimos anos, dominou a “rationale” de utilizar essas empresas como elementos de captação de recursos no Exterior e, através dos seus preços, de controle da inflação e de subsídios aos seus consumidores. Oneradas pelos custos financeiros e impedidas de se autofinanciarem via mercado, o corte de recursos do Tesouro, em nome da redução do déficit público, veio a completar o processo de estagnação de investimentos e o progresso técnico, ou seja, a utilização dessas empresas como instrumentos de política financeira de curto prazo do Estado prevaleceu em detrimento de seu uso como elemento de desenvolvimento industrial. 

Para financiar essas empresas, seria conveniente centralizar suas operações financeiras em um único agente, que poderia ser, por suas características de banco múltiplo sob controle da União, o Banco do Brasil. 

Essa centralização poderia ser acompanhada por uma reestruturação do conjunto de agências federais de financiamento, entre as quais se destacam o BNDES, a CEF e a FINEP, além do Banco do Brasil (especialmente depois da criação do Banco de Investimento deste), articulando suas operações. 

Nesse contexto, o Banco de investimento do Banco do Brasil, se devidamente aparelhado, pode desempenhar um papel-chave. Exemplificando, o Banco poderia utilizar mecanismos de crédito e capital de risco para reduzir os custos e riscos de empresas situadas em setores estratégicos, notadamente os setores motores, onde há maior carência das duas formas de recursos de longo prazo. 

Nessas áreas, onde a inteligência é, freqüentemente, o principal recurso, as práticas usuais de exigências de garantias reais para financiamento agravam os problemas de incerteza e longo prazo de maturação, impedindo o surgimento de empresas de pequeno porte, intensivas em tecnologia. O BB poderia desempenhar proficuamente no Brasil um papel análogo ao das instituições de capital de risco americanas, através de uma estratégia de “portfólio”, que combinaria lucros privados, inclusive para o Banco, e alta rentabilidade social. Dado que os investimentos nessas empresas tendem a ser de uma escala relativa reduzida, o risco dessa ação para o Banco não seria excessivo. 

Além do apoio específico e privilegiado aos setores motores da inovação, o BB pode ser o grande agente financeiro do processo de difusão de tecnologia, explorando sua capilaridade regional. A possibilidade que tem de financiar todas as atividades de uma empresa, ao contrário de outras agências federais, como o BNDES e a FINEP, que são especializadas, permite-lhe ser um financiador singular do processo de inovação e difusão, agindo isoladamente ou em conjunto com outras instituições. 

Assim, o BB poderia trabalhar em conjunto com a FINEP na difusão de conhecimentos técnicos (inclusive organizacionais) já disponíveis no País, em firmas de consultoria, institutos de pesquisa e universidades, divulgando a existência desses conhecimentos, identificados a partir da experiência da FINEP, e concedendo créditos às empresas que desejassem utilizá-los. Dessa forma, estreitar-se-iam os vínculos entre geração e uso de tecnologia no País, num “círculo virtuoso” que proporcionaria aumentos de produtividade e economias de escala tanto no uso como na geração. 

A redistribuição de recursos tributários da área federal para os estados operada pela Constituição poderá levar ao revigoramento dos bancos estaduais de desenvolvimento (até o presente meros repassadores de fundos federais), tomando conveniente e necessário articular esses bancos às agências federais. 

Finalmente, as agências federais de financiamento poderiam alavancar o desenvolvimento do setor financeiro privado no crédito e no investimento de longo prazo, mediante operações conjuntas sob sua liderança. 

A transformação da norma de financiamento envolve uma maior participação do setor financeiro privado na provisão de recursos de longo prazo para investimento. Alguns desenvolvimentos recentes, como a participação dos dois maiores bancos comerciais no capital de firmas do setor eletrônico, indicam um caminho possível, mas outros, explorando, por exemplo, os novos bancos múltiplos e a ação articulada entre agências públicas e o sistema privado, devem ser explorados. 

Esse envolvimento seria facilitado se o setor financeiro privado, a exemplo de outros países, buscasse inovar suas operações passivas e ativas (por exemplo, através de operações de “securitization”). Esse processo, fortemente condicionado pela queda da taxa de inflação e dos altos lucros que esta traz aos bancos, poderia ser incentivado por medidas fiscais e pela desregulamentação do setor financeiro que estimulassem a entrada de outros atores no mercado (tais como companhias de seguro). 

Finalmente, a nova norma de financiamento deveria propiciar a associação de empresas para a realização de projetos de pesquisa e desenvolvimento e para o investimento. 

As modificações da norma de financiamento anteriormente sugeridas reduziriam a importância dos mecanismos inflacionários, atuando sobre uma das principais causas estruturais da crônica inflação brasileira. 

No entanto, como os mecanismos inflacionários respondem, em boa medida, por uma disputa redistributiva com um horizonte de curtíssimo prazo, a eficácia da modificação da norma de financiamento provavelmente depende de uma política de rendas que administre as mudanças de preços relativos, combinando elementos de estímulo (reduções de custos, especialmente) com sanções que sejam previsíveis e efetivamente implementadas. 

4.4. Normas de inserção internacional 

Conforme visto anteriormente, o contexto econômico e político mundial encontra-se em fase de grandes transformações, que impõem modificações nas normas de inserção internacional da economia brasileira. 

As características continentais da economia brasileira e sua história industrial condicionam a sua inserção internacional. Essas dimensões levam a um padrão de desenvolvimento em que o principal elemento dinâmico é o mercado intemo, tanto pela demanda final como pelas relações intersetoriais. Essa feição tenderá a manter-se, mesmo que a inserção internacional se modifique. 

Infelizmente, o quadro internacional não é favorável ao Brasil. No plano comercial, o processo de formação de blocos econômicos e de crescente protecionismo dos países avançados, tanto em produtos manufaturados como em bens primários, tende a limitar o crescimento das exportações. A importação de tecnologia tomar-se-ia cada vez mais difícil, especialmente nas áreas de ponta. Finalmente, é pouco provável que os fluxos de investimentos diretos e financiamento abandonem a órbita do Hemisfério Norte de forma significativa. Se, como parece no modelo, houver, adicionalmente, uma redução do nível de atividade nos países avançados, as tendências negativas acima delineadas serão substancialmente reforçadas. 

No presente, a inserção internacional da economia brasileira é altamente desequilibrada. Em termos comerciais, o processo de substituição de importações foi levado às últimas conseqüências, importando-se, na prática, apenas o que não podia ser fabricado no País. Do lado das exportações, após grandes sucessos em termos de expansão e diversificação de pauta e destino, há uma crescente preocupação com a sua competitividade internacional, especialmente dos produtos manufaturados. Com efeito, recursos naturais abundantes, baixos salários e incentivos fiscais constituem uma base competitiva frágil no mercado internacional atual. 

Em termos de tecnologia, o País também tem importado pouco e principalmente (cerca de 80% dos gastos) serviços técnicos, especialmente os que envolvem pouca transferência efetiva de conhecimentos. Esse baixo nível de importação parece ser o resultado da crise dos anos 80. No mesmo período, as exportações nessa área tomaram-se negligenciáveis após o fechamento dos mercados dos países latino-americanos e africanos. 

Finalmente, a mesma crise (e o padrão de financiamento a ela associado) levou a um estancamento dos fluxos de entrada de capitais, tanto de risco como de financiamento, tomando o País um remetente de recursos para o Exterior. 

A política industrial do atual Governo tem privilegiado a abertura da economia ao Exterior, através da liberalização das importações, da revisão das posições de negociação do GATT e de mudanças na legislação sobre propriedade industrial e capital estrangeiro que visam ampliar o espaço de ação de firmas estrangeiras no País. Ao mesmo tempo, o Governo apresentou uma inovadora proposta de negociação da dívida externa, centrada sobre a capacidade de pagamento do Estado. Em contrapartida, não há uma política de elevar o nível tecnológico das exportações. 

Alinhadas ao ideário neoliberal, de interesse dos países avançados, essas medidas, até o presente, estiveram mais subordinadas a uma lógica de estabilização do que de desenvolvimento industrial. Assim, a título de exemplo, a liberalização das importações parece concebida mais como um instrumento de pressão sobre preços internos do que como meio de aumentar a produtividade do sistema econômico. Pode-se mesmo conjecturar que essa política de alinhamento (onde se incluiriam mudanças nas políticas de vendas externas de armamento e na área nuclear) vise obter melhores condições de negociação da dívida externa, elemento crucial de uma política de estabilização. 

Uma nova política industrial, nos moldes daquela antes esboçada, introduziria mudanças significativas nas normas de inserção propostas pelo atual Governo. No plano das importações, embora concordando com a necessidade de ampliar o coeficiente de abertura da indústria instalada, administraria esse processo com o objetivo de atualizar tecnologicamente o parque produtivo, privilegiando a importação de bens de produção. Esse objetivo, no entanto, não exclui a utilização das importações como elemento de pressão para que os fabricantes locais realizem dados objetivos, produtivos e tecnológicos. 

Sob esse critério, não seria necessário abrir mão do uso de barreiras não tarifárias como uma questão de princípio, cabendo utilizar esses instrumentos de forma pontual, sempre que o uso da tarifa não seja viável.

A política de comércio exterior deveria ainda abranger um componente de melhoria do conteúdo tecnológico das exportações como parte integrante da abordagem por complexos. Embora as medidas antes sugeridas (capacitação tecnológica, formação de recursos humanos, etc.) contribuam para superar a atual competitividade “espúria” das exportações brasileiras, a penetração em mercados externos exige medidas específicas. Estas podem ser melhor equacionadas no âmbito de programas que as integrem a medidas voltadas para o mercado interno, rompendo os dualismos exportações/mercado interno e política de comércio exterior/política industrial característicos do passado. 

Conforme sugerido anteriormente, a importação de tecnologia deveria ser substancialmente incentivada, desde que esses incentivos fossem condicionados à realização de esforços de desenvolvimento tecnológico local. Essa orientação, prevista no Decreto-Lei nº 2.433/88, foi recentemente recuperada na proposta governamental de capacitação tecnológica e deveria ser mantida. 

Contrariamente à visão neoliberal, a proposta aqui esboçada sugere que a atuação do capital estrangeiro deve ser negociada, atendendo às especificidades da lógica de comportamento de grandes grupos internacionais, para os quais o Brasil é uma área marginal. Conforme prevê a Constituição, empresas de capital nacional deveriam receber um tratamento preferencial pela política industrial, visando, especialmente, à constituição de uma capacidade de inovação endógena, principalmente nos setores motores, é sujeito à consecução de objetivos previamente acordados. 

Ao mesmo tempo em que a política industrial deve reconhecer as limitações que a lógica de empresas multinacionais impõe à contribuição dessas firmas à capacidade tecnológica do País, essa política deve buscar maximizar os efeitos positivos da atuação de suas filiais compatíveis com essa lógica. 

No quadro que se prevê para o futuro próximo, a política industrial deve incentivar essas empresas a introduzirem no País técnicas de fabricação moderna e a difundirem esses procedimentos (notadamente os relativos à organização da produção e gestão de qualidade) ao longo da cadeia produtiva em que operam. E a capacidade exportadora dessas empresas deve ser explorada, enfatizando-se as práticas de subcontratação com fornecedores locais e a difusão de conhecimentos relativos à operação em mercados externos. 

Sob a mesma ótica, essas firmas deveriam ser estimuladas a estabelecer vínculos com o sistema científico e tecnológico nacional. Mesmo que, realisticamente, os trabalhos encomendados não constituam a ponta da pesquisa e desenvolvimento dessas empresas, esses vínculos darão ao referido sistema uma importante experiência de relação com a indústria, além de recursos financeiros adicionais. 

Em alguns setores intensivos em recursos naturais específicos do País, é mesmo possível que as firmas multinacionais tenham interesse em desenvolver uma capacidade de inovação nas suas filiais locais. Esses esforços deveriam ser estimulados, especialmente mediante relações com o sistema científico e tecnológico que assegurassem a socialização de, pelo menos, parte dos conhecimentos, reduzindo seu “encapsulamento” no âmbito do grupo internacional. 

A mesma postura que reconhece tanto as diferenças como as comunidades de interesses nacionais deveria informar a postura negociável do país em fóruns internacionais, como o GATT e OMPI, onde deveria ser retomada a posição, de defesa da implantação dos setores motores da inovação em condições protegidas, a exemplo do que fizeram os países avançados no passado. 

Finalmente, a situação geográfica do País enfatiza a conveniência de dar prosseguimento, de forma acelerada, ao processo de integração latino-americana, iniciado no último Governo e aprofundado no atual. 

Para concluir, é importante reconhecer que a inserção internacional do País passa, necessariamente, pela renegociação da dívida externa. A inovadora proposta do atual Governo, que deixaria uma razoável margem de manobra para o seu sucessor, vem encontrando fortes resistências por parte dos credores, sendo impossível antecipar o resultado final da negociação. Convém, entretanto, alertar que alternativas de cunho mais ortodoxo provavelmente introduzirão uma substancial restrição de divisas ao desenvolvimento industrial, com o provável efeito de reduzir a margem de abertura da economia brasileira. 

4.5. Normas de intervenção do Estado 

As diversas medidas sugeridas para transformar as normas de acumulação, produção, consumo e financiamento que conformam o padrão de desenvolvimento brasileiro requerem uma profunda modificação nas normas de atuação do Estado. 

É inútil insistir que essas normas estão em frontal oposição ao receituário neoliberal. As demandas de um padrão de desenvolvimento mais eficiente e mais justo impõem uma participação significativa do Estado. Por outro lado, tampouco se trata de reivindicar o presente padrão de intervenção que é reconhecidamente ineficiente e injusto, especialmente após a degradação imposta aos aparatos estatais na última década. 

A norma de intervenção aqui proposta se caracteriza pela seletividade, pela flexibilidade e pelo seu caráter negociado e transparente. É preciso definir objetivos de política industrial e ter em conta a heterogeneidade de recursos necessários para atingi-los (expressa na tentativa formal de taxionomia acima proposta). Esses recursos de política têm que ser utilizados de modo abrangente, consistente e coerente, com um horizonte de tempo adequado (por exemplo, para o aprendizado nas indústrias “infantes”). Reiterar esses truísmos só se justifica, provavelmente, à luz do que foi a política para a indústria na última década. Cabe, porém, insistir que as novas tecnologias, notadamente a informática, fornecem a base técnica adequada a um Estado moderno. 

É também oportuno reiterar que as condições políticas em que se desenvolve o novo padrão de intervenção alteram-no substancialmente em relação ao passado próximo. A retomada de poderes pelo Legislativo, a descentralização de recursos para os estados e a organização da sociedade civil em torno de temas de política industrial, como os efeitos sociais e ecológicos desta, introduzem novos atores no quadro de formulação da mesma, exigem uma maior transparência nos objetivos de política e um acompanhamento mais detalhado de seus resultados. 

Ao mesmo tempo, as relações entre os atores tradicionais da política industrial — empresários nacionais e estrangeiros e aparatos de Estado — também serão modificados. Assim, se as políticas para os setores motores privilegiarem as empresas nacionais, conforme sugerido na Constituição, conflitos análogos aos da informática, que dividiram os atores acima citados e transbordaram para o Legislativo e a sociedade civil, deverão repetir-se. Da mesma forma, a maior seletividade na proteção a ser dada à produção local contra as importações tende a gerar conflitos ao longo das cadeias produtivas, conforme a sua incidência. 

Não há cálculo estritamente econômico que resolva esses inevitáveis conflitos, que são permeados tanto por valores políticos relativos ao controle de decisões e à soberania nacional como por horizontes de tempo distintos. 

Até o presente, a maioria desses conflitos foi resolvida de forma casuística e, no mais das vezes, em círculos restritos (a informática com sua legislação aprovada pelo Congresso é, novamente, uma exceção), características incompatíveis com o novo padrão político do País. 

Em conseqüência, a nova política industrial requer um novo arcabouço institucional, tanto para sua concepção como para sua implementação e acompanhamento, que garanta uma maior transparência e controle social. Algumas das medidas antes sugeridas, como a política por complexos, têm, entre outras, as virtudes acima mencionadas. 

É falacioso argumentar que a democratização da vida política é contraditória com o planejamento e com um Estado forte. Ao contrário, na medida em que o Estado é utilizado como instrumento de um padrão de desenvolvimento mais rápido e equitativo, ele serve ao processo de democratização. A verdadeira questão é a do controle das decisões do Estado, que, no atual padrão de desenvolvimento, feitas “in camera”, casuisticamente, privatizaram os benefícios em privilégio de poucos e socializaram os custos. Para esse controle, o planejamento é instrumento indispensável.